10-10-2012
A Família Penso na Inquisição (1672 - 1684)
A saga da família Penso vem resumida fielmente na História dos Cristão Novos Portugueses, de João Lúcio de Azevedo (pag. 324), assim:
Dos presos, que em 1672 foram causadores do movimento infeliz de resistência, alguns já não viviam: do número Diogo Chaves * e Simão Rodrigues Chaves **, declarados inocentes neste auto (10-5-1682) e António Rodrigues Mogadouro, de quem foi queimada a figura em 1684. Fernão Rodrigues Penso, penitenciado, regressou ao cárcere algum tempo depois, pela culpa de não denunciar um filho, que depusera ser por ele instruído no judaísmo. Debalde tentaram os juízes arrancar-lhe nos tractos a confissão: o nome que pretendiam nunca foi pronunciado; por castigo, degredaram-no para Castro Marim.
* Diogo Chaves (Pr. n.º 4426) – preso em 28-7-1672, de 40 anos, faleceu no cárcere em 2-1-1675
** Simão Rodrigues Chaves (Pr. n.º 9792), de 59 anos, preso em 29-7-1672 – faleceu no cárcere em 8-10-1672
Talvez valha a pena pormenorizar mais um pouco a sua história. Fernão Rodrigues Penso foi penalizado como muitos outros pela suspensão da inquisição em 1674 pelo Papa, que depois a repôs como dantes em 1681. Ficou dez anos nos cárceres da Inquisição e só foi reconciliado no auto da fé de 10 de Maio de 1682.
GENEALOGIA (1682)
Tristão de Morales, cristão velho, Castelhano, casou com Maria de São Nicolau e tiveram
Fernão ou Fernando Rodrigues Penso (1672 – Pr. n.º 2332; 1683 – Pr. n.º 2332-1), de 70 anos, natural de Badajoz, viúvo de Beatriz Pessoa, teve:
Filhos do casamento:
D. Mariana de Morales Penso (1683 – Pr. n.º 8413), de 34 anos viúva (em 1681) de Pedro Gomes de Olivares, de quem teve:
Violante, de 13 anos
Micaela, de 3 anos
Leonor, recém nascida
Ana Maria Penso (1683 – Pr.º n.º 5414), de 32 anos, solteira, recolhida no Mosteiro de Odivelas
Ilegítimos:
Filhos de Ana da Costa (1673 - Pr. n.º 5411; 1683 - Pr. n.º 5411-1):
Fernando de Morales Penso (1682 – Pr. n.º 6307), solteiro, de 25 anos
Miguel, de 19 anos
João, de 17 anos – estes dois foram para a Índia
Maria Penso, de 25 anos, Religiosa no Mosteiro de Odivelas
Teresa Penso, de 23 anos
Isabel Penso, de 22 anos
Brites Penso, de 16 anos
Filha de Maria de Andrade:
Micaela Inês Penso, de 15 anos
Filho de uma mulher de quem não sabe o nome:
José Penso
Os filhos ilegítimos de Ana da Costa e Maria de Andrade viviam todos em casa de D. Mariana de Morales Penso.
FERNÃO RODRIGUES PENSO – Processo n.º 2332
Fernão ou Fernando Rodrigues Penso, cristão novo, foi natural de Badajoz onde terá nascido por volta de 1612. Em Lisboa, fez uma fortuna razoável, pois o seu inventário no processo da inquisição tem 66 páginas.
A Inquisição já o rondava desde 1653 quando o médico André Soares (Pr. n.º 11472) o denunciou até por duas vezes, pois em 1656, atribuiu-lhe outra culpa. Em 1655, Manuel Cordeiro (Pr. n.º 653-1) denunciou-o também e, apenas com estas duas denúncias, o Promotor propôs em 1669 à Mesa da Inquisição que ele fosse preso. A Mesa não concordou achando conveniente ficar a aguardar mais prova. O Promotor apelou para o Conselho Geral que confirmou a decisão da Mesa.
Entretanto, começaram a aparecer mais denúncias: de Jerónimo da Costa Brandão (Pr. n.º 7340), de Manuel Gomes Bivar (Pr. n.º 7361), denúncia de João Francisco Dória, de Domingos Ferrão de Castelo Branco (Pr. n.º 6612, de Coimbra) e de Luis Álvares (Pr. n.º 10721). Em Assento de 27 de Julho de 1672, o Conselho Geral decretou a sua prisão.
Mais denúncias: de Manuel da Costa Martins ou Manuel da Costa Pestana (Pr. n.º 81), de Pedro Ribeiro (Pr. n.º 9076), de Martinho Mascarenhas.
A prisão deve ter deixado Fernão Rodrigues Penso em pânico, até porque ele sustentava uma extensa família onde só ele trabalhava. As duas filhas não foram presas então, mas não deveriam ter jeito nenhum para negócio. Por sorte dele, o filho ilegítimo Fernando só teria então uns 15 anos e também escapou nessa altura.
O processo tem um grande arrazoado escrito por ele de fls. 61 a 66v, de difícil leitura, a que os Inquisidores não deram importância. Segue-se uma carta de sete páginas (fls. 67 a 70) escrita por seu genro, Pedro Gomes de Olivares, em nome das duas filhas acusando Ana da Costa, mãe de sete filhos ilegítimos do réu encarcerado, elaborando contraditas contra ela, que afinal, nem sequer era denunciante no processo. Os filhos ilegítimos estavam todos em casa da filha Mariana, excepto duas filhas que já estavam recolhidas num Convento.
O processo avançou muito vagarosamente, já que estavam suspensos os autos de fé (mas ninguém teve a boa ideia de libertar os presos). Em 22-8-1681, foi publicado o Breve Romanus Pontifex que fez regressar tudo ao status quo anterior.
Ainda tentou defender-se, mas depois desistiu. Fez uma primeira confissão (10-3-1682 – fls. 193) mas, corajoso, não denunciou ninguém da família chegada.
O processo foi a visto da Mesa em 7 de Abril de 1682 (fls. 236) e dividiram-se as opiniões: Um inquisidor queria que fosse relaxado, um segundo grupo de um inquisidor mais três deputados queriam que fosse posto a tormento e os dois deputados restantes queriam que fosse recebido (ou reconciliado). A 10 de Abril (fls. 238), o Conselho Geral assentou que o réu fosse admoestado em forma e que se voltasse depois a ver o processo.
Seguiu-se pois a admoestação e o réu prontificou-se a fazer mais confissões em 13 de Abril de 1682 (fls. 243), onde denunciou mais gente: Manuel da Costa Martins (ou Pestana )- Pr. n.º 81, Martinho Pestana – Pr. n.º 6428, Jorge Ribeiro- Pr. n.º 2596 e Luis Álvares – Pr. n.º 10721.
O assento da Mesa e do Conselho Geral, ambos de 14 de Abril de 1682 absolveram-no da excomunhão, decretaram cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais, e sobretudo o confisco de todos os seus bens.
Aliviado, foi ao auto da fé de 10 de Maio de 1682 e deverá ter sido libertado a 20, quando o Padre certifica que foi instruído nos mistérios da Fé (fls. 257).
Se ainda não sabia, teve então a triste notícia de que o seu filho Fernando tinha sido preso em 25 de Abril. Mais ou menos nessa altura, terá falecido seu genro Pedro Gomes de Olivares e ele, aos 70 anos, ficou com uma ninhada de filhos e netos a seu cargo.
Custas: 8$769 réis
No documento “Reparos que fez um sujeito bem intencionado por ocasião do auto da fé que se celebrou em Lisboa em 10 de Maio deste ano 1682” (citado) lê-se este “reparo”: "15. Em que saísse Fernão Rodrigues Penso, confesso judaizante, sendo neste Reino tão notório e certo o contrário, que todos os que trataram assentam ser a dita confissão falsa. E na verdade ele a fez com tal perturbação e sugestão que pode causar grande escrúpulo e parece inverosímil o que ele depôs, como pode examinar-se."
FERNANDO DE MORALES PENSO – Processo n.º 6307
O mandado de prisão é de 25 de Abril de 1682 e foi preso no mesmo dia. As culpas foram-lhe dadas em 9-12-1673 por Pedro Ribeiro (Pr. n.º 9076) e em 3-4-1672, por António Serrão de Crasto (Pr. n.º 4910). E já em 1677, o Promotor havia requerido a sua prisão, mas os Inquisidores decidiram que se aguardasse por mais prova. O promotor recorreu (apelação) do despacho e estranhamente a Mesa só em 24 de Abril de 1682, dá parecer desfavorável ao recurso. Mas, na mesma data, o Conselho Geral defere o recurso e manda prender o réu.
No cárcere, o Alcaide, os Guardas e alguns familiares vigiam os réus e testemunham que ele faz jejuns judaicos, pelo menos nos dias 15-6-1682 (2.ª feira), 29-6-1682 (2.ª feira), 6-7-1682 (2.ª feira) e 9-7-1682 (5.ª feira). Mas, estranhamente, o réu come a carne à noite, ao passo que no estrito jejum judaico, à noite se devem comer coisas que não sejam carne.
Foi notificado da prova da justiça até bastante frágil, e procurou defender-se o melhor que pôde com o seu Procurador, mas, como de costume, não lhe ligaram nenhuma: “veio com contraditas que também lhe foram recebidas, e não provou coisa relevante”.
O processo foi a Visto da Mesa em 12 de Junho de 1682 (fls. 145). Um Inquisidor e dois deputados foram de opinião que a prova da justiça não era bastante para o réu ser condenado como herege e apóstata. As declarações de judaísmo até eram de quando ele tinha… 13 anos! Estes também não davam grande importância aos jejuns que pareciam pouco ortodoxos. Por isso, eram de opinião que o réu fosse posto a tormento.
Os restantes seis membros, porém, eram de opinião que o réu como convicto e negativo, devia ser relaxado à justiça secular! E foi esta a decisão do Conselho Geral em 9 de Julho de 1683 (fls. 147).
Em 26 de Julho de 1683, foi o réu notificado da decisão do Conselho Geral (fls. 149). Entrou em pânico e pediu mesa para fazer as suas confissões.
Em 2-8-1683 (fls. 150), denunciou Manuel de Mesas Cid, residente em Roma, seu pai, Fernão Rodrigues Penso (Pr. n.º 2332), Rodrigo Nunes del Caño (Pr. n.º 8410) e o filho deste, Domingos Nunes del Caño, Pedro Ribeiro, Jorge Ribeiro, Luis Álvares, Ana da Costa, sua mãe, seu meio irmão Álvaro da Costa, Pedro Ribeiro, Diogo Rodrigues Henriques, filho de António Rodrigues Mogadouro, e ainda Francisco e Pantaleão Rodrigues Mogadouro, irmãos do Diogo, António Serrão de Crasto e Luis Álvares.
Em 3-8-1683, mais confissão. Denunciou António da Costa, seu tio materno, João Moreno Lopes, Pedro Gomes de Olivares, seu cunhado (já falecido), Mariana Morales Penso (Pr. n.º 8413) , e Ana Maria Penso (Pr. n.º 5414), suas meias irmãs, e ainda João da Costa Cáceres (Pr. n.º 2591)e Manuel da Costa Martins (Pr. n.º 81).
A Inquisição de Lisboa não perdeu tempo nenhum. Logo em 3 de Agosto, foram emitidos mandados de captura contra Fernão Rodrigues Penso e ambas as filhas, Mariana e Ana Maria, e ainda contra a mãe dele, Ana da Costa, e todos quatro deram entrada na prisão no dia 4.
Também no dia 3 de Agosto foi o processo de Fernando Morales Penso ao visto da Mesa e houve unanimidade para reconciliar o réu, mas condenando-o a cárcere e hábito penitencial perpétuo e ainda a cinco anos de degredo para o Brasil. Foi ao auto da fé de 8 de Agosto de 1683.
Foi para a cadeia esperar embarque para o Brasil. E, de bordo, escreveu esta carta a um Padre Jesuíta amigo, Padre José Ferreira, que aparece no processo (fls. 178), e que como veremos, causou alguma impressão na Inquisição:
Rev.mo P.e Mestre e Senhor meu,
Pelo muito, que com bem grande dor do meu coração, sinto gravada a minha alma, como quem vê entregue a vida às ondas, com tantos riscos da sua vida, me é precisamente necessário para descargo da minha consciência dizer a V. Paternidade que desde a hora em que recebi o Baptismo até o presente tempo, jamais deixei de ser verdadeiro católico, nem pela imaginação me passou nunca deixar a Lei de nosso Senhor Jesus Cristo em que fui muito bem educado; e assim declaro a V. Paternidade que tudo quanto no S.to Ofício depus nas minhas confissões, de mim e contra meus próximos foi falso; e confessei o que não havia feito com temor da morte, e desejo de salvar a vida, e assim rogo a V. Paternidade o faça presente em meu nome na mesa do S.to Ofício, enquanto não chego a Roma donde prostrado aos pés do Sumo Pontífice lho não digo bocalmente. Deus guarde a V. Paternidade muitos anos. Da Nau Diligente, em 29 de Outubro de 1683.
Afectuosíssimo servidor de V. Paternidade,
Fernando de Morales Penso
ao cimo: entregue pelo P.e José Ferreira, da C.ª de Jesus em 6 de Janeiro de 1684.
Custas: 10$148 réis.
FERNÃO RODRIGUES PENSO – Processo n.º 2332-1
Agora com 71 anos, reduzido à miséria, Fernão Rodrigues Penso deu entrada de novo na cadeia da Inquisição. Sabia muito bem o que tinha acontecido: com medo da morte, o seu filho tinha dado nele. E foi acusado pelos Inquisidores de ter ocultado a cumplicidade do filho na crença da Lei de Moisés.
Em 11 de Maio de 1684, escreveu uma petição aos Inquisidores em três folhas densas em letra miudinha (fls. 33 e 34), onde pede misericórdia e termina dizendo que tem a seu cargo 7 filhas, 3 netas e 4 filhos, que não têm outro amparo depois da morte de seu genro.
Mas não estava disposto a confessar e não o fez.
Com o seu Procurador apresentou defesa, que, “por sua matéria lhe não foi recebida” (diz-se na sentença, mas não conseguimos perceber a razão).
No Assento da Mesa de 11 de Setembro de 1684 (fls. 36), houve unanimidade em o submeter a tormento. Mas aos Deputados Luis Vieira da Silva e Fr. Jorge de Castro, “pareceu que a testemunha (o filho) merecia alguma diminuição por não ser reperguntada na forma do Breve, precedendo primeiro interrogatórios do Réu; e pela chamada Revogação que fez em carta que escreveu ao P.e José Ferreira, da Companhia de Jesus, que se juntou ao processo do dito Fernão de Morales, principalmente tendo o Réu contra si esta só testemunha.” É a primeira vez que aparece uma referência ao Breve de 22 de Agosto de 1681.
O Assento do Conselho Geral de 22 de Setembro de 1684 (fls. 38) confirmou a ida ao tormento.
Foi ao tormento em 6 de Outubro de 1684 (fls. 42). Foi duro, durou quase meia hora. Durante o tormento chamou pelo nome de Jesus, pedindo misericórdia e dizendo que não tinha culpas. Mas não acusou o filho.
No Assento da Mesa de 17 de Outubro de 1684 (fls. 44) teve a mesma condenação: cárcere e hábito penitencial perpétuo. Mas o Conselho Geral em 7 de Novembro de 1684 (fls. 46) acrescentou-lhe o degredo de três anos para Castro Marim. Foi ao auto da fé de 26 de Novembro de 1684. António Joaquim Moreira (cod. 863-1) põe na Lista do auto esta nota em Ana da Costa: "Amiga de Fernão Rodrigues Penso, a quem fez uma mesura, quando passou por ele no Auto". Nos dois processos que teve, Ana da Costa não indicou os filhos ilegítimos nas Genealogias.
Deve ter saído do cárcere em 6 de Dezembro de 1684 (fls. 49 v).
Custas: 3$194 réis.
MARIANA DE MORALES PENSO – Processo n.º 8413
Denunciada por seu meio irmão no dia 3-8-1683, foi logo presa no dia seguinte, deixando para trás uma filhinha de quatro meses.
Estava também denunciada por Pedro Ribeiro em 9-9-1673, coisa antiga que já devia estar esquecida. O promotor, ao requerer a prisão, para valorizar o testemunho de Fernando, diz que o pai tinha mais estima por ele do que pela filha Mariana (fls. 9). Há uma denúncia cointra ela de um Fr. Francisco do Espírito Santo (fls. 13).
Como a prova era fraca, a Inquisição andou a procurar as criadas da ré, para saber o que se passava lá em casa.
Apolónia Maria (fls. 15) diz que trabalha há dois anos em casa de Manuel Cordeiro. Antes, estivera ano e meio em casa de D. Mariana e marido. À noite, a sua patroa ficava cerca de meia hora à janela a observar as estrelas. Outra criada de nome Sousa disse a ela que faziam um jejum judaico em Março.
Outra criada, Maria da Silva (fls. 19), de 23 anos sisse que nunca trabalhou lá em casa, só serviu cristãos velhos
Domingas da Silva (fls. 20), casada, moradora em Ribamar, S.to Isidoro, Mafra disse que serviu dois anos em casa da ré. A patroa fechava-se em casa sozinha. Fechava a fechadura da porta com um papel. Punha água na boca e lançava-a na cara dos criados cristãos velhos.
Francisca Rodrigues (fls. 23) disse que, em dois anos que esteve em casa da ré, ela só saiu duas vezes, uma vez para ir à desobriga, outra para ir a um jubileu. Não ia à missa, mas mandava as criadas. Um dia de Setembro não comeu todo o dia e só comeu à noite.
Maria de Mendonça (fls. 25) – preta (ou mulata) disse que esteve cinco anos a servir lá e que viu fazer jejuns judaicos.
Caterina de Siena (fls.29) viu fazer um jejum judaico em Setembro.
A ré tentou defender-se o melhor que pôde, mas as contraditas e coarctadas que alegou não convenceram os Inquisidores. No entanto, a sentença final (fls. 135 v) diz: “Havendo porém respeito ao que a Ré alegou em sua defesa, e contraditas, e a prova da justiça não ser bastante para pena ordinária, com o mais que dos Autos consta”.
O Assento da Mesa (fls. 121) de 4-11-1684 e do Conselho Geral (fls. 123) de 11-11-1684 mandam submetê-la a tormento.
A descrição do tormento (fls. 128) em 13-11-1684 é das mais terríveis que li até hoje. “Atada no potro com os cordéis em oito partes, se lhe deu uma volta inteira que corresponde a um tracto esperto, gritando neste tormento pelo nome de Jesus que lhe valesse, que a remediasse, que lhe acudisse, que morria, e pedindo misericórdia, e continuando-se-lhe o tormento, lhe foi dada segunda volta, com os ditos cordéis em as ditas oito partes, que corresponde a outro tracto esperto, dizendo que a atafegassem que morria, e que acabassem depressa, e que Jesus lhe valesse, que lhe acudissem, e continuando-se-lhe o tormento se lhe deu terceira volta com os cordéis em as mesmas oito partes, que correspondem a outro tracto esperto, pedindo misericórdia, dizendo que já não podia sofrer mais, e ‘inda se lhe continuou o dito tormento apertando-lhe os oito cordéis quarta vez, o que corresponde a quatro tractos espertos; e por quebrarem os cordéis muitas vezes, e a dita Ré estar já sem poder falar nem gritar, e que tinha levado o tormento que podia sofrer, e julgarem o Médico e o Cirurgião que ela não estava capaz de se lhe dar mais tormento, além do que tinha levado, julgaram os ditos Senhores que estava satisfeito ao assento do Conselho Geral, que em seu processo se havia tomado, foi mandada desatar e levar a seu cárcere, e este tormento durou quase uma hora, por começar às oito e um quarto e acabar depois das nove horas pouco tempo. “
Depois deste exercício de sadismo, o processo podia já terminar. A ré iria abjurar de vehementi, mas não assinaria, “por estar incapaz de poder assinar, por impedimento da mão”(fls. 137). Note-se que não foi respeitado o Regimento que proibia a aplicação do potro às mulheres (Liv. 2.º, XIV, n.º VI).
Os assentos da Mesa de 16 de Novembro (fls. 131) e do Conselho Geral (fls. 133) de 17, dão-lhe cárcere a arbítrio dos Inquisidores, penitências espirituais e mandam que pague 500 cruzados (!) (sem exceder um terço dos seus bens), para as despesas do Santo Ofício. Quinhentos cruzados são 200 000 réis, uma pequena fortuna naquele tempo, em que 10 000 réis eram um bom salário anual.
Foi ao auto da fé de 26 de Novembro de 1684. A 5 de Dezembro seguinte (fls. 140), requereu a sua libertação para se ir curar para casa, o que deve ter sido deferido, tendo o despacho: “Os Inquisidores de Lisboa defiram a esta petição como lhes parecer justiça”.
Custas: 9$351 réis.
ANA MARIA PENSO – Processo N.º 5414
As denúncias são as mesmas de sua irmã Mariana, mas, como esta ré estava já há tempos no Convento de Odivelas, não interrogaram as criadas.
Defendeu-se o melhor que pôde e da sentença (fls. 90 v) consta: “Havendo porém respeito ao que a Ré alegou em sua defesa, e contraditas, e a prova da justiça não ser bastante para maior condenação, com o mais que dos Autos consta”.
No assento da Mesa (fls. 71) de 28-9-1684, foi decidido por unanimidade que a ré fosse posta a tormento, mas o Conselho Geral (fls. 73) disse em 6-de Outubro, que fosse posta numa das casas de vigia e vigiada de forma ordinária.
O Alcaide (fls. 75), veio declarar a 20 de Outubro que a ré adoeceu e que não fez qualquer jejum no período em que foi vigiada.
Na mesma data de 20 de Outubro, o Assento da Mesa (fls. 77) recomenda de novo que seja posta a tormento, com o que concordou a 27 do mesmo mês o Conselho Geral (fls. 81).
Foi ao tormento dia 3 de Novembro (fls. 84). Ali “foi atada com a primeira correia perfeitamente, gritando pelas chagas de Cristo, e continuando-se-lhe o tormento foi atada perfeitamente, e logo lhe foi dado um tracto corrido, e foi levantada segunda vez até ao lugar do libelo, clamando pelo Santíssimo Sacramento e por Jesus, que lhe valesse, e com este tormento julgaram os ditos Senhores estava satisfeito ao Assento do Conselho Geral que em seu processo se havia tomado, este tormento lhe durou um quarto de hora e em que foi mandada desatar e levar a seu cárcere. “
O assento da Mesa (fls. 86) de 7 de Novembro e o do Conselho Geral (fls. 88) da mesma data condenam-na a cárcere a arbítrio, penas espirituais e ao pagamento de 80 000 reis para despesas do Santo Ofício, sem exceder um terço dos seus bens.
Foi ao auto da fé de 26 de Novembro de 1684.
A fls 95, a confissão e comunhão no cárcere da Penitência a 5 de Dezembro de 1684; deverá ter ido para casa nessa altura.
Custas: 4$265 réis.
ADENDA - 14-3-2013 -
Só há duas semanas é que soube da existência do livro de Alice Lázaro, sobre o calvário na Inquisição da Família Penso, “F R P: A minha memória da Inquisição” (Caleidoscópio, 2008).
Está bem escrito e tem interesse. Não sendo um livro de História, não é no entanto um romance, baseia-se e descreve factos reais, embora juntando-lhe alguma ficção aqui e ali.
O título não me parece feliz: as iniciais FRP são pouco estéticas e o livro não está contado na primeira pessoa, por isso não são as memórias do personagem principal.
A autora não poupa a Inquisição, mas não vai até onde devia ir e que seria desmascarar a ideia de Tribunal da Fé, para realçar o que a instituição era na realidade: um instituição perversa para amarfanhar os cristãos novos, humilha-los, rebaixa-los, reduzi-los à miséria.
Insiste em descrever em pormenor as defesas, a que a Inquisição nunca ligava nenhum, por mais válidas que fossem.
Mas aplica-lhe ainda assim umas bicadas jeitosas:
pag. 31 – Também ninguém ignorava – pelo contrário, circulava à boca cheia – que os sentenciados por Judaísmo saíam mais judeus dos autos da fé do que tinham entrado na Inquisição. Como muito bem se dizia naquele tempo, fazia-se moeda na Calcetaria e judeus no Rossio.
pag. 102 - O que ele não sabia ainda, por experiência própria, é que as confissões feitas no secreto do Tribunal não precisavam de ser verdadeiras.
pag. 103 – Uma vez preso o tio, este só sairia do cárcere pela delação completa de todos os membros da família ou relaxado por negativo e veemente suspeita de judaísmo. Estava perdido.
pag. 120 – “Viva a fé de Cristo! Morra o judaísmo!” E debaixo do anonimato permaneceram, sem que alguém se atrevesse a impedi-los de levar por diante a sua missão anti-semita.
pag. 204 – Ao tribunal da Inquisição não importava a verdade, tal como não tinha adiantado nada no julgamento de Jesus, para o céptico Pilatos.
pag. 292 – Da mesma forma que se sabia que só se acabava na fogueira por azelhice ou total incapacidade de se defender, o que equivalia, em última instância, a não ter confessado o bastante que cobrisse a culpa ou satisfizesse a vontade dos juízes.
Estou de acordo com o retrato que faz de Fernão Rodrigues Penso, um Paxá em Lisboa, que coleccionava amantes e manejava fortunas.
Já discordo do retrato da filha Mariana, que apesar de ter ficado a chefe da casa à morte do marido, não era a mulher enérgica e decidida que ela descreve; pelo contrário, era bastante delicada e frágil, mimosa e mimada. Li algures, não me lembro onde, que D. Mariana apenas saía à rua de liteira. O tormento terrível a que ela foi submetida merecia uma descrição mais pormenorizada. Ficou com a mão inutilizada, incapaz de assinar o seu nome, quer na abjuração em forma, quer no termo de ida e penitências: “por estar incapaz de assinar por impedimento que tinha na mão”. Ao contrário do que diz a autora, não eram os achaques que a impediam de assinar, mas sim as sequelas do tormento. Era o que acontecia sempre que o tormento no potro era mais rigoroso.
Aproveitaram o facto de ela ser rica para lhe exigirem um pagamento extraordinário de 200 000 réis.
Infelizmente, não conhecemos a sorte da família depois das desgraças por que passou. Terão ficado na miséria ou teriam ainda algumas reservas escondidas? Terão fugido para o estrangeiro? O chefe da família, já com 73 anos e depois de 10 anos de prisão, não deve ter sobrevivido grande tempo. O filho Fernando não deve ter voltado a Portugal, depois da carta que escreveu ao seu amigo Jesuíta que caiu como uma bomba na Inquisição de Lisboa.
Obs. Na importante carta do filho Fernando de Morales Penso, transcrita a pags. 277, há um erro de leitura: “Me” são iniciais para Mestre (Padre Mestre) e não para Manuel. O Jesuíta chamava-se José Ferreira, segundo consta do Assento da Mesa em 11-9-1684, no segundo processo do pai (2332-1), a fls. 36 r.
BREVE DO PAPA INOCÊNCIO XI, DE 22 DE AGOSTO DE 1681
De cetero confiscatio nunquam fiat ante sententiam vel declaratoriam.Nec bona ínterim praetens rei quacumque de causa distrahantur praeterquam ex causa alimentorum; sed tantum conficiatur inventarium omnium bonorum cum interventu personae cum inquisito coniunctae, et bona praedicta cum debita cautione eidem personae coniunctae, vel alteri idoneae in forma depositi consignentur, ex quibus alimenta toti familiae eiusdem Inquisiti subministrentur, et legitimis Creditoribus prout de Jure satisfiar;Et, si in confectione inventarii inveniantur bona seu pecuniae ad alios spectantes hoc summario iustificato, illico restituantur Post sententiam vero bona emphyteutica, seu fideicommissaria aut alias quomodum subiecta restituantur quibus de iure; et his peractis fiscus utatur iure suo. Hec deneniatur ad carcerationem Inquisiti, nisi praecedentibus legitimis indiciis et prout de Jure, Neque detineantur carcerati ultra necessitatem sub quovis praetextu, sed quamcitius fieri possit expediantur, non expectatu actu publico, quem vocant Actum fidei. In iuramento autem quod defertur Advocato reorum S. Officii, non ponantur illa verba = se per congettura, vel alia idem importantia. Idem vero Advocatus S. Officii possit alloqui reos sine assistentia, et eidem tradactur copia processus, suppressis nominibus et circunstantiis denotantibus personas testium. Quod si Reus alium Advocatum petat, ei concedatur, dummodo sit bonae famae, cui pariter (praestitio prius iuramento de secreto servando) tradatur copia processus suppressis supprimendis prout supra non tamen illi permittatur alloqui reos, nisi cum assistentia Deputati ab Inquisitoribus ad hunc finem et effectum. Christiani novi non habentes exceptiones legales, admittantur ad deponendum in defensam Reorum. Quo vero ad probationes negativae coarctatae, procedatur iuxta Juris dispositionem, et canonicas sanctiones. Nec Tutor seu Curator quibus de Jure dandus est, ullo modo detur Custos carcerum, neque alius officialis Sancti Officii, sed deputetur alia persona gravis, fidelis et bonae conscientiae. Prohibeantur autem omnino quaecumque suggestiones concussiones, promissiones et similia in examinibus testium et reorum constitutis Nec ex descendentia ulla praesumptio sufficiens ad actum indicialem. Si autem carcerati non veniant condemnandi, nullo modo compellatur ascendere palcum, et si non fuerint reperti culpabiles, non retardetur eorum expeditio, sed illico relaxentur, etiam non expectato actu publico, quem vocant Actum fidei. Neque Christiani novi ex sola qualitate repelli debeant a testimonio ferendo contra Christianos veteres, salvis tamen exceptionibus legalibus, nec ab eisdem exigatur iuramentum de non deponendo contra Christianos veteres. Et tollatur omnino statutum seu consuetudo, si adsit puniendi Christianos novos ex eo quod posuerint contra Christianos veteres. In illis autem casibus, in quibus potest constare de corpore delicti factis permanentis, procedi non possit ad constituendum Inquisitum inter Reos, nisi prius de illo legitime constiterit. Nec sit habendus pro diminuto is, qui in sua confessione non nominat testem informatum, qui tanquam purus testis contra ipsum deposuit, quamtumvis sibi coniunctum in quocumque gradu. Confessus autem in causis apostasiae a fide, qui non nominavit sibi coniuncum in primo gradu eiusdem declicti complicem, non sit habendu pro diminuto, nisi copulative concurrant plena et legitima probatio dictae complicitatis, dolosa occultatio praedicti complicis et nulla urgeat in ipso Reo confesso oblivionis praesumptio. Quod si Reus qui post suam confessionem de caeremoniis Judaicis in observantiam legis Moysis ab ipso factis tempore quo in illam credebat, non fuerit convictus a testibus legalibus sive idoneis, denuo repetisse easdem caeremonias Judaicas, quas in novis constitutis negaverit, non sit damnandus ad poenam ordinariam, et multo minus si caeremoniae illae essent aequivocae, et indifferentes. Testes vero loco et tempore singulares contestes tamen in specie haeresis determinatae seu apostasiae a fide, admitti possint ad testificandum contra Inquisitos de Judaismo in Regno Lusitaniae iuxta illius antiquissimam consuetudinem, et ex nonnullis aliis circunstantiis in eodem Regno in fidem favorem concurrentibus, dummodo tum sint plures in numero, et in qualitate considerabiles idonei, fideidigni, legales et quales de iure esse debent, atque insimul concurrentibus verisimilibus coniecturis, et attentis atque diligenter examinatis aliis circunstantiis, et qualitate eorum contra quos deponitur sic testificantes ut falsa non dicere praesumantur. Testes autem singulares deponentes inverisimilia et impossibilia nullum gradum probationis facient. Porro repetitivo testium sit omnino necessaria post litem contestatam cum citatione, scilicet cum notitia Rei, et interrogatoriis dandis per Procuratorem ipsius Rei, seu ex officiis supplendis, alias eorum depositiones non afficiant. Testes quoque deponentes de indiciis remotis confessiones extraiudicialis Judaismi non probent ad effectum condemnandi negativum ad poenam ordinariam. Quam vero probationam faciant praedicti testes quoad alias poenas, vel allios effectus, remittitur conscientiae et prudentiae Judicis Ecclesiastici timentis Deum. Confessiones autem extortae contra formam Juridicam, vel per sugestionem vel promissionem vitae, et liberationis, seu generales aut obscurae, seu repugnantes aetati sexui, et intellectui confitentis, non sufficiant contra negativum pro poena ordinaria, et nisi aliunde legitime adminiculentur praedictae confessiones, nullam probationem faciant. Carcerati vero charitative tractentur, et redigantur carcares minus rigidi, et non tam obscuri. Ad denum carceratis in Sancto Officio, sive confessis, sive non, permitti possint libri spirituales et officium Beatae Virginis, vel Breviarium modis opportunis; et eisdem Carceratis dentur Confessarii et Assistentes in articulo mortis: Quoad Sacramentus vero Eucharistiae et extremae unctionis arbitrio et conscientiae Judiicis ut supra id remittimus . Mandantes propterea in virtute Sanctae obedientiae praedicto Verissimo Archiepiscopo moderno et pro tempore existentibus Inquisitoribus generalibus ceterisque Inquisitoribus praesentibus, et quandoeumque futuris dictorum Regnorum Portugalliae et Algarbiorum, ac illorum et cuiusliber eorum respective ministris et officialibus quibuscumque, ut omnes et singulas leges et ordinationes suprascripta inviolabiliter, ac exacte et accurate in omnibus et per omnia observent, et ab illis ad quos spectat et pro tempore spectabit pariformiter observari curent et faciant; Alioquin Inquisitor quod generalis interdicti ab ingressu Ecclesiae, ceteri vero Inquisitor ac officiales, et ministri praedicti excommunicationis maioris latae sententiae poenas respectivo ab iis qui quoquo modo contravenerint ipso facto absque alia declaratione incurrendas, a quibus relaxationis seu absolutionis beneficium a nemine praeterquam a nobis seu Romano Pontifice pro tempore exute (nisi in mortis articulo constituti) obtinere valeant se noverint incursuros.
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56.° Inocêncio XI em o breve promulgado a favor dos cristãos-novos dos reinos de Portugal e Algarves, que começa — Romanus Pontifex— dado em 22 de Agosto de 1681, manda que: I. Para o futuro, não se confisquem os bens antes de se dar sentença, pelo menos declaratória. II. Não se empreguem os bens dos denunciados senão nos seus alimentos necessários, e que se faça inventário diante de um parente do acusado, em cuja mão se depositem, dos quais se deve sustentar a família do dito acusado, e pagar-se a seus legítimos credores. III. Que se entre esses bens se acharem efeitos ou dinheiro que pertençam a outros, constando judicialmente, se lhes entreguem. IV. Como também depois da sentença, achando-se bens enfitêuticos entregues em confiança, ou sujeitos a restituição, seja como for, se entreguem logo a quem pertencerem de direito. V. Que se não possa prender sem precederem legítimos indícios, conforme as regras de direito. VI. Que se não detenham os presos no cárcere, debaixo de qualquer pretexto, mais do tempo necessário para terminar o processo, mas que se despachem o mais depressa que for possível, sem esperar pelo auto-da-fé. VII. Que o juramento que se exibe aos advogados nomeados pelo Santo Oficio para defesa dos culpados se não insira nele a cláusula (Se por conjectura) nem outras semelhantes ou equivalentes. VII1 Que o advogado nomeado pelo Santo Ofício possa falar com o preso sem assistência de outra pessoa, e que se lhe entregue a cópia do processo, suprimindo os nomes das testemunhas, e das circunstâncias que as podem dar a conhecer. IX. Pedindo o preso outro advogado, que não seja nomeado pela inquisição, se lhe dará e concederá, sendo homem de boa fama; e este depois de haver jurado de guardar segredo, se lhe dará também cópia do processo — supressis suprimendis —, porém não se lhe permitirá falar com o preso sem assistência de um deputado da inquisição. X. Que os cristãos-novos que não tiverem excepções legais, se admitam a depor em defesa dos acusados. XI. Que no que toca a negativa do — alibi — se proceda segundo a disposição de direito, e das ordenações canónicas. XII. Que não possam ser tutores ou curadores daqueles a quem de direito se devem nomear, nem o guardião do cárcere, nem outro oficial do Santo Ofício, mas que se eleja para isso qualquer outra pessoa que seja grave, fiel e de boa vida. XIII. Que totalmente se abstenham de todas as sugestões, concussões, promessas, e coisas semelhantes em os exames que se fizerem das testemunhas e dos acusados. XIV. Que não se possam deduzir provado judaísmo, por proceder de geração de judeus, particularmente, que não se possam um acto judicial por uma tal descendência. XV. Que, não havendo lugar de condenar a algum preso, não o obriguem a sair no auto; porém que não sendo réu despachem logo ao dito, e o soltem sem esperar pelo auto. XVI. Que os cristãos-novos possam testemunhar contra os cristãos-velhos, não tendo excepções legais, e que não os obriguem a jurar, que não atestarão contra cristãos-velhos. XVII. Que se todavia subsistir o costume de castigar os cristãos-novos, sem outra causa que por deporem contra cristãos-velhos, que se anule. XVIII. De onde se pode assegurar do delito, como sendo o delito permanente, não se possa constituir réu ao delatado, sem que conste juridicamente ser tal. XIX. Que não se julgue por diminuto o que não nomear em sua confissão uma testemunha compreendida em as informações, que não tenha deposto mais que como uma simples testemunha, ainda que seja de parente muito próximo. XX. Que aquele que em sua confissão de apostasia não nomear uma testemunha cúmplice do mesmo delito, que seja parente em 1.° grau, não possa julgar-se diminuto, sem haver uma plena e legítima prova da cumplicidade voluntária e fraudulenta omissão do dito cúmplice, e que não haja indícios que o acusado o não tenha nomeado por esquecimento ou falta de memória. XXI. Se um réu depois de haver confessado ter guardado algumas cerimónias da lei de Moisés, quando creia nela, não sendo convencido por testemunhas válidas de haver repetido as mesmas cerimónias, que agora nega, não seja condenado a pena ordinária, e mais particularmente sendo as novas cerimónias, de que o acusam, indiferentes e equivocas. XXII. Em caso de acusação de heresia ou apostasia, ainda que as testemunhas sejam singulares a respeito dos lugares e tempos, sendo conformes em outras circunstâncias, serão admitidos a depor contra os acusados de judaísmo, e no reino de Portugal, segundo o seu antigo costume, e em consideração de outras certas circunstâncias recebidas em favor da fé no dito reino, com que sejam as ditas testemunhas muitas em número, consideráveis por sua qualidade, capazes de dar testemunho fidedigno, e finalmente, que sejam tais, quais sejam, e se requerem por lei e por direito, e particularmente concorrendo em seu favor, outras conjecturas aparentes, havendo primeiro considerado e examinado todas as outras circunstâncias, juntamente com a igualdade da pessoa contra quem se depõe, de sorte que não fique lugar de presumir, que tais testemunhas deponham falsamente. XXIII. Que os depoimentos destas testemunhas singulares que constam de coisas impossíveis, não sirvam de prova por nenhuma maneira. XXIV. Que a reputação das testemunhas seja indispensavelmente necessária depois de se contestar o processo com citação, que quer dizer, que seja com conhecimento do acusado, e por artigos, que sejam presentados pelo procurador do mesmo acusado, ou que supram ex officio, sem o que as ditas testemunhas sejam dc nenhum valor. XXV. Que as testemunhas que depõem de indícios remotos dc confissão extrajudicial de judaísmo, não façam prova bastante para condenar o negativo a pena ordinária. XXVI. A validade dos depoimentos de testemunhas para outras penas ou efeitos, se remete a consciência e prudência do juiz eclesiástico tremente a Deus. XXVII. Que as confissões tiradas por violência contra a forma jurídica, que se fazem por sugestão, ou por promessa de vida ou liberdade, que são gerais e obscuras, e que repugnam a idade, sexo ou capacidade de confitente, não tenham força de sujeitar os confitentes a pena ordinária, salvo se ratificarem legalmente o dito por outra via. XXVIII. Que os presos sejam tratados com caridade, e que os cárceres não sejam, nem tão duros, nem tão tenebrosos. XXIX. Que se lhes não neguem, nem confissões, nem livros espirituais. XXX. Manda enfim, que estas ordenações se observem inviolavelmente sob pena de interdito ab ecclesia ao inquisidor-geral, e de excomunhão latae sententiae, aos subalternos inquisidores, e a seus oficiais e ministros.
(de Obras Inéditas do Padre António Vieira, abaixo indicado) |
TEXTOS CONSULTADOS
João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Porto, 1921
Online: www.archive.org
Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1640
Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/7/20/p267
Padre António Vieira, Reflexões sobre o papel intitulado NOTÍCIAS RECÔNDITAS do modo de proceder do Santo Ofício com os seus presos, in Obras Inéditas do Padre António Vieira, vol. I, J.M.C. Seabra e T.C. Antunes, Editores, Rua dos Fanqueiros, 82, Lisboa, 1856
Online: http://books.google.com
Ana Maria Homem Leal de Faria, Uma "teima": do confronto de poderes ao malogro da reforma do Tribunal do Santo Ofício - a suspensão da Inquisição Portuguesa (1674-1681), in Inquisição portuguesa: tempo, razão e circunstância, Coordenação de Luis Filipe Barreto, José Augusto Mourão, Paulo de Assunção, Ana Cristina da Costa Gomes, José Eduardo Franco, ... [et al.], Editora Prefácio, Lisboa – S. Paulo, 2007, ISBN 978-989-8022-20-2
Reparos que fez um sujeito bem intencionado por ocasião do auto da fé que se celebrou em Lisboa em 10 de Maio deste ano 1682, em A propósito da restauração do Tribunal do Santo Ofício em 1681, por Isaías da Rosa Pereira, Faculdade de Letras de Lisboa.
Online: https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/516/1/IsaiasRosaPereira_p225-245.pdf
Carl A. Hanson, Economy and Society in Baroque Portugal, 1668 - 1703, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1981, ISBN 0-8166-0969-1