5-9-2013
UMA TESE DE DOUTORAMENTO VIRADA DO AVESSO
O Doutor Yllan de Mattos publicou na Internet a tese apresentada em Fevereiro de 2013 ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, com o titulo “A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681)”. Já a conhecia no essencial, porque o autor ma enviara solicitando as minhas observações. Aliás, o presente texto não teria sido escrito, se ele tivesse sido correcto para comigo. Não foi. Li com atenção a tese, durante uns três ou quatro dias, fiz dezenas de sugestões e correcções que lhe enviei. Não agradeceu, nem sequer acusou a recepção. Ao publicar na Internet, juntou um pequeno acrescento (pag. 192, nota 495), agradecendo-me por eu o ter sugerido, mais nada. De fora ficaram as correcções que indiquei e ele alterou, sendo embora verdade que não concordou com a maior parte das sugestões.
O título da tese não corresponde ao seu conteúdo. Embora o autor diga no início que referirá tanto os críticos da Inquisição, como os seus defensores, a verdade é que dá muito maior relevância a estes últimos.
São mencionados alguns documentos do séc. XVII com críticas à Inquisição, mas praticamente referidos de passagem, sem qualquer descrição do seu conteúdo, difusão, importância que tiveram. etc. O verdadeiro tema da tese é “Como no séc. XVII a Inquisição se defendeu daqueles que a criticavam e conseguiu triunfar no fim”. Por isso, digo eu que o tema foi virado do avesso.
De facto, o autor pouco ou nada ligou aos documentos importantes que menciona e onde foi criticada severamente a Inquisição Portuguesa. Refere as Noticias Recônditas, a Relação de Charles Dellon, os textos do Capelão anglicano Michael Geddes [1], os Reparos ao Auto da Fé de 10-5-1682, mas praticamente nada diz do seu conteúdo. Na Relação de Charles Dellon, preocupa-se com as imagens que o acompanharam (pag.163), mas nada sobre o texto. Mas estes foram os documentos que tiveram repercussão internacional e contribuíram para a chamada “lenda negra da inquisição”. O autor, na sequência de outros, tende a desvalorizar esta má fama, que considera exagerada.
Da minha parte, entendo que a “lenda” da inquisição portuguesa nunca será suficientemente negra, pois a realidade tê-lo-á sido muito mais.
Está hoje provado que a Inquisição Portuguesa foi essencialmente uma estância de poder, um poder tão forte que se sobrepunha ao do Rei e ao da própria estrutura eclesiástica. O combate à heresia não passa de uma treta do tempo. Como é que o preso dos Estaus pode sair de lá crente na fé católica, depois de, em nome dessa fé, ter sido torturado, desconsiderado, humilhado e apenas estar feliz porque escapou com vida?
Pode dizer-se de facto que não foi muito elevado o número dos mortos no patíbulo, não deverá ter passado dos três mil. Mas não era menos terrível a sorte dos “reconciliados”. Saíam dos cárceres doentes, aleijados, desprovidos de tudo, sem outro remédio que não fosse estender a mão à caridade; e esses foram dezenas de milhares. Como é possível imaginar que ficariam com amor à fé católica, pela qual tinham sido tão maltratados?
Não sei como é possível acreditar ainda hoje nessa balela que é dizer que a Inquisição defendia a fé católica.
Aceitando que a Inquisição era apenas uma estância de poder, alguns historiadores tratam no entanto os Inquisidores como meninos de coro. Tendo o poder na mão, exerciam-no e não eram certamente meigos a tratar com os presos. Há processos onde os Inquisidores foram tão desavergonhados que deram ordem aos Notários para anotarem no processo que o réu foi mandado açoitar.
Não se pode esquecer que o poder corrompe e, por isso, os Inquisidores não podiam ser santos.
A prepotência e a perversidade são uma constante em todos os processos da Inquisição.
A base do processo inquisitorial é, já por si, um absurdo: a religião católica é a religião do Estado, os hereges estão sujeitos à pena de morte. Isto vai contra o direito natural, segundo o qual, o pensamento é livre. Ainda assim, nos termos da Lei penal, a heresia nunca pode ser presumida, tinha de haver palavras ou actos que provassem que o réu era herege. Este facto, por mais simples que seja, é esquecido por muita gente que escreve sobre Inquisição.
Esta a teoria. Na prática, havia muitas distorções, perversidades que começavam no próprio Regimento e continuavam no modo de lidar com os presos, perversidades da iniciativa dos Inquisidores.
Comecemos pelas perversidades do próprio Regimento (de 1640):
- II, IV, IV – primazia das denúncias de parentes mais chegados
- II, IX, III – mentir ao réu em relação a culpas cometidas no cárcere
- II, VI, VII – ocultação da pessoa do denunciante, do tempo e do lugar da culpa
- VI, V, VI - nomear curador dos menores o Alcaide dos cárceres (prática modificada após o Breve de 1681)
A estas, adicionavam os Inquisidores outras de sua iniciativa:
- a existência de casas de vigia nos cárceres;
- a colocação nos cárceres de presos que pudessem ser voluntariosos para denunciar à mesa o que se havia passado e dito nos cárceres;
- nunca ligar nenhum à contestação do processo por negação, por mais válida que fosse
- parar o processo, deixando o preso a “apodrecer” na prisão
- aplicar aos réus castigos físicos, fora do tormento, por exemplo, açoites
- já depois de findo o processo, no período do cárcere, solicitar aos presos mais confissões
- aplicar aos condenados penas não previstas nos Assentos, por ex. degredos no interior do País;
- não respeitar o Regimento que no Livro 2.º, Título XIV, n.º 6 proibia dar o tormento do potro às mulheres
- no caso do Conselho Geral, decidir sem fundamento – enquanto a Mesa em geral seguia uma certa lógica, por vezes, as decisões do Conselho Geral decidiam de modo diferente sem fundamentar
- a imposição de multas extraordinárias para as despesas do Santo Ofício, até 1/3 dos bens dos réus.
-obrigar ao pagamento das custas aos réus absolvidos, nomeadamente por terem sido acusados por perjuros
- relaxar réus que tinham endoidecido nos cárceres
Havia, porém, uma perversidade de base no processo inquisitorial: é que se destinava fundamentalmente a condenar o réu, não a julga-lo. É ver os processos por judaísmo contra quem disso estava inocente: o negativo não conseguia de modo nenhum provar que era crente na fé católica.
Não se deve esquecer, porém, que a Inquisição se destinava basicamente a perseguir os cristãos novos, única razão da sua existência. Os cerca de 20 % dos restantes tipos de processo (contra cristãos velhos hereges, réus acusados por sodomia e outros actos sexuais considerados desviantes, bruxaria e superstição, os padres solicitantes, os bígamos, os idólatras, os perjuros) nunca justificariam a existência da Inquisição e poderiam ser acusados sem problemas nos tribunais eclesiásticos.
Também no caso dos cristãos novos, é preciso não esquecer que o processo da Inquisição estava de certo modo judicializado, isto é, tinha de seguir as regras do processo penal. Isto quer dizer que teria de haver palavras ou actos do réu que provassem a sua crença herética. É por isso que os Inquisidores estão sempre à procura de declarações “em forma” de crença na lei de Moisés.
Desde o início, porém, se deu conta que a Inquisição quis perseguir sistematicamente todos os cristãos novos, independentemente da sua crença ou não na chamada lei de Moisés. E aí tinha um problema porque muitos deles já estavam assimilados à população local. Logo no séc. XVII, havia um grande número de casamentos mistos de cristãos velhos com cristãs novas e vice-versa, com o abandono lógico dos costumes e sobretudo da crença judaica. Deveria poder-se esperar que essas famílias mistas já não fossem perseguidas. Mas não. Foram perseguidos todos os cristãos novos, sendo considerados como tais os que tivessem um antepassado judeu até á 6.ª geração. Este anti-semitismo é mesmo mais violento que o dos nazis que não perseguiam os judeus que tivessem feito casamentos mistos.
À falta de palavras e actos que demonstrassem a crença judaica, passou-se à sua invenção, a forçar os réus a fazer denúncias que abastecessem os cárceres. O sistema resultou com facilidade, porque era a única maneira de salvar a vida. O resultado era garantido até porque a discussão das denúncias estava perfeitamente blindada, pelo desconhecimento da identidade dos que tinham testemunhado. Este sistema tão simples salta à evidência num estudo sumário dos processos.
A condenação à morte por heresia é por si só um absurdo, mas condenar à morte cristãos novos que os inquisidores sabiam estar inocentes da acusação de judaísmo, com base em testemunhos que eles sabiam serem falsos, não pode deixar de ser considerado assassínio.
Não nego que até à supressão da distinção entre cristãos novos e cristãos velhos, houve famílias que mantiveram alguma consciência da sua ascendência judaica. Até no séc. XVIII aparecem alguns fazer jejuns judaicos no cárcere (sem saber que eram vigiados) e, com algum custo, posso reconhecer que isso seria uma manifestação da sua crença judaica. Mas estes são casos muito excepcionais.
Por que perseguia a Inquisição os cristãos novos? Esta questão que tem suscitado a perplexidade de muita gente, tem uma resposta muito simples: para justificar a sua existência. Sem cristãos novos, não haveria inquisição.
Como é evidente, não vou inserir neste texto todos os pontos em que discordo do Autor da tese, até porque em muitos faltar-me-ão os conhecimentos para tomar uma posição bem fundamentada. Por isso limitar-me-ei a assinalar a minha discordância em relação a algumas afirmações, que inclusivamente havia comunicado ao Autor.
O P.e Gaspar de Miranda, S.J. sobre os cristãos novos
O Autor dá muita importância ao texto de 1630 do P.e Gaspar de Miranda, mas não se preocupou em ver alguma coisa sobre a biografia dele. Parecia-me que não referia um elemento essencial que é que o texto foi redigido a pedido do próprio Inquisidor-Geral D. Francisco de Castro, mas depois dei conta que aparece de passagem o adjectivo “solicitada” (pag. 45). A verdade vem bem escondida. Diz também que “provavelmente” o Inquisidor-Geral enviou ao Jesuíta uma cópia do chamado Memorial dos Cristãos Novos de 1629, para ele dar parecer. Esta presunção não tem qualquer fundamento. Depois trata o documento como estando integrado na luta dos cristãos novos contra a Inquisição. Isso não é verdade. O texto do P.e Miranda não é político, ao contrário do Memorial; não apoia o libelo de ninguém, muito menos o Memorial de 1629. É um relato que ele diz ter escrito “em prol da Inquisição” para que esta seja mais justa e sobretudo mais humana. Tem um conteúdo moral, como é próprio do personagem, não político. O seu estilo está muito longe de ser uma “pena feroz”, é um texto muito humano.
O P.e Gaspar de Miranda morreu em fama de santidade. Tinha um enorme prestígio que, depois de sua morte, lhe valeu figurar em grande plano no Agiológio Lusitano, de Jorge Cardoso, vol. III, pags. 319-321 e 326-327. Nunca a Inquisição lhe poderia tocar. A Nota de pags. 45 [2] “Por incrível que pareça, não encontrámos nenhum processo da Inquisição de Évora contra o Jesuíta” não tem o mínimo senso. O Autor parece julgar que o poder da Inquisição era ilimitado. Não era. No processo n.º 9485, de Miguel Henriques da Fonseca, o advogado da Casa da Suplicação, Manuel Álvares Pegas, colega do réu, foi notificado para depor (e não era testemunha de defesa), mas não apareceu e que conste, nada lhe aconteceu.
O Memorial dos Cristãos Novos de 1629 e o texto do P.e Gaspar de Miranda não têm qualquer ligação. O título que o Autor indica para este último “Queixas dos cristãos novos apresentadas por Gaspar de Miranda, Jesuíta”, não existe no cod. 868 da BNP, como diz o Autor, mas foi acrescentado pelo Prof. António Borges Coelho na sua transcrição no livro sobre a Inquisição de Évora. Naquela época foram muitas as exposições feitas pelos cristãos novos e muitos os documentos que lhes responderam. Por exemplo, no documento n.º 2675 da DGA (TSO, CG, Papéis Avulsos, Maço n.º 7, Caixa 15) encontra-se uma cópia da “Resposta que se deu ao memorial das queixas da gente de Nação em 24 de Março de 1632” – fls. 190 a 203), que responde (ou tenta responder) ponto por ponto ao Memorial de modo bastante mais circunstanciado do que fez o Inquisidor-Geral. São falsas ambas as afirmações: que o Inquisidor-Geral enviou ao P.e Gaspar de Miranda o Memorial da Gente de Nação de 1629 e que o texto que o mesmo Inquisidor Geral redigiu seja uma resposta ao Memorial, pese embora a anotação de António Joaquim Moreira.
O Memorial de 1629 quis pôr em dúvida sobretudo as prisões de Coimbra e a falsidade da chamada Confraria de Fr. Diogo, como bem anotou João Manuel de Andrade no seu livro (pag. 251).
Uma última observação sobre a atribuição aos Jesuitas de uma velada aliança com os cristãos novos na luta contra a Inquisição. Eu entendo o seguinte: nos incidentes de 1616 (compra do peixe) e 1643 (compra das maçãs), concordo que a Companhia de Jesus em peso se pôs contra a Inquisição. Porém, na década de 1670, os padres tomaram iniciativas próprias, sem envolver toda a Companhia de Jesus; cada um agia por sua conta. O próprio P.e António Vieira praticamente agia sozinho.
O Autor também concorda com isso, mas fala genericamente nos Jesuitas por todo o lado e só na nota 209, de pag. 46 [3], é que põe os pontos nos ii.
Falando nos Jesuítas, o Autor omite também qualquer referência a um sucinto documento que a DGA chama Papel da letra do Padre Manuel Dias (Armário dos Jesuítas -maço 30, n.º 55) com o título “Lista da letra do Padre Manuel Dias, dos relaxados negativos que morreram confessando a fé de Cristo; de outros cristãos novos que se ausentaram de Portugal e viveram católicos fora do reino; de muitos cristãos velhos absolutos depois de muitos anos de prisão; e de alguns falsários”, que é um “reportório” das atrocidades da Inquisição e merece muita atenção.
Padre Pedro Lupina Freire
Como muitos antes dele, o Autor atribui ao Padre Pedro Lupina Freire a autoria das “Notícias recônditas”. Não sei se foi João Lúcio de Azevedo o primeiro que tal disse, mas a coisa é geral.
Também é verdade que ninguém ainda estudara o processo dele na Inquisição (n.º 4411, de Lisboa). Se o fizessem, não seriam tão prontos a dar-lhe a autoria.
Lupina Freire nasceu em 1625 e, por volta de 1642, começou a prestar serviço como criado do Inquisidor-Geral D. Francisco de Castro. Ainda prestou serviço na Inquisição de Coimbra, cidade em que frequentou o Curso de Cânones. Em 1648, foi nomeado Notário da Inquisição de Lisboa, mas durante muito tempo foi Tesoureiro, cargo que abandonou em 1652, por estar alcançado em perto de um conto de réis. Continuou a prestar serviço como Notário, até que em 19 de Agosto de 1655, fez a sua apresentação a confessar culpas à Inquisição e ficou logo preso. Foi o caso que aconselhou a fugir para o estrangeiro um cristão novo, Manuel Lopes Carvalho, que estava para ser preso, mas a quem ele devia favores.
A Mesa não o queria processar, mas o Conselho Geral não concordou e mandou-o para os cárceres secretos onde foi condenado a cinco anos de degredo para o Brasil.
Ou seja: Lupina Freire não tinha ideia nenhuma de que iria ser corrido da função que tinha e não teve qualquer tempo para reunir dossiers que lhe poderiam ser úteis mais tarde.
Além disso, a maior parte dos casos das “Notícias Recônditas” são da Inquisição de Évora; dois que são da de Lisboa são posteriores à passagem de Lupina Freire por lá; outros dois, são antigos, de 1636.
Regressou ele do degredo em 1660. Uns anos depois começou a dizer aos amigos que queria que o seu processo fosse revisto e que tinha sido condenado injustamente. Nisso continuou e, em meados de Novembro de 1672, a Mesa sugeriu a sua prisão. Desta vez, o Conselho foi menos rigoroso e decretou que fosse chamado e repreendido severamente. Mas então já ele tinha partido para Roma.
Em Maio de 1676, havia notícia de que havia regressado, mas o Conselho mandou suspender o Assento dado, a menos que houvesse nova denúncia. Não houve.
Ora se a Inquisição soubesse que ele tinha feito trabalho útil contra a Inquisição, não o teria logo mandado prender?
Falta-me ainda estudar (cópia de) duas exposições do P.e Lupina Freire de 1680, uma à Rainha e uma segunda ao Papa (que diz juntar em anexo a primeira), que se encontram no Liv. 244 do CGSO, fls. 92 e ss. onde ele continua a dizer que foi injustamente castigado pela Inquisição. Teriam sido entregues a Marcello Durazo, Núncio em Lisboa, mas não tiveram decerto sequência, até porque, entretanto, morreu o exponente.
A arbitrariedade do Tribunal – O papel do Conselho Geral pag. 134 [4]– (Parágrafo que começa por Todavia… e acaba em Inquisidores)
O Autor diz uma coisa e logo a seguir o seu contrário. Apesar do Regimento, o processo da Inquisição era conduzido de modo a condenar o réu, não era tribunal nenhum. O réu era mantido na prisão enquanto iam aparecendo os testemunhos contra ele. A defesa de contestação por negação era totalmente rejeitada, por mais sólidas que fossem as provas. A alegação de contraditas contra as testemunhas também não dava qualquer resultado.
O Conselho Geral tinha um papel absolutamente ditatorial. Não havia votos diferentes, votava em globo, o que já é sinal de prepotência. Não tinha a obrigação de justificar e muitas vezes não o fazia, quando decidia em sentido diferente da Mesa da Inquisição. Esta por sua vez, tentava justificar detalhadamente as decisões – vejam-se os assentos redigidos pelo Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque.
Não tem sentido dizer que o Conselho Geral defendia os réus; pelo contrário, era muito mais arbitrário – veja-se o processo n.º 8273-1, de Margarida Correia, onde o Conselho Geral determinou que a ré fosse relaxada, embora isso tivesse um único voto na Mesa!
Prisões de 1672 – pag. 137 [5]
A carta de Fernando Morales Penso não é compreensível sem referir a história da família Penso, ainda que resumida, conforme vem na pag. 324 da História dos Cristãos Novos Portugueses. Fernão ou Fernando Rodrigues Penso foi um dos magnates presos em 1672, juntamente com as duas filhas e um filho ilegítimo, o Fernando Morales Penso. Por qualquer motivo, João Lúcio de Azevedo não o referiu expressamente a pags. 294, mas fá-lo Ana Maria Leal de Faria, no seu artigo sobre os acontecimentos dessa época.
O filho denunciou o pai, mas este, preso pela segunda vez na sequência disso, nada disse e não denunciou o filho. A Inquisição não teve a coragem de o relaxar; mandaram-no ao tormento, duro, de meia hora, apesar dos seus 72 anos. A carta que o filho escreveu ao P.e José Ferreira caiu nos Estaus como uma bomba e foi mencionada no assento da Mesa do segundo processo (n.º 2332-1) de Fernão Rodrigues Penso.
Entretanto, as filhas foram ao tormento que foi especialmente bárbaro. Foram postas no potro, apesar da proibição de aplicar este aparelho do tormento às mulheres nos termos do art.º 6.º, Liv. 2.º, Tit. XIV do Regimento. O tormento de Mariana, pessoa de hábitos burgueses e requintados (tanto que não saía à rua a não ser de liteira) durou quase uma hora, quando o normal era um quarto de hora.
Pag. 140 - “… pois grassava a suspeita (quando não certeza!) de que [os cristãos novos] praticavam a antiga religião em segredo” [6]
Observação inaceitável por inexacta. Basta ler os processos com atenção para nos convencermos do contrário. Muitos dos acusados pertenciam à classe média e tinham empregados, criadas e escravos que rapidamente os acusariam se fizessem cerimónias religiosas, que seria impossível fazerem em segredo.
Aliás, não havia instrução religiosa judaica, nem quem a fizesse.
Nas classes mais baixas, sem pessoal estranho em casa, é possível que se fizesse um ou outro jejum, que se guardasse o sábado ou até que se vestisse uma camisa lavada nesse dia ou na véspera à noite (se é que se considera isso praticar a religião judaica).
No séc. XVII os cristãos novos fizeram um grande esforço de assimilação nomeadamente através de casamentos mistos que infelizmente não lhes serviram de nada.
António Serrão de Castro – Processo n.º 4910 – (Pag. 143) [7]
A tragédia do poeta de “Os ratos da Inquisição” não teve grande repercussão na opinião pública. Saiu da prisão muito velho e o poema só foi publicado por Camilo Castelo Branco no final do séc. XIX. Além disso, salvou a vida, como todos os que o conseguiram fazer, denunciando a família toda. Denúncia falsa, porque a família estava assimilada à comunidade cristã; dê-se uma vista de olhos à genealogia e veja-se o número de casamentos mistos na família.
Já a tragédia da família toda, essa sim, tem muito que se lhe diga. Veja-se a barbaridade das prisões; para além dele, foram presas nove pessoas da família. O seu filho Pedro (Pr. n.º 9797), que passava a vida na Igreja, cristão devoto, foi relaxado. Os outros dois filhos endoideceram no cárcere e a filha saiu de lá enferma quase moribunda.
Como é que o Autor pôde omitir isto tudo e quis dar ao poema “Os ratos da Inquisição” uma importância que de modo nenhum tem? Completamente desprovido, à saída do cárcere, António Serrão de Castro escreveu poemas que entregou aos amigos para receber uns tostões para comer! Entre estes “A Francisco de Mesas”, que apenas foi publicado em 2004, em leitura de Telma Rodrigues.
Pag. 118 – e pags. 152 a 161 – [8] O autor refere nestas páginas casos de pessoas isoladas que criticaram a Inquisição e foram normalmente por ela punidas. Estas referências não têm grande interesse para além do aspecto anedótico. Como é evidente, nunca teriam grande repercussão. A Inquisição tinha na realidade um poder enorme e não sofria ser gozada por simples indivíduos.
Pag. 171 - Disputa com o Papa de 1672-1681 [9]
O autor procurou documentar-se sobre a sucessão de episódios, mas os documentos que cita foram mais elencados que estudados. Na minha opinião, o caso ainda não está ainda estudado com carácter definitivo, tão numerosos são os documentos que envolve.
No entanto, acho que a história se pode contar de um modo muito simples. Com as prisões das famílias ricas em 1672, a Inquisição ficou logo vitoriosa, porque, com os arrestos das fortunas, os cristãos novos ficaram sem dinheiro para os cardeais e para comprar o perdão do Rei.
Seria bom também sublinhar a substituição de Clemente X (falecido em 22-7-1676) por Inocêncio XI (21-9-1676 até à morte em 12-8-1689). A corrupção reinava em Roma no Pontificado do primeiro. Falecido ele, desapareceu o principal trunfo dos cristãos novos que era comprar cardeais. O novo Papa ficou com a ilusão de que dominaria a Inquisição através da hierarquia católica, o que estava longe da corresponder à verdade.
Inocêncio XI era um homem recto, note-se que foi beatificado em 7 de Outubro de 1956.
Pretendeu de facto moralizar a Inquisição e sobretudo diminuir o poder do Rei sobre ela. Em Roma, o Papa e os Cardeais ficaram convencidos que o tinham conseguido, mas sabemos que isso não corresponde à verdade. De uma biografia do Papa:
Innocenzo XI difese ovunque la giurisdizione papale. Uno scontro deciso avvenne in Portogallo, dove l'Inquisizione era divenuta uno strumento del governo civile: nel 1681 l'inquisitore fu riportato all'obbedienza romana. Antonio Menitti Ippolito.
Textos do Padre António Vieira ou a ele atribuídos
Teria sido importante indicar a autenticidade dos textos do Padre António Vieira, seguindo João Lúcio de Azevedo:
Obras inéditas, edição de 1856:
1674 - Desengano católico sobre a causa da gente da nação hebreia - 1.º vol. pag. 211 (soft. pag. 222) AUTÊNTICO
Memorial a favor da gente da nação hebreia 2.º vol. pag. 5 (Soft. 266 ) AUTORIA DUVIDOSA
Razões apontadas a El-Rei D. João IV a favor dos cristãos novos, 2.º vol., pag. 21 (soft.282) - AUTÊNTICO
Proposta que se fez ao Sereníssimo Rei D. João IV a favor da gente de nação sobre a mudança dos estilos do S.to Oficio e do Fisco em 1646, 2.º vol. pag. 49, soft. 310 - AUTÊNTICO
Papel que fez o Padre António Vieira, estando em Roma, a favor dos cristãos novos 2.º vol. pag. 77 (soft. 338) AUTORIA DUVIDOSA
Memorial proclamatório ao Papa Inocêncio XI –3.º vol. - pag. 89 (soft. 590) ESPÚRIO
Carta a um religioso português –3.º vol. pag. 137 (soft. 638) Começa: … Discorrendo os dias passados ESPÚRIO
NOTAS AO LIVRO PUBLICADO [10]
[1] O Autor não viu o texto mais importante de Michael Geddes que é "Narrative of the Proceedings of the Inquisition in Lisbon, with a Person now living in London, during his Imprisonment there", Cap. VI do 1.º volume de Michael Geddes, Miscellaneous Tracts. Este texto só figura nas edições de 1709 e 1714; por isso, também João Lúcio de Azevedo, António José Saraiva e José Pedro Paiva não leram este texto. Terá sido publicado também numa separata em 1713, que foi lida por Francisco Bethencourt. Traduzi-o e pu-lo aqui.
[2] Pag. 57, nota 79. Vide biografia do Padre Gaspar de Miranda no Agiológio Lusitano, vol. 3.º, pag. 319 e respectivo comentário na pag. 326, letra h).
[3] Pag. 58, nota 81.
[4] Pag. 134, ao cimo, começa agora com "Nesta encruzilhada..."
[5] Pag. 136
[6] Pag. 139
[7] Pag. 142. Na prisão, o poeta António Serrão de Castro escreveu o poema "Os ratos da Inquisição" apenas na sua memória. O papel só era dado aos presos nas condições previstas em II,VIII,IV do Regimento de 1640.
[8] Pag. 119 e 149 a 157.
[9] Pag. 167
[10] Yllan de Mattos, A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício Português (1605 - 1681), co-edição de Mauad-X e Faperj, Rio de Janeiro, 2014 ISBN 978-85-7478-677-3
Notas adicionais
Pag. 163 - Levei poucos minutos a encontrar todos os processos da família de Manuel Nunes Chaves. Este (o avô) foi preso duas vezes; a primeira em 1671, com 30 anos (Processo n.º 2383) e saiu reconciliado em poucos dias; a segunda, em 1703, com 64 anos (Processo n.º 2383-1) e saiu para o cadafalso, considerado como relapso. A esposa, Filipa Henriques (Processo n.º 12213) foi presa em 15-3-1703, com 52 anos, e faleceu no cárcere em 23 de Agosto seguinte. O filho José Nunes Chaves (Processo n.º 138), de 37 anos, foi preso em Setembro de 1702 e reconciliado dali a um ano em 9-9-1703, no auto da fé em que foi morto seu pai. A esposa deste, Isabel Garcia (Processo n.º 544) foi presa e reconciliada nas mesmas datas que seu marido. Os filhos destes, Leonor de Chaves, de 14 anos (Pr. n.º 2382), e Manuel Nunes Chaves (Pr. n.º 11505), de 13 anos, foram presos ambos em Março de 1703 e reconciliados ela no mesmo Auto e ele na Mesa, dois dias depois a 11-9-1703. O avô, Manuel Nunes Chaves, foi condenado também pelas denúncias dos dois netos e de sua nora. O filho não o acusou.
O Processo n.º 11505, do Manuel Nunes Chaves é estranho, porque não tem denúncias. Depois de investigar um pouco, encontrei a razão no processo da irmã, Leonor de Chaves (n.º 2382). Ele foi acusado pelo médico Gaspar de Sousa (Pr. n.º 4555), mas este trocou-lhe o nome e disse José em vez de Manuel. Os Inquisidores não quiseram aparecer em falta e, por isso, omitiram as culpas no processo.
No início do séc. XVIII, a Inquisição decidiu atacar os médicos cristãos novos, que até ali poupara, possivelmente porque eram precisos para cuidar da saúde da população e eram mais baratos que os médicos cristãos velhos. Para se livrarem, acusaram eles centenas de pessoas, São Manuel Soares Brandão (Pr. n.º 2110), Diogo Nunes (Pr. n.º 2361), Diogo Nunes Ribeiro (Pr. n.º 2367), António de Mesquita (Pr. n.º 153), Manuel Gomes Cáceres (Pr. n.º 116), Simão Lopes Samuda (Pr. n.º 2784), José Soares de Faria (Pr. n.º 2380), Diogo Henriques ferreira (Pr. n.º 2389), Manuel Samuda de Leão (Pr. n.º 7178), João Tavares Pacheco (Pr. n.º 13102), Manuel Nunes Sanches (Pr. n.º 13247).
Pag. 180, nota 45) - No mesmo maço 21, encontram-se mais duas cartas bem mais importantes: uma escrita em Génova em 12-8-1674 (fls. 74) e outra de Madrid em 26-9-1674 (fls. 70 a 73) ; transcrevi a primeira destas na minha página sobre Lupina Freire. Delas se constata que na altura Lupina Freire regressava de Roma e não o contrário, como diz o Autor. Fala também de Lupina Freire o Inquisidor Jerónimo Soares na carta escrita em Siena em 4-10-1674 (fls. 190); infelizmente refere as informações de Lupina em código. O Prof. José Pedro Paiva no seu recente artigo sobre o assunto (citado pelo Autor na bibliografia) citou as cartas pelos números das páginas que são totalmente aleatórios, quando o poderia ter feito com mais rigor pelas datas.
Faltam no maço 21 as cartas de Jerónimo Soares de 26-8-1674 e de 10-9-1674, onde ele teria falado de Lupina Freire, segundo diz na referida carta de 4-10-1674.
Sobre a autoria das Notícias Recônditas por Pedro Lupina Freire, o Autor modifica a opinião expandida na versão policopiada da tese.