14-12-2012
As andanças do Padre Pedro Lupina Freire (1625 - 1685)
GENEALOGIA
Família Carvalho, da Guarda (1655)
Nuno Fernandes casou com Ana Nunes, ambos da Guarda e tiveram:
A)Simão Fernandes, defunto foi casado com Ana Nunes. ausente fora do Reino em Roma, e têm
Antão Rodrigues Carvalho (1656 - Pr. n.º 11468), solteiro, de pouco entendimento.
Leonor Nunes, casada com seu primo Antão Rodrigues, residentes em Lisboa
Ana Nunes, casada com seu primo Francisco Carvalho, residentes em Roma
Filho ilegítimo: Antão Fernandes Nunes, viúvo, morador na Covilhã, está para casar com uma filha de Henrique Fróis.
B)António Fernandes Carvalho, da Guarda, que casou com Isabel Marques, da Torre de Moncorvo, ambos defuntos e tiveram:
Nuno Fernandes Marques (1655-Pr. n.º 10192, RELAXADO), viúvo de Isabel Henriques, de que lhe ficaram três meninos, de nome, António, Brites e Isabel, que não têm mais de seis anos.
Diogo Carvalho Marques (1655-Pr. n.º 8431, RELAXADO), solteiro
Francisco Carvalho vive em Roma e casou com sua prima Ana Nunes, filha do seu tio Simão Fernandes e não têm filhos
António Fernandes, solteiro, que vive também em Roma em companhia do anterior
Isabel Marques (1655-Pr. n.º 8331, RELAXADA) , casada com seu primo Manuel Lopes de Carvalho, e não têm filhos
Filipa Nunes, solteira, de dezasseis anos, morava em Lisboa
Ana Nunes, solteira, morava também em Lisboa
C)Francisco Carvalho Nunes, da Guarda, foi casado com Marquesa Mendes, de Belmonte, ambos defuntos e tiveram
Nuno Fernandes Carvalho (1657-Pr. n.º 147, RELAXADO), casado com Antónia Nunes e tiveram:
Diogo Nunes, de 14 anos;
Manuel, de 12 ou 13;
Miguel, de 7 ou 8;
Francisco, de 5 ou 6;
Nuno, de 4 ou 5;
Marquesa, de 11 ou 12;
Maria, de 10;
Leonor, de 4;
Antónia, de 3;
Isabel, de 2.
Manuel Lopes de Carvalho (1655-Pr. n.º 9273, RELAXADO em estátua), casado com sua prima Isabel Marques, não têm filhos.
Isabel Rodrigues, falecida, que tinha casado com Miguel Nunes, que se foi para Castela, levando cinco filhos e filhas de tenra idade
Guiomar de Andrade, falecida, foi casada com André Nunes, de quem não teve filhos
Leonor Mendes, casada com Álvaro Dias Nunes, vivem em Sevilha, com filhas, cujo número e nome desconhece
Ana Nunes, falecida há muitos anos, quando tinha 15 anos.
D)Diogo Carvalho foi para Castela e não sabe nada dele
E)Aires Carvalho, foi solteiro para as Índias de Castela, não sabe para onde e vive lá; dizem que tem muitos filhos.
F)Nuno Fernandes Carvalho, morreu solteiro, sem filhos
G)Leonor Nunes foi casada em Castelo Branco com Antão Rodrigues, e tiveram
Serafina Nunes, foi casada com seu tio paterno Diogo Rodrigues da Costa (Pr. n.º 1660-10496 e 1665-10496-1) e tiveram
Francisco Costa (Pr. n.º 1660-10461, RELAXADO), casado com Maria Teles (1661-Pr. n.º 9073, RELAXADA em estátua após falecer em 14-6-1667), de quem teve Serafina e Maria.
Simão Rodrigues Aires (1661-Pr. n.º 1164, RELAXADO em estátua), de 18 anos – suicidou-se na prisão
António Rodrigues Aires e
Manuel da Costa Aires, ausentes em Castela
Leonor Nunes (1664-Pr. n.º 382, de Coimbra)
Serafina
Ana
Luisa de Almeida (1664-Pr. n.º 7448, de Coimbra), a mais velha das irmãs com cerca de 25 anos
Ana Nunes, que foi casada com seu tio Simão Fernandes Carvalho
Constança Nunes, casada com João Nunes da Fonseca
H)Maria Nunes, vive na Guarda, viúva de Diogo Rodrigues Nogueira, de quem teve:
Gaspar Rodrigues Nogueira (1660-Pr. nº 898), solteiro, que vive com sua mãe, casou depois em Pinhel com Brites da Costa
Francisco Carvalho Nogueira, solteiro, vive em França
Beatriz Nogueira (1660-Pr. n.º 11051), que vive com sua mãe
I)Guiomar Nunes (1659-Pr. n.º 10460, RELAXADA) vive na Guarda , viúva de Francisco da Costa Aires e tiveram
Simão Rodrigues Aires (1659-Pr. n.º 4604), solteiro; casou depois com Isabel Gomes, de que teve uma menina chamada Guiomar. Tem um filho bastardo de sua prima Maria da Costa, filha bastarda de Nuno da Costa Aires, que se chama António.
Luisa de Almeida (1660-Pr. n.º 8629, RELAXADA), casada com seu tio paterno Nuno da Costa Aires (1660-Pr. n.º 141) e têm Simão, Nuno, Francisco, Aires, Guiomar, Ana, Francisco, Leonor e Luísa, que é a mais velha e terá 18 anos.
Francisca da Costa (1660-Pr. n.º 10467), solteira
Ana Nunes, solteira
Leonor Nunes, solteira
J)Brites ou Beatriz Nunes morreu na Guarda e viveu com o marido Francisco Rodrigues em Castela, de que teve dois filhos
Antão Rodrigues, que casou com sua prima Leonor Nunes e é genro de Simão Fernandes
Manuel Rodrigues, vive em Lisboa com seu irmão há ano e meio.
Ana Nunes, viúva de Diogo Carvalho
K)Ana Nunes, foi casada não sabe com quem nem que filhos teve.
L) Inês Nunes, casada com Baltazar Rodrigues, ausentaram-se para Castela há muitos anos e não sabe nada deles.
NA INQUISIÇÃO
Pedro Lupina Freire terá nascido em Lisboa por volta de 1625, filho de Jerónimo Lupina e de Paula Freire. Seu pai era copeiro do poderosíssimo Bispo Inquisidor-Geral, D. Francisco de Castro (1574-1653). Uma sua irmã, Francisca Freire, veio a casar com Manuel Simões, porteiro da Inquisição de Coimbra, cidade para onde foi residir.
A família deveria estar alojada na própria casa do Inquisidor-Geral. Pedro Lupina Freire é indicado algumas vezes como Licenciado, quase de certeza em Cânones. Por volta dos 17 anos, começou a ser remunerado como criado do Inquisidor-Geral. Mais tarde prestou serviço na Inquisição de Coimbra, segundo declarou no processo (fls.78) e tomou posse como Notário da Inquisição de Lisboa em 16 de Setembro de 1648 (é o que diz a Biblioteca Lusitana).
Entretanto, decidiu enveredar pela carreira eclesiástica e em 1646 fora já ordenado “d’epístola”, isto é, Subdiácono. É o que consta da sua habilitação para funcionário do Santo Ofício (Maço n.º 3, doc. n.º 114), aberta em 1-6-1646, destinada a inquirir da sua filiação e capacidade; não contém referências às suas habilitações literárias. Seis testemunhas, todos empregados do Santo Ofício, declararam que ele era filho legítimo de seus pais, pessoa sisuda (isto é de bom juízo), “de boa vida e capaz para dele se fiarem coisas de importância e segredo, de que dará boa conta”. Outra testemunha disse que “procede em tudo muito bem, muito honesto, e recolhido, tem juízo e capacidade para negócios de importância.”
Embora apareça mais vezes como Notário da Inquisição de Lisboa, desempenhou funções de Tesoureiro, tendo-lhe passado pelas mãos quantias enormes para a época. Deverá ter abandonado o lugar no ano de 1652, por ter ficado “alcançado”, ou seja, por lhe ter faltado dinheiro (bastante dinheiro) no cofre da Inquisição. Não consta, porém, que na altura o tenham acusado de desfalque, o que só fizeram mais tarde quando foi preso por violar o segredo da Inquisição. Porém deram conta, tanto assim que abandonou as funções de tesoureiro em 1652, certamente prometendo repor a importância em falta.
Da conta global das suas responsabilidades em 1652, a fls. 13 do seu processo (n.º 4411), consta que foi debitado por um total de 22 254$939 réis e devidamente creditado em 21 431$945, ficando assim alcançado em 822$994, quase um conto de réis.
Passou então a desempenhar as funções de Notário e como tal aparece em muitos processos. Terá conhecido muita gente, inclusive cristãos novos. Nomeadamente disse em 1655 ser amigo há mais de dez ou onze anos de Manuel Lopes de Carvalho, nascido na Guarda, mas residente em Lisboa. Este pertencia à família dos Carvalhos, cuja genealogia fica acima transcrita, onde se vê que ele havia casado com sua prima Isabel Marques. Disse ele mais tarde na Mesa da Inquisição que a razão do conhecimento e da amizade com o Manuel Lopes Carvalho, negociante de grande porte, fora que este era amigo do próprio Inquisidor-Geral, falecido entretanto em 1 de Janeiro de 1653.
Note-se no mapa da Genealogia o enorme desbaste efectuado pela Inquisição.
No âmbito da amizade entre os dois, o Notário havia-lhe pedido emprestados há três anos e pouco, 500 cruzados, isto é, 200$000 réis, que não lhe restituíra, nem sequer pagara os juros que eram devidos.
Não sabemos quando foi ordenado Presbítero, mas deverá ter sido antes de 1650.
Em 29 de Abril de 1655, o dito Manuel Lopes de Carvalho fora ter com ele muito preocupado. Fora o caso que estavam presos no segredo do Limoeiro seus dois cunhados, irmãos de sua mulher, Nuno Fernandes Marques e Diogo Carvalho Marques, sem que a família conseguisse saber a razão. Disse Manuel Lopes de Carvalho que primeiro ainda pensara que poderia ser por causa de algum negócio com Castela, mas depois teve a ideia de que poderia ali andar mão do Santo Ofício, pois estavam ali presos Rodrigo Antunes (1652-Pr. n.º 638), um seu parente, e António Tomás (1654-Pr. n.º 11384), um conhecido deles e sobretudo Catarina Henriques (1652 – Pr. n.º 8429 e 1655 – 8429-1), uma antiga empregada do Nuno Fernandes Marques, em relação à qual tinha a maior desconfiança. O Notário disse que nada sabia do assunto. Recomendou que os cunhados deveriam apresentar-se na Mesa da Inquisição se tinham culpas na consciência. Disse o Manuel Lopes que eles tinham acabado de vender umas casas e procuravam agora vender um cavalo e poderia a Inquisição pensar que eles se queriam ausentar, daí a sua suspeita em relação ao Santo Ofício. Nada prometeu o Notário, mas, no dia seguinte, foi à Mesa apresentar uma denúncia contra cada um dos cunhados do Manuel Lopes. Este estava certíssimo: tinha sido o S.to Ofício a pedir às autoridades a prisão dos dois, pensando que eles se preparavam para fugir para o estrangeiro. Foi uma solução de recurso, porquanto a Inquisição não dispunha ainda de denúncias suficientes para os prender por judaísmo… mas estavam a tratar do assunto.
As denúncias do Notário figuram a fls. 37 do pr. n.º 10192 (Nuno Fernandes Marques) e a fls. fls. 27 v do Pr. n.º 8431 (Diogo Carvalho). Foi ainda tirada uma cópia para o processo da irmã destes, Isabel Marques (Pr. n.º 8331), casada com o Manuel Lopes de Carvalho, que entretanto foi presa pela Inquisição a 14 de Julho de 1655. Na mesma data, foram os dois irmãos dela transferidos do Limoeiro para o Santo Ofício, embora nos respectivos processos nenhuma referência se encontre ao tempo de prisão no Limoeiro.
Os três foram mais tarde relaxados. A principal denúncia vinha de uma antiga empregada, Isabel Gil, cristã velha, acusada por seu pai de roubo e por tal condenada à morte. Decidiu então denunciá-los para tentar escapar ao patíbulo. A acusação principal era que quando havia falecimentos lá em casa, chamavam determinada pessoa cristã nova para amortalhar os mortos segundo os costumes judaicos. A Inquisição sempre simplificou os seus raciocínios no sentido de considerar que qualquer costume judaico significava crença na Lei de Moisés…
Num parêntese, sublinho a coragem de dois inquisidores Álvaro Soares de Castro e Cristóvão de Andrade Freire (Deputado em Lisboa mas Inquisidor aposentado de Coimbra e Évora) que no processo do Nuno (n.º 10192), votaram pela exclusão do testemunho da Isabel Gil, que “se devia excluir e lançar de todo fora, porque sendo acusada pelo pai do Réu por furto de quantidade tão grande e porque chegou a ter sentença de morte, era a coisa de inimizade capital e assim não pode seu testemunho ser admitido contra o Réu, e acrescentou o dito Inquisidor aposentado que pela condenação e sentença ficou a testemunha servo da pena e como tal incapaz e inábil conforme o direito para ser testemunha em juízo.” De nada valeu, porém, porque o Conselho Geral votou o relaxe à justiça secular.
A vida de Lupina Freire ia correndo, mas os tempos eram agora mais duros para ele, depois da morte no início de 1653 do seu protector, D. Francisco de Castro. Entretanto, a amizade e os favores de Manuel Lopes de Carvalho iriam voltar a complicar-lhe de novo a vida.
No início de Agosto de 1655, a Inquisição foi a bordo de um navio prender uma família inteira já embarcada a fugir para o estrangeiro. Eram o médico André Soares (Pr. n.º 11472 – 3 processos), a esposa Grácia da Veiga (Pr. n.º 1302 – 2 processos), as filhas de ambos, Branca Soares (Pr. n.º 7855 – 2 processos) e Inês da Veiga (Pr. n.º 4485) e ainda a irmã da esposa, Margarida da Veiga (Pr. n.º 10196 – 2 processos). Eram todos reconciliados, com excepção da pequena Inês, que tinha 14 anos. Apanhados em falta, declararam querer apresentar-se na Inquisição procurando uma punição menos severa e são chamados “reconciliados - apresentados“ nas declarações (ou confissões) feitas na altura. Por um motivo qualquer, não foram tratados como apresentados. As declarações que na altura fizeram foram tratadas como “Mais confissão”, nos processos imediatamente anteriores, e figuram até depois da conta de custas. Mais tarde, em Novembro de 1655 foram todos presos de novo e acusados de relapsia. Entre os denunciados por todos ou quase todos, estava o amigo de Lupina Freire, Manuel Lopes de Carvalho.
Lupina Freire registou o depoimento de Margarida da Veiga, como Notário. Não confessou mais tarde que tivesse avisado Manuel Lopes de Carvalho, mas apenas que este soubera da prisão dos Veiga e viera falar com ele. Isto também é muito provável porquanto o médico André Soares viera pedir a Manuel Lopes de Carvalho ajuda monetária para a fuga e até ficara aborrecido porque esperava esmola maior. O que é certo é que Manuel Lopes veio falar com o Notário logo no dia 2 de Agosto (2.ª feira), perguntando-lhe se seria bom antecipar-se já a apresentar contraditas contra a denúncia do médico e dos familiares e depois a solicitar conselhos sobre a redacção daquelas. Dali a dois dias enviou-lhe o texto das contraditas para ele conferir. Depois veio de novo falar com o Notário, perguntando-lhe se não seria melhor fugir para o estrangeiro, ao que ele lhe respondeu afirmativamente.
Depois disto, Manuel Lopes de Carvalho não apareceu mais na sua Quinta em Sacavém. Terá ido para a Guarda e dali para Castela, acompanhado pelas cunhadas mais novas, Filipa e Ana. Foi-lhe instaurado o processo n.º 9273 e foi relaxado em estátua no auto da fé de 17-10-1660.
Lupina Freire deve ter meditado no que tinha feito, lembrou-se da vultuosa dívida que tinha na Inquisição e decidiu apresentar-se, esperando gozar do favor que naquela casa se dava aos apresentados. No dia 20 de Agosto de 1655, contou tudo na Mesa ao Inquisidor Luis Álvares da Rocha. Disse ele concluindo que o Manuel Lopes de Carvalho “… pediu com grande instância a ele confitente que lhe aconselhasse o que faria, e se se ausentaria, e isto com grande instância e ânsia, e então lhe respondeu ele confitente que se ausentasse, e se fosse embora, e fizesse o que ele confitente lhe dizia, ao que o dito Manuel Lopes se mostrou muito agradecido, e fazendo-lhe muitos cumprimentos, e prometeu que de qualquer parte onde se achasse, lhe havia de escrever e agradecer a ele confitente a mercê que lhe fazia em lhe dar aquele escrito…”
Confessou a dívida que tinha para com Manuel Lopes de Carvalho, pediu perdão e misericórdia, e disse que estava muito arrependido e que conhecia a gravidade da sua culpa.
A verdade era que Manuel Lopes de Carvalho não tinha mesmo outra solução senão fugir. Afinal, estavam presos na Inquisição sua mulher e os dois irmãos dela, de qualquer modo, estaria para chegar a vez dele.
Ainda em 20 de Agosto de 1655, foi o processo a visto da Mesa (fls. 60). Ali propuseram uma pena bastante moderada: demissão de todas as funções no Santo Ofício, aposentação antecipada com metade do soldo; tiveram em conta que “deve-se o favor que se costuma aos apresentados, e não haver escândalo neste particular, pois está em segredo, e de mais disso ter servido tantos anos ao Ilustríssimo Senhor Bispo Inquisidor Geral, a cuja memória se deve tanto respeito, e à miséria em que se hão-de ver seu pai e mais velhos, e sua irmã e sobrinha, todos tão pobres que não têm outrem que os sustente. E sobretudo o grande inconveniente que se seguirá ao Santo Ofício se com o castigo se publicar esta culpa, ficando o povo tendo para si que sempre na Inquisição se achará quem descubra seus segredos, de que resulta grave descrédito a seus ministros, devia ser o dito Pedro Lupina aposentado, por todas as ditas razões, com metade do seu ordenado, com o pretexto de ele ser muito achacado dos olhos, e ter fontes e não poder aturar o trabalho de seu ofício…”
O Conselho Geral, no dia seguinte (fls. 62), discordou totalmente: “… assentou-se que ele (Pedro Lupina Freire) seja preso nos cárceres do Santo Ofício e se proceda contra ele na forma do Regimento. ”
Mais uma vez se verifica uma divergência total de posições entre a Mesa da Inquisição e o Conselho Geral. A primeira entendia que mais proveitoso seria abafar o caso, pensando no escândalo e até na hipótese provável de o notário revelar mais segredos da Inquisição. O Conselho Geral preocupou-se sobretudo em castigar a ofensa às regras da inquisição e em dar ao infractor o castigo que julgavam merecia.
Entre parênteses, note-se que nos Arquivos existe outro processo com o n.º 17738, que tem apenas cópias dos assentos que já se encontram no processo n.º 4411.
A fls. 64, uma exposição do réu, solicitando o benefício de apresentado e prontificando-se a solver a sua dívida logo que possível.
Notificado do libelo, quis o réu defender-se e foi-lhe atribuído como Procurador o Dr. António de Magalhães.
O Procurador volta ao mesmo argumento do benefício de apresentado, mas acrescenta também as denúncias feitas por Lupina Freire contra o Manuel Lopes de Carvalho e cunhados em 30 de Abril anterior.
O processo estava a arrastar-se quando o Alcaide informou em 18 de Janeiro de 1656 (fls. 83), que Lupina Freire estava a sofrer de gota nas mãos devido à “frialdade” do cárcere. Um despacho de 25 do mesmo mês, manda apressar o Visto da Mesa.
No Assento da Mesa de 31 de Janeiro de 1656 (fls. 85), pareceu a todos os votos com excepção do Inquisidor Pedro de Castilho, que ele fosse demitido de Notário e proibido de desempenhar qualquer outra tarefa no S.to Ofício e degredado por um período de tempo de 5 ou 6 anos, dizendo uns que para Angola, outros para o Brasil e outro para Miranda atendendo à pobreza da sua família; estes votos diziam ainda que ele não devia gozar do privilégio de apresentado. O Inquisidor Pedro de Castilho disse que o réu devia gozar do favor de apresentado, pois não havia razões para lho negar e que a pena deveria ser o degredo por 4 anos para fora do Arcebispado de Lisboa.
O Conselho Geral, no Assento de 1 de Fevereiro (fls. 88) determinou que ele fosse degredado por cinco anos para o Estado do Brasil e que ouvisse a sua sentença na Sala da Inquisição, o que foi feito em 28 de Fevereiro.
Em 26 de Outubro de 1656, ainda o ex-notário estava preso na Inquisição, possivelmente à espera de embarque para o Brasil. Como estava proibido de falar com quem quer que seja, há um despacho dessa data (fls. 99) que diz :”Os Inquisidores mandem recolher o P.e Lupina em uma das (celas) que houver no cárcere mais capazes para obviar a comunicação”.
Segue-se no processo um episódio bastante confuso, ainda mais difícil de perceber porque as páginas estão quase ilegíveis. A fls. 99 v. diz-se: “Aqui falta uma ordem do Conselho por que se mandou que os Srs. Inquisidores examinassem a Pedro Lupina Freire, contido nestes autos, pelas práticas que teve com Sua Majestade que Deus haja, quando foi levado à sua presença 1.ª e 2.ª vez, e quando o exame foi levado ao Conselho, ficou lá a tal ordem, que, segundo minha lembrança era de Novembro de 1656, de que fiz este termo em 22 do dito mês e ano, José Cardoso, Notário que o escrevi.”
O tal exame datado de 17-11-1656, está de fls. 101 a 106, quase ilegível. Mas Lupina Freire não deve ter revelado as conversas que teve com o Rei D. João IV, entretanto falecido em 6 de Novembro de 1656. Ficamos também sem saber como é que ele conseguiu ser chamado para duas audiências com o Rei.
A fls. 107, esta informação: “Foi visto o exame feito a Pedro Lupina Freire, notário que foi desta Inquisição, conforme a ordem do Conselho Geral. E pareceu a todos os votos que, ainda que das respostas dadas às perguntas que se fizeram ao Pedro Lupina, resultam algumas coisas inverosímeis e repugnantes, não havia lugar de com ele se fazer mais diligências, porquanto não se prova contra ele (linhas ilegíveis) e que assim devia (ilegível) embarcar para cumprir seu degredo (…). “
Despacho à margem: “Como parece à Mesa, que com efeito faça embarcar este degredado. Lisboa, 21 de Novembro de 1656”.
DEGREDO NO BRASIL
A fls. 109, refere-se que foi chamado aos Estaus, Leonardo Rodrigues, Mestre da nau S. Miguel o Anjo e foi-lhe dito que, antes de partir, deverá embarcar Pedro Lupina Freire para o entregar na cidade da Baía de Todos os Santos, onde ele ficará degredado por cinco anos.
A fls. 111, um requerimento do preso, pedindo que lhe sejam dadas “cartas de ordens e mais despachos por que conste de seu degredo, para com ele se apresentar no Estado do Brasil e mostrar que não vai suspenso do exercício de suas ordens para dele se sustentar.” Afinal ele era Padre e poderia exercer o múnus espiritual para ter o pão de cada dia e mais qualquer coisinha, se possível.
A fls. 114, uma declaração da Câmara de Salvador dizendo que o Padre se apresentou ali em 25 de Abril de 1657.
Sobre o que fez ou não no degredo, nada sabemos. Não deve ter tido problemas de subsistência, porque no Brasil o múnus espiritual era bem pago.
A fls. 115, no processo, um Assento do Conselho Geral de 17 de Fevereiro de 1660, perdoando-lhe o tempo que falta para cumprir o degredo. O Padre Lupina Freire regressou a Lisboa.
Entretanto, a Inquisição de Lisboa executava os seus bens para pagar a dívida do réu. Não era tarefa fácil. Ele tinha em seu poder móveis e roupas de outras pessoas e, além disso, os seus credores apresentaram-se na Inquisição fazendo valer os seus créditos. Pelos vistos ele encarregava-se de comprar coisas para o serviço da Inquisição, mas depois não pagava. Apresentaram-se como seus credores:
Guadalmecileiro, de obra feita para a Inq. de Coimbra Compra de papel de Veneza, também para a Inq. de Coimbra Tecidos Alfaiate Tecidos Rendas devidas ao senhorio Chapéus
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3$800 7$000 4$000 4$300 18$260 11$700 3$500
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O seu rendimento principal era o de um benefício eclesiástico em Sacavém, que ficou perdido para a Inquisição até ao pagamento total da sua dívida.
A fls. 130, um resumo da situação das cobranças: até ao final de 1678, havia-se cobrado por conta da dívida a quantia de 669$678 réis, em cobranças anuais relativamente baixas. Depois um salto para 1682, em que há uma cobrança elevada de 245$000 réis (pode incluir um pagamento feito pelo Padre), resultando um crédito total de 914$678 réis, o que representava o pagamento total da dívida, Não foram cobrados juros.
IDA PARA ROMA
Regressado a Lisboa, o P.e Lupina Freire não perdeu o jeito especial para arranjar complicações. A certa altura, convenceu-se de que tinha sido injustamente castigado na Inquisição, e lembrou-se de apresentar uma exposição ao Inquisidor Geral para dizer isso mesmo. Ao mesmo tempo confidenciava com amigos e conhecidos as suas razões de queixa, quando os tinha como visita de sua casa, sita na Rua das Lombas, freguesia de Santa Catarina do Monte Sinai.
Os seus desabafos chegaram ao ouvido da Inquisição, que chamou testemunhas para deporem sobre o que o P.e Lupina Freire andava a dizer. De 10 a 14 de Novembro de 1672, foram ouvidos: P.e Manuel Pereira da Cunha, António de Lima, Francisco de Oliveira Correia, Cavaleiro do Hábito de Cristo, P.e Luis de Freitas, P.e Francisco Rodrigues Saraiva e João de Matos. Todos referiram que o P.e Lupina dizia ter sido mal sentenciado, e que fora sentenciado apaixonadamente; que tudo fora obra dos seus inimigos na Inquisição, Luis Álvares da Rocha, Inquisidor e Pantaleão Rodrigues Pacheco, e Diogo de Sousa, Deputados do Conselho Geral. Que ia redigir uma petição ao Inquisidor Geral, dizia e mostrava o texto a algumas das testemunhas.
O mais provável é que, nesta altura, ele já estivesse em contacto com os cristãos novos que, de acordo com alguns padres jesuítas, entre os quais António Vieira, tinham apresentado um recurso em Roma para introduzir mudanças na Inquisição. É o próprio Padre António Vieira a dizer que o P.e Lupina Freire era amigo de Pedro Alves Caldas, um dos procuradores dos cristãos novos na petição feita ao Papa. Por isso, na altura em que se preparavam para o prender, já ele se tinha comprometido com os cristãos novos a ir a Roma.
O Promotor da Inquisição não esteve com meias medidas e decidiu pedir a prisão do Padre Lupina (fls 198): “Do sumário junto consta que o P.e Lupina Freire, Notário que foi nesta Inquisição e nela preso e condenado, anda infamando os Ministros da mesma, dizendo havia mostrar fora mal sentenciado, e por juízes seus inimigos, apaixonados, e que não cometera a culpa (…) Requeiro a V. Mercês decretem a prisão do P.e Lupina Freire”.
A Mesa concordou e proferiu em 15-11-1672 o Assento que conclui: “Seja preso e processado na forma do Regimento”.
Desta vez, o Conselho Geral foi menos rigoroso. O Assento da mesma data (fls. 200), diz: “Foram vistos na Mesa do Conselho, estando presente o Ex.mo Senhor Duque Arcebispo Inquisidor Geral, o Sumário junto e culpas contra Pedro Lupina Freire, Clérigo do hábito de S. Pedro, Notário que foi da Inquisição desta cidade, dela natural e morador; e assentou-se que ele seja chamado à Mesa, e nela muito asperamente repreendido e advertido que se de qualquer modo falar no seu requerimento que diz tem no Santo Ofício, será nele preso, processado e gravemente castigado. De que se fará termo por ele assinado. 15 de Novembro de 1672. “
Quando foram à procura dele, já ele não estava em Lisboa. Fora para Roma em “missão secreta”, sem dúvida ao serviço dos cristãos novos. Qual era essa missão é algo misterioso. O que é certo é que os cristãos novos esperavam a ajuda dele para apresentar os seus pontos de vista junto da Cúria Romana. Uma carta de Madrid de Francisco Pais Ferreira para o Inquisidor Geral diz que a 25 de Fevereiro (de 1973) ainda ele não tinha chegado a Roma. Mas terá chegado pouco depois.
Concluíram alguns que seria Lupina Freire o autor das “Notícias recônditas do modo de proceder a Inquisição de Portugal com os seus presos”, ou que, pelo menos teria participado na sua redacção, atribuída também ao Padre António Vieira. João Lúcio de Azevedo parece estar de acordo. Porém, como nota H.P. Salomon, a maior parte dos processos são da Inquisição de Évora, de que dificilmente o Padre poderia ter conhecimento (Ver Anexo). Para além disso, as apreciações feitas em Roma ao carácter e comportamento de Lupina Freire não são nada abonatórias.
Escreve João Lúcio de Azevedo no artigo “Alguns escritos apócrifos, inéditos e menos conhecidos, do Padre António Vieira”, publicado no Boletim de 2.ª Classe da Academia das Ciências de Lisboa – n.º 9 1914-15, pag. 539:
O editor de Londres, que pelos correligionários devia ter boa informação, indica como autor «um secretário da Inquisição de Portugal, que se foi a Roma dar conta do mal que se obrava nela em 1672», Este sujeito, que David Neto não nomeia, foi Pedro Lupina Freire, notário despedido do Santo Ofício, preso em 1655 por inconfidência, de que resultou ocultar-se um rico mercador que ia ser preso, e por crime de alcance como tesoureiro do tribunal em Lisboa. Degredado por isso para a Baía, em 1660 voltou perdoado. Os antecedentes, a penúria em que decerto se encontrava, o desejo de vingança que naturalmente se lhe podia supor, tudo isso o indicava aos adversários da Inquisição para auxiliar. E auxiliar precioso pelo conhecimento dos arcanos do Santo Ofício que convinha, para a discussão, trazer a lume. Das informações do tribunal da fé consta que em Roma esperavam por ele, em Fevereiro de 1673, para tratar da causa dos cristãos novos. Lá se encontrou com Vieira a quem igualmente animava a ambição do desforço.
Se, como parece, não foi este último o autor do papel, quási certo se pode dizer colaborou nele, e o encomendou, corrigiu e completou. Nem arma tão importante para o prélio se forjaria sem o concurso do principal contendor. Lá aparece a sugestão de serem alguns processos de réus condenados à última pena sujeitos a exame, cousa que tanto havia de embaraçar os inquisidores. Em certas partes a linguagem lembrará a persuasiva eloquência do jesuíta, não a prosa de que o notário deixou vestígios nos cartórios. O alegar o documento muitos factos da 'Inquisição de Évora foi talvez o que levou algumas pessoas a suporem-no do promotor em que fala o bispo do Pará. Mas Lupina devia sabê-las, e ó muito plausível as soubesse também Vieira, informado pelos jesuítas daquela cidade, por antiga rixa adversários ferrenhos do tribunal.
Porém, há que ter em conta a apreciação dos que conviveram com Lupina Freire em Roma, especialmente o P.e António Vieira e Francisco de Azevedo.
Do P.e António Vieira em carta datada de 9 de Setembro de 1673, dirigida ao P.e Manuel Fernandes (Cartas do Padre António Vieira: coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, 2.º vol. pag. 648 - também em Corpo Diplomático Português, vol. 14.º, pag. 159 ):
Aqui anda Pedro Lupina Freire e dizem que diz foi mandado já para este negócio: é homem terrível, e que pode servir ou danar muito para as notícias interiores da Inquisição. Como foi secretário dela tantos anos pode dar grande luz; e, por outra parte, por se congraçar com a mesma Inquisição pode unir-se com quem faz as suas partes, e parece capaz de tudo, principalmente sendo pobre, ainda que de uns dias a esta parte começou a andar mais luzido. Sei que é amigo de Pedro Alves Caldas *, e seria muito conveniente tê-lo ganhado e seguro, como me parece se poderá fazer por esta mesma via com alguma advertência de remédio enquanto aqui estiver, e promessa para o futuro. Faça V Rev.ª muito caso deste ponto, e compadeça-se de mim por estas e por outras muitas impertinências de todos, que fora infinito individuar; e baste dizer que, como se não procure puramente o serviço de Deus e bem do reino, em tudo o mais não há verdade nem segurança.
* Cristão novo, negociante em Lisboa, e um dos proponentes da Companhia Oriental.
João Lúcio de Azevedo, “Os jesuítas e a Inquisição em conflito no séc. XVII”, no Boletim de 2.ª Classe da Academia das Ciências de Lisboa – n.º 10, 1915-165, pag. 333, transcreve da carta de Francisco de Azevedo aos procuradores dos cristãos novos, datada de 2-12-1673:
«Pedro Lupina, de quem contávamos tirar algumas notícias, sobre ser quimérico, confuso, e tudo fala por oráculos, achamos ter tratos diferentes dos que nele esperávamos; inútil foi mandar cá este homem, se é que o mandaram, porque eu nada lhe creio».
A hipótese de a redacção das “Notícias Recônditas” ter o contributo de Lupina Freire não tem qualquer viabilidade. Ele redigia mal e, sobretudo não podia conhecer tantos processos de Évora como os que são citados no texto. Eventualmente poderá ter dado alguma sugestão, mas nada de essencial.
Pedro Lupina deverá ter andado por Roma a divertir-se e certamente só se veio embora quando os cristãos novos lhe retiraram o financiamento. O recurso deles a Roma fora um flop monumental, sobretudo porque, estando a Inquisição suspensa de 1674 a 1681, os presos ficaram a apodrecer na prisão, e não poucos morreram e muitos ficaram doidos. A Cúria Romana ficou com a ilusão de que submetera a Inquisição Portuguesa à obediência da Igreja, dela retirando a mão do Rei, mas nada disso aconteceu. A Inquisição ficou com o mesmo poder de antes, procurando a sua independência, quer do Rei, quer do Papa, e prosseguindo a sua tarefa de amarfanhar todos os cristãos novos, ignorando totalmente as determinações do Papa no Breve de 22 de Agosto de 1681.
Do processo, consta ainda o seu regresso a Lisboa, pois na última folha (n.º 201), está esta informação da Mesa e despacho do Conselho Geral:
“No Sumário incluso se tinha tomado assento pelo Conselho que o P.e Lupina Freire nele contido, fosse asperamente repreendido e advertido que de qualquer modo falasse no seu requerimento que diz ter no Santo Ofício, seria nele preso, processado e gravemente castigado, do que se faria termo por ele assinado; e que ele então se ausentou e tem passado mais de três anos, e agora há notícia que assiste nesta cidade, damos conta a V. Senhorias para que seja servido declarar-nos se devemos dar execução ao assento, porque podia haver coisa que à Mesa não alcança, que (palavras ilegíveis). V. Senhoria ordenará o de que mais for servido. Lisboa em Mesa, 5 de Maio de 1676. “
À margem:
“A Mesa suspenda por ora a execução do Assento do Conselho. E havendo de novo alguma denunciação contra este sujeito, tomará sobre tudo novo Assento e com os autos o enviará ao mesmo Conselho. Lisboa, 5 de Maio de 1676”.
18-05-2015 - Ainda sobre a estadia em Roma - O Doutor Yllán de Mattos refere duas cartas escritas de Madrid por Lupina Freire ao Inquisidor-Geral de 25-10-1674 e de 14-2-1675. Ao contrário do que ele concluiu, as cartas foram escritas no regresso de Roma e não na ida. No mesmo maço 21 está a carta de Génova, escrita em 12-8-1674 (fls. 74), dirigida ao mesmo Inquisidor-Geral que diz:
Ill.mos Senhores,
De Roma escrevi a V. Senhoria em 24 de Julho passado, e dei conta a V. Senhoria do que obrara no serviço de V. Senhoria e como a necessidade me obrigava a deixar a Corte, porque a falta do sustento me impedia residir mais. Fiz jornada e vim demandar Génova, por, se encontrasse o Inq. Jerónimo Soares o informar, sem embargo do que lhe deixei em Roma escrito: avistámo-nos e lhe dei notícia do negócio, dos ministros e dos humores que os dominavam, como me Hr. me soube declarar: ele me fez o acolhimento que eu podia desejar e me valeu com o valor de setenta patacas para meu embarco e jornada de Alicante té Madrid onde pararei, e farei aviso a V. Senhoria para eu entender o que mais devo obrar e ainda que me será discómoda a dilação, maiores sacrifícios farei pelo serviço de V. Senhoria. A minha partida será té 20 do corrente, com o favor divino.
Deus Nosso Senhor guarde V. Senhoria com os gostos que em seu serviço deseja.
Génova, 12 de Agosto de 1674.
P. Lupina Freire
Há ainda outra carta escrita de Madrid em 16-9-1674 (fls. 70 a 73), que tem também algum interesse. A Lupina Freire se refere ainda a carta de Jerónimo Soares, escrita em Siena em 4-10-1674 (fls. 190), que refere informações de Lupina Freire em código. Estes textos sugerem que o ex-Notário se passou do lado dos cristãos novos para o lado da Inquisição. Mas provam também à evidência que ele não é o autor nem o informador das Notícias Recônditas. Se o fosse, os cristãos novos não o deixariam passar fome.
MORTE
Não encontrei mais notícias da vida de Lupina Freire. Barbosa Machado diz que ele publicou em 1676 um pequeno opúsculo em matéria religiosa e é ele também que nos dá a data do óbito, em 13 de Novembro de 1685. Sempre hagiográfico, refere ele de Lupina Freire apenas as coisas boas : “Capelão d’El-Rei, Beneficiado na Matriz do lugar de Sacavém, Notário da Inquisição de Lisboa, de que tomou posse a 16 de Setembro de 1648, Administrador geral da Corte, Fortalezas da Barra, Cascais, Peniche e Província da Estremadura”. Com todos estes títulos, deve querer dizer que o P.e Lupina nunca chegou a passar fome.
ADENDA - 2-09-2013
Apareceram mais alguns documentos que falam de Lupina Freire:
Decreto de 25 de Fevereiro de 1665
(Liv. IV. de cons. e dec. d’el-rei D. Afonso VI, fls. 343)
Tenho mandado que a Pedro Lupina Freire, administrador geral da corte, fortalezas da barra, Cascaes, Peniche e província da Estremadura, se pague a metade do seu soldo no consulado, e a outra metade pelo senado da camara, por servir aos soldados de ambas as partes. O senado da camara o tenha entendido e o faça executar pela parte que lhe toca, advertindo que o soldo são cinco mil réis por mês ao todo, como constará da sua patente.
De Elementos para a história do município de Lisboa, vol. VI, pag. 537, Câmara Municipal, Lisboa, 1942-1943
No Liv. 244 do CGSO, fls. 92 a 106 v., estão (cópias de) duas exposições do P.e Lupina Freire de 1680, uma à Rainha e uma segunda ao Papa (que diz juntar em anexo a primeira), onde ele continua a dizer que foi injustamente castigado pela Inquisição. Teriam sido entregues a Marcello Durazo, Núncio em Lisboa, mas não tiveram decerto sequência, até porque, entretanto, morreu o exponente.
As exposições não trazem coisas novas. Fala do Manuel Lopes Carvalho como se fosse um estranho, quando lhe pedira 500 cruzados que não restituíra; diz que ele era “muito da casa do Inquisidor Geral D. Francisco de Castro, que me criou…” e nega que o tenha aconselhado a fugir para fora do Reino, o que tinha confessado na Mesa em 1655.
O texto das “Notícias Recônditas” foi escrito em 1673 supostamente para mostrar ao Papa as injustiças da Inquisição de Portugal. Ficou em manuscrito e teve relativamente pouca divulgação na altura. Em 1708 foi impressa em Londres uma tradução inglesa, com o título “An account of the cruelties exercised by the Inquisition in Portugal, written by one of the secretaries to the Inquisition”. Daqui nasceu o boato de que teria sido escrito pelo Padre Pedro Lupina Freire. Diz-se que a publicação foi da iniciativa do Rabi David Nieto (1654-1728), mas não há a certeza disso.
Em 1722, foi impressa em Londres uma tradução para Português e Castelhano, com o título “Noticias Reconditas y Posthumas del Procedimiento de las Inquisiciones de España y Portugal con sus Presos. Divididas en dos Partes; la Primera en Idioma Portuguez. La Segunda en Castellano; deduzidas de Autores Catholicos, Apostolicos, y Romanos; Eminentes por Dignidad, o por Letras. Obras tan Curiosas como instructivas, compiladas, y anadidas por un Anonimo. En Villa Franca 1722.” Vieram para Portugal alguns exemplares.
Em 1821, já extinta a Inquisição, foi o texto publicado em Portugal com algumas adaptações. Esta edição é facilmente consultável no Google ou em purl.pt.
Não se pode pôr em causa o conteúdo das “Notícias Recônditas” porque aí estão os processos para fazer a prova real.
No livro “Marrano Factory”, H.P Salomon elenca os processos que podem ser consultados para cada um dos casos referidos no texto. De lá os transcrevo (acrescentando dados novos), substituindo as referências aos parágrafos do livro (N R) pelos da edição de 1821, que está mais disponível.
Caso n.º 1
N R 64-66 – Maria da Conceição (ou de Sequeira)
Pr. n.º 1369 E 03/01/1654-18/04/1660
A d F de 18-4-1660
irmãs: Joana Baptista – Pr. n.º 10095 - E;
Maria Juliana – Pr. n.º 9043 - E
Caso n.º 2
N R 67 – Manuel Rodrigues da Costa
Pr. n.º 9948 L - 11/11/1658-27/6/1672
A d F de 21-6-1671
Caso n.º 3
N R 109 – Jorge Fernandes Mesas
Pr. n.º 326 E - 07/02/1656-18/04/1660
A d F de 18-4-1660,
o
Caso n.º 4
N R 110 – Maria Mendes, de 70 anos, natural de Fronteira, moradora em Elvas, viúva de Gaspar Gomes Jacinto, sapateiro --
Pr. n.º 3963 E 15/09/1654-06/05/1657
A d F de 6-5-1657, Relaxada
Caso n.º 5
N R 114 – Jácome de Melo Pereira, de Elvas
Pr. n.º 7346 E 21/05/1665-16/10/1667
A d F de 16-10-1667, relaxado
Caso n.º 6
N R 115 – Afonso Nobre, de Vila Viçosa
Pr. n.º 4385, de Coimbra 23/03/1658-26/10/1664
A d F de 26-10-1664, relaxado
Caso n..º7
N R 118 – João de Sequeira, de Torres Novas
Pr. n.º 5427 – L - 03/03/1634 -11/10/1637
A d F 11-10-1637 , Relaxado
António de Sequeira, irmão do anterior,
Pr. n.º 2416 L -- 30/09/1637 - 24/03/1642
A d F de 24-3-1642 , Relaxado
Caso n.º 8
N R 119 - João Travassos da Costa, de Alqueidão – Torres Novas
Pr. n.º 9781 L- 28/11/1622-24/1/1637
A d F de 3-8-1637
Caso n.º 9
N R 122 – Baptista Fangueiro Cabras
Pr. n.º 4741 E 09/05/1657-12/11/1662
A D F 12-11-1662 e 16-10-1667
Caso n.º 10
N R 136 – Fr. Diogo da Assunção
Pr. n.º 104 L 25/10/1599 - 03/08/1603
A d F de 3-8-1603, Relaxado
Caso n.º 11
N R 138 – Francisco de Azevedo Cabras, de Elvas
Pr n.º 2314 E 12/05/1672-15/12/1673
A d F de 31-5-1665 e 2.º na sala em 15-10-1673
Caso n.º 12
N R 142 e 143 - Manuel Lopes Sotil ou Subtil, de Elvas, não aparece o processo-foi ao auto da fé em Évora de 11-5-1664; o 2.º processo é o n.º 4732, da Inq. de Lisboa, foi ao auto da fé de 11-3-1668 (a fls. 44, tem certidão do processo de Évora)
filhos: André Lopes Sotil – Pr. n. º 10441 E e 10441A E
Maria Nunes Sotil – Pr. n.º 1975 E
Gaspar Coelho – Pr n.º 4575 E
esposa, mãe dos anteriores: Maria Coelha, cristã velha - Pr. n.º 7150 E - repreendida em Mesa em 11-1-1667, por falsas declarações
cunhado: Lourenço Coelho Delgado, cristão velho, irmão da anterior - Pr. n.º 445 E, libertado, sem pena
Caso n.º 13
N R – 144 – Francisco Lopes Margalho, natural de Elvas
Pr. n.º 7829 E - 31/05/1665-15/06/1665
A d F de 31-5-1665
Caso n.º 14
N R 145 – António Gonçalves, natural de Oliveira do Conde, morador em Cabanas -
Pr. n.º 1155 C - 25/07/1657-23/05/1660
A d F de 23-5-1660
Caso n.º 15
N R 148 – António Pires, o “Meia Noite”
Pr. n.º 4791 L - 03/04/1656 - 17/10/1660
A d F de 17-10-1660, Relaxado
TEXTOS CONSULTADOS
Processo da Inquisição de Lisboa n.º 4411
Online: http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2304395
João Lúcio de Azevedo, História dos Christãos Novos Portugueses, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1922
Online: www.archive.org
João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas e a Inquisição em conflito no sec. XVII, Bol. 2.ª classe da Academia das Ciências de Lisboa, X, 1915-1916, pags. 319-345
Online: www.archive.org
João Lúcio de Azevedo, Alguns escritos apócrifos, inéditos e menos conhecidos, do Padre António Vieira, in Boletim de 2.ª Classe da Academia das Ciências de Lisboa – IX, 1914-15, pag. 539
Online: www.archive.org
António José Saraiva, The Marrano Factory: the portuguese Inquisition and its New Christians, 1536-1765, translated, revised and augmented by H.P. Salomon and I.S.D. Sassoon. - Leiden Boston Koln : Brill, 2001. - 402 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 90-04-12080-7
António José Saraiva, Inquisição e Cristãos Novos. Imprensa Universitária, Editorial Estampa, 5.ª edição, Lisboa, 1985
Cartas do Padre António Vieira: coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, 2.º volume, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1926
Online: www.brasiliana.usp.br
Notícias recônditas do modo de proceder a Inquisição de Portugal com os seus prezos. Informação que ao Pontífice Clemente X deo o P. António Vieira. A qual o dito Papa lhe mandou fazer, estando elle em Roma, na ocasião da causa dos Christãos novos com o Santo Officio para a mudança dos seus estilos de processar; em que por esse motivo esteve suspensa a Inquisição por sete anos, desde 1674 até 1681. Ao que se segue uma Carta impugnatória dirigida ao Padre Vieira sobre o mesmo objecto; e a eloquente resposta deste. Documentos curiosíssimos, e nunca publicados até agora.
Na Imprensa Nacional, Lisboa, 1821.
Online: www.archive.org e http://purl.pt/6474
An account of the cruelties exercised by the inquisition in Portugal (…) written by one of the secretaries to the Inquisition. ECCO Print Edition, facsimile, 2011 (com péssima impressão) do original impresso por R. Burrough and J. Baaker, 1708, vii [1], 164 [4] p, 8.º
Augusto da Silva Carvalho (1861-1957), “Dois processos da Inquisição interessantes para a história da propaganda contra este Tribunal”, in Anais da Academia Portuguesa de História n.º 9, de 1945