15-10-2012
Chegado a Portugal o Breve Romanus Pontifex de 22-8-1681, que reestabeleceu a Inquisição Portuguesa, as três Inquisições começaram a trabalhar arduamente para esvaziar os cárceres. Lá jaziam os presos há dez anos com os processos parados, os que sobreviveram com tino, porque bastantes morreram e muitos endoideceram. Na Inquisição de Lisboa, o auto da fé de 10 de Maio de 1682 deu nas vistas e um anónimo lembrou-se de escrever os seus reparos ao que observou. Pela redacção deverá ter sido um Jesuíta, pois sabia Latim para estudar o Breve e defende os pontos de vista da Companhia; e o documento figura ainda hoje no Armário dos Jesuítas da Torre do Tombo. Já João Lúcio de Azevedo fez referência a este documento no inicio do séc. XX. na História dos Cristão Novos Portugueses.
Reparos feitos por ocasião do Auto de fé celebrado em Lisboa em 10 de Maio de 1682 que contem algumas reflexões sobre os procedimentos do Santo Ofício; circunstâncias dos penitenciados; oposição entre o dito tribunal e a Companhia e forma da execução da bula Inocenciana que restituiu os inquisidores
1. Em se mandarem cartas de familiares a tantos fidalgos e admitir para maior número sujeitos menos qualificados e que em outro tempo teriam impedimento conforme a opinião do Tribunal e a fama vulgar da Corte.
2. Em escolher o Senhor Inquisidor-Geral um cavalo branco para sair neste dia, coisa que pareceu estranha e não sucedida em Portugal e tanto que as mais prudentes quando antes da cavalgada se falava em cavalo pombo julgavam ser encenação.
3. Em trazer de Coimbra e Évora tantas pessoas como se nas ditas cidades não houvesse praças e igrejas para se publicarem suas sentenças, ou estas ficassem nulas se não se lessem na Corte e Terreiro do Paço.
4. Em cometer as diligencias principais com os profitentes ao Padre Afonso Mexia, da Companhia Jesus, detendo-o aqui para esse efeito como também se detesse (depois de estar de caminho mandado para Évora) por causa de instruir os penitenciados nas Escolas Gerais, como se em Lisboa não houvera outro talento capaz de semelhantes comissões.
5. Em saírem juntos três profitentes que cada um podia confirmar-se com o exemplo dos outros, sendo em semelhantes casos para convertê-los mais conveniente a separação. E muito mais quando se presume que eles todos, ou ao menos o letrado Miguel Henriques da Fonseca se fez profitente nos cárceres por raiva, cegueira e tentação de se ver desesperado na vida, na honra e na fazenda.
6. Em que Gaspar Lopes um dos ditos profitentes negava haver Inferno e haver demónios, o que é direitamente contra a Lei de Moisés, porque todos os judeus crêem haver demónios e Inferno e consta bem esta verdade dos livros e profecias do Testamento Velho. E o mesmo Gaspar Lopes quando o apertavam com razões para o convencer respondia a tudo por remate: será botica; resposta tão despropositada que parece de homem insensato e mais desesperado que infiel. E todos os ditos profitentes iam como assombrados e fora de si com tal aspecto que parecia terem no corpo o diabo e não falta quem presuma que este lhe apareceu nos cárceres e ajudando-se das misérias e lástimas em que se achavam sem remédio para vida, nem honra, os fez sair em tal desesperação.
7. Em que Pedro Serrão relaxado negativo fosse morrer com tais demonstrações de ânimo e resolução católica, não só fazendo todos os actos de bom e fervoroso cristão, mas ainda pregando com zelo e espírito aos profitentes, confundindo e movendo a lágrimas os circunstantes. E como podia persuadir-se este homem que se salvava na Lei de Moisés a qual pregava no mesmo ponto em que morria? Para que faria tais actos, tantos protestos, tantas lágrimas, tantos sinais de piedade, de caridade e amor de Cristo. Isto é conforme a Lei de Moisés?
8. Em que persistindo na mesma conformidade negativa Teresa Maria de Jesus, irmã do sobredito Pedro Serrão, entrando nos cárceres de quinze ou dezasseis anos de idade, fosse condenada à morte sendo a sua vida antes e depois de estar no carcere inocentíssima, e que confessando finalmente com medo da mesma morte, se aceite esta e as mais confissões como legitimas testemunhas contra os que nomeiam.
9. Em que sendo presos Pantaleão Rodrigues Mogadouro e sua irmã Brites Henriques, de idade de 16 e 17 anos, saindo confessos depois de recebidos se lhe diga que foram profitentes nas sentenças e na lista. Como se compadece esta profitência com tais idades e com o estarem confessos ao tempo das sentenças? E mais tendo os sobreditos tão pouca capacidade e chegando a estar quase frenéticos e fora de si com as desesperações do cárcere? E fazem mais reparo estes sujeitos por serem da casa que os padres inquisidores tiveram e têm por parte sua na causa de recurso. Examinem-se bem estes sujeitos e ver-se-á a sua capacidade e como condiz com as suas respostas e profitências.
10. Em que saísse neste Auto-da-Fé Manuel dos Anjos, da Ilha Graciosa, pelo caso das partículas, sendo cometido com tanta ignorância e simpleza como foi em todas as Ilhas notório, e que se ajuntasse alguns outros casos que deveram ocultares e não fazer deles ostentação para infâmia da nação portuguesa.
11. Em que saíssem tantas pessoas mortas absoltas de instância depois dc dez anos de cárcere, mandando-lhe agora dizer as missas e enterrar em sagrado. E porque se não faz esta diligência quando morreram? Porque se não deu aviso a seus parentes para socorrerem aquelas almas com sufrágios? E deve averiguar-se se a estas pessoas se deram sacramentos no artigo da morte, se se lhe deu liberdade para fazerem seus testamentos e outros pontos de consequências e importância bem considerável.
12. Em que não saíssem nesta ocasião alguns presos que estão no cárcere há mais de dez anos, porque, ou sejam mortos ou vivos, as suas causas, de que dependem vidas, honras e fazendas, deviam expedir-se e não deter-se por nenhum respeito, porque ou eles estão convictos ou confessos ou em termos de nem convictos nem confessos, e de qualquer modo que estejam ou se faz a eles ou a República injustiça, além das consequências que pode ter esta nova demora. E com se reparar muito em ficar Rodrigo Nuñez del Caño, José Pessoa e outros mais, se repara em Antonio Mogadouro, por ser parte no recurso e ter casa de tanto porte.
13. Em que saíssem nesta ocasião do Santo Oficio quarenta pessoas pouco mais ou menos ou com abjuração de levi ou com sentença de absoltas ou mandado para sua casa sem sentença alguma. E não se entende com que justiça se podiam reter as ditas pessoas tantos anos meses e dias. E como se prenderam as que sem nenhuma sentença se mandaram para suas casas?
14. Em que mandando o Sumo Pontífice reperguntar as testemunhas, em lugar de reperguntas se fizessem ratificações, chamando as ditas testemunhas e lendo-lhe suas deposições e perguntando se estavam por aquele seu testemunho. Isto parece contra todo o direito porque a repergunta da testemunha é para implicada nos ditos e saber se é verdadeira. E para isto devem fazer-se as reperguntas sem ler o primeiro depoimento e ver se condizem umas e outras respostas.
15. Em que saísse Fernão Rodrigues Penso, confesso judaizante, sendo neste Reino tão notório e certo o contrário, que todos os que trataram assentam ser a dita confissão falsa. E na verdade ele a fez com tal perturbação e sugestão que pode causar grande escrúpulo e parece inverosímil o que ele depôs, como pode examinar-se.
16. Em que se dessem tractos a mais de 40 pessoas com tanta violência que muitos e muitas saíssem aleijados e despedaçados. E é coisa lastimosa e miserável ver a estes pobres assim tratados que não sei como escapam e não confessam ainda piores infâmias e falsidades.
17. Em que se continuem as sugestões aos presos para os fazer confessar por todos os modos, já dizendo a uns que estão convictos, sem o estrarem, a outros que não ter outro remédio. E geralmente a todos dando-lhes companhias que persuadam e induzam, e finalmente aplicando outros meios iníquos e dolorosos para o fim de confessarem e haver mais delações de judaísmo, por falsas ou verdadeiras.
18. Em que provendo Sua Santidade e havendo inovado muitos pontos no estilo desta Inquisição se não desse aos presos notícia destes particulares para poder-se valer deles em ordem a sua defesa, nem se permitisse a preso alguma eleição de letrado e confessor, os deixaram ir todos as cegas como se totalmente os processassem e julgassem pelo direito amigo.
19. Em que o Sumo Pontífice deixasse julgar as causas e pessoas tocantes aos procuradores destes negócios pelos inquisidores novamente restituídos. E como estes estavam irritados contra a casa de Antonio Rodrigues Mogadouro, que foi a principal parte no negócio do recurso, por todos os caminhos parece a quiseram e querem destruir, infamando dois filhos de profitentes, aceitando-lhes confissões indignas e sugeridas para convencer ao pai e irmão mais velho, retendo estes na prisão sem saber-se com que direito depois de dez anos e usando para os fazer confessar ou desesperar de horrendas traças, dolos e sugestões, e ainda chegando a insinuar deles coisas indignas, como que estão ou hão-de ser profitentes, e dizendo abertamente que a dita casa era sinagoga de todo este Reino. E que se oiça isto da boca dos mesmos que hão-de julgar as vias, as honras e as fazendas desta casa?
20. Em que faltando o Padre Afonso Mexia confidente instrutor dos penitenciados, cometessem os inquisidores a continuação deste exercício a um religioso de São Domingos, tirando à Companhia de Jesus essa comissão, coisa que nunca se fez e em que se mostra a vontade que os padres inquisidores têm aos padres da Companhia.
21. Em que chegasse a tanto excesso a desesperação dos presos que um deles, chamado Rodrigo Nuñez del Caño, se matasse a si mesmo com uma faca dentro dos cárceres. E se a desesperação pôde naquele sujeito fazer tal barbaria sem atender ao amor da vida, como não faria a outros confessar falsidade, sem atender a honra e ainda fazer-se profitentes, sem atender à salvação nem à alma. Desta sorte se crê que foi mera desesperação a profitência de Gaspar Lopes, o qual só se declarou na Lei de Moisés por raiva de ver os Inquisidores restituídos e que havia de ser julgado por eles sendo tão apaixonados e partes. Assim mesmo se crê do licenciado Miguel Henriques, que mostrando-se sempre muito reformado cristão, só desesperado no cárcere por se lhe dizer estava convicto, se voltou à Lei de Moisés.
22. Em que os senhores inquisidores mostrem sentimento dos padres da Companhia de Jesus e de outras pessoas prudentes e timoratas quando duvidam e reparam nestes particulares, e não queiram que se diga que há e pode haver na Inquisição muitas testemunhas falsas e que podem padecer alguns inocentes, dizendo que isto é sentir mal do recto procedimento, como se fôssemos todos obrigados em cativar os entendimentos em obséquio das suas pessoas, da sua justiça e das suas letras, sendo estas quais todos neste Reino conhecemos, e a sua paixão tão manifesta como se tem visto neste negócio, no qual todo seu ponto é justificar-.se e mostrar por todos os modos que todos os que têm sangue de Nação são judeus. E para este seu fim todos os meios, ainda injustos, lhe parecem lícitos.
23. Em que cada dia se publiquem nesta cidade mil falsidades e despropósitos em descrédito dos pobres chamados cristãos novos, levantando já a um que açoitou uma imagem de Cristo, a outro que prendeu outra imagem de Cristo, a outro que morrendo em sua casa se declarara na Lei de Moisés profitente, e outras coisas deste género, como de haver nesta ou naquela casa, onde vêem entrar alguns destes miseráveis, sinagoga. E que sabendo muito bem os senhores inquisidores que levantam isto os seus familiares para irritar o povo e os ignorantes, não atalhem estas temeridades, antes consentindo mostrem que aprovem tais infâmias. E o pior é que eles mesmos as dizem muitas vezes sem escrúpulo e sem entender a caridade paternal e cristã com que deviam acudir e castigar os que publicam e levantam tão sacrílegos e infames testemunhos.
24. Em que os ditos senhores inquisidores se mostrem muito triunfantes por haver mostrado ao mundo que havia judeus profitentes em Portugal com tanta infâmia desta nação, persuadindo-se que com isto apoiaram a sua causa e confundiram aos cristãos novos. É isto muito para estranhar: 1.º porque os profitentes que foram condenados, na opinião dos mais inteligentes, se fizeram profitentes nos cárceres por raiva, desesperação e tentação do diabo, e eles assim o mostraram nas palavras e acções, cegando-os o demónio de sorte que foram emperrados sempre, como quem não fazia caso de vida nem alma e como homens que não estavam em seu juízo; 2.º porque os ditos profitentes não eram criados neste Reino, senão fora e de lá trouxeram esta má doutrina; e ainda que o licenciado Miguel Henriques da Fonseca assistia em Lisboa, era natural de Avis e tivera correspondência com externos e aqui a não tinha com os cristãos novos da Corte, antes se casou com uma moça cristã velha; 3.º- porque os cristãos novos nunca pediram a Sua Santidade que não se castigassem os culpados nem negaram haver alguns, e somente requereram e requerem remédio para os inocentes.
E no mesmo Auto-da-Fé se viu que Pedro Serrão foi a padecer, havendo sido e mostrando ser católico sempre e inocente. E os mais que saíram confessos, todos no foro da consciência clamam e dizem que tudo o que depuseram no Santo Ofício foi falso, com medo da morte, dos tractos, por se livrar da prisão e por outros motivos de sugestões que se lhe fizeram. Donde se vê que tudo é nulo e inverosímil.
25. Em que pondo o Sumo Pontífice na sua bula as censuras que dela constam aos inquisidores que obrarem contra a disposição e leis da dita bula, obrando eles notoriamente contra as ditas leis, não façam caso das ditas censuras e das consequências, nulidades, embargos e escândalos que se vão necessariamente encadeando.
26. Em que os inquisidores ainda se metam com o fisco e procurem e disponham como lhe parece, frustrando em realidades o intento do Sumo Pontífice, que foi tirar-lhe totalmente a administração e superintendência do fisco e a sujeição dos oficiais dele.
27. Em que querendo o Príncipe pôr pena de desnaturalização a convictos e confessos de judaísmo, se oponham os inquisidores para que se não expulsem, antes conservem a estes infames e confessos, querendo assim fomentar as confissões que no Santo Oficio se fazem pela major parte temerarias, indignas, inverosímeis, falsas e injustíssimas.
E pelo contrário todos os cristãos novos clamam que se imponham esta e outras mais rigorosas penas a todos os que legitimamente forem convencidos judaizantes, antes (como católicos que são) querem e requerem que não se perdoe a vida de nenhum que conforme a direito for convicto ou confesso de judaísmo no Reino de Portugal, nem a primeira vez, antes se proceda neste crime como no de lesa majestade, impondo logo a pena da lei. E será este um meio eficacíssimo para se extinguir o judaísmo neste Reino e atalhar as confissões falsas e temerarias que se fazem na Inquisição e desfazem nos confessionários.
(ANTT - Armário dos Jesuítas, maço 30, n.º 87)