5-9-2012
Carta a Francisco de Mezas, de António Serrão de Crasto (1613 - 1684)
Quando saiu da Inquisição após o auto da fé de 10 de Maio de 1682, António Serrão de Crasto estava velho, alquebrado, quase cego e reduzido à miséria, tendo ainda a seu cuidado uma idosa irmã, a filha doente e dois filhos avariados da cabeça. Nada mais lhe restava do que estender a mão à caridade. Para dar alguma coisa em troca, escrevia versos que forçosamente caíam na pedinchice. É assim que aparecem no manuscrito denominado “Fonte Jocosa fabricada por António Serrão de Crasto, boticário, em Lisboa, ano de 1704” cod. 6031 Microfilme F. R. 709 da BNP, a fls. 172 o Romance dedicado a Tomé Botelho da Silveira, com o título “Delírios de um preso, caduquices de um velho, impertinências de um pobre“ e a fls. 222 a (Carta a) Francisco de Mezas. Este último é bastante mais escorreito do que o primeiro e foi publicado em facsimile pelo prof. Heitor Gomes Teixeira e depois transcrito por Telma Rodrigues na edição da Frenesi
A Francisco de Mezas, em que lhe refere o tempo que o Autor esteve preso na Inquisição e repete um soneto a hũa ameixoeira e duas décimas a um loureiro, que fez na prisão.
Romance
Senhor Francisco de Mezas,
Num romance hoje vos falo,
com que ser Poeta mostro,
com que ser pobre declaro.
Porqu’a pobreza e poesia
nasceram de um mesmo parto,
e destes, Poeta e pobre
nasceram em dia aziago.
E como são tão amigos,
e parentes tão chegados,
entre pobre e mais Poeta
nenhũa diferença achei.
E se pobreza, e poesia
cantam no mesmo compasso,
e Loucura, todos três
fazem um terno estremado.
E tão unidos comigo,
todos três estão num laço,
que se não canto com elas,
que com elas choro, é claro.
Poeta, o ócio me fez,
fez-me louco o tempo vário,
a fortuna me fez pobre,
sendo todos meus contrários.
Mas porém não sou Poeta,
que este nome tão preclaro
mal o posso merecer
por quatro trovas, que faço.
Porque ser Poeta um homem,
é um dom tão sublimado,
hũa graça gratis data
e um espírito mui alto.
Mas que sou louco varrido
isso não posso negá-lo,
que as causas p’los efeitos
se conhecem de ordinário.
Porque grande louco é
e de juízo bem falto
quem faz trovas, e faz versos
estando em tão triste estado.
Porém, quod natura dat
(diz um latino adágio)
que nemo negare potest
assim que estou desculpado.
É certo que melhor fora
o ser Louco e insensato,
do que ter algum juízo
para sentir o que passo.
Porque quem perde o juízo,
esse só juízo tem,
e quem a enlouquecer não vem,
esse é Louco, não tem siso:
o Louco só tem juízo
porque o mal que tem não sente,
que neste tempo presente
sentir com entendimento
aumenta mais o tormento
faz a pena mais veemente.
Que ser pobre, é tão patente
que não hei mister prová-lo,
e quando o romance todo
em ser pobre vai fundado.
Tudo isto são rodeios,
que eu, senhor, ando buscando
por dilatar o pedir-vos
de corrido e envergonhado.
Porque não sei com que cara
pedir possa um homem honrado
quando sei que é o pedir
tão duro, custoso e caro.
Que entre morrer, e pedir,
acho fora mais barato
um homem honrado morrer
que pedir necessitado.
Porque é o mal da pobreza
tão forte e desesperado,
tão cruel, tão rigoroso,
tão triste, abatido e baixo;
Que a não trazer a morte
tais medos, receios, tantos,
oh! quantos a tomariam
da vil pobreza obrigados!
Que se a buena luz se nota
fué menester que cercara
Dios, la muerte de congojas,
para que no la tomasen
muchos por sus manos proprias.
Que não é tão feia a morte
como a pintam de ordinário
que vai do pintado ao que é
como do vivo ao pintado.
Que esta anatomia de ossos,
de sangue, e de carne falto,
esse cadáver horrível,
esse esqueleto mirrado.
Essa medonha caveira,
qu’horror causa, e causa espanto,
não é retrato da morte,
se não de una morte retrato.
Que a morte somente é feia,
quando é morte em pecado;
mas é mui bela, e formosa
a morte de um justo, e santo.
É a morte um leve sono,
um aprazível letargo,
doce suspensão das penas,
suave fim dos trabalhos.
É a morte um livro certo,
em que se tem desenganos,
um mui fiel amigo,
que a ninguém traz enganado.
É a morte um Cirurgião
tão destro, perito e sábio,
que só com sua lembrança
corta os herpes do pecado.
Porque quem dela se lembra
e do Juízo é lembrado,
do Inferno e Paraíso,
que não pecará, é claro.
Mas há mortes desastradas,
por ruínas, por naufrágios,
por grandes apoplexias,
e por acidentes vários.
E por isso importa andar
na consciência ajustado,
e ter a conta bem feita
para a dar boa no cabo.
Porque a morte não avisa
quando há-de vir pelo prazo
todos sabem que há-de vir,
mas ninguém como nem quando.
Porque ela para o cobrar
com planta igual e igual passo,
entra nas casas humildes
e nos soberbos Palácios.
Daqui leva coroa e ceptro,
dali, monteira e cajado,
que da sua aguda foice
não escapa alto nem baixo.
Porque para ela não há
nenhum lugar reservado,
porque em todo o mundo tem
poder, jurisdição e mando.
Que ni al rey mas sobido
por que su tributo cobre,
ni al péon abatido
le dexó por escondido
ni le perdonó por pobre.
Feliz quem, como o Cisne
da vida chega ao cabo,
porque o branco cisne acaba
da vida o curso cantando.
E feliz mais mil vezes
a quem ela achou deitado
em sua casa contricto,
e chorando seus pecados.
Mas também a morte tarda
ao triste que a está chamando,
sendo às suas queixas surda,
sem acudir a seus brados.
Porque nunca para os tristes,
com ter asas, vem voando,
para uns apressa o Relógio,
p’ra outros o tem parado.
Porque foge a quem a busca,
dá a quem lhe foge, assaltos;
deixa a quem de nada serve,
leva a quem é necessário.
Leva um rico, deixa um pobre,
deixa um néscio, leva um sábio,
do mundo o ornato tira,
deixa do mundo o embaraço.
Corta hũa encarnada rosa,
arranca um purpúreo cravo,
pisa hũa branca açucena,
marchita um jasmim nevado.
Deixa um funeste cipreste,
e deixa um pinheiro bravo,
não corta a negra azinheira,
nem o inútil carrasco.
Rosa bela é uma dama,
Cravo um mancebo bizarro,
Hũa menina a açucena,
um menino, um jasmim branco.
Funesto cipreste, um velho,
pinheiro, um soberbo inchado,
azinheira, a triste velha;
carrasco inútil, o avaro.
E pois o que seja a morte
tenho dito dilatado,
o que seja agora a vida,
brevemente dizer trato.
A vida é perpétua guerra,
um contínuo sobressalto,
hũa inquieta fadiga,
e um mar sempre alterado.
Também é vida um livro,
mas mui mentiroso, e falso;
e um amigo lisonjeiro,
que a todos traz enganados.
E também é cirurgião,
mas tão pouco experimentado,
que anda curando por fora,
por dentro os herpes deixando.
Mas não sei que tem a vida,
que todos a desejamos;
e para prova disso, quero
uma fábula contar-vos.
Com um feixe de lenha, vinha
Carregado um velho fraco,
Que com trabalho, e canseira
Cortado tinha no mato.
Ele fraco, o peso grande
Deu logo em terra co’facho,
Chamando a morte, viesse
Dar fim a seus anos largos.
A morte veio correndo,
e ao velho perguntando:
que me queres, que aqui estou
muito pronta a teu mandado?
O velho vendo-a, lhe disse,
medroso e sobressaltado:
o que quero é que me ajudes
levar de lenha este cargo.
Pois se todos querem vida
desde o mais alto ao mais baixo,
desde o mais rico ao mais pobre,
desde o valente ao mais fraco.
Deus vo-la dê mui feliz
por anos mui dilatados
com tantos bens como sempre
vos deseja este criado.
Para que sejais dos pobres
remédio, socorro, amparo
para que sejais dos tristes
consolo, alívio, descanso.
Que agora venho, senhor,
meus males comunicar-vos
porque dizem que são menos
os males comunicados.
Inda que seria melhor,
mudo, ao silêncio deixá-los
que mais que a língua dizendo,
diz o silêncio calando.
Mas foram de qualidade
os que passei, e inda passo,
q’ até no mesmo silêncio
não cabem trabalhos tantos.
E assim acho que me vem
este mote apropriado,
que não vi outro melhor,
nem de conceito mais alto.
Solo el silencio, testigo
puede ser de mi tormento,
y aun no cabe lo que siento
en todo lo que no digo.
Se um dia só de tormento
parece anos mui largos,
quantos me pareceriam
manos dois dias, dez anos?
Que tantos, senhor, obtive
antes de morto, e enterrado:
se bem morto para o gosto
vivo para o estar penando.
Que tantos, senhor, estive
sem ver a Lua nem Sol claro;
porque até o Sol e Lua
a um triste negam seus raios.
Que tantos, senhor, estive
em um cárcere fechado,
porém de ninguém me queixo
senão só de meus pecados.
Porque eles foram a causa
de todos os meus trabalhos
mas para o que eu merecia,
‘inda o castigo foi brando.
Também de nascer me queixo
que um Autor bem estremado
ao nascer chama delito
nesta décima, bem claro.
Apurar, cielos, pretendo
ya que me tratais ansi,
que delito cometi
contra vosotros, naciendo:
mas se naçi ya entendo
que delicto he cometido;
bastante causa há tenido
vuestra justicia y rigor
pues el delicto mayor
del hombre, es aver nacido.
Quando os filhos lhe nasciam,
choravam os antigos sábios,
porque quando um homem nasce
nasce sujeito a trabalhos.
Porém quando lhe morriam
ficavam mais consolados,
porque é a morte dos males
termo, fim, morte e descanso.
Como o sol houvera ser
logo em nascendo, um coitado
porque o sol no mesmo dia
tem oriente e tem ocaso.
E sina houvera de ser
que de sua vida o prazo
no dia que tem princípio
nesse dia tem o cabo.
Que o melhor berço que pode
dar a um filho um desdichado
é o túmulo e a faixa,
da mortalha o pobre pano.
Primeiro do que eu o disse
Lá Lope de Veja carpiu
na sua Arcádia famosa
em estas coplas abaixo.
Naci Pastor, aun que noble
donde pluguiera a los hados
que de mortaja servieron
aquellos primeiros paños
Que al que nace para ser
en estremo desdichado,
que nacer, como el morir?
que mejor cuna, que un marmol?
Passar um homem infortúnios,
ruinas, perdas, naufrágios,
por acaso ou por desastre
no mundo é ordinário.
Mas não há maior desgraça
nem mais lastimoso caso
do que um triste nascer
por herança desgraçado.
Que um Morgado de misérias
é um mui triste Morgado,
E inda mal, inda negro,
que por seu mal vem a tantos!
Como estou de posse dele,
de dor e de pena estalo,
e o coração se me faz
dentro no peito pedaços.
Assim peço a Deus me dê
paciência em mal tamanho,
como a paciência de Job,
já que sou o seu retrato.
Porque se Job no monturo
Leproso esteve e chagado,
eu no monturo estou posto
cercado de males vários.
Aleijado estou de dores,
de estalicídio afogado,
abrasando sempre em febre,
da vista dos olhos falso.
Porque hũa catarata
no olho direito trago
que já totalmente dele
a vista me tem tirado.
E sobretudo já velho
que diz um texto estremado
que senectus morbus est
e mal sem remédio os anos.
É a velhice um edifício
que se vai arruinando
e em lhe faltando os pontões
qualquer vento o deita abaixo.
E os pontões bons da velhice
são mimos e são regalos;
mas que regalos e mimos
ter pode um preso coitado?
Mais que estar continuamente
suas penas lamentando
chorando os presentes males
e os futuros receando.
E se Job ficou sem filhos
eu em os meus não vos falo
porque casos tão lastimosos
não são para relatados.
Se Job perdeu os seus bens,
eu destes meus limitados
em um instante fiquei
destruído e assolado.
Considerando uma tarde
no meu triste e mau estado,
cheio de todos os males
e de todos os bens falto.
Fiz a hũa ameixieira
este soneto chorando
porque era da minha vista
objecto quotidiano.
SONETO
Onze vezes de folhas revestida,
Onze
vezes de flores adornada,
Onze
vezes de fruto carregada
Te
vi, ameixieira, aqui nascida.
Outras tantas também te vi despida,
De
folhas, flores, frutos despojada,
Pelo
rigor do Inverno saqueada,
E a
seco tronco toda reduzida.
Também a mim me vi já revestido
De
folhas, flores, frutos adornado,
De
amigos e parentes assistido
De
tudo já estou tão despojado.
mas tu virás a ter o que hás perdido
e eu não terei jamais o antigo estado.
E a um loureiro que foi
vizinho meu oito anos,
e que deixou de o ser
por ser p’lo pé cortado.
À sua fatal ruina
e ao seu grande fracasso
estas décimas lhe fiz
por não parecer ingrato.
DÉCIMAS
Quando altivo e levantado
(verde loureiro) te viste
Logo por terra caíste
aos golpes de um machado:
já estás por terra prostrado,
perdida a pompa e verdor,
que neste mundo traidor,
tudo vem a fenecer,
ao do tempo ao poder
ou da fortuna ao rigor.
Resististe altivo e forte
de Jupiter sempre ao raio
mas foi teu mortal desmaio
da fortuna um duro corte,
Que ao tempo, fortuna e morte
tudo vem pagar tributos,
homens, aves, plantas, brutos;
porque em sua cruel guerra
derribam, prostram por terra
flores, folhas, troncos, frutos.
E tornando a ir seguindo
o fio dos meus trabalhos
neste que agora vos digo,
cuido que a Job avantajo:
Que ele não esteve preso,
e eu estive tempo tanto,
ele com paz e sossego,
eu com guerra, e sobressalto.
Ele não pediu esmola
eu hoje ando mendigando
e a uma de duas cousas
está quem pede arriscado:
Se pede, e nada lhe dão
fica muito envergonhado;
e se lhe dão, fica feito,
p’la obrigação escravo.
Que, de dívida, obrigação,
é tão grande em um honrado,
que é para ele ferrete
que nunca tem fim, nem cabo.
Que o homem honrado, sempre
das mercês está lembrado;
porém, quem é vilão, delas
nem se lembra, nem faz caso.
Honrado, e agradecido,
concordam no mesmo caso;
e em caso também concordam
vilão ruim, com ingrato.
São as mercês umas flores
por dois modos encontradas
num vilão ruim, papoulas
e perpétuas num honrado.
Fazer a honrados bem
é um generoso acto,
mas a um vilão ruim,
pecado mortal oitavo.
Porém o fazer bem a todos
sempre foi muito louvado,
que o Sol com todos reparte
suas Luzes e seus raios.
Nasce o Sol claro, e sereno,
ao mundo alumiando,
Luz ao alto monte dando,
e luz ao vale pequeno,
não falta no campo ameno
o fresco orvalho do céu
a quanto nele nasceu;
porque, por diversos modos,
amanheceu para todos,
quando Deus amanheceu.
Se é chorar e mais cantar
do mal, alívio e descanso:
nem descanso, nem alívio,
achei chorando ou cantando.
Que há males de qualidade,
de qualidade trabalhos,
que o chorar os faz maiores
e o cantar os faz dobrados.
Que seja o chorar alívio,
o cantar remédio brando,
noutra petição que fiz,
o disse já neste caso.
E nas Décimas, de que
agora menção vos faço
qu’ainda que sejam já ditas
aqui a propósito as acho.
Se um aflito coração
das penas quiser sarar,
vá-se dos olhos sangrar
porque as suas veias são:
o chorar de uma aflição
é alívio e desafogo,
que acudir com água ao fogo
o remédio vem a ser;
assim, quem penas tiver,
dos olhos se sangre logo.
Porém, quem aflito canta
melhor seus males diverte
porque quem chora converte
sua pena em outra tanta:
quem canta os males espanta,
e quem chora os multiplica.
Logo desculpado fica
todo aquele que penar
se o remédio de cantar
aos males que tem, aplica.
Com cantar o caminhante
seu caminho vai passando;
as penas de Amor cantando
alivia o triste amante:
no mar canta o navegante,
canta no campo o Pastor,
Canta o Cativo e o Senhor
e ao som do seu grilhão
canta o preso, e da prisão
cantando abranda o rigor.
E nas quintilhas que fiz
das acções de David Santo
também nestas três o digo
e cuido qu’ando acertado.
Que estes versos e outros muitos,
que em minha memória trago
fazia, por ir do tempo
as tristes horas passando.
Mas para cantar agora,
de chorar deixo este dia,
penas suspendo esta hora,
pois as aumenta quem chora
e quem canta as alivia.
E na melhor opinião
de uma pena e um mal fero
alívio as lágrimas são;
porém, deixo-as porque não
ter na vida alívio espero.
Que no mal que estou passando,
e nas penas que padeço,
quer chorando, e não chorando,
quer cantando e não cantando,
sempre de alívio careço.
Também dizem que é alívio
companheiros nos trabalhos;
mas porém nesta opinião
sou de parecer contrário.
Que nas quintilhas que digo
em duas o digo claro,
e nesta opinião cuido
que não sou de razão falto.
Bem sei que nesta aflição
não me faltarão parceiros
mas de alívio não me são,
que não é consolação,
ter nos males companheiros.
Que o mal que outro padece
não alivia o meu mal,
que cada um lhe parece
que a sua pena carece
de outra que lhe seja igual.
Dizem que havia hũa feira
em a qual os desgraçados
trocavam uns com os outros
seus desgostos e trabalhos.
Porém ninguém os trocou
que não se achasse enganado
pois deixando os seus por graves,
levava outros mais pesados.
Mas eu, se a tal feira fora
como ficara aliviado,
se com os maiores dela
trocara os grandes que passo!
E assim nunca serei
como aquele pobre sábio,
que vendo a outro mais pobre
ficou muito consolado.
Cuentan de un sabio, q’un dia
tan pobre y misero estava,
que solo se sostentava
de una planta que cogia.
avrá otro, ( entre si dizia)
mas pobre, y misero que yó?
quando los ojos bolvió
alló la respuesta viendo
que iba otro sabio cogiendo
las hojas que el arrojó.
Agora, venho, senhor,
não me atrevo a falar claro
ao que venho vos direi
por metáforas falando.
Hoje chega a vosso porto
um navio destroçado,
pelo fado perseguido,
e perdido em um naufrágio.
Hoje busca o vosso auxílio
um Pastor, a quem o raio
da fortuna lhe deixou
tudo o que tinha, arrasado.
Hoje, busca o vosso abrigo
um passageiro roubado
pel’o tempo, que à surdina
a tudo anda roubando.
Finalmente a vossa casa
chega hoje um triste coitado
constrangido da pobreza
a buscar socorro e amparo.
Porque num instante breve
em um limitado prazo
me deixaram, a fortuna,
o tempo, a pobreza, e fado.
O roubado passageiro,
o navio destroçado,
e o abrasado Pastor,
no caminho, mar e campo.
Que campo de guerra é,
um mar proceloso e bravo,
um arriscado caminho,
o mundo enganado e tirano.
Inda que em fado falei,
inda que em fortuna falo,
crer que há fado e fortuna
é um erro muito crasso.
Que de Deus é Providência
o que nos parece acaso;
mas os seus altos juízos
ninguém pode investigá-los,
Que as bonanças e doenças,
os bens, as perdas, e danos
tudo é de Deus providência.
e não fortuna, nem fado.
Que Deus os trabalhos dá
como recto, justo e sábio
ao mau para que se emende
e ao bom para experimentá-lo.
Porque um mau quando padece
perdas, danos e trabalhos,
então é que a Deus chama
então de Deus é lembrado.
Porém, um bom quando os tem
sempre a Deus está louvando,
e como lhe vem de Deus
os tem por mimo, e regalo.
E deixando já rodeios,
e metáforas deixando,
que esmola venho pedir-vos
e agora vos digo claro.
E como de esmolas hoje
vivo, me sustento, e valho,
louvar a esmola quero
que não quero ser ingrato.
Assim que será razão
dar-lhe louvores e gabos,
inda que todos para ela
virão a ser limitados.
Porque tem tão grande força,
tanto poder, valor tanto
que até o mesmo Deus
parece deixa obrigado.
Porque quem dá ao pobre
vem a ter lucro tamanho
que por um que ao pobre dá
cobra cento de contado.
Estes, Deus lhe dá na terra
com bens mui multiplicados
e depois lhe dá no Céu
bens eternos soberanos.
Uma onzena é muito grande
sem nela intervir pecado,
o lucrar cento por um
quem ao pobre o dá a ganho.
Da esmola tem um proveito
na terra o pobre coitado:
quem lha dá tem dois proveitos
mui ricos, e belos ambos.
Tem um proveito na terra
com bens felizes, e largos
outro proveito no Céu
que nunca tem fim, nem cabo.
A esmola é hũa letra
muito segura de câmbio,
a qual Deus à vista paga
sem lhe pôr nenhuns embargos.
Que esta letra aceita Deus
e a paga de contado
pl’o rédito do pobre
com ser pagador tão fraco.
E quem para o pobre abre
a mão, bem aventurado
chama o Santo Rei David
em um de seus Santos Salmos.
Porém quem dela a desabre
digo será condenado,
que o rico avarento o foi
por não dar esmola a Lázaro.
Porque só das boas obras
vai da vida acompanhado
quem nela as faz, que o mais
é tudo nela emprestado.
E das obras todas boas
é certo, patente e claro
à esmola o lugar primeiro
com razão sempre foi dado.
Porque o jejum quebranta a carne
se do coração obrando
rompe o Céu; o dar esmola
inda tem valor mais alto.
Que, como a água apaga o fogo
apaga a esmola o pecado,
e quem sem pecado fica,
fica capaz de ser salvo.
É a esmola hũa fazenda
na qual sempre é certo o ganho
porque é fazenda de Lei
sem avarias nem danos.
É a esmola Águia Real
de voo tão remontado,
que num instante da terra
ao céu chega voando.
É a esmola uma luz viva
de lume tão limpo e claro
que diante de Deus arde
sem nunca ter fim, nem cabo.
Quem leva esta luz diante
vai seguro navegando,
e quem sem ela caminha
vai a perder-se arriscado.
Porque no mar deste mundo
há mui perigosos baixos,
e na estrada desta vida
há passos mui arriscados.
Quem levar das boas obras
diante o farol preclaro
chegará com mar bonança
seguro ao porto salvo.
Mas quem caminhar sem ele
em um caminho intrincado,
ou nele se perderá,
ou cairá num barranco.
Enfim, a esmola é
lucro, onzena, letra, câmbio,
é proveito, obrigação,
águia, luz, fazenda, ganho.
O querer contar seus frutos,
que será mais fácil acho
do mar contar as areias,
dos céus os brilhantes astros.
Contar-vos dela pudera
exemplos agora raros
pois nunca a pobre nenhum
deixastes desconsolado.
Nem para vós tais exemplos,
bem sei, não são necessários,
que às petições da pobreza
sempre dais mui bom despacho.
Se o romance, meu senhor,
vos parecer dilatado,
a mim me parece breve,
inda vou continuando.
Que enquanto falo convosco
de meus males desabafo,
porque é alívio de um triste
o falar com um avisado.
Como é falar com um néscio
pena, e tormento dobrado,
que um néscio sempre dá pena,
sempre um discreto regalo.
Do romance desculpai
tantas faltas, e erros tantos,
que bem sei que leva muitos
em seus versos mal limados.
De todos seja desculpa
ser no coração formado
sem pena, com muita pena,
sem tinta, tinta chorando.
Porque as lágrimas são tinta
que por dois ocultos canos
e os olhos vão subindo
de um coração magoado.
No coração tinta negra,
nos olhos um humor branco,
que para alívio de um triste
dele se vai lambicando.
Que num triste sempre se acha
em um tempo dois contrários:
a fortuna sempre em negro,
e a sorte sempre em branco.
Foi o coração papel,
de penas somente alvo:
pl’os trabalhos, batido,
pl’os desgostos cortado.
Selado pela fortuna
passento, pl’o que passo;
custaneiro porque as custas
em dobro tenho bem pago.
Do papel do coração
fiz na memória um traslado:
e dela neste papel,
em que agora vo-lo trago.
Este Romance, senhor,
não é para ser mostrado
e assim, tanto que o lerdes,
o fazei logo em pedaços.
Porque duas coisas tem
para ser logo rasgado:
é hũa ser tão mal feito
e outra é falar tão claro.
Que inda que seja verdade
o falá-la custa caro:
e fazer bem, e chitom
sempre foi muito louvado.
E a Deus, senhor, que vos guarde
anos felizes, e largos
cativo e criado vosso
António Serrão de Crasto.
E quando, por velho e cego,
não servir para criado,
serei vosso merceeiro,
por vós sempre a Deus rogando.
TEXTOS CONSULTADOS
Heitor Gomes Teixeira, As tábuas do painel de um auto:António Serrão de Crasto, Lisboa, Universidade Nova, 1977 (Tese de Licenciatura, de 1972)
António Serrão de Crasto, Os ratos da inquisição, seguido de A Francisco Mezas, prefácio biográfico de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Frenesi, 2004.