16-3-2013
O P.e Gaspar de Miranda, S.J. (1564 - 1639), sobre a Inquisição
Em 1630, o Jesuíta Gaspar de Miranda (1564 – 1639), de Évora, a pedido do Inquisidor Geral D. Francisco de Castro, Bispo da Guarda, elaborou um relatório com as queixas dos cristãos novos em relação à Inquisição, naturalmente apenas aquelas com que ele concordava. O Prof. António Borges Coelho, no artigo citado na Revista de História da Universidade do Porto, chama a atenção para este texto que ele considera “um terrível libelo contra a actividade do Santo Ofício, mais inquietante do que as célebres “Notícias Recônditas”. Nessa altura, já aquele Professor o havia transcrito na sua monografia sobre a Inquisição de Évora (2.º vol., pag. 209). É de facto bastante acutilante e penso que merece uma leitura; por isso o vou transcrever, actualizando a grafia. Comparei o texto com a cópia de António Joaquim Moreira, no manuscrito cod. 868, da Biblioteca Nacional. É possível que existam outras cópias ou mesmo o original na Torre do Tombo, mas não me foi possível encontrar outra versão. Mas o Inquisidor Geral deverá ter franzido o sobrolho ao lê-lo, não lhe ligando qualquer importância. Aliás, só uma pessoa com o prestígio do P.e Gaspar de Miranda é que podia atrever-se a escrever um texto assim tão crítico (ver biografia da Bibliotheca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado).
Queria aqui realçar apenas uma questão por ele levantada. E é que o processo da Inquisição tinha de se basear nas Leis do Reino, no Direito Comum, Civil, Penal e também no Canónico, ou seja, nos princípios gerais destes. Era um processo judicializado, até porque a pena ordinária era relaxar o réu à Cúria secular que o condenava à morte por heresia, nos termos das Ordenações. Ora um princípio de base do Direito comum era e é que as pessoas são condenadas por aquilo que dizem ou fazem, não por aquilo que pensam ou em que crêem. Por isso, quando se diz que a Inquisição condenava os judaizantes, estamos a falar de cristãos novos que diziam palavras ou praticavam actos que demonstravam a sua crença na Lei de Moisés e a sua descrença na Religião Católica. Não bastava a suspeição de que pensavam ou criam assim. E axiomaticamente, eram inocentes todos aqueles em que os ditos e os factos referidos como provas do judaísmo dos réus nos processos se revelam falsos. Por isso, para efeito dos processos e de toda a actuação da Inquisição, é preciso afastar do conceito de judaizante todos os cristãos novos em relação aos quais não existiam palavras ou factos que demonstravam a sua heresia, por mais convencidos que estivessem os Inquisidores, a máquina inquisitorial e os historiadores do nosso tempo que eles praticavam ou criam no judaísmo. Por isso, é que eu gostava que todas as pessoas que escrevem sobre a Inquisição, definissem à partida o que entendem por judaizante, palavra que para eles parece justificar toda a actuação da Inquisição.
Outro corolário deste ponto de vista é que considero assassinados os réus e os Inquisidores culpados de homicídio, sempre que constato que estes tinham conhecimento perfeito de que os que mandaram para o patíbulo nunca tinham vivido, pensado e crido como judeus e de que as provas utilizadas para os condenar eram falsas; e não são poucos os casos em que tal aconteceu.
Ao Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor Bispo da Guarda Inquisidor Geral de Portugal, et cetera.
(BNL, Reservados, cod. 868, fls. 123)
Lançado aos benignos pés de Vossa Ilustríssima, beijo sua mão grandiosa, pela mercê assinalada, que me faz, em querer que também eu indigno apontasse algumas coisas de feito, e de Direito em prol da Santa Inquisição de Portugal.
Oferecem-se estas matérias, que são seis:
A 1.ª das queixas, que alguns da nação têm, ou podem ter do Santo Ofício, ou de alguns seus Ministros no distrito de Évora aonde vivo há muitos anos.
A 2.ª dos meios com que o Santo Ofício poderá atalhar muitas destas queixas, e renovar seu estilo, e regimento, pois que o tempo muda tudo, e nesta vida tudo se pode melhorar por mais perfeito, que seja.
A 3.ª do edicto da Fé reformado; e acomodado a este tempo com seu comento, ou declaração, do que tudo tem necessidade.
A 4.ª das dúvidas que há sobre as Freiras, que saem no Cadafalso, cousa nova, e dificultosa, e não tratada.
A 5.ª de várias instruções; a 1.ª para quem acompanhar algum preso doente, ou são no cárcere do Santo Ofício. A 2.ª para quem acompanhar algum relaxado; A 3.ª para quem consolar, ou aconselhar algum preso. A 4.ª para quem doutrinar, ou confessar os reconciliados. A 5.ª para quem reger a casa aonde estiverem recolhidas as mulheres reconciliadas; enquanto ouvirem as doutrinas; porque espero, que se ordenará tal caso; e o dito consolador, e conselheiro, como proporei em seus lugares; porque importam muito ao Santo Ofício.
Destas cinco matérias apresento aqui a Vossa com os avisos, que sobre ela me derem, melhorarei as outras; se Deus for servido, e Vossa Ilustríssima; a quem ele nos guarde por largos anos com todo o bem; como pode.
Gaspar de Miranda.
Queixas, que alguns da nação têm, ou fingem do Santo Ofício, ou de alguns seus Ministros no distrito de Évora, e pode ser, que também nos outros.
(BNL, Reservados, cod. 868, fis. 123 v)
Pretendem com elas mostrar em geral, que são inocentes, e que o Santo Ofício procede mal contra eles, e que os cristãos velhos são seus inimigos capitais nestas matérias.
Ainda que estas pretensões, e queixas sejam falsas, e injustas proponho-as com boa tenção a quem pertence julgá-las, remediá-las quanto for possível para se atalharem muitos males grandes, que delas nascem.
Recolhi as do que vi, e ouvi nestes 30 anos, e buscando depois autores, que as favorecessem, achei os que cito nas margens principalmente Simancas, e Pegna, e Paramo, e Sousa Português, porque tratam de propósito matérias do Santo Ofício, e citam outros mais antigos. Vi todos os Doutores, e Canonistas e Legistas que cito.
Aponto alguns remédios delas. Tudo com clareza, e brevidade, e sujeição devida. Se errar em algumas coisas, ou palavras, desdigo-me, e peço perdão, e lembro que refiro, e não confirmo estas queixas alheias.
Três queixas gerais do Santo Ofício:
1.º El-Rei de Portugal D. João III pediu ao Papa Paulo III a Santa Inquisição para Portugal na mesma forma, que ela tinha em Castela; e a de Portugal procede em muitas coisas diferentemente da de Castela; e também das Inquisições doutras partes de Europa.
2.ª também a de Portugal se aparta do Direito comum, Civil, e Canónico; e posto, que tenha licença de El-Rei, e do Papa, para fazer, e guardar seus estilos, e regimentos espirituais, com tudo isto parece, que não pode fazer, nem guardar nenhum deles contra o Direito Comum sem ter expressa licença para isso. A qual não se sabem se têm, e vê-se, que faz algumas coisas contra o Direito Comum, Civil, e Canónico, que tocarei em seus lugares destes memoriais.
3.ª O estilo, e regimento da Santa Inquisição de Portugal são mui desacomodados a este tempo, e mui desarrazoados para a gente de agora. E por estas, e por outras falhas, que tem são mui ocasionados para os Ministros do Santo Ofício errarem nele, e agravarem a dita gente em muitas coisas, o que não convém.
Estas três queixas gerais provam eles com os livros, e com as práticas diferentes das Inquisições de Europa, e com as queixas especiais seguintes, que, dividido em três títulos por sua ordem.
1. da Prisão
1.ª prendem a muitos com menor prova do que requer prisão tão prejudicial à sua fazenda, e honra, e vida, e sua saúde, ainda dos que depois saem livres; porque entretanto padecem em todas estas três coisas gravíssimos danos irreparáveis além dos das Almas.
Provam esta queixa dizendo que os prendem com testemunhas falsas. E posto que fossem verdadeiras são singulares: ou tão poucas, ou tão falidas de feito, e de Direito que não provam mais, que serem eles leves suspeitos: e por tais sairiam muitos se depois de presos, não lhes recresceram testemunhas falsas, como recrescem; porque os retêm até sobrevir prova bastante, para suprirem a pouca, e encobrirem a pressa com que os prenderam, sem haver perigo de fugirem nem suspeita; o que tudo é frequente.
2.ª Prendem alguns em tempos, e lugares mui públicos, e afrontosos, como em dia santo; e na Igreja, ou saindo dela, podendo prendê-los seguramente em outros tempos e lugares.
3.ª Quando os prendem não lhes deixam fazer, e trazer o necessário, para o não pedirem no cárcere; ou padecerem necessidades.
4.ª Trazem alguns presos por tempos, e lugares afrontosos; podendo escusar este triunfo, que devia ser pranto nosso.
5.ª Depois de presos em suas terras, no caminho, e em Évora são afrontados por palavra, e obra; como se foram inimigos públicos ou estiveram já condenados a tal pena, e os Ministros do Santo Ofício não atalham isto como deviam por várias razões.
6.ª quem os prende deixa na rua seus filhos desamparados; até as crianças, o que nenhuma gente faz por nenhum crime.
7.ª não dão aos filhos da fazenda dos Pais os alimentos de que têm posse, e necessidade; e muitas vezes gravíssima; e têm direito para eles, ou para os desapossarem deles enquanto seus Pais não são condenados, ou declarados por hereges, pois ainda podem sair livres sem perderem seus bens, o que parece contra direito.
8.ª desde que os prendem até que os soltam, e entregam sua fazenda aos que a não perderam, faz-lhes nela o fisco muitos agravos, que proporei em seu lugar. Porque se cuida que redundam no Santo Ofício que deve carecer de toda aparência de mal.
Os remédios destas queixas são claros. Eu represento estes para algumas. Ordene-se daqui por diante prendam os da nação com mais testemunhas, e mais Juízes, e mais votos dos que até agora os prenderam, porque o tempo requer estas três mudanças.
Item que os leves suspeitos abjurem em secreto como abjuram em Castela: pois que de abjurarem publicamente não há fruto, e ficam mais infamados, do que parece morrerem: e o Santo Ofício fica desdourado, cuidando os ignorantes, ainda os cristãos velhos, que os tais réus foram presos sem prova bastante para isso.
Ponha-se alguma pena a quem tratar mal por obra, ou palavra algum da nação preso; a qual denuncie a todos da parte do Santo Ofício quem os prender ou outrem; e execute-se em quem a merecer.
Faça-se particular instrução, ou regimento para todos os que houverem de prender alguém; e não fique à condição, e discrição de cada um o que há-de fazer nesta empresa. E acomode os meninos, quando prender os pais, ou um, estando já o outro preso. Pois Cristo Nosso Senhor agasalhava os meninos; e encomendou a São Pedro duas vezes os Cordeiros, e as Ovelhas uma.
2. do Cárcere
1.º têm-nos em cárcere mais áspero do que permite a razão do Direito, principalmente sendo cárcere Eclesiástico, e para custódia, e não para pena, nem tormento, pois ainda não estão condenados a isso.
2.º é cruel aperto estarem alguns em uma casinha com todo seu serviço necessário, sem sol, nem luz, nem ar, com mau cheiro, humidade, corrupção de tudo, perigo de peste e doenças.
3.º por isto saem muitos do cárcere surdos, ou com dores de dentes, ou tolhidos de alguma parte, ou com alguma outra doença mais grave, ou perpétua, e alguns morrem mais cedo principalmente os velhos, ou fracos, ou melancólicos ou desanimados.
4.º só neste cárcere não deixam o preso comunicar com os de fora, nem por escrito, ou recados ainda que tenha grande necessidade disso, o que parece contra a justiça e caridade cristã; e pode-se conceder sem detrimento do Santo Ofício como direito em seu lugar. Parte destas se pode remediar fazendo mais casinhas: pois têm sitio, e dinheiro de fisco; item dando saída para fora às chuvas, que se embebem, dentro, e humedecem os baixos com dano também do edifício: como mostrarei com o dedo se for necessário. Item pondo os cristãos velhos no Aljube, principalmente depois de seus feitos conclusos, ou mandando-os para suas terras com juramento; ou fiança que tornarão chamados; e declarando-lhes, que se não tornarem lhe dobrarão as penas; porque todos folgarão de irem assim; e se depois algum fugir, e não o colherem, assaz castigo leva consigo, perpétuo medo, e desterro, como Caim levava para onde ia, e levam todos os que devem à justiça: conforme aquilo Fugitim pius nemine persequente, Provérbios 28. n.º 1 vide ibi [?].
Na 4.ª instrução das que propus ao princípio mostrarei como os presos poderão comunicar com pessoas seguras sem dano, e com fruto do Santo Ofício.
3. Do temporal no Cárcere
1.ª não lhes permitem dispor livremente do que pouparam de sua ração quotidiana, e limitada; como parece, que podem dispor, conforme ao que ensinam os Doutores em casos semelhantes.
2.ª curam os doentes, e os tratados no seu cárcere com tal aperto dos companheiros que se impede, ou retarda sua saúde.
3.ª quando não perdem a fazenda, constrangem-nos a pagar pela cura das doenças, e dos tratos muito mais do que pagariam curando-se fora do cárcere. Porque o Médico, e o cirurgião têm grandes ordenados por cada visita; e podem fazer algumas desnecessárias, e dilatar as curas sem temerem castigo por isto.
4.ª não concedem a quem está para morrer, que disponha de seus bens por última vontade; podendo conforme o Direito dispor assim. E quando houver dúvida, se pode, valha que pode valer.
5.ª não se sabe que se faz de algumas peças, que alguns presos, e presas fazem no cárcere, comprando os materiais do que pouparam de sua ração. Disto se cuida, e fala variamente.
Os remédios destas são claros, e fáceis a quem lhos quiser pôr. Deputem Escrivão, que aprovem os testamentos, ou um notário do Santo Ofício com licença de El-Rei, ou dispensa de sua Lei.
4. Do Espiritual no Cárcere
1.ª não os deixam confessar sacramentalmente estando sãos, ainda que estejam presos muitos anos, não prejudicando esta confissão ao Santo Ofício, antes podendo ajudá-lo muito se o confessor for qual convém, como está claro; por isso não o mostro aqui.
2.ª disto se podem queixar mais os que já confessaram em juízo suas culpas, e os que não estão ainda convencidos delas; e muito mais os cristãos velhos principalmente na Quaresma, quando a Igreja os obriga a confessarem-se; pois então ninguém os pode impedir, sem causa justa, a qual pode faltar em alguns destes presos, e muito mais nos cristãos velhos, não hereges.
3.ª não se dá a Sagrada Comunhão, nem unção aos que morrem no cárcere, estando desimpedidos para receberem ambas. Como julgara o Confessor para o foro interior, e para o exterior, pode constar dos autos de cada um; nem Sacerdote assiste aos que morrem, nem os encomenda a Deus.
4.ª disto se podem queixar uns mais, que outros, como disse da confissão. Principalmente se podem de não lhes darem a Comunhão, pois são obrigados a comungar na morte por preceito da Igreja e também de Cristo Nosso Senhor conforme a Sentença dos teólogos, hoje mais comum, e mais provável. E para impedir estes dois preceitos juntos é necessária tão grande causa, que facilmente pode faltar em alguns casos destes.
5.ª Além se pode acontecer, que se percam alguns confessados na morte, os quais se salvariam se recebessem então a Comunhão, e a unção; e mais seguramente se recebessem ambas.
6.ª E também pode ser, que se percam alguns confessados na morte, e comungados, os quais se salvariam, se recebessem então a Comunhão, ou unção, o que tudo provam os teólogos em seus lugares. Logo requer-se grande causa, para negar comunhão, ou unção, a quem morre, ainda que bem confessado por confissão válida, mas informe.
7.ª Se o Santo Ofício tem do Papa ordem especial sobre a confissão, comunhão e unção dos presos sãos, e doentes, guarde-a perfeitamente mas publique-a para atalhar queixumes, espantos, escândalos. E se a não tem como alguns cuidam, veja se devem mudar seus estilos nestes três Sacramentos, conforme ao que disse, e ao mais que deixo por notório aos letrados nesta matéria: quais devem ser os Ministros do Santo Ofício.
Para tirar todos os impedimentos e inconvenientes do sobredito represento estes meios.
Façam uma instrução para os confessores que houverem de confessar presos doentes ou sãos, quando convém confessa-los. A importância, e matéria, e forma dela proporei em seu lugar. Aqui lembro, que sem ela facilmente podem errar os confessores; porque as confissões são extraordinárias, e por isso requerem nos confessores ciência, e experiência especiais, ou instrução particular, principalmente porque o Santo Ofício pratica algumas coisas diferentemente do que as ensinam os livros; como seus ministros sabem, e não os confessores ordinários.
Quando chamarem confessor para confessar preso, antes que eles falem e se vejam, leia a dita instrução o confessor; e se nela, ou fora dela tiver alguma dúvida; pergunte-a logo aos Inquisidores; para que ao depois não haja embaraço no segredo.
Dêem ao confessor licença para absolver o preso no foro interior (se a podem dar) de tudo o que tiver reservado aos Inquisidores. Pois esta confissão não pode prejudicar ao Santo Ofício, como está claro, antes ajudará muito. Porque declarando o confessor ao preso que o pode absolver de tudo, ele se confessa melhor e o confessor o persuadirá a satisfazer logo em juízo quanto, e como for obrigado: pois sem isso não o pode absolver. Este ponto se tratará mais largo na sobredita instrução porque importa mais ainda ao Santo Ofício do que alguns cuidam.
Na mesma instrução mandem ao confessor, que antes de sair do cárcere a entregue a quem lha der. E que fora do cárcere guarde segredo de quanto nela contem, ou ele viu, ou ouviu no Cárcere, pois assim o pede ainda aquilo, que não parece pedi-lo.
Busquem remédio, para os presos crerem firmemente; que o confessor não pode dizer, nem dirá nada de suas confissões sacramentais aos Inquisidores, nem a outrem ninguém em nenhum caso. Porque alguns temem, e cuidam o contrário, e por isto se confessam como Deus sabe, e remedeie. O mesmo digo dos reconciliados.
Deputem duas casinhas acomodadas para curar os doentes gravemente e para os sacramentar; em uma homens, e em outra mulheres. Tenham o santo óleo dos enfermos na capela do cárcere, como o têm em seus oratórios outras comunidades menores. Na mesma capela consagrem, e celebrem uma partícula para o doente. Dela levem ao doente a comunhão, e unção com decência, que bastará medíocre pois se faz em secreto, como basta no campo.
Estes Sacramentos administrem os notários do Santo Ofício, ou os Sacerdotes da Sé, que assistem nas ratificações das testemunhas, pois confiam deles esta assistência, que pede maior segredo, que a dita administração, e é menos necessária. Os mesmos acompanhem, e encomendem a Deus aos que morrem.
E se para isto é necessário consentimento do ordinário dos presos, dá-lo-ão de antemão, e mais geral; e liberal do que o dão para os sentenciarem concorrendo nisso o verem por eles; ou peça-se ao Papa como dele pedem outras coisas menos importantes.
Assim se podem curar bem os doentes, e confessar, e comungar, e ungir sem se saber fora, e com reverência dos Sacramentos, e proveito dos enfermos, e bom sucesso do Santo Ofício comummente; se alguém não impedir estes bens com razões aparentes, das quais peço vista, e licença para o fazer com o favor de Deus; cuja é esta causa.
5. Dos companheiros no cárcere
1.ª Estes o fazem labirinto, porque se enredam uns a outros, dando-se maus conselhos, contando suas coisas, e as alheias, misturando nelas falsidades perniciosas a muitos dos que os ouvem, e de quem as dizem.
2.ª os que vêm presos de novo contam o que passou fora do cárcere, e os que vêm mudados doutra casinha contam o que nela souberam, e a todos estes novos moradores contam os mais antigos o que sabem ou passou na mesma casinha, ou em outra donde estiveram dantes.
3.ª dos gritos, e gemidos que ouvem de longe querem adivinhar o que lá passa; e comunicam-no entre si e às vezes obram conforme a isto temerariamente e com danos seus, e enleios do Santo Ofício.
4.ª Também se comunicam com os vizinhos batendo nas paredes, e declarando-se por suas cifras; que ensinam uns aos outros.
5.ª Alguns descobrem na Mesa do Santo Ofício, o que sabem dos companheiros e dos vizinhos; ainda que antes de o saberem jurem que o não descobriram; ou tenham outra obrigação de o não descobrirem, porque não pertença disto a Mesa. Ela ouve-os facilmente sem examinar primeiro se lhe pertence, nem olhar os eros e danos injustos, que assim se dão, e fazem.
6.ª para isto alguns tiram dos outros quanto podem por maus meios; e com maus intentos, e com muitos pecados seus, e danos alheios.
7.ª cuidam que os Inquisidores no mesmo cárcere põem cristão velho, ou novo já confessado judicialmente; para ser espia, e malsim dos companheiros, e dos vizinhos; donde nascem aleivosias, ódios, pelejas. Et cetera.
Ainda que estas queixas mais são contra os presos, que contra os Ministros do Santo Ofício, eles afirmam que delas nascem, ou crescem quase todos os males, e muitos embaraços do Santo Ofício, que deve atalhá-los.
Podem-se remediar em parte fazendo mais casinhas, pois, com sítio, e dinheiro do fisco e pondo os cristãos velhos no Aljube, ou mandando-os para suas casas, como disse no título do cárcere; e não pondo cristãos velhos com novos, nem mudando ninguém sem necessidade precisa, nem ouvindo facilmente ninguém contra seus companheiros do cárcere. E castigando os culpados nestas queixas, de modo que saiba do castigo quem soube da culpa, para escarmentarem em cabeça alheia, e avisar outros que o não façam.
6. Das pessoas do Santo Ofício ou Ministros
1.ª alguns não têm algumas partes, e qualidades naturais, e adquiridas necessárias para seus ofícios; e por isto prejudicam muito a gente hebreia, e encobrem seus defeitos com excessos contra ela.
2.ª alguns falam tão mal dela, e mostram-se tão contrários, que parecem suspeitos a toda; e muito mais a certos dela.
3.ª especialmente dizem, que todos são Judeus, e piores os reconciliados, porque não se convertem; mas fingem-se convertidos, o que se assim crêem, porque os recebem, e reconciliam contra direito Canónico expresso, e os comuns avisos de seus Doutores.
4.ª alguns são tão senhoris, e querem ser tão reverenciados, e servidos em tudo, que agravam, e escandalizam a muitos cristãos novos, e velhos. Disto contam vários casos notáveis, e verdadeiros.
5.ª alguns comissários, e seus escrivães, e familiares de terras particulares têm de todas estas falhas, quantas se acharam se delas inquirirem, como convém ao Santo Ofício por especiais razões, que estão claras.
6.ª alguns ministros não lhe mostram a clemência, compaixão, e direcção, que pedem o seu ofício, e direito, e os ministros da Justiça seculares mostram a seus presos comummente ainda aos facínoras.
7.ª alguns lhes dizem na Mesa palavras afrontosas, repreendem-nos, ameaçam-nos, sem eles darem ocasião para nada disto, pelo que puderam pôr-lhe suspeição, e prová-la.
8.ª alguns lhes acoimam, movem, e dão em culpa, o que eles simplesmente dizem, ou fazem na dita Mesa, ou fora dela, ou com justo sentimento.
9.ª se um preso quer falar, confessar, correr com um ministro, mais que com outro, alguns desconfiam, e agravam-se disso sem razão pois o deviam oferecer a todos os presos no princípio.
Estas em especial espero remediará a visita presente melhorando, castigando, avisando segundo merecer cada ministro. E não provendo nenhum de novo, se não for mui necessário, e qualificado, e tanto mais examinado, quanto mais pretender o tal ofício como direi em seu lugar. E visitando também os Comissários, e seus Escrivães, e Familiares de todo o Reino como importa ao Santo Ofício serem visitados todos seus ministros algumas vezes perfeitamente para eles não agravarem, escandalizarem, e senhorearem a tantos.
7. Das detenças do livramento
1.ª Todo o direito manda abreviar as coisas dos presos, e para isto concede, que se possa proceder nelas em dias feriados, e outros favores notórios. O que veja a Inquisição de Portugal se guarda.
2.ª nas Inquisições fora de Portugal abreviam os livramentos de seus presos, e comummente dão libelo contra eles no décimo dia depois de presos, e não param até os não sentenciar, e executar.
3.ª na Inquisição de Portugal dilatam tanto o livramento de alguns presos, que se não pode crer, nem desculpar, nem declarar sem escândalo.
4.ª uns estão presos muito tempo sem começar seu livramento, pedindo eles que comece, ou desejando-o muito param no meio dele, ou quase no fim sem sua culpa, nem demora, nem outra causa, que eles dêem, ou saibam, e com grande aflição sua nestes casos.
5.ª com estas dilações crescem tantas falsas, porque cada qual dá nos que sabe que estão presos cuidando, que eles deram, ou darão neles, ou que lhes faz pouco mal, pois estão já presos, e que ele melhor se livrará dando em mais, porque acertará nos que deram nele, ou derem depois; e ganhará as vontades dos Inquisidores.
6.ª por isto vindo presos alguns de fora, ou mudados doutras casinhas encobrem seus nomes, e pátrias aos companheiros, por que não dêem neles facilmente temendo-se uns de outros como de inimigos encobertos.
7.ª ainda depois de confessados perfeitamente em juízo, ou sentenciados em final os detêm para fazerem maior Auto da Fé, ou para verem se recresce prova contra eles; e recresce falsa como disse já.
8.ª Destes vagares injustos nascem, ou crescem muitos, e vários danos dos presos; os quais veja o Santo Ofício quem deva restituir aos mesmos presos que querem restituição, e não a pedem por medo.
9.ª A quem perde sua fazenda per seu crime confiscam também a que lhe sobrevém, ou cresce depois, que satisfaz perfeitamente em juízo até que os soltam, ainda que o detenham sem sua culpa nova. E se o soltarem logo que satisfaz, como merece ser solto, não lhes confiscarão a fazenda, que dai por diante lhe vier, ou crescer, ou ele adquirir. Tudo isto consta da praxe do fisco em Évora: o mesmo será nas outras partes de Portugal.
10.ª mas a razão, ou qualidade, e porventura, que também a justiça pedem, que o soltem logo: ou ordenem que não lhes confisquem a fazenda, que lhe vier depois de ter satisfeito na Mesa; e sendo necessário peçam isto a El-Rei, e ao Papa, porque redunda em grandes bens do Santo Ofício, que estão claros.
As detenças provam eles com tantos, e tais casos, e em tal forma, que confundem, e fazem calar a quem as desculpa, e defende o Santo Ofício como pode e deve, e deseja fazer.
Remediar-se ão em grã parte reformando, e abreviando a forma de juízo, que usa a Inquisição em Portugal como apontará quem a sabe melhor e tem licença para isto.
Lembro que em Castela não guardam algumas solenidades do Direito Civil, comum, e canónico; para abreviarem procedem sumariamente. Não se podem recusar os Inquisidores comummente, nem se pode apelar de suas sentenças definitivas. Deixo outras, que eles também deixam na praxe.
E se quase o mesmo fazem em Portugal, o efeito é contrário, porque as causas em Portugal duram mais, que em Castela, como é notório, e todos o estranham; e muitos o condenam modestamente julgando com razão este vagar por maior mal, que todos os outros, que com ele pretendem remediar.
Aqui procede também a regra Mora sua cui liber est nociva, e a profecia de Cristo por Isaias et preparabitur et cetera até Velociter reddens quod justum est. Declara Lyra. Quoniam aliqui sunt nimis tardi justitiam exequendo. Veja-se este lugar, e os Doutores nele. Semper nocuit diferre paratis.
8. Dos tormentos, ou tratos
1.ª Desde que os prendem, até que os soltam padecem muitos e mui graves tormentos nos corpos, e nas almas; principalmente os que estão em tal cárcere, que por si só é tormento, e os que não sabem como se hão-de haver, em qualquer estado, que está seu livramento, que são muitos.
2.ª quando os Bispos só os conheciam da heresia, não consta que dessem tratos. E quando os Inquisidores começaram conhecer dela não os davam; donde parece, que nem os Bispos sós os deram dantes.
3.ª nas Inquisições fora de Portugal dão-se agora a mui poucas pessoas e a cada uma poucos, e leves, ou sofríveis.
4.ª na Inquisição de Évora dão se agora a muitas mais pessoas; e a cada uma mais graves, ou mais em número, do que se davam dantes: computadas bem todas as circunstâncias deste ponto, que eles provam assaz.
5.ª a causa disto pode ser, porque quase tudo pende do arbítrio dos autores modernos, que escrevem dos tratos: e dos juízes que os mandam dar, e do médico, e cirurgião, que julgam quantos, e quais pode levar cada pessoa. E alguns de todos eles são mais liberais, do que sofre a razão, matéria, e caridade; e às vezes também a justiça.
6.ª Dão-se com menos decência, principalmente a mulheres, do que pede a honestidade cristã, e gravidade dos Eclesiásticos, que neles assistem. O que me pejo declarar mais, e eles blasfemam, e lançam-no-lo em rosto, e com suas razões eficazes, e afrontosas.
7.ª alguns de todos os ministros do Santo Ofício se mostram inclinados a tratos e desumanos quando assistem neles; e dizem palavras com que afligem mais aos tratados, e afrontam.
8.ª nestes tratos não se tomam defensivas, nem Irmãos da Misericórdia consolam o padecente, nem advogados requerem por ele, nem o médico, e cirurgião o favorecem, o que tudo deverá ser pelo contrário.
9.ª comummente se dão tão cruéis, que toda a vida duram os sinais; e algumas pessoas ficam aleijadas, e inúteis; outras morrem neles, ou perigam gravissimamente, maxime velhas, ou fracas.
10.ª dão com menor prova, e por menos causa do que requer seu dano tão grave, e irreparável; e por fim que se pretende, tão incerto, e perigoso a tantas pessoas, pois muitas vezes se segue o contrario.
11.ª dão-se a quem não confessa, ou não confessa de si, ou de outros, quanto querem os Inquisidores, não o tendo ele cometido; ou não o sabendo; ou não se lembrando de ninguém nem de si.
12.ª Assim os constrangem a confessar falsidades de si, e de outros, e recebem-nas, e procedem nelas como se fossem verdades confessadas livremente. Veja-se abaixo — n.º 10, presume-lo, isto mais claro.
13.ª Também a ratificação depois constrangidos da certeza, ou medo, visto que têm de os atormentarem outra vez se as negarem: como negariam se pudessem seguramente [ilegível] são estas.
14.ª A uns ameaçam com tratos: a outros põem a vista deles; a outros aparelham para lhos darem, sem determinação de os executarem em nenhum deles, porque os não merecem. Mas para que assim confessem, fazem os Inquisidores figuras, ou ficções, e usam de invenções, com que os enganam, e persuadem que realmente lhes darão tratos, se não confessarem. E por isto confessam, principalmente os fracos, ou simples, ou moços, ou mulheres.
15.ª No juízo secular apela-se, e recebe-se apelação dos tratos: porque causam dano gravíssimo, e irreparável: o mesmo se devia fazer no juízo da Santa Inquisição, pois é Eclesiástico e de si mais favorável: e sem tratos são de si mais graves, e menos aliviados, como deseja.
16.ª o pior de tudo é que negando alguns tratados aquilo por que foram tratados suficientemente, não os absolvem, nem os soltam, como parece que o deviam fazer, absolver, e soltar: pois que suficientemente purgaram o que havia contra eles: conforme aos Doutores desta matéria.
E que os absolvem, e soltam ordinariamente nas Inquisições fora de Portugal, e se deve assim fazer em todas, provam os Autores que tratam desta matéria. E pois em Portugal os Inquisidores condenam a tratos conforme a estes Autores, conforme aos mesmos absolvam e soltem aos tratados, que negarem nestes casos que os ditos Autores apontam. O que parece não fazem em Portugal os Inquisidores.
Estas se remediarão facilmente se quem escreve de tratos, e condena a eles, e quem os executa os experimentara em si mesmos, ou em seus conjuntos. Do que guarde Deus a todos. Porém ouçam a São Paulo, Induite vos et viscera misericordiae benignitatem et cetera. Declare-se a cada um por si dos condenados a tratos, que pode apelar deles: ou apelem os Inquisidores, como os Juizes Seculares apelam de suas sentenças em casos crimes, para que assim gozem os tratados do remédio que lhes dá o Direito, e não saibam em geral que podem apelar dos tratos, e é inconveniente saberem-no todos eles, como podem sabê-lo dos Livros correntes, e dizer que lhes tiram esta defesa.
Nenhuma mulher tratem em mais partes, que nos braços, nem lhe descubram mais que o mesmo. Não posso declarar, porque digo isto, entendê-lo-á quem as tratam, ou tratavam antes.
Não usem das cautelas, que apontam os livros para tratar um mais vezes, que chamam tratos continuar, nem para o não absolver, e soltar, se negar aquilo por que for tratado bastantemente porque as tais cautelas parecem desumanas; e pode ser que seus inventores por elas, e outros por serem liberais de tratos são tratados todos no purgatório quando menos, e que também será quem seguir estes e imitar aqueles.
Melhor é, ou menos mal, não tratar quem o merece, ou tratá-lo menos do que merece; que tratar quem o não merece, ou tratá-lo mais do que merece e de dois males deve-se escolher o menor, quando é forçado fazer algum deles, como a Teologia, e o direito ensinam geralmente. E às vezes nenhum deles é forçado fazer-se.
A Igreja não castiga, nem julga tudo, deixa muito a Deus, o qual permite o Judaísmo podendo extingui-lo; e não quer nossos zelos demasiados. Por isto pedindo-lhe São João, e São Tiago licença para abrasarem os samaritanos porque o não receberam, repreendeu-os dizendo. Nescitis cujus Spiritus estis.
A quem há-de ser tratado dão-lhe primeiro um religioso, que o console, e aconselhe, e confesse sacramentalmente, porque tem tanta necessidade destas caridades espirituais, que parece ser obrigação oferecer-lha. Pelo menos quando os tratos forem grandes, pois é batalha perigosa para as vidas, e para as almas, na qual o tratado pode morrer, ou endoudecer, ou pouco depois dela sem se confessar sacramentalmente, e assim perecer eternamente.
Isto aliviará alguns males, que disse dos tratos, e uns confessarão judicialmente sem eles; outros confessarão neles a verdade somente e o Santo Ofício procederá mais seguro em muitas coisas, que pendem, ou manam dos tratos, como está claro aos desapaixonados. Bem arrazoa contra os tratos Santo Agostinho – De civitas Dei, Quem o ler dará menos, e mais leves tratos, e a menos pessoas e em menos casos.
9. Dos modos do juizo
1.ª nos outros juízos sabe o réu que pode recusar a todos os ministros suspeitos, e eles por si se dão por tais muitas vezes; neste juízo não sabe o réu se pode recusar ministros suspeitos, nem se eles se dão por tais, havendo causa para isso algumas vezes.
2.ª nos outros juízos, e também nos doutras Inquisições sabe o réu, ou pode saber como se defenderá; na Inquisição de Portugal, nem sabe, nem pode saber isto, pelas causas seguintes, e por outras.
3.ª não lhe dão bastante vista das testemunhas, que tem contra si, por isso é necessário defender-se às escuras, e julgar o “Adivinha quem te deu”, e darem inocentes para se livrar, e satisfazer ao libelo.
4.ª não se escreve no processo tudo, o que o réu pede e lhe serve, senão o que querem os Inquisidores; o que parece contra razão, e direito, e impedir sua defesa legitima.
5.ª não lhe dão apelação, ou agravo das sentenças definitivas, nem das interlocutórias, dando-se de ambas ordinariamente nos outros juízos, e crimes por todo o Direito, e costume como é notório.
6.ª o seu Procurador, ou Advogado, tem só o nome, porque nem defende o réu, nem o ensina a defender-se, nem faz por eles senão o que querem os Inquisidores; e com tudo isto tem bom salário do réu, cada vez que lhe fala, mas mal servido. O mesmo dizem os Curadores mas sem salário.
7.ª como Procurador do Santo Ofício é seu acusador verdadeiro bem instruído, armado, e ajudado contra o réu; assim quer ele ter seu defensor verdadeiro quão igual puder ser nas armas ao dito acusador conforme a Direito, que manda aos Juízes dêem a ambas as partes procuradores quão iguais, puderem dar-lhes.
8.ª e posto que os Inquisidores supram as faltas sobreditas, o réu não se contenta com isso, quer-se defender por si, ou por seu procurador verdadeiro com todos os meios, que lhe dá o Direito, e na forma, e espécie em que lhos concede, e não por equivalentes.
9.ª além do seu procurador desejam muito aconselhar-se com algum religioso suficiente, e seguro para eles, e para o Santo Ofício como se concede facilmente em outras Inquisições; com grande prol delas, porque os presos descobrem-se melhor ao tal conselheiro, e este persuade-lhes o que devem fazer logo, e fazem-no facilmente.
10.ª Dão-lhe muitos juramentos nos Santos Evangelhos tendo-os por Judeus, que não crêem neles. E as coisas, que vieram contra si, ou contra outrem recebem-nas como jurada legitima, e canonicamente podendo-se bem duvidar se vale o tal juramento.
11.ª Perguntam-lhe algumas coisas em tal forma que parece mais sugerir, que inquirir, e que lhe ensina males que não saibam.
Algumas destas queixas têm também os cristãos velhos; muitas se podem remediar acomodando-lhes o regimento, e o estilo do Santo Ofício, que com o tempo pedem alguma mudança, conforme ao capítulo Non debet 8.de consanguinis et affinitatibus, et B D ibi. E assim se mudam com todos os outros Tribunais os seus regimentos.
Por não dizerem, que lhes negam os meios, que para sua defesa lhe dá o Direito, declare-se a todos que podem recusar qualquer ministro suspeito; e apelar das interlocutórias somente.
Escreva-se no processo de cada um quanto ele pedir, ou lhe mostrem, que não lhe serve, o que se não escrever.
Dêem-lhes os juramentos na forma em que dariam a gentios, como nesta, "Por Deus verdadeiro".
O Procurador, ou advogado suponha que cada réu é inocente, e defenda-o como se soubera que tal é, e diante dele, e junto dos Inquisidores jure que assim o defenderá com todos os meios, que souber, e puder conforme ao Direito. Nada disto é contra a Bula da Ceia, nem outra proibição.
Lembro isto encarecidamente que se os Hebreus souberem por alguma via, e não pelo Santo Ofício, que o Direito lhes concede alguns meios para se defenderem, dos quais não usam, porque os não sabem; como recusar Inquisidores, apelar das interlocutórias, e dos tratos em especial, cuidarão, que outros mais lhes concede o Direito e dirão a El-Rei, e ao Papa que o Santo Ofício lhes nega ou encobre as defesas, que lhes dá o Direito, e que será maior mal, que descobrir-lhe o Santo Ofício os ditos meios. Este ponto requer madura consideração, e execução.
Suponho que cada um retirará seu voto, se qualquer outro votar melhor, porque a isto são obrigados todos os que votam vocalmente como se prova em seu lugar. Item que estão bem no capitulo Judicet ille. 3. q. s. todo aures para juizes principalmente Eclesiásticos. Item que se acautelam e as cautelas de Eymiric no exame dos réus seguindo antes a pegna, e o desengano de Santo Job. Nunquid Deus indiget mendacio vestro, ut pro illo loquamini dolos. E pior é usar enganos por obra, que por palavra. Deixo o mais para o 2.º memorial. Vide capitulo 1. de sententia et re judiciale in 6.º Farinac. de testibus por seu libro 3. 7. 21. capitulo .3 e 4. Ecclesiast. capitulo 3. n. 16. Vidi sub sole in loco judicis impietatem, et in loco justitiae iniquitatem.
10. Das presunções contra eles
1.ª Presunções e suspeitas moralmente são o mesmo, como se declara em seu lugar; umas são do Direito, outras dos homens; destas principalmente falo aqui; porque pendem do juizo de cada um.
Já nenhum mal se pode presumir de ninguém, senão quando há indícios bastantes, para isso; e quanto maior é o mal, tanto maiores indícios são necessários; e quando há indícios para presumir bem, ou mal de uma pessoa devemos presumir bem dela: estas Teologias não se guardam com eles em alguns casos, que tocarei aqui.
2.ª presume-se de todos os Hebreus de Portugal depois de baptizados se fazem Judeus: este pecado não é original para nele caírem todos necessariamente, nem se pode presumir semelhante de nenhuma gente.
3.ª por prenderem muitos da mesma terra, presume-se que todos dela são Judeus, devendo-se presumir, que alguns o não são, porque mais ordinário é o não fazerem alguns de qualquer Comunidade a mesma coisa má ou boa; que fazerem-na todos de tal Comunidade.
Por isso nenhuma Comunidade, ou Vizindade pode ser excomungada por nenhum pecado, porque não é provável, que todos dela o cometessem; como nos ensina a Igreja Católica no fim do capitulo Romana. S. de sententia Excomunicationis in 6.º e os Doutores que tratam da excomunhão; a qual doutrina tanto é mais verdadeira, quanto a Comunidade é maior. Logo se não pode presumir que são Judeus todos os da mesma terra, e muitos menos todos os de Portugal.
4.ª presume-se que todos os baptizados foram suficientemente instruídos na fé, e lei de Cristo Nosso Senhor antes que se fizessem Judeus, e por isto procedem contra os que acham, que depois de baptizados foram, ou se tornaram Judeus, não se podendo proceder se não foram instruídos.
Deviam, ou podiam presumir maior mal o saberem, que muitos deles nunca foram suficientemente instruídos na fé e lei de Cristo Nosso Senhor, antes que foram sempre nelas destruídos mais que bastantemente para se desculparem. Porque se todos se fazem Judeus depois de baptizados conforme a Vossa presunção, bem se segue, que instruem uns, aos outros na Lei de Moisés, e se destroem na Lei de Cristo mais que do que nesta são instruídos por outras vias, porque comunicam muito mais com os seus, e naturalmente se crêem muito mais, e eles persuadem uns aos outros que os cristãos seus inimigos são, e não entendem as razões que têm para crerem a Igreja de Cristo Nosso Senhor e lhe obedecerem.
Por isto quem depois de baptizado foi pervertido tanto mais merece perdão, quanto menos idade tinha, pois com bom fundamento se pode presumir que nunca foi bastantemente instruído na fé, e Lei de Cristo Nosso Senhor. Este ponto da 4.ª presunção requer conselho, estudo, remédio eficaz, e aprestado por via do Santo Ofício, e dos Bispos, conquanto pastores próprios deste gado perdido, como os Ingleses.
5.ª Se algum confessa que foi Judeu só no exterior por alguma causa humana presume se que também o foi no interior, devendo, ou não podendo presumir este mal, pois quando algum cristão velho vindo de África confessa que foi mouro só no exterior por alguma coisa humana, não se presume que o foi também no interior para efeito de o castigarem, como herege confirmado; e se isto é favor estenda-se aos Hebreus em casos semelhantes: pois tem melhor disgraça, como disse na 4.ª presunção.
6.ª Se algum confessa que teve a lei de Cristo Nosso Senhor e que juntamente a de Moisés, cuidando, que se podia salvar guardando ambas juntas; presume-se, que deixou a Lei de Cristo, e por isto o chamam apóstata, e castigam como tal, podendo, ou não devendo presumir este mal; pois consta que infinitas pessoas e algumas Comunidades houveram este erro por muitos tempos; porque não claríssimo, antes é fácil.
7.ª Se algum confessa que teve disparates ou contrariedades na fé por ignorância, presume-se que por malícia, devendo, ou não presumir este mal; pois o não presumem em Cristãos Velhos em casos semelhantes; nos quais não deviam errar, e saber a verdade.
Ponho dois notórios: 1.º Pediam os Cristãos Velhos ao Santíssimo Sacramento que intercedesse per eles diante de São Gonçalo de Amarante, 2.º quando Frei Dom Bartolomeu dos Mártires Arcebispo de Braga visitou a Barroso receberam-no cantando em uma dança “Bendita seja a Santa Trindade Irmã de Nossa Senhora", como se lê em sua vida. L. 3 cap. 5.
8.ª presume-se de todo o que foi Judeu que comete todos os judaísmos contidos em certa lenda que têm os Inquisidores, e por isto não se satisfazem até que confessam todos; devendo, ou não podendo presumir este mal, porque o mais ordinário é cada um não saber alguns daqueles judaísmos, ou não ter ocasião para os cometer, ou não lhe contentarem, por várias causas.
Por isto alguns confessam judaísmos, que nunca cometeram, ainda que fossem Judeus; e referem-se nas suas sentenças por cometidos, e confessados por eles, com escândalo, ou embaraço, ou espanto dos ouvintes, ainda dos Cristãos Velhos. Porque não vêem como podiam tais pessoas cometer tais judaísmos. Exemplo nas sentenças dos homens, se diz que fizeram judaísmos próprios de mulheres, como amassando, cozinhando, varrendo a casa, as quais obras eles nunca fizeram por si conforme a qualidade de suas pessoas, nem se podem crer que mandassem a suas mulheres, ou a suas criadas fazer nela judaísmos: porque eram Cristãs Velhas, e não deviam fiar-se delas; por isto provam sua inocência, e a injustiça do Santo Ofício, também em outros pontos.
9.ª Se Pedro verbi gratia não descobre a Paulo seu parente chegado, presume-se que Pedro é impenitente, e que favorece hereges, devendo, ou podendo não presumir este mal; mas que não descobre, porque lhe dói muito ou por outra causa semelhante, e humana; como porque teme que Paulo o mate depois, ou espera que lhe fará grandes bens, ou por agradecimento dos que já lhe fez ou finalmente porque cuida com fundamento bastante para ele, que não é obrigado a descobrir a Paulo.
Declaro, e provo esta queixa assim 1.º quando alguma pessoa, ou obra, se pode presumir bem, ou mal, devemos presumir bem; e quando se pode presumir mal maior, ou menor, devemos presumir o menor como se prova em seu lugar: de Paulo, ou de ele encobrir a Paulo, pode-se presumir qualquer coisa das que apontei agora; e qualquer delas é boa, ou menos mal do que ser Pedro impenitente, ou favorecer hereges, como está claro. Logo qualquer delas devemos presumir, e não impenitência, e favor de hereges para o castigarem com a morte.
2.º Se o mesmo Pedro chamado para testemunhar contra o mesmo Paulo em caso de heresia não vier, ou não quiser testemunhar, é opinião provável que se possa presumir, que Pedro somente desobedece ao Santo Ofício, e que não favorece hereges, logo no caso sobredito pode-se presumir o mesmo, ou alguma coisa, das que ele apontar; e qualquer destas presunções é boa de si, ou menos mal que ser Pedro impenitente, ou favorecer hereges; logo, nenhuma destas duas podemos presumir dele no dito caso.
3.º Se o mesmo Pedro esconder, ou receber em sua casa ao mesmo Paulo, sendo ladrão, e por isso manda que seja castigado com penas arbitrárias, e não com as ordinárias dos que recebem, ou escondem ladrões; logo no caso sobredito, deve-se presumir, conforme a este Direito porque as presunções dos homens devem-se conformar com as do Direito; como se prova em seus lugares; e o tal Direito parece natural, e é justíssimo.
4.º Bons Doutores dizem que certas pessoas não são obrigadas a denunciar ao Santo Ofício de suas conjuntas em certos casos, ainda que as denunciantes não sejam cúmplices, nem culpadas no mesmo crime. E a santa Inquisição não manda riscar estas opiniões, mandando riscar outras muitas de menor importância; logo tem-nas por prováveis, e por conseguinte poderá Pedro encobrir a Paulo nos tais casos, se Pedro o souber; e ainda que os ditos Doutores falam da denunciação; se a minha brevidade sofrera mostrar ser o mesmo no caso que trato.
5.º Se Pedro confessando-se sacramentalmente cala alguns pecados por causa justa, ou que ele por boa fé tem por justa, não peca calando-os, nem é impenitente, nem diminuto formalmente, ainda que é diminuto materialmente, antes faz boa confissão, e por ela recebe a graça de Deus, e sua reconciliação com ele se não tem outro impedimento; como ensinam os Teólogos e Canonistas na matéria da penitência. Donde arrazoo assim Cristo Nosso Senhor satisfaça com a dita confissão sacramental; a Igreja é mais benigna; e imitam, logo deve-se satisfazer com a confissão judicial, em que Pedro encobre a Paulo pelas causas que apontei; pois a confissão judicial é de si e da instituição da Igreja menos perfeita que a Sacramental, como está claro também dos fins de ambas.
6.º ordinariamente não se castiga com morte crime algum que não teve efeito, nem o que teve mas sem prova claríssima; Pedro encobre a Paulo sem efeito, porque Paulo ja está assaz descoberto ao Santo Ofício, e não segue claramente que Pedro nisto, ou por isto é impenitente, nem que favorece hereges; mas presumem-se estes dois males, ou um deles, logo não podem relaxar a Pedro no caso da 9.ª presunção. A qual pede mor estudo, conselho maduro, resolução com tempo; porque
10.ª presunção: a que um tratado, ou relaxado com as mãos atadas, confessem contra si, e contra outros, presume-se, que é vontade, do que presumiria se confessasse estando fora de todas estas angústias, devendo, ou podendo presumir menos, que é verdade; pois quem confessa para se livrar destas angústias, facilmente confessará falsidades, como está claro. Deixo outras presunções semelhantes, quase todas são perigosas, e duvidosas, e enganosas conforme aquilo, Malus quoque supplantatur vir suspicio Mortem, e sujeita-se a sentença de Cristo Nosso Senhor In quacumque mensura mensi fueritis, remetietur vobis: falo dos que julgam outros.
Lembro que Praesuntio benignior est potentior, Menocchio,. de praes. liber 15. c. 27. n. 5 e praesuntio pro reo praevalet alteri contra eum, Mascard. c. 20 n. 9, e praesumptio excludens delictum prevalet includenti, Mud., ibidem, e semelhantes máximas dos D D, e Direito e Razão natural que os Juizes devem saber para favorecerem os réus.
11. Das testemunhas contra eles
Acerca destas se queixam mais; direi menos, porque são do seu sangue comummente que não se quer mal, e desculpam uns aos outros comummente.
1.ª muitas são falsas, muitas singulares, e quase todas têm tantas, e tais faltas, de feito, e de Direito, que ordinariamente dez juntas não valem uma, e não sabem se os Inquisidores lhes dão tantas quebras como podem, e devem, ainda que sabem, ou crêem que lhes dão algumas quebras; como da mocidade enquanto testemunham, e em quanto souberam o caso.
2.ª mil vezes acontece declarar-se um com o outro por Judeu só de nação para suas pretensões temporais; e o outro cuida que se declarou por Judeu, também de profissão, e por tal o dá depois ao Santo Ofício.
3.ª o mesmo sucede quando ao princípio entendeu bem a dita declaração, e depois esquecido cuida o contrário por sua malícia, ou por mofina de inocente, que se declarou com ele dantes, ou porque depois quebraram.
4.ª não denunciam, descobrem, testemunham por zelo da fé, senão por outros motivos de cada um, maus ou bons, mas temporais, como por ódio, ou por inveja ou por se livrarem dos tratos, ou da morte.
5.ª’ algumas gentes são fáceis com alguns vícios. As Ordenações de Portugal supõem que certa gente dele é fácil em jurar falso, veja o Santo Ofício se é tal a gente hebreia inferior.
6.ª algumas pessoas particulares por natureza, ou costume, ou consciência larga juram pouco mais, ou menos, e não ao justo. Veja o Santo Ofício se fazem isto alguns Hebreus inferiores. Isto, e o precedente têm em muitos ser assim.
7.ª rectificam seus testemunhos por cumprimento, ou cerimónia, reportam-se ao que têm dito, pedem que lho leiam para o reconhecerem, e faz-se assim as vezes contra o Direito e o bem dos Réus, de que se testemunha diante de indiscretos, ainda que Religiosos.
8.ª muitos se queixam porque não se castiga publicamente algum hebreu por jurar falso contra outro hebreu, como se castiga por jurar falso contra cristão velho, e se lhe respondem que nenhum colhem no 1.º caso, disso mesmo se queixam cuidando que se tem menos cuidado deles, nem aceitam satisfação, e boas razões para quem sabe da matéria.
9.ª alguns fazem estes embaraços que ponho empenho em os declarar, 1.º Pedro e Paulo antes de os prenderem comprometem, ou conjuram entre si, que nenhum deles descobrirá ao outro, e depois um descobre, outro não. 2.º António descobre a Francisco ou tenham comprometido, ou conjurado o contrário, ou não tenham, e depois António jura ou afirma a Francisco que o não descobriu, e por isto Francisco não descobre a António; estes enredos pedem castigo, e remédio eficaz.
10.ª pode ser que alguns cuidam que não são obrigados a dizer verdade jurando pelos Evangelhos, porque não crêem neles; ou que podem jurar falso contra outros para se livrarem, ou que então não ficam obrigados aos danos, que lhes dão, principalmente se outrem jurou falso contra eles. Destes erros haviam os Inquisidores avisar antes de testemunharem.
11.ª alguns por ironia, ou zombaria, graça ou galhofa, ilusão ou paixão desatentada dizem, ou fazem coisas, em que outros cuidam, que se declaram por Judeus, e por tais os dão depois ao Santo Ofício falsamente, porque não são tais, nem pretenderam declarar-se por tais com eles, nem deram ocasião bastante para os terem por tais.
12.ª as testemunhas falsas não se desdizem, porque lhes custará muito o caso, e não aproveitavam a quem culparam falsamente; ainda que se desdigam com juramento na hora da morte, na qual ninguém se presume, que se esqueça de sua salvação, ou que peque mortalmente então.
13.ª Depois que Pedro jurou falso contra Paulo, o remédio de ambos é desdizer-se o Pedro com tempo. Parece que faz injustiça a ambos, quem impede desdizer-se Pedro seguramente; ou não aceita desculpar ele a Paulo, como o culpou, e sendo regra do Santo Ofício, que estejam pelo 2.º dito do Reo, e da testemunha não estar pelo 2.º em favor do Réu, ou doutrem, parece injusto, e contra alguns axiomas do Direito ou dos Doutores, e da Razão natural. Mas estas queixas pertencem ao § 9.º passado.
12. Das condenações, e penitências.
1.ª não se diminuem quando estiveram presos muito tempo, mandando o Direito diminui-las, nem por circunstâncias que diminuem as culpas.
2.ª Não se dá apelação, ou agravo delas, mandando o Direito dar qual tiver lugar, e sendo necessário dar-se para emendar os excessos delas.
3.ª com qualquer nome, ou título que se façam condenações em dinheiro atribuem-nas alguns a cobiça, principalmente os condenados, porque são cobiçosos, e por si julgam os outros, e porque cuidam que parte delas, e das confiscações é para os Inquisidores, ou em prol do Santo Ofício.
4.ª Se não pagam suas condenações quando os soltam do cárcere, retêm-nos na cadeia da cidade até que as paguem, ainda que o fisco tenha toda a sua fazenda, e não lhes dê com que logo paguem.
5.ª o mesmo se faz pelas custas do processo de cada um, que não perdeu sua fazenda, queixa-se de os terem presos por condenações, ou custas retendo-lhes o fisco sua fazenda. Donde o Santo Ofício pode fácil, e seguramente arrecadá-las ambas, ainda que os soltem antes disto.
6.ª condenam em direito a quem sabem, ou podem saber facilmente que é pobríssimo, pois o fisco os sustentou no cárcere do Santo Ofício, e por esta condenação, e pelas custas do feito retêm-no preso, e querem, e dizem-lho algumas vezes, que busque, com que pague, ou se não paga, retêm-no preso até provar que é pobríssimo; e então mudam-lhe a condenação pecuniária em pena corporal, parecendo que bastava a dita vexação passada.
8.ª Dão-se galés, e degredos, a quem não pode moralmente cumprir por sua compleição, idade, ou outras circunstâncias da pessoa ou do lugar, do segredo, pelo que são forçados a pedirem comutação, principalmente mulheres, pelo perigo especial de suas almas e honras. Até os Cristãos velhos estranham tudo isto com razão, que está clara; e favorece os a ordenação L. 3. § 3 et 4. e a lei 2.º Gomes Tomo 3 et i. n.º 62. Detêm muito tempo na cadeia da cidade as condenadas a galés, ou degredo; e não lhes descontam das tais penas.
9.ª parece que os açoites deviam ser menos, e mais leves do que dá a justiça Secular, pois os manda dar o Eclesiástico, ou Igreja mais piedosa. Dantes davam-se no cadafalso, poucos, e leves a cada Réu, agora corre a contado.
10.ª tiram, ou abreviam algumas penitências por dinheiro ou por valias, ou porque o preso estando preso descobriu muitos, ou alguns depois de soltos; o que pode ser ocasião de falsos testemunhos, ou descobrimentos de inocentes.
11.ª parece pena, ou penitência excessiva abjurarem em público os leves suspeitos, por isso em Castela abjuram em secreto. Vide titulo 1.1 item.
12.ª Dissimulam por respeitos humanos com alguns que cumprem mal suas penitências não fazendo o que lhes mandaram, ou fazendo o que lhes proibiam; com outros apertam muito que as cumpram inteiramente.
13.ª não lhes declaram bastantemente nem intimam quão obrigados são a cumprir suas penitências, e abjurações, nem as penas que têm se as não cumprirem; por isto alguns as cumprem imperfeitamente, cuidando que são cerimónias do Santo Ofício e não obrigação de Direito.
14.ª não podem sair das terras que lhes assinam por cárcere sem licença especial do Santo Ofício: parece que lha houveram de dar geral, para saírem por pouco tempo cada vez, porque têm muitas necessidades urgentes; e ainda que algumas os desobrigam, eles não o entendem, e saem cuidando que quebram sua proibição; e pecam por consciência errónea.
15.ª as condenações em direito e as comutações das penitências, ou boa parte de todas houveram-se de dar aos reconciliados pobres enquanto ouvem a doutrina: pois no juízo Eclesiástico e Secular se faz semelhante algumas vezes.
Algumas queixas deste título têm também os Cristãos Velhos; todos querem que este Tribunal seja mais benigno, que os outros, como santo, e mais paterno, e alguns como se vêm fora, provam que dentro é mais severo, e fazem-no odioso merecendo ser amado, e venerado; importa que ele mostre no público quão benigno é no secreto para conservar seu bom nome, e confundir seus contrários, de modo que não ousem blasfemar: Ut is qui ex adverso est, vereatur nihil habens malum dicere de nobis.
13. Da soltura, e instrução, e doutrina.
1.ª quando os soltam, dão-lhes juramento de segredo, sem lhes declarar bastantemente o que contem, por isso não os guardam, e parece que os não podem castigar, pois não sabem o que juram; nem ousam perguntar-lho, ou não lhes ocorre com medo da resposta do Santo Ofício.
2.ª não lhes dão suas camas pobríssimas, nem dinheiro para comerem aquele dia; nem do que pouparam da sua ração ordinária no cárcere parecendo ser seu, como disse no titulo 3. e terem necessidade urgente.
3.ª tratam-nos mal de palavra, e obra enquanto trazem os hábitos penitenciais, principalmente no princípio em Évora, e depois nos primeiros tempos, que os trazem em suas terras, e em nenhuma parte destas atalha isto ninguém, devendo atalhar-se em todas pelo Santo Ofício.
4.ª O mesmo, e pior fazem aos que são queimados; devendo-nos compadecer mais destes, porque também são nossos próximos e porque ordinariamente cuidamos que morrem mal e podem piorar ou melhorar segundo os tratarem naquela ocasião derradeira.
5.ª enquanto os instruem, ou doutrinam, padecem graves necessidades corporais, principalmente na 1.ª semana, porque não acham esmola nem donde trabalhem, nem todos podem ganhar seu comer trabalhando, donde nascem alguns pecados seus, e escândalos de outros.
6.ª estando no mesmo tempo absoltos da excomunhão, não os deixam receber o Santíssimo Sacramento sem licença dos Inquisidores especial, parecendo que basta a de seus párocos, e ordinário.
7.ª e ainda assim os obrigam a se confessar com certo confessor, dando-lhes a Igreja licença, e liberdade para se confessarem com qualquer aprovado; por isto, pode ser, que se façam algumas confissões sacrílegas, ajuntando o que disse pagina 8. §
8.ª parece que lhe houveram de dar do fisco alguma sustentação, ou ajuda para eles, enquanto ouvem as doutrinas, pois estão na cidade presos, e houveram de estar em outro cárcere do Santo Ofício se ele o tivera, e aí ser sustentados do fisco como no primeiro cárcere.
9.ª especialmente às mulheres se houvera de dar esta ajuda, pelo menos como esmola para atalhar o perigo de suas almas, e honras por falta desnecessária, e temporal.
10.ª Pelo mesmo perigo, houveram de morar juntas em uma casa, governadas dentro por uma cristã velha servida fora por outra, tudo por ordem do Santo Ofício, ainda que à custa delas, porque assim gastarão menos, e serão melhor servidas, e providas, e curadas das doenças, e consoladas umas das outras, e bem aconselhadas, e defendidas nas ocasiões. E finalmente seus maridos, e parentes estimarão muito este recolhimento, ainda que nele gastarem mais, que fora dele, como me afirmaram muito encarecidamente os hebreus, sabendo que isto se ordenava por seu bem, por mim.
11.ª quem tem impedimento perpétuo para ouvir as doutrinas, houvera-se de mandar logo para onde há-de ir depois delas, por que não seja ocasião de outros os não ouvirem acompanhados.
12.ª não fazem as doutrinas aos contidos nas cadeias da cidade, sendo lhes tão necessárias como aos outros. Pudera-lhas fazer outro Padre ajuntando-os num lugar mais apertado, e acomodado para isto nas mesmas cadeias.
13.ª Suposto que foram Judeus, ou crêem que o foram, deve quem os doutrina procurar de os instruir de raiz na fé, e Lei Cristã e movê-los com suavidade a crê-la firmemente, e amá-la do coração; e não se contentem de a saberem secamente.
14.ª Houvera-se de ordenar, que quem faz as doutrinas, ou outro Sacerdote tenha especial cuidado de fazer, e processar, para os ouvintes todas as obras de misericórdia de que tiverem necessidade, como a cura dos doentes, e a paz dos discordes, a sustentação dos pobres, para que se veja a caridade do Santo Ofício para com eles todos.
15.ª quando se denuncia o cadafalso, houvera-se de denunciar também alguma pena, contra quem injuriar por obra, ou por palavra algum relaxado até morrer, ou algum reconciliado enquanto trouxer hábito, e estiver em Évora quando menos; porque há desastres, e pecados nestas ocasiões, que só o Santo Ofício pode remediar.
Se alguma absolvição da excomunhão que hão os Inquisidores vale a quem fingiu que se convertia, ou fez confissão judicial diminuta e outras dúvidas da confissão sacramental dos reconciliados porei na instrução de seu confessor. Mol. de Just. t. o 5. trat. 4 d. 37. n. 21. [?] §. Atque hoc instr. confessarum reconciliationum.
14. Do regimento, estilo, prática do Santo Ofício.
Estas três coisas em qualquer Tribunal diferem entre si, ainda que alguns as confundem: quase todas as queixas dos títulos precedentes pertencem a alguma parte deste; por clareza as distribuí por eles. Aqui determinava dizer de cada parte deste titulo; o que dilato por justa causa, porei as mostras somente.
1.ª o Regimento do Santo Ofício manda a seus ministros que dêem conta ao Conselho da Santa Inquisição dos filhos menores dos relaxados, e reconciliados para se prover em sua criação et cetera e nada disto se faz; parece por ser do fisco, houvera de sustentar, e ajudar.
2.ª manda também que os apresentados não saiam a público se não tiverem titulo contra si, quem tem só uma testemunha sai a público em Évora, mas não em Coimbra, o que parece melhor, pois o Regimento diz testemunhas, e pretende favorecer aos apresentados, para que outros se apresentem.
3.ª manda mais, que os Ordinários concorram para as prisões, e sentenças de seus súbditos: alguns Ordinários cometem suas vezes a um Inquisidor, ou deputado, o qual vota como Ordinário: falta o seu voto de Inquisidor. Se vota como Inquisidor, falta o voto de Ordinário, se vota por ambos parece que faz dois ofícios no mesmo Tribunal contra o Direito, e sentença comum dos Doutores antigos, e modernos, o mesmo do deputado, e do comissario.
4.ª por Regimento, ou estilo do Santo Ofício, tornam a prender quem diz, que nele se acusou falsamente, o que parece rigor, porque isto é fraqueza natural, e dezasar, e desculpar-se sem prejuízo do Santo Ofício, pois não é crido, nem crível, porque não é verosímil.
5.ª por um dos mesmos, algumas sentenças referem alguns judaísmos cometidos, e confessados pelos réus: dos quais os cristãos velhos afirmam, e juram o contrário como testemunhas de vista; exemplo, que comeram com ele muitas vezes coelho, ou lebre, e ainda que isto tinha boas saídas; muitos não as entendem, e espantam-se, e escandalizam-se. Donde os Hebreus pretendem mostrar sua inocência, e a injustiça do Santo Ofício. Por isto importa serem as sentenças mais várias, que uniformes.
6.ª cada presidente quer meter estilos, ou práticas; porque faz muitas vezes o que lhe parece, e alega, que isto é estilo, ou prática do Santo Ofício, que deviam ser mais firmes, e conformes em todos os tribunais da Santa Inquisição deste reino. Bastem estas mostras. Se guardam a dureza do Regimento por este texto, quod quidem per quam durum est, sed ita Lex scripta est. Vejam se ele procede só no caso de sua Lei, e se é odioso, e se repugna a substância das leis, que devem ser fáceis; e se está derrogado por este texto universal Placuit, et cetera porque a equidade, ou benignidade temperou sempre o rigor do Direito humano conforme a este texto Id enim et cetera. L. Qui negotia. 34. Id enim mandati.
15. Do Fisco.
Contam muitas queixas com tais circunstâncias, que parecem verdadeiras, ou que lhes dão ocasião para as fingirem. Dizem que se vendem baratas algumas coisas que se puderam guardar, até seus donos serem sentenciados. E qualquer destas que seja pede remédio eficaz. Item que suas mulheres são vexadas. Item que algumas crianças morreram ao desamparo. Item que tarde e mal cobram o seu do Fisco. Deixo todas para lugar mais largo, por justas causas.
Muitos pontos deste memorial pratiquei por vezes com alguns Ministros do Santo Ofício que os podem propor melhor; alguns repetirei ao diante; porque importam; e pedem mor prova, e declaração. Tudo submeto a quem o apresento, e terei por melhor, o que ordenar Sua Ilustríssima, como devo ter.
Évora.
Gaspar de Miranda.
TEXTOS CONSULTADOS
António Joaquim Moreira, COLECÇÃO DE PAPEIS IMPRESSOS E MANUSCRIPTOS ORIGINAES, MUI INTERESSANTES PARA CONHECIMENTO DA HISTORIA DA INQUISICAO EM PORTUGAL, Cod. 868, BNP
Online: http://purl.pt/15142
António Borges Coelho, Inquisição de Évora: dos primórdios a 1668, 2 vols. Editorial Caminho, 1987.
António Borges Coelho, Tradição e mudança na política da Companhia de Jesus face à comunidade dos cristãos novos, in Revista de História - Centro de História da Univ. do Porto, vol. X, 1990, pags. 87-94
Online: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6428.pdf
P. GASPAR DE MIRANDA nasceu na Vila de Alegrete em a Provincia Transtagana a 17 de Agosto de 1564 sendo filho de João Rodriguez, e Izabel Rodriguez pessoas principais daquela Vila educando-o tão virtuosamente, que na florente idade de 16 annos deixou o mundo, e abraçou o instituto de Jesuita no Colegio de Evora a 20 de Dezembro de 1578 onde estudou as ciencias amenas, e severas, que depois ensinou com igual esplendor da Companhia, que credito do seu talento. Sendo Mestre de Gramatica fez algumas observações das quais se aproveitou o Padre Antonio Velez em os doutos comentarios com que ilustrou a Arte do Padre Manoel Alvares. As postilas Teologicas, que ditou pelo espaço de vinte anos eram tão profundas, que as mandou copiar para o seu estudo o grande Suarez Granatense. Igual foi o progresso das virtudes ao das letras sendo um vivo exemplar da perfeição religiosa. Vaticinou a hora da sua morte, que felizmente sucedeu a 19 de Maio de 1639 com 75 anos de idade, e 61 de Companhia. A sua vida escreveu o grande antiquario Manoel Severim de Faria seu Confessado, que a remeteu ao Licenciado Jorge Cardoso cujas noticias transcreveu no seu Agiol. Lusitn. Tom. 3. pag. 319. e no Coment. de 19. de Maio letr. H. Compôs.
Methodo excellente para os que quizerem fazer Confissão Geral. M. S.
MS Tractatus de Jubilaeo
MS........... de Fide
MS. De primo, et secundo Praecepto Decalogi.
MS De Excomunicatione.
MS De Restitutione, Promissione, & Donatione.
Todos estes Tratados se conservão M. S. no Collegio de Evora. Do author fazem memoria Franco Imag. da Virt. do Nov. de Evor. liv. 3. cap. 3. e Ann. Glor. S. J. in Lusit. p. 276. et Annal. S. J. in Lusit. p. 276. n. 7. Fonseca Evor. Glor. p. 432.
MIRANDA, Gaspar. Profesor, moralista
N. 17 agosto 1564, Alegrete (Portalegre), Portugal; m. 19 mayo 1639, Évora, Portugal
E. 20 diciembre 1578, Évora; o.c. (ordenação) 1596, Évora; ú.v. (últimos votos) 2 diciembre 1601, Évora.
Cursó humanidades, filosofía, (1582 – 1586) y teología (1592 – 1596) en la Universidad de Évora. Enseñó humanidades (1586 – 1592, 1597 – 1599) y teología moral (1599 – 1613), y fue, además, consultor y director espiritual. Vivió en Évora sesenta y un años, donde murió con fama de santo. Siendo profesor de gramática, escribió unas notas, que aprovechó António Veles para sus comentarios al Arte de Gramática de Manuel Álvares.
Destacado moralista, sus opiniones se consideraban tan seguras y sus apostillas tan apreciadas que Francisco Suárez las mandó copiar para su uso. Manuel Severim de Faria, chantre de la catedral de Évora y dirigido espiritual de Miranda durante treinta y cinco años escribió su vida y se la envió al historiador Jorge Cardoso, quien la menciona en su Agiologio Lusitano (3:319).
BIBLIOGRAFIA: Franco, Imagem Évora 381 – 389. Ip., Ano Santo, 261, Sommervogel, 5:1127. Stegmüller, 71 s.
in
Diccionario histórico de la Compañía de Jesus – Biografico – Temático, organizado por Charles E. O’Neil, S.J., y Joaquin M.ª Dominguez, S.J., Institutum Historicum, S.J., Via dei Penitenzieri, 20, 00193 Roma e Yniversidad Pontificia Comillas, 28049 Madrid, 2001