18-8-2015
As Viríadas do Doutor Samuda, edição crítica com introdução e notas do Prof. Doutor Manuel Curado
Simão Lopes Samuda (1681 – 1729) “apareceu-me” há coisa de 6 anos, quando estudei a biografia de Jacob de Castro Sarmento (1691 – 1762), Henrique de Castro em Portugal. De facto, os dois estiveram intimamente ligados na sua vida (bem curta a de Samuda). Voltou depois a aparecer-me ao estudar a família do avô, com o mesmo nome, especialmente da segunda mulher deste, Isabel Henriques, relaxada pela Inquisição. Foi então que vi em pormenor o processo do médico Samuda mais novo e pus uma nota sobre ele no relato pormenorizado que fiz dos processos de sua irmã Maria de Melo Rosa e de sua prima Maria Lopes de Sequeira. Dei à página o nome de “Duas jovens assassinadas pela Inquisição no início do séc. XVIII ”. De facto, considero os Inquisidores meros assassinos, sempre que pelo processo verifico que eles sabiam que os réus (ou as rés) não haviam tido quaisquer práticas judaicas. Era exactamente o caso delas. Maria de Melo Rosa, irmã de Simão Lopes Samuda, queria era namorar com o tio João Esteves Henriques (Pr. n.º 1830-1, fls. 114 r). A prima, Maria de Sequeira, devia ser meia atrasadita, pois esteve dois anos sem dizer palavra.
Há muito poucos dias vi na Internet a notícia da publicação (que me havia passado despercebida) do poema de Simão Lopes Samuda (Junior), com o título “Viríadas”, com biografia e anotações do Prof. Manuel Curado, de Braga. Fui ver o livro (só uma amostra está disponível na Internet ) e fui tirando as minhas conclusões. O Autor não cita as minhas páginas, mas não pode deixar de as ter visto, hoje todos consultam a Internet. Aliás, o próprio Google alterou o título (algo bombástico, reconheço) da minha página sobre as duas primas e pôs o nome do poeta na pesquisa que a indica. Mas o Autor, como quase todos os académicos deste País não se atreve a citar as minhas páginas, porque receiam lhes caiam aos pés as insígnias doutorais. Desde há 15 anos, só uma académica citou as minhas páginas, apesar de muitos terem andado pelo site a pescar; foi mulher corajosa, pelos vistos.
O livro está bem documentado sobre a vida do poeta e sobre o poema. Exceptua-se, porém, a estadia na Inquisição, que está mesmo muito pífia. Ora, acho eu que o personagem Simão Lopes Samuda é muito mais importante como pessoa perseguida pela Inquisição do que como poeta. Acho mesmo que o poema não vale muito. Mas outra pecha dos académicos é terem medo de dizerem mal da Inquisição, talvez por a ligarem à Igreja Católica, não sei bem. Isso é um erro, somente o Prof. José Pedro Paiva é que defende essa ideia peregrina da ligação entre os Bispos e a Inquisição. A Inquisição era uma instituição de poder, nada tinha que ver com a Religião Católica.
O erro básico é que a Universidade não se reformou desde 25 de Abril de 1974. Continua a mesma que era: Inquisição, Escravatura e Colonização Portuguesa, continuam a ser assuntos tabu.
Mas regressemos ao livro do Prof. Manuel Curado. As referências à estadia do poeta na Inquisição são extremamente reduzidas e, ainda por cima, inexactas. É pena, porque bastaria uma leitura em diagonal do Regimento e uma leitura atenta do processo, para ver o que se tinha passado. Mas o Autor, por “respeito” à Inquisição, passou à frente, omitiu mesmo a condenação à ida a tormento no potro, que é um elemento essencial para compreender o processo.
O Assento da Mesa de 24-9-1704 mandou que o réu fosse posto a tormento e que nele tivesse um trato esperto. O Assento é assinado por sete Inquisidores e deputados e é de crer que entre estes houvesse pessoas menos bárbaras do que era costume. De facto, neste caso, a ida ao tormento não era para obter confissões, mas para purgar as “faltas” do réu, uma vez que a prova era relativamente diminuta e o depoimento do médico António de Mesquita, cunhado de sua mãe, estava tocado pela contradita alegada pelo réu. Ou seja, quando o assento do tormento foi assinado, já a Inquisição tinha decidido que ele não seria relaxado.
Falar em trato esperto é linguagem da polé, não do potro. Havia, porém, tabelas de equivalência, segundo as quais ao trato esperto da polé equivaleria atar o réu no potro em oito partes e dar uma volta inteira em todas. O mais provável é que tenha partido algum dos membros e ficado com as mãos incapacitadas por vários meses, como acontecia sempre. Por isso não podia depois escrever nem mesmo para assinar o nome.
O tormento durou meia hora e, não sendo dos mais demorados, não deixou de ser uma boa dose, porque muitos tormentos limitavam-se a um quarto de hora. Ficou certamente aleijado para toda a vida e a sua morte precoce pode muito bem ter aqui a sua causa.
Não tendo falado do tormento, o Autor também não foi correcto a transcrever a abjuração e o termo de segredo. No termo de segredo diz falsamente que ele foi obrigado a assinar. Ora diz o processo n.º 2784:
Na Abjuração: “E requeiro aos Notários do Santo Ofício que disto passem instrumentos e aos que estão presentes sejam testemunhas e assinem aqui comigo, João Nunes Xavier, que o subscrevi e assinei pelo Réu de seu consentimento por não poder assinar. a) João Nunes Xavier”, mais três assinaturas.
No Termo de segredo: “(…) de que se fez este termo de mandado dos ditos senhores, que com os mesmos assinei de consentimento do Réu, por não poder assinar. a) João Nunes Xavier”, mais duas assinaturas.
O mesmo funcionário assinou pelo Réu o termo de ida e penitências. É muito provável que o réu nem estivesse presente. Afinal, o processo era totalmente secreto e não tinha qualquer consequência escrever que o réu pedira para assinarem por ele, sem o ter feito.
O Autor comete outro erro na leitura do processo de Violante Nunes Rosa (Pr. n.º 7733). Não reparou que a fls. 206 se encontra um termo de fiança apresentada pelo homem de negócio Gregório Ferreira, datado de 20 de Fevereiro de 1706, em face do qual a Ré não sairia de sua casa sem autorização da Mesa. Isto significa que não foi degradada para S. Tomé e poderá mesmo significar que partiram todos para Inglaterra pouco depois desta data.
Em conclusão, leia o livro do Prof. Manuel Curado quem quiser estudar a poesia de Simão Lopes Samuda, mas não quem queira saber da sua passagem pelos cárceres da Inquisição.
ADENDA .- 2-1-2017 - O Autor escreve ainda um outro lapso: diz que Simão Lopes Samuda, pai do médico do mesmo nome, já tinha falecido em 1667, quando na realidade terá falecido por volta de 1702. Por que o faz? Porque no verbete do processo n.º 1830, relativo à apresentação em 1667 da esposa Isabel Henriques, então com 23 anos, os Arquivos tinham a indicação errada de que era viúva. Embora fosse facílimo constatar o erro, o Autor concluiu que o marido já tinha falecido. Os Arquivos já corrigiram o lapso.