10-3-2012

 

Duas jovens assassinadas pela Inquisição no início do Séc. XVIII

 

 

 1. É muito variável o modo como a Inquisição é tratada pelos historiadores. Uns acreditam piamente que eram motivos religiosos que incitavam os inquisidores a apoquentar os presos. Outros ficam perplexos perante tal “fervor” e perguntam-se o que é que os movia. É o caso de Rafael Valladares, em A Independência de Portugal, pag. 102,  “Que interesses servia o Santo Ofício em Portugal? Esta pergunta já foi colocada em várias ocasiões, sem que ninguém tenha conseguido dar a resposta que ela merece. É certo que o tribunal actuava, em princípio, por razões de ordem religiosa, embora saibamos que o Santo Ofício era movido, também, pelas ancestrais rivalidades entre a Inquisição e a Companhia de Jesus, e ainda por conflitos de vária ordem, alguns deles de carácter social. Mas na acção inquisitorial pesaram, também, razões de alta política.

Na minha opinião, é tempo de acabar com estas fantasias. A inquisição era uma estrutura de poder e actuava de modo a alimentar o poder que exercia, mantê-lo e, se possível, aumentá-lo. Quem vem demonstrando esta faceta da Inquisição, é a Prof. Doutora Ana Isabel López-Salazar Codes nos seus livros e artigos, embora ela estude apenas a Inquisição no período da União Ibérica. Ela estuda a Inquisição nas suas relações com os outros poderes: o Rei por um lado, e o Papa e os Bispos por outro.  E descobre o truque: a Inquisição apoiava-se no Papa para desobedecer ao Rei e no Rei, para desobedecer ao Papa. Pondo em confronto os outros poderes, tinha mais possibilidades de manter ou aumentar o seu.

Inicialmente, desagradou-me este tipo de estudo da Inquisição:  e o modo como a Inquisição tratava os presos e os justiciados, não tem importância? De facto, aquela historiadora pouco se refere ao assunto. Mas ela tem razão, os presos só têm importância política porque são a razão de ser da existência da Inquisição. Têm de existir presos, têm de pagar o funcionamento da Inquisição com os seus bens, têm de ser condenados.

Esta lógica explica o tratamento pela Inquisição da questão dos cristãos novos. Não os podem expulsar do Reino, porque então a Inquisição ficaria sem objecto. Têm de arranjar maneira de os prender, de os obrigar a confessar, de os condenar para lhes apanhar os bens.

A tarefa da Inquisição era extremamente facilitada pelo estatuto da “limpeza de sangue”.  Faziam-se as contas para saber se um indivíduo tinha 1/2, 1/4 , 1/8  de cristão novo. Mas a ascendência judaica era um estigma que o acompanhava para toda a vida. Não lhes valia de nada ser baptizados, estudar o catecismo, saber as orações católicas, ir à missa nos domingos e dias santos, confessar-se e comungar pelo menos uma vez por ano. O sangue judaico que lhes corria nas veias tornava-os diferentes dos outros.

Demonstrada a qualidade de cristão novo do acusado, havia que demonstrar que ele não acreditava nos mistérios da fé católica e vivia na lei de Moisés. Nada mais fácil: os seus parentes e conhecidos tinham escapado ao patíbulo “dando nele”, isto é, acusando-o de lhes ter confessado isso mesmo.

A Inquisição portuguesa, se não fosse trágica, seria extremamente ridícula, com as acusações que faz aos cristãos novos, isto é, as confissões que põe na boca dos presos:

“estando ambos sós, entre práticas que entre si tiveram, se declararam e deram conta como criam e viviam na Lei de Moisés, para salvação das suas almas e, por observância da mesma, faziam as sobreditas cerimónias, a saber, guardavam os sábados de trabalho, vestindo camisas lavadas à sexta feira à noite, e faziam os jejuns do Dia Grande e da Rainha Ester, e estando em cada um deles sem comer nem beber, senão à noite e ceando então  cousas que não fossem de carne e não comiam a de porco, lebre, coelho, nem peixe de pele, e não passaram mais”

ou

“e estando todas três,  entre práticas que entre si tiveram,  sem que pudessem ouvir as mais mulheres que estavam na Igreja, e sendo na hora que estava a fazer o sermão do Mandato, se declararam e deram conta como criam e viviam na Lei de Moisés, para salvação das suas almas e não falaram em cerimónias, ali nem depois passaram mais, nem disseram quem as havia ensinado, nem com quem mais se comunicaram”.

A actuação da Inquisição partia de uma impossibilidade: conhecer os pensamentos ou as crenças do indivíduo. Uma impossibilidade e um absurdo, já que o pensamento é livre por natureza.  Tinham pois de conhecer as palavras e actos dos presos, mas basear condenações em tão ridículas acusações não convence ninguém.

Por isso, com o andar dos tempos, foi oleada uma perfeita máquina: o réu tinha de confessar as suas “culpas” repetindo os factos que já constam do processo. Esta era uma missão extremamente difícil, pois eram secretos os nomes dos denunciantes e os locais e datas em que as “culpas” tinham ocorrido. Mas, com alguma imaginação talvez conseguisse descobrir a identidade de alguns denunciantes. Para jogar pelo seguro, o réu acusava os seus familiares e toda a gente que conhecia, pois assim tinha mais possibilidades de acertar em quem o denunciara.

Assim funcionava a “máquina” da inquisição, assim se “fabricavam” judeus. Era um teatro, em que o réu tinha de desempenhar bem o seu papel, para conseguir salvar a sua vida. Se não o fizesse, teria o patíbulo à sua espera.  Com razão, H.P. Salomon chamou ao livro que adaptou de António José Saraiva, “The marrano factory”; a Inquisição é que fabricava os judeus e a sua crença.

Depois de todas as confissões, o réu tinha ainda de se mostrar realmente arrependido… daquilo que não fizera. Teria de se mostrar extremamente humilde, como convém a um arrependido.  Quando não matava, a Inquisição reduzia os cristãos novos a “papa”, destruía-os, se não fisicamente, pelo menos mentalmente (para além de lhes ficar com os bens).

Encontrei um narrador coevo que deu conta que era assim mesmo que as coisas se passavam.  Numa carta do Padre Miguel de Almeida a outro Padre, datada de 27-7-1744, fazendo o relato do auto da fé de 21 de Junho anterior, refere-se ele ao réu Pedro de Rates Henequim (Pr. n.º 4864, da Inq. de Lisboa), de quem fora nomeado confessor e diz: “Então retractou os seus erros, mas com mostras de pouco ou nenhum arrependimento. 2.ª vez pediu mesa depois de eu falar com ele na 6.ª feira, em que se lhe intimou, que iria ouvir a sua sentença, e seria relaxado à justiça secular: para o que o instruí no que devia fazer, palavras certas e ditas com muita humildade, e mostras de verdadeiro arrependimento. Foi à mesa no sábado de manhã, mas pelo que me disse se passara, entendi  que não fizera o seu papel como devera.” [(O sublinhado é meu). (transcrição do artigo de Maria Luisa Braga)].

O cristão novo que não representasse bem o seu papel corria perigo de vida. De nada valia estar inocente das acusações que lhe eram feitas, a culpa estava no sangue que lhe corria nas veias. Era anti-semitismo puro e duro. De facto, a Inquisição como defesa da religião vale zero. Depois de presos e humilhados, certamente que os cristãos novos não sairiam dos calabouços da Inquisição, com a crença de católicos. A única diferença entre a Inquisição e Hitler é que a primeira não matava todos os cristãos novos, contentava-se com humilhar e reduzir à miséria a maior parte. 

Desta opinião é também Fortunato de Almeida na sua História da Igreja (Vol. II, pag. 422): “A animadversão geral contra os judeus provinha menos de dissentimentos religiosos que de causas sociais, avultando entre estas a rivalidade económica e o sentimento de nacionalidade inconfundível que a gente hebreia conservou em todos os tempos Certamente ninguém atribuirá a fanatismo religioso os conflitos que ainda hoje se repetem na Rússia, na Alemanha, em França e noutros países onde são numerosos os indivíduos de crença mosaica. As causas que na actualidade subsistem devem ser as mesmas que actuavam há séculos.” Ficamos esclarecidos.

Ao contrário de Hitler, a Inquisição não podia aniquilar os cristãos novos nem sequer expulsá-los do País, porque então ficaria sem matéria prima, sem razão de ser.  Então, o que é que fazia? A sua missão era “asfixiar” toda a população dos cristãos novos, como diz Ana Salazar (2010, pag. 132). Se não eram mortos, eram reduzidos à ínfima espécie, espoliados, humilhados, destroçados.

H.P. Salomon comete porém um erro: o de dizer que os cristãos novos eram católicos crentes. Ao dizer isso, cai no mesmo logro da Inquisição, quando queria descobrir a crença dos condenados. Por natureza, o pensamento é livre, impossível de conhecer. Os cristãos novos tinham práticas de católicos, aprendiam o catecismo e frequentavam os sacramentos. É o suficiente para concluir que estavam inocentes. Saber em que é que acreditavam, não é função de nenhum tribunal. Por isso, é ridículo e absurdo chamar à Inquisição, tribunal da Fé.

No extremo oposto, estão os historiadores judaicos que vêem mártires em todos os condenados pela Inquisição. Teriam morrido defendendo as convicções tradicionais da sua raça. Também isto não é verdade. Os cristãos novos eram mortos porque não se sujeitavam à humilhação de representar convicções que não tinham, nem tinham a esperteza de representar um arrependimento inexistente; e não podiam esconder a raiva que sentiam pelo modo como estavam a ser tratados. Poderá ter havido um ou outro mártir da fé judaica, mas ainda estou para encontrar o primeiro.

A vida para eles era impossível neste País. Desde o Sec. XVI, que os cristãos novos que desejavam ser alguma coisa na vida, tiveram de fugir do País.

Por aqui se vê que é ridículo falar-se do “problema do judaísmo em Portugal”. Não havia problema nenhum. Havia uma comunidade separada, perseguida, humilhada e espoliada pela Inquisição e pelos mecanismos da “limpeza de sangue”.

Na Inquisição, os cristãos novos só tinham duas soluções: erguer a cabeça e acabar no cadafalso, ou deixarem-se humilhar, ficar reduzidos a "papa", completamente imbecilizados e ainda por cima indigentes, já que lhes tinham sido apanhados todos os bens.

É evidente que a vida da Inquisição era facilitada pelo facto de os cristãos novos, vivendo separados das comunidades de cristãos velhos (até pela limpeza de sangue), serem odiados por estes, até por, em geral, serem mais bem sucedidos na vida. Como diz a Prof. Ana Isabel Salazar (2010, pag. 136): “Los cristãos novos siempre fueron , estimados como la fuerza económica de Portugal, el sector de población más rico y dinámico”.  Os pais faziam sacrifícios para que os seus filhos frequentassem a Universidade, estes aplicavam-se para ter bons resultados. Basta ver o número de médicos entre os cristãos novos que, no entanto, não podiam ter cargos oficiais.

 

2. Já alguém defendeu que a Inquisição era muito correcta formalmente no cumprimento dos Regimentos. Isto é apenas meia verdade. Nem sempre era assim como veremos e além disso, havia muitos meios de atormentar os presos sem infringir os Regimentos. Um deles era parar o processo. Não se passava nada, durante anos. O preso ia apodrecendo no cárcere, desesperando da sua vida. Outro era a decisão de mandar o preso ao tormento.

Em muitos processos, quando o réu opta por defender-se, avolumam-se as folhas com depoimentos das testemunhas mas chega-se à sentença e aparece: “O réu apresentou a sua defesa, mas não provou nada de relevante”, deitando abaixo todos os esforços do réu para se defender.

Outra barbaridade foram as segundas prisões. Quando havia uma denúncia contra um reconciliado de uma confissão de crença judaica de um facto ocorrido depois da sua sentença, era preso de novo e recomeçava o seu calvário. São os processos numerados com “-1” na Torre do Tombo, mais de 300 na Inquisição de Lisboa. Para sair vivo da segunda prisão, era necessária uma habilidade muito maior.

Nos processos de que me vou ocupar, encontrei várias irregularidades de ordem formal.

 

3. Vou fazer um relato sumário de dois processos relativos a duas primas direitas condenadas à fogueira e queimadas nos autos de fé de 6-11-1707 e 30-6-1709, Maria Lopes ou de Sequeira e Maria de Melo Rosa. Era Inquisidor-Geral, Nuno da Cunha e Ataíde, cuja gestão  (1707-1750) se revelou particularmente feroz. Também Fortunato de Almeida no vol II o refere:  “Derivou talvez da sua (de Nuno da Cunha e Ataíde) influência a exacerbação do rigor inquisitorial no seu tempo, facto que de outra forma não sabemos explicar” e “Na Inquisição de Lisboa nota-se o máximo de rigor no segundo quartel do século XVIII. Era então inquisidor-mor em Lisboa o cardeal D. Nuno da Cunha e Ataíde, personagem que mais de uma vez revelou zelo indiscreto e critério estreito”.

 

GENEALOGIA

 

          LINHA PATERNA

 

Gaspar Vaz de Sequeira  (1649 - Pr. n.º 11299) casou com Maria Soares de Melo, a seguir com Beatriz Nunes Rosa e depois com Mónica Nogueira e teve, pelo menos, 7 filhos:

 

A)José de Sequeira (falecido) que casou com Inês Lopes e teve 2 filhos:

          1) Manuel Lopes de Sequeira (1708 – Pr. n.º 1099, da Inq. de Évora)

          2) Maria Lopes ou Maria de Sequeira (1704 – Pr. n.º 8271) 

B) Rodrigo de Sequeira (falecido – preso em 1654 com 20 anos – Pr. n.º 637) que casou com Violante Nunes Rosa (1703 – Pr. n.º 7733), de quem teve 2 filhos:

          1) Simão Lopes Samuda, médico (1703 – Pr. n.º 2784)

          2) Maria de Melo Rosa (1703 – Pr. n.º 998)

          Rodrigo de Sequeira tivera um filho ilegítimo antes do casamento, de nome Gaspar de Almeida, que na altura das prisões, já se encontrava em Inglaterra (para onde se ausentara em Agosto de 1702, segundo declarou o médico António de Mesquita, no seu processo).

C) Manuel Mendes (1654- Pr. n.º 10382)

D) Violante Nunes (1654 – Pr. n.º 11926)

E) Maria Soares de Sequeira (1654 – Pr. n.º 11922, com 11 anos!), viúva de Álvaro Machado, sem filhos

F) Helena Maria, defunta, faleceu solteira

G) André de Sequeira (1704 - Pr. n.º  9758), casado com Isabel Maria da Veiga (1703 - Pr. n.º 3039 e 1706 - 3039-1), de quem tem 4 filhos:

          1) Grácia Caetana da Veiga (1703-Pr. n.º 3054 e 1705-  3054-1)  casada com o médico Diogo Nunes Ribeiro  (1703- Pr. n.º 2367) (este tio direito de António Nunes Ribeiro Sanches – foi para Inglaterra e mudou o nome para Samuel). Tinham 2 filhos: Manuel e Isabel Maria da Veiga, ainda crianças.

          2) Teresa Eugénia de Sequeira, solteira, de 19 anos, presa 2 vezes – (1703 - Pr. n.º 2987 e 1706 - 2987-1)

 3) Francisca Soares da Veiga,  solteira, de 16 anos, presa 2 vezes, (1703 -  Pr. n.º 3258 e 1705 - 3258-1). Mais tarde, usou o nome de Francisca Micaela e casou com

João Esteves Henriques de Samuda (1703 - Pr. n.º 8337) - ver abaixo. Passaram pela Inquisição os filhos de ambos, Simão Lopes Henriques (1730 - Pr. n.º 7299), Rodrigo José da Veiga (1757 - Pr. n.º 93), Manuel Henriques de Leão (1734 - Pr. n.º 1136), Isabel da Veiga (1728 - Pr. n.º 1580), Teresa Eugénia da Veiga (1728 - Pr. n.º 3692; 1758 - Pr. n.º 3692-1), Grácia Caetana da Veiga (1757 - Pr. n.º 11730) e ainda um neto, Jerónimo Henrique de Sequeira, de 11 anos, filho de André de Sequeira (1758 - Pr. n.º 9836).

          4) Branca Soares (aleijada, segundo diz Simão Lopes Samuda)

 

          LINHA MATERNA de Maria de Melo Rosa:

 

O pai de Violante Nunes Rosa, Dr. Simão Lopes Samuda (em 1703, já falecido) enviuvou de sua mãe, Leonor da Silva e casou segunda vez com Isabel Henriques [(1667 - Pr. n.º 1830 e 1705 - 1830-1) (queimada em 12-9-1706)], de quem teve 8  filhos:

1703 –Pr. n.º  8793 - Catarina Henriques,  casada com Manuel Mendes Henriques (1704 - Pr. n.º 6784)

1703 - Pr. n.º 8247 - Guiomar Maria Henriques, que casou com o médico António de Mesquita (1703 – Pr. n.º 153), de quem teve 4 filhos:

          1712 - Pr. n.º 11493 - Rafael de Sá e Mesquita, de 18 anos,

          1712 - Pr. n.º 8144 - Isabel Henriques, de 17 anos,

          1712 - Pr. n.º 8159 - Luisa Antónia de Mesquita, de 15 anos,

          1712 - Pr. n.º 11486 - Violante Nunes Rosa, de 13 anos

1703 - Pr. n.º 9760 –Branca Lopes Henriques

1703 - Pr. n.º 8337 -  João Esteves Henriques de Samuda

1703 - Pr. n.º 7178 -  Manuel Samuda de Leão

1703 - Pr. n.º 2792 – Pedro Lopes Henriques Samuda

1703 - Pr. n.º 25 - Clara Henriques

1703 - Pr. n.º 1390 –Custódia Henriques

 

Mais uma vez se constata que a Inquisição, pelo seu modo de actuar, com o ciclo confissões-denúncias, levava a eito quase todos os membros de uma família.

Vou referir-me especialmente aos processos de Maria Lopes ou Maria de Sequeira (n.º 8271) e de sua prima Maria de Melo Rosa (n.º 998); antes, porém, referirei o do irmão desta, Simão Lopes Samuda (n.º 2784), porque penso que tenha importância para aferir o modo como os Inquisidores se comportaram com sua irmã.

As duas primas omitiram-se reciprocamente (e aos respectivos pais) quando indicaram os parentes na Genealogia. Possivelmente tinham pouca familiaridade uma com a outra. Note-se que ambas ficaram órfãs de pai na adolescência ou ainda antes.

Perante a sanha da Inquisição, o médico Simão Lopes Samuda, embora aleijado após o tormento, partiu para Inglaterra, para onde foram também sua mãe, um tio e cinco das suas tias. Mudou o nome para Isaac de Sequeira Samuda, fez amizade com Jacob de Castro Sarmento, mas morreu cedo em 1729, com 48 anos. Em Inglaterra  encontrou também o Dr. Diogo Nunes Ribeiro (que mudou o nome para Samuel)  e a esposa, sua prima Grácia Caetana da Veiga.

O Dr. António de Mesquita procurou a paz e o sossego de outra maneira, fazendo apresentar os seus quatro filhos na Inquisição ainda antes da adolescência, para que confessassem de livre vontade as convicções que mais tarde os inquisidores lhes atribuiriam se agora o não fizessem, quando fossem certamente presos.

 

 

NA INQUISIÇÃO DE LISBOA

 

SIMÃO LOPES SAMUDA (Pr. n.º 2784)

 

Nasceu em 1681. Formou-se em Medicina em Coimbra em 21 de Maio de 1702 e continuou a viver com sua mãe no Beco das Comédias, em Lisboa.

Simão e sua irmã Maria foram ambos presos em 23 de Agosto de 1703; na mesma data, foi presa a mãe de ambos, Violante Nunes Rosa (Pr. n.º 7733).

Já estavam nos Estaus as denúncias contra ele

 - do tio afim, Dr. António de Mesquita (pr. n.º 153), prestadas em 4 de Maio anterior, e referidas a seis anos antes quando estavam ambos sós ou “com companhias de que não está lembrado”;

- de um colega de estudo em Coimbra, José Nunes Chaves (pr. n.º 138) em 24 de Julho anterior e referidas a um ano e meio antes, quando estavam ambos sós, na Ponte.

Foram depois juntos ao processo apenas mais dois depoimentos:

- de Jorge Mendes Nobre (Pr. N.º 8279) advogado, prestado em  25-8-1703, referindo uma conversa de 6 anos antes, em casa da mãe de Simão (não sabe o nome deste, só diz que é médico), com Gaspar de Almeida, agora ausente no estrangeiro;

- de Francisco de Sá e Mesquita (Pr. n.º 11300), estudante em Coimbra, prestado em  3-11-1703, referindo uma conversa de  6 para 7 anos antes em Coimbra, com o tio Manuel de Samuda Leão  (Pr. n.º 7178).

São todos testemunhos singulares, porque o interveniente no terceiro depoimento está no estrangeiro e o Dr. Manuel de Samuda Leão não o denunciou no seu processo.

Na sessão de Genealogia a 25-9-1703, omitiu o seu tio José de Sequeira e os dois filhos deste. Disse que fora baptizado (na freguesia de São Julião), mas não soube dizer muito bem o Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, Credo, Mandamentos de Deus e da Santa Madre Igreja.

Foi-lhe nomeado um curador (representante legal) por ser menor de 25 anos.

Interrogatório in genere – 30-10-1703

Interrogatório in specie – 4- 2-1704

Admoestação antes do libelo – 13-2-1704

O réu negou toda a matéria da acusação e disse serem falsos todos os testemunhos.

Libelo – Acusação em 14-2-1704 – O Réu quer defender-se. É  nomeado seu procurador o Licenciado Francisco de Quintanilha. Este começa a redigir a defesa. O Réu foi sempre bom católico.

O Réu ofereceu como testemunhas diversos clérigos que disseram ter boa opinião dele e que o consideravam bom católico.

A Inquisição decide voltar a ouvir as testemunhas que tinham dado origem ao processo.  Estas confirmam os seus testemunhos.

Porém, o procurador interessou-se bastante pelo Réu. Este adivinhou quem era o primeiro acusador, seu tio afim, o Dr. António de Mesquita. Diz por contradita que este é seu inimigo e “tem tão pouco respeito a sua casa que, tendo o Réu uma escrava por nome Sebastiana, ele lha desonrou e emprenhou”. As cunhadas do António de Mesquita, tias do Réu, quiseram esconder a gravidez da escrava. Este incidente pôs todos de más relações.

Indica testemunhas destes factos para 2.ªs contraditas.  As testemunhas confirmaram que surgira inimizade entre o Dr. António de Mesquita e o Réu, depois que o primeiro seduzira a mulata escrava do Réu, fazendo com que ela fugisse de casa.

A 24 de Setembro de 1704, o processo é concluso para apreciação dos Inquisidores e deputados a Inquisição de Lisboa.  Acham que se mantêm as acusações contra o Réu, mas que o crédito da testemunha António de Mesquita ficou diminuído.  Decidem que o Réu seja posto a tormento.

26 de Setembro de 1704 – Tormento no potro. Estranhamente, não foi perguntado ao Réu se queria confessar as suas “culpas”. (n.º I do título XIV do Liv. II do Regimento de 1640).

E sendo logo o réu despojado das suas vestes que lhe podiam impedir a execução do tormento, foi lançado no potro e começado a atar com os cordéis e protestado por mim em nome dos Senhores Inquisidores e mais Ministros que foram no despacho do seu processo, que, se ele no tormento morresse, quebrasse algum membro ou perdesse algum sentido, a culpa seria sua, pois voluntariamente se expunha àquele perigo, podendo-o escusar, descarregando sua consciência e confessando suas culpas e não será dos Ministros do Santo Ofício, que, fazendo justiça, segundo mereceu da sua causa, o julgavam a tormento; e atado perfeitamente com os cordéis nas oito partes das pernas, coxas e braços, lhe foi dada uma volta inteira em cada uma das ditas partes, que é um trato experto, o que foi julgado conforme o assento que se tomou em seu processo e por estar satisfeito o mandaram os ditos senhores desatar e levar a seu cárcere. Na execução do dito tormento se gastara meia hora.”

Segue-se o Acórdão final em que é referido:  “Havendo porém respeito ao que o Réu alegou em sua defesa e contraditas, e a prova da justiça não ser bastante para pena ordinária: Mandam que o Réu Simão Lopes Samuda em pena e penitência das ditas culpas vá ao Auto publico da Fé com vela acesa na mão, e nele ouça sua sentença e faça abjuração de vehementi, suspeito na Fé, e por tal o declaram. Terá cárcere a arbítrio dos Inquisidores, onde será instruído nos Mistérios da Fé necessários para salvação da sua alma e cumprirá as mais penas e penitências espirituais que lhe forem impostas; e pague as custas:”

Figura na lista impressa do auto de fé de 19 de Outubro de 1704 sob o n.º 6.

Por não poder assinar, falta a sua assinatura na abjuração de vehementi, no termo de segredo e no termo de ida a penitências. Conta de custas: 5 427 réis.

Uma nota com assinatura ilegível: “Ouvi de confissão sacramental a Simão Lopes Samuda: foi instruído nos mistérios da nossa S.ta Fé Católica neste cárcere da Inquisição, Lisboa, Outubro 26, de 1704, a) ilegível”.

É claro que não podia assinar, depois de apertado no potro em oito pontos dos membros superiores e inferiores! Era petisco para demorar vários anos a sarar, se o conseguisse.

O desfecho deste processo é muito estranho. Normalmente, o Réu deveria ser condenado a ser queimado, pois ficou negativo até ao fim. A hipótese mais dura para os inquisidores é que eles pensaram que ele morreria em consequência do tormento. Aconteceu muitas vezes.  Mas seria demasiado cruel e desumano. O mais provável é terem pensado que ele ficaria meio inutilizado para a vida futura pelo tormento. E de facto, teve vida curta, morreu aos 48 anos. Ou então, quiseram simplesmente terminar o processo de qualquer maneira sem fazer muito escândalo; para isso, puseram-no a abjurar, sem ele nunca o ter feito. Afinal, nunca poderia assinar, ficando inutilizado das mãos com o tormento.

Outra coisa estranha é o eficiente trabalho do Procurador (defensor) muito fora do habitual nos processos inquisitoriais.

Teve algum prestígio como médico em Londres e  escreveu um poema – Viríadas – que foi completado com 50 estâncias por Jacob de Castro Sarmento e jaz inédito numa Biblioteca do Canadá. Não é obra única. Giuseppe Carlo Rossi (ver Bibliografia) escreveu um artigo sobre um longo poema dele que encontrou num manuscrito em Roma com o título "Fábula de Piramo e Tisbe feita por Simão Lopes Samuda" e na Biblioteca Nacional existe uma pequena dissertação impressa em Coimbra em 1697 com o título "Coronam physicam novem gemmis splendide imbutam".

Mudou o nome para Isaac Sequeira de Samuda. Um perito português, Dr. Augusto d’Esaguy, nem sequer o ligou ao condenado pela Inquisição no artigo publicado em O INSTITUTO n.º 87, 1934, pags. 262-269.   Ou deu conta e quis ocultar o facto, que considerou desprimoroso para o personagem?

Em 2004, Edgar Samuel inseriu um artigo com a sua biografia no Oxford Dictionary of National Biography.

Achei importante narrar a saga de Simão Lopes de Samuda, antes de contar a de sua irmã Maria de Melo Rosa que morreu na fogueira. Embora esta fosse bastante mais frágil do que seu irmão, a Inquisição usou artilharia muito mais pesada contra ela, que não lhe deixou qualquer saída. Não deverá ter sido por acaso.

 

MARIA DE MELO ROSA – (Processo n.º 998)

 

Nasceu no ano de 1682, estando junta ao processo, a fls. 46 r., a certidão do seu baptismo em 22 de Novembro de 1682. A família deveria viver razoavelmente, com os rendimentos do pai que era negociante. Sendo a única menina, terá sido mimada; várias testemunhas chamam-na “Maricota”. Aprendeu a ler e a escrever e, no processo, assina o seu nome com boa caligrafia; deverá ter sido ensinada em casa, pois não prosseguiu os estudos.

Em 22 de Agosto de 1703, a Inquisição emitiu mandados para a prisão da mãe, Violante Nunes Rosa e dos dois filhos, Simão e Maria. Esta última foi presa no dia seguinte pelo Conde de Sarzedas, familiar da Inquisição. Era uma honra nesse tempo efectuar estes serviços para o “Santo” Ofício.

À data da prisão de Maria, havia ainda apenas duas denúncias contra ela: a de seu tio por afinidade, o Dr. António de Mesquita e a de Josefa de Valença, amiga da família. Mas a Inquisição não se descuidou como no caso de seu irmão, e foi juntando mais denúncias que foram surgindo nos processos de familiares, amigos e conhecidos.

Não vale a pena referir o conteúdo das denúncias, porque nada têm a ver com a realidade daquele tempo. Eram fórmulas destinadas à representação teatral em que consistem os processos da Inquisição. Em geral, as “conversas” denunciadas são situadas em datas em que a Ré tinha 14, 15, ou 16 anos, quando certamente, tinha mais com que se preocupar do que com a religião.

A prisão dos três membros da família (o pai deveria ter falecido há bastante tempo) encontrou-os impreparados para a desgraça que os esperava. Maria deveria ser uma menina espontânea e ingénua, que terá ficado completamente desnorteada no calabouço.

 

CULPAS por ordem da transcrição do processo, com indicação do processo do denunciante, data do depoimento e outros elementos

 

Depoimento de 15 Maio de 1973 - António de Mesquita, médico, de 34 anos (tio afim) –(Pr. N.º 153)

Dep. de 14 de Julho de 1703 - Josefa de Valença, casada, de 27 anos – (Pr. N.º 547)

Dep. de 27-8-1703 - Isabel Gracia, casada, de 34 anos – (Pr. N.º 544). Chama-a Maricota.

Dep. de 23-9-1703 - Mariana de Chaves, solteira, de 30 anos –( Pr. N.º 4554). Chama-a Maricota.

Dep. de 12-11-1703 -  Francisco de Sá e Mesquita,  (Pr. N.ºs 11300 e 16326)

Dep. de 20-8-1704 - Pedro Lopes Henriques Samuda, de 25 anos (tio) –( Pr. N.º 2792)

Dep. de 18-10-1704 - Maria Soares Pereira, de 43 anos – (Pr. n.º 2795)

Dep. de 20-8-1705 -. Branca Lopes Henriques, solteira, de 18 anos  –(Pr. n.º 8339)

Dep. de 20-8-1705 - Luisa de Mesquita, solteira, de 16 anos,-( Pr. n.º 3606)

Dep. de 4-9-1705 - Violante Nunes Rosa, sua mãe – (Pr. n.º 7733)

Dep. de 17-5-1706 - Francisca Soares da Veiga, prima por parte do pai, solteira, de 19 anos, presa 2 vezes - (Pr. n.º 3258 e 3258-1)

Dep. de 14-5-1706 - Grácia Caetana da Veiga, irmã da anterior, casada com Diogo Nunes Ribeiro, médico ( Pr. n.º 3054 e 3054-1)

Dep. de 17-5-1706 - Isabel Maria da Veiga, mãe das duas anteriores,( Pr. n.º 3039 e 3039-1) casada com André de Sequeira.

Dep. de 17-5-1706 - Teresa Eugénia de Sequeira, também filha da anterior, solteira, de 19 anos (Pr. n.º 2987 e 2987-1)

Dep. de 17-6-1706 - Branca Lopes Henriques (tia), casada com Manuel de Mesas, de 28 anos – (Pr. n.º 9760)

Dep. de 29-71706 - Branca Lopes Henriques, de 19 anos, solteira, filha de Pedro Lopes Henriques e de Catarina Henriques – (Pr. n.º 21)

Dep. de 5-9-1705 – Guiomar Maria Henriques (tia ), casada com António de Mesquita, médico ( Pr. n.º 8247)

Dep. de 9-12-1705 – Catarina Henriques, casada com Manuel Mendes Henriques, (Pr- n.º

Dep. de 14-12-1705 – Manuel Mendes Henriques, marido da anterior – (Pr. n.º 6784)

Dep. de 15-3-1706 – Manuel de Samuda Leão (tio materno), médico, solteiro, de 26 anos – (Pr. n.º 7178)

Dep. de 1-10-1706 -  Clara Henriques (tia materna), solteira, de 23 anos, (Pr. n.º 25)

Dep. de 12-8-1706 -  Violante Pereira, casada com João Lopes Castanho, advogado – (Pr. n.º 2793 e 2793-1)

Dep. de 29-8-1706 -  Diogo de Chaves de Carvalho – (Pr. n.º 511), chama-a Maricota

Dep. de 28-10-1707 - Jerónima de Chaves Henriques, casada com Gaspar Lopes, médico – (Pr. n.º 8265 e 8265-1)

Dep. de 28-10-1707 – Catarina Micaela de Chaves, filha da anterior, de 15 anos , (Pr. n.º 1705)

Dep. de 28-10-1707 - Maria Soares Pereira, de 16 anos, filha de João Lopes Castanho e Violante Pereira –(Pr. n.º 667 e 667-1)

Dep. de 28-10-1707 – Catarina Maria Rosa, irmã da anterior, de 18 anos –( Pr. n.º 1704 e 1704-1)

Dep. de 31-10-1707 – Custódia Henriques, sua tia, de 18 anos  – (Pr. n.º 1390)

Dep. de 6-11-1707  – Maria Lopes ou de Siqueira (prima), de 21 anos – (Pr. n.º 8271) .– Depoimento feito no dia em que foi queimada, anulado a seguir por inválido.

 

Ainda antes de serem transcritas para o processo todas estas culpas, o processo tinha seguido os trâmites habituais.  A 20 de Setembro de 1703, o inventário onde declarou não ter quaisquer bens (fls. 55 r. e v.). A 9 de Novembro de 1703, foi nomeado  seu curador, por ter menos de 25 anos, o Licenciado João de Morais Castro, Capelão do Inquisidor-Geral, que pouco a deve ter ajudado, em vista do triste fim que teve. Na mesma data a sessão de Genealogia (fls. 58-61), onde omitiu o tio José de Sequeira (falecido) e os filhos deste. Soube dizer muito bem as orações do catecismo, disse que só sabia ler e escrever e que “não aprendeu ciência alguma”. Não sabia nem suspeitava quais as causas da sua prisão.

A 19 de Novembro de 1973, o deputado João de Sousa de Castelo Branco, fez-lhe o interrogatório in genere (fls. 63 r. e ss.). Disse que não tinha culpas que confessar e respondeu negativamente a todas as perguntas sobre crenças e práticas judaicas. Foi admoestada para confessar e identificar as pessoas com quem falara sobre a crença e as práticas judaicas. 

A 8 de Abril de 1704, o inquisidor Nuno da Cunha e de Ataíde procedeu (fls. 67 e ss.) ao interrogatório in specie, referindo os testemunhos que a acusavam, sem identificar as pessoas, nem os lugares, nem o tempo que aqueles tinham referido. Respondeu sempre que era tudo falso.

A 21 de Abril de 1704, a admoestação antes do libelo (fls. 69 r.).  Depois, o libelo ou acusação (fls. 70 a 71), de que lhe foi dada cópia. Disse a Ré que tinha defesa com que vir e pediu um Advogado ou Procurador de entre os quatro que a Inquisição de Lisboa tinha ao seu serviço (n.º II do Título VIII Liv. III, do Regimento de 1640).

A 14 de Maio de 1704, o juramento do Procurador Francisco de Quintanilha, a fls. 73.  Na mesma data, encontrou-se a Ré com o Procurador, na presença de um meirinho ou de um solicitador da Inquisição, nos termos do n.º VI do Tit. VIII Liv. III do Regimento.

Na sua defesa de fls. 75 v., o Licenciado Francisco de Quintanilha limita-se a dizer que a Ré sempre foi boa católica, frequentando os Sacramentos e praticando actos de boa cristã. Indica como testemunhas. Vários sacerdotes católicos de Lisboa.

A defesa foi recebida si et in quantum, expressão que figura no n.º IX do Tit. VIII Liv. III do Regimento.

Convocadas as testemunhas de defesa, começaram a ser interrogadas a 16 de Maio de 1704 (fls. 77).

O Padre António Antunes da Silva, Sacerdote do hábito de S. Pedro foi perguntado sobre a Ré, a respeito da sua cristandade, vida, costumes e Religião. Respondeu “que não tinha boa opinião da Ré a respeito da sua crença, porque ela e sua Mãe Violante Nunes, os mais dos dias saíam para fora de casa, e mandavam para a mesma as criadas, de que ele testemunha inferia que estariam em companhia de alguma gente de nação”.

Esta testemunha aparece misturada com as testemunhas de defesa, mas evidentemente não o é, nem foi indicada pela Ré. Apesar da má vontade evidente, não prova nada. Que a Ré falasse com cristãos novos, não provava que tivesse crenças judaicas!

O P.e Frei Pedro da Trindade, Religioso de S. Domingos, o P.e Fr. Tomás da Natividade, Religioso de S. Domingos, o P.e António Álvares de Faria, cura em S. Nicolau, disseram todos que tinham a Ré em conta de boa cristã, e que frequentava as Igrejas onde recebia os sacramentos.

Não vieram depor no processo todos os sete padres indicados pela Ré. Faltam o P.e António Sobral de São Roque, o P.e António Vidal, da Companhia, e os P.es Francisco Antunes e Clemente de Oliveira, residentes no Beco das Comédias.

A 30 de Maio de 1704, os Inquisidores notificaram a Ré para, com o seu Procurador, formar interrogatórios (fls. 82), isto é, indicar as perguntas a fazer às testemunhas de acusação.

Os Inquisidores mandaram repetir a prova, voltando a interrogar as testemunhas António de Mesquita, Isabel Gracia, Francisco de Sá e Mesquita, Josefa de Valença e Mariana de Chaves. Estas testemunhas foram interrogadas no decorrer do mês de Junho de 1704 e, como é evidente, confirmaram todas as declarações iniciais, nem podiam desdizer-se.

A 20 de Setembro de 1704, é nomeado à Ré um novo curador, o Licenciado João Cardoso de Andrade, por impedimento do anterior. Não diz o processo qual o impedimento, mas não é difícil imaginar que o capelão do Inquisidor-Geral estava a ver o caso mal parado e quis pôr-se de fora.

A Maria de Melo Rosa não era desprovida e já teria concluído que, por aquele caminho, não ia longe. Possivelmente aconselhada pelo novo curador, decidiu passar à confissão (fls. 98 e ss.). Fê-lo porém, de um modo muito leve.  Em 20 de Setembro de 1704, pediu audiência para dizer que de facto acreditava na Lei de Moisés e sobre isso falara com certas pessoas:

a) Uma Ana Marques, de que não sabe a naturalidade ou o nome dos pais e uma filha desta, Isabel de Mira; e disse que ambas se ausentaram de Lisboa não sabe para onde. Trata-se com toda a evidência de personagens inventadas;

b) Clara de Chaves (Pr. n.º 4544), do Porto, casada com Martinho Mascarenhas (Pr. n,.º 8811- foi relaxado, isto é queimado). O processo dela já estava findo. 

c) Isabel Gracia (Pr. n.º 544), casada com José Nunes Chaves (Pr. n.º 138). O processo dela já estava findo. 

d) Leonor Chaves (Pr. n.º 2382) , filha dos anteriores, 14 anos . O processo já estava findo.

e) Josefa de Valença, natural do Porto. Estava nessa altura, presa na Inquisição.

Disse que não se lembrava de mais ninguém.

O Inquisidor mostrou-se satisfeito por ela ter começado a sua confissão. Incitou-a a tentar lembrar-se de outras ocasiões e de outras pessoas com quem tinha falado na crença judaica.

No dia seguinte, dia 21 de Setembro de 1704, fez-se a sessão de crença, prevista no n.º XI do Tit. VII Liv. II do Regimento de 1640.  No final da crença diz “que de presente crê na Lei de Cristo Senhor nosso, e que nela espera salvar-se”. Porém, diz a acta “ Foi-lhe dito que suas confissões têm ainda falso e diminuições quais são não dizer de todas as pessoas com quem comunicava a crença da Lei de Moisés de que há informação nesta Mesa.”

A pobre moça tinha ficado confundida por ter feito aquela pequena confissão, como arranjaria coragem de denunciar todos os parentes, conhecidos e amigos?

Aqui o processo pára. A Ré não pede audiência, os Inquisidores não a convocam. Corre o risco de ficar doida na cadeia (se é que não ficou mesmo, como veremos mais tarde).

Sente-se mal por ter feito aquelas denúncias, apesar de inofensivas para os denunciados e está arrependida de as ter feito. Os Inquisidores estão indiferentes e nada fazem, de 21-9-1704 a 10-10-1707 – mais de três anos.  Está a apodrecer na cadeia e sabem que ela acabará por cair.

Em 10 de Outubro de 1707 ela comete a imprudência que lhe vai custar a vida: declara que quer revogar a confissão que fez na Mesa.  No “Termo de como se quer revogar” (fls. 105 r.), declara “que não tem culpas que confessar, antes se revoga das que tem confessado”.

Em 16-1-1708, é-lhe nomeado novo curador, o Licenciado Patrício da Costa Barreto, por impedimento do anterior (fls. 106 r.).

A 16 de Fevereiro de  1708, o (agora) Inquisidor João de Sousa de Castelo Branco chama-a para uma sessão a que chamou “Revogação”.  Tenta dissuadi-la da revogação, diz-lhe praticamente que ela corre perigo de vida, mas ela repete que não tem culpas que confessar e que, por isso, revoga as que antes confessou.  Uma semana depois, a 23 de Fevereiro, um “Exame sobre a revogação”, em que ela declara “ser falsa a sua confissão e somente verdade que sempre vivera na Religião Católica” (fls. 111 r.); disse que se denunciara aquelas pessoas, “seria por estar louca e que tem em boa conta as ditas pessoas”. Pergunta-lhe o Inquisidor se teve algum achaque na cadeia que lhe perturbasse a razão; ela responde “que lhe não lembra tivesse queixas na saúde”. Diz, porém, que no cárcere teve uma doença grave, foi sangrada e poderia dar-se que tivesse ficado com alguma lesão no juízo e por isso é que teria feito aquela falsa confissão.

A 4 de Março, 2.º exame sobre a revogação (fls. 115) em que ela manteve a mesma posição. Diz que quando fez aquelas confissões, “estava tonta e mais que tonta”; que não conhece (pessoalmente) as pessoas que denunciou e que nunca conversara com elas.  Repetiu que, quando fez aquela confissão, estava louca.

A 13 de Março o interrogatório in specie (fls. 119 r.), onde ela se limita a declarar que não tem quaisquer culpas que confessar. A 23 de Abril a “Admoestação antes do libelo” (fls. 121 r.). Segue-se o libelo do Promotor (fls. 122). Foi lido o libelo à Ré e perguntado se tem “defesa com que vir e se, para a formar” quer estar com seu procurador”. Respondeu que “não tinha defesa com que vir, nem que para estar com procurador”. Apesar desta resposta, os Inquisidores decidem mandar recado ao Procurador para estar com a Ré, o que acontece a 23 de Abril seguinte.  A 24, o Procurador escreve um pequeno arrazoado no processo em que repete as afirmações da Ré, de que estava louca quando fez aquela confissão e que, portanto, esta não é válida. A defesa é recebida si et in quantum (fls. 128 v.).

Decorre a seguir no processo, de fls. 129 r. a 138 v. a chamada prova de capacidade. O título XVII do Livro II do Regimento trata “Dos presos que endoudecerem no cárcere” e manda averiguar se a doudice é verdadeira ou fingida. No primeiro caso, o processo pára até que o Réu se cure ou morra. No segundo, prossegue normalmente.

Foram interrogados cinco guardas dos cárceres. O primeiro disse em 25 de Abril de 1708:

 “…e nesta sua fingida loucura, chamava pelo Deus de Israel e pela Santa Rainha Ester,e dizia que não queria comer, porque estava muito confortada, no que continuou alguns meses; mas neste mesmo tempo, fazia a sua pauta com toda a advertência; e se por descuido se lhe deixava de dar alguma cousa das que pedia, tinha todo o cuidado para dizer que lha dessem;  e depois começou a deixar a dita ficção, falando muito a propósito, não chamando pelo Deus de Israel, e comendo a suas horas, e mostrando toda a capacidade, e nessa forma se acha de presente. E que a ré é muito teimosa e que tem arrependimento de haver feito alguma declaração nessa Mesa, quis usar da dita ficção; e que não tem nem teve lesão alguma no juízo.

Outros três guardas repetiram praticamente este depoimento. O último guarda concluiu: “

 “Entende que a loucura foi fingida e com arrependimento de ter dito alguma coisa na mesa.

A 15 de Junho, foi ouvido o Dr. Manuel de Pina Coutinho, Cirurgião Mor e médico dos cárceres.  Perguntado se a Ré tem capacidade de se haver com sua causa, ou se pelo contrário mostra ter alguma lesão no juízo, disse:  “no final de 1704 e princípio de 1705, foi chamado para ver a Ré, que estava com alguns delírios…. Ultimamente veio a entender que a Ré estava boa e fingia os ditos delírios. Está sã e bem disposta sem lesão alguma no juizo e capaz de correr com sua causa. Foi loucura fingida e não verdadeira.”

No mesmo dia, foi ouvido o Dr. Manuel da Costa, médico dos cárceres, que declarou:  “ a ré queria mostrar alguma variedade no juízo; deram-se-lhe remédios e livrou-se da dita variedade. Não tem nem teve lesão alguma no juízo. Pode correr com sua causa, no que toca a Ré ter toda a capacidade necessária para isso. “

Os Inquisidores tinham assim o caminho livre para prosseguir com o processo. A 2 de Maio, citam a Ré com um novo libelo e perguntam-lhe se quer reunir com o seu Procurador. Ela responde afirmativamente e reúne-se com o Procurador no mesmo dia (fls. 140),

Ouvida a leitura do libelo e recebida cópia dele, o Procurador escreveu algumas linhas, solicitando que às testemunhas sejam perguntados de novo os pormenores dos seus depoimentos, lugares e tempos em que aconteceram os factos.  Os Inquisidores dão o respectivo despacho nesse sentido em 4 de Maio (fls. 144 v.).

Os depoimentos estendem-se de 4 de Maio a 3 de Julho de 1708, e de fls. 145 a 200 v. Como é evidente, nenhuma testemunha se desdisse, era essa a regra do jogo, que apenas a pobre Ré não conhecia. Confirmaram inteiramente os depoimentos iniciais. Aliás, toda a defesa, apesar do tempo e papel que se gastou, de nada valeu para os  Inquisidores que escreveram na sentença:  “ e ratificadas e repetidas as testemunhas da Justiça, na forma de Direito, se lhe fez publicação de seus ditos, conforme o estilo do Santo Ofício, a que veio com contraditas, que também lhe foram recebidas e não provou cousa relevante.” É o mesmo que dizer: não serviu de nada.

A 4 de Julho, o Promotor Público requereu a publicação da prova da justiça. Esta foi lida à Ré que recebeu cópia e declarou que tinha contraditas para apresentar, pelo que se reuniu com o seu procurador no dia 5 de Julho (fls. 209). A fls. 216 r. e v., o Procurador alega que várias testemunhas (cujo nome a Ré adivinhou) são inimigas da Ré.

Foram indicadas testemunhas para provar as contraditas.

A 6 de Julho, a Ré pediu de novo para estar com o seu Procurador e este veio a fls. 221, indicar como inimigos da Ré os seus tios Dr. António de Mesquita e Pedro Lopes Henriques.

Os depoimentos são prestados rapidamente até 20 de Julho, de fls. 224 a 246. Como é evidente, eram tantos os testemunhos contra a Ré que, mesmo que conseguisse contraditar alguns (o que não aconteceu) ficariam ainda muitos para a acusarem.

De fls. 246 a 249, está a 1.ª sessão apertada de 21 de Julho. Suponho que “apertada”, quererá dizer muito em cima da hora. Diz-lhe o Inquisidor João de Sousa de Castelo Branco que ela tem 29 testemunhos da Justiça contra si, pergunta-lhe se quer confessar. Ela responde que não tem culpas que confessar. Também não quer estar de novo com o seu Procurador. Perguntada, porém, se sabe os termos em que se encontra o seu processo, respondeu que não.  Depois de um grande arrazoado de três páginas, diz-lhe o Inquisidor “que, sem embargo do que tem alegado em sua defesa e contraditas, está o despacho do seu processo mui arriscado e ela Ré em mui perigoso estado”.

 

No dia 24 de Julho, a 2.ª sessão apertada (fls. 250 a 252), que é praticamente igual à primeira.

No dia 29 de Julho, pediu para estar de novo com o Procurador e este veio com mais duas contraditas indicando dois inimigos da Ré (fls. 254). Indicou testemunhas para estas terceiras contraditas.  Estas só depõem a 19 e 25 de Janeiro de 1709 (fls 257 a 261) e não confirmam as alegadas inimizades.

A 26 de Fevereiro, o escrivão faz concluso o processo (fls.262).

Na mesma data, vai a votos de todos os Inquisidores e Deputados que, por unanimidade (fls- 263 a 264), “atendendo ao número e qualidade das testemunhas, a Ré, como hereje apóstata da nossa S. Fé Católica, convicta, negativa revogante e pertinaz devia ser entregue e relaxada à Justiça secular, servatis servandis, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e confiscação de todos os seus bens para o Fisco e Câmara Real e nas mais penas de Direito.

Estava dada a sentença de morte. O processo foi em seguida a visto do Conselho Geral da Inquisição, “em presença de Sua Ill.ma” (fls. 266), em 22 de Março de 1709, e este confirmou a sentença.

A 14 de Junho de 1709, foi-lhe atribuído novo procurador, o Licenciado Jacinto Robalo Freire, por impedimento do anterior.  Certamente, o Licenciado Francisco de Quintanilha quis livrar-se da função de defensor, porque suspeitava que nada mais havia a fazer. Na mesma data de 14 de Junho, esteve com o Procurador (fls. 270). O escrivão enganou-se e pôs o nome da mãe, Violante Nunes Rosa, em vez do nome da Ré, Maria de Melo Rosa.

As diligências que estão no processo até ao auto de fé do dia 30 de Junho têm todo o aspecto de se destinarem a enganar a Ré que não saberia estar já condenada.  A fls. 288, há um auto de notificação que não está assinado pela Ré,  onde se diz: “com grande reserva lhe foi dito que o seu processo fora visto por pessoas doutas e de sã consciência e tementes a Deus e nele se tinha tomado assento que ela era herege apóstata de nossa Santa Fé Católica, e por herege  ficta, falsa, simulada, confitente diminuta, revogante e impenitente fora julgada e pronunciada”. É a primeira notificação prevista no n.º I, Tit. XV, Liv. II do Regimento e que de facto diz que deve ser lavrada em auto pelo Notário, mas não dispensa a assinatura do réu notificado. Tal como está, soa a falso.

Sucedem-se as notificações de mais culpas, a declaração da Ré que quer defesa, algumas linhas do Procurador a pedir audição de novas testemunhas e os depoimentos destas:

 

Fls. 281 – 15-6-1709 - Cópia de mais provas da justiça e requerimento do Procurador

Fls. 282 – 15-6-1709 - Reperguntadas as testemunhas

Fls. 285 – 15-6-1709 - Requerimento do Promotor antes da publicação de mais prova

Fls. 286 - Publicação de mais prova da justiça

Fls. 289 – 21-6-1709 – Citação de mais provas da justiça

Fls. 291 – Cópia de mais provas da justiça e requerimento do Procurador

Fls. 293 – 21-6-1709 - Reperguntadas as testemunhas

Fls. 299 – (sem data) -  Publicação de mais provas da justiça

Fls. 300 – Quando a Ré é notificada de mais estas “provas da justiça”, “perguntada se tem mais contraditas com que vir e para formar quer estar com seu procurador, disse que tudo era um engano e que não tinha mais contraditas com que vir”.

Acabam aqui as diligências no processo. Os Inquisidores fizeram um jogo sádico e cruel para esconder da Ré o facto de já estar condenada. Quando esta deu conta da sua situação, já estava no Rossio para o auto de fé em 30 de Junho de 1709.

 

No processo segue-se o Acórdão final (fls. 302 a 306 v.) que não traz novidades: havia testemunhos contra ela; iniciou a sua confissão mas depois revogou-a; não provou que os testemunhos fossem falsos; tem de ser condenada, com a hipócrita e super-ridícula fórmula usada pela Inquisição “ e por hereje e apóstata da nossa Santa Fé Católica, convicta, ficta, falsa, simulada, confitente diminuta, revogante e pertinaz, a condenam e relaxam à Justiça secular, a quem pedem com muita instância se haja com ela benigna e piedosamente, e não proceda a pena de morte e efusão de sangue”. Assinam Paulo Afonso de Albuquerque e João de Sousa de Castelo Branco.  

Ficam muitas dúvidas sobre a sanidade mental da Ré, mas se aceitassem que ela estava doida, os Inquisidores não a poderiam condenar.  

Pode também ter acontecido que ela se tivesse convencido, depois de o irmão ter sido libertado, que ela poderia ter a mesma sorte. Se o pensou, infelizmente, estava enganada.

 

 

MARIA LOPES ou MARIA DE SEQUEIRA – (Processo n.º 8271)

 

Nasceu em 1681 e foi baptizada a 13 de Outubro desse ano (fls. 43 v.). O seu pai deverá ter falecido no início da adolescência. A sua família deveria ter menos posses que a de sua prima Maria de Melo Rosa. Aprendeu a ler e escrever: assina o seu nome de modo escorreito; mas por vezes, escreve Maira em vez de Maria.

O mandado de prisão foi emitido a 3 de Outubro de 1704 e logo no dia seguinte foi prendê-la o familiar Manuel Lopes Lucena, que a entregou nos cárceres da Inquisição.

À data da prisão, havia cinco denúncias contra ela. No final, foram 24. Era praticamente impossível acertar nelas todas e fazer outras tantas confissões.

De fls. 3 a fls. 38 v., está a transcrição das culpas da Ré, dos processos onde elas foram delatadas:

Depoimento de 6-8-1703 – Josefa de Valença (Pr. n.º 547), casada com Leandro Cardoso, ourives

Dep. de 4-9-1803 – Ana da Fonseca (Pr. n.º 5933 e 5933-1), casada com Dionísio Nunes, ourives

Dep. de 18-9-1703 – Luis Nunes da Costa (Pr. n.º 537), tratante

Dep.de 4-8-1704 – Pedro Lopes Henriques Samuda  (Pr. n.º 2792)

Dep. de de 1-9-1704 – José de Chaves (Pr. n.º 4700 e 4700-1), solteiro, filho de Martinho Mascarenhas

Dep. de 5-10-1704 – Branca Cardosa (Pr. n.º 9435), casada com Pedro Alvares

Dep. de 24-11-1704 – Inês da Fonseca (Pr. n.º 3034), casada com Luis Nunes da Costa

Dep. de 16-12-1704 – Clara Rodrigues de Chaves (Pr. n.º 4544), casada com Martinho Mascarenhas

Dep. de 26-2-1705 – Manuel de Samuda Leão (Pr. n.º 7178), médico

Dep. de 14-5-1706 – Diogo Nunes Ribeiro (Pr. n.º 2367), médico

Dep. de 22-9-1706 – Graça Caetana da Veiga (Pr. n.º 3054 e 3054-1), casada com o anterior

Dep. de 14-8-1706 – Filipa Garcia (Pr. n.º 11846) casada com Domingos da Costa de Miranda

Dep. de 9-9-1706 – Francisca Xaviela (Pr. n.º 4263), casada com António de Santiago

Dep. de 9-9-1706 – Josefa Pimentel (Pr. n.º 3036), viúva de Álvaro Vaz

Dep. de 23-9-1706 – Filipa da Costa (Pr. n.º 2133) casada com Dionísio Pimentel

Dep. de 23-4-1706 – Angela Pimentel (Pr. n.º 9767), solteira, filha de Eliseu Pimentel

Dep. de 27-4-1706 – André de Sequeira (Pr. n.º 9758), mercador

Dep. de 19-5-1706 – Francisca Soares da Veiga (Pr. n.º 3258 e 3258-1), solteira filha do anterior

Dep. de 19-5-1706 – Isabel Maria da Veiga (Pr. n.º 3039 e 3039-1), casada com André de Sequeira

Dep. de 19-5-1706 – Teresa Eugénia de Sequeira (Pr. n.º 2987 e 2987-1), solteira, filha da anterior

Dep. de 30-8-1706 – Violante Pereira (2973 e 2973-1), casada com João Lopes Castanho, advogado

Dep. de 1-10-1706 – Clara Henriques (Pr. n.º 25), solteira, filha de Simão Lopes Samuda (falecido)

Dep. de 14-7-1706 – Isabel da Paz Pereira (Inq. de Coimbra-não aparece o processo) , viúva de António Alves

Dep. de 27-10-1707 – Maria Soares Pereira (Pr. n.º 667 e 667-1), filha de João Lopes Castanho, advogado

A fls 40, está o Inventário datado de 27-1-1706, onde a Ré declarou não ter quaisquer bens.

Mas, se a ré foi presa em 4-10-1704, que esteve a fazer até essa data? Uma pequena nota, não datada nem assinada no canto superior esquerdo da mesma página, esclarece o mistério: “Esta presa Maria Lopes esteve impedida por achaques todo o tempo que vai da sua prisão, e teve que se lhe fazer a sessão de inventário, e por esta causa se não continuou com o seu processo (prossegue com grafia diferente) e o achaque foi estar teimosa sem falar palavra alguma, nem ainda às companheiras do cárcere, sem ter lesão no juízo.”

Isto é, como protesto contra a sua prisão, decidiu ela não falar com ninguém durante dois anos! De facto, a sessão de Genealogia (fls. 41) só foi feita a 22 de Novembro de 1706. Nela omitiu seu irmão, dizendo que não tinha irmãos nem irmãs e omitiu também o seu tio (falecido) Rodrigo de Sequeira e os filhos deste.  Soube bem as orações do catecismo, o Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, o Credo, os Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja.

À pergunta se sabia as causas da sua prisão, respondeu que não. O Inquisidor disse-lhe então que a Inquisição tinha informação de muitas culpas dela por declarações respeitantes à Fé.

A fls. 44, está a nomeação de um curador, visto a Ré ser menor de 25 anos; prestou para isso juramento o Licenciado Manuel da Costa de Oliveira.

Seguem-se os interrogatórios in genere (fls. 45) em 4 de Janeiro de 1707 e in specie (fls. 48) no dia 10 do mesmo mês, que são praticamente idênticos. A Ré começou por dizer que não tinha culpas que confessar e depois respondeu negativamente a todas as outras perguntas.

O comportamento dela é a prova mais evidente e clara que nunca havia falado em religião judaica com ninguém. Ela não fazia a menor ideia de como funcionava a Inquisição e certamente não imaginava que tantos dos seus familiares, amigos e conhecidos a tinham denunciado, inventando o que ela nunca tinha dito.

A fls. 55, a admoestação antes do libelo (13-1-1707). Depois o libelo (fls. 56 a 60), com as suas culpas, omitindo o nome da testemunha, o tempo e o local em que se teriam passado os factos ou conversas relatados. Foi-lhe dada cópia e perguntado se tinha defesa com que vir e queria que lhe fosse indicado um procurador dos quatro que estavam ao serviço da Inquisição de Lisboa. Respondeu afirmativamente e foi nomeado para o efeito o Licenciado Manuel Nunes da Costa  (juramento a 14 de Janeiro a fls. 62). Esteve com o procurador nos dias 17 e 18 de Janeiro de 1707, “em presença de Notário ou de algum oficial do Santo Ofício que os Inquisidores ordenarem” (n.º II, Tit. IX. do Liv. I do Regimento).

No traslado do libelo, escreveu o Procurador algumas linhas de defesa e indicou testemunhas (três senhoras).

As testemunhas começaram a ser ouvidas a 15 de Abril. Todas disseram que tinham a Ré em conta de boa cristã, que frequentava as Igrejas, recebia os Sacramentos e praticava obras de cristã.

Entretanto a 11 de Março, foi substituído o Procurador: por impedimento do primeiro, foi nomeado o Licenciado Francisco de Quintanilha. Foi notificada (fls. 74) para formar interrogatórios, isto é, indicar as perguntas que queria se fizessem às testemunhas de acusação quando fossem reperguntadas. Para isso esteve com o Procurador no dia 12 de Março. Estas perguntas, sem grande importância, estão indicadas a fls 79.

Este tipo de defesa, na Inquisição, era totalmente contraproducente. É evidente que as testemunhas não se iriam desdizer; pelo contrário, confirmavam todos os dados que tinham dito da primeira vez (a menos que se enganassem, o que também acontecia).  A defesa acabava por dar mais trunfos à Inquisição. 

Os Inquisidores tinham ainda o cuidado de perguntar às testemunhas se eram inimigos da Ré, pois se o fossem, poderia haver lugar a contraditas. Nenhuma testemunha se declarou como tal.

Estes interrogatórios têm pouco ou nenhum interesse como documentos, e estendem-se de fls. 80 a 136, no período desde 21 de Março ao início de Maio de 1707. Incluem-se duas comissões (deprecadas, diríamos hoje) para reperguntar testemunhas em Tijolo-Ourém e na Inquisição de Coimbra.

Nesta época nota-se na Inquisição a preocupação de escrever muito e depressa, depoimentos sobre depoimentos, todos orientados para colocar os réus em dificuldade. Como se o tamanho dos processos pudesse justificar a total ausência de qualquer justiça!

A 13 de Maio de 1707, o Promotor requer a “publicação das provas da justiça” – o resumo dos depoimentos omitindo sempre os nomes, o tempo e o local – que se inicia a fls. 138.  No final, interrogada (fls. 141 v.), a Ré diz que é tudo falso.  Disse depois que tinha contraditas com que vir e que queria estar com o seu Procurador.

Esteve com o Procurador no dia 16 de Maio.

A seguir ao traslado das culpas da justiça, o Procurador requer que lhe sejam indicados os locais em que lhe dão as culpas. Responde-se-lhe que são todas na cidade de Lisboa, resposta muito evasiva, porque Lisboa era já muito grande nessa altura.

A fls. 149, vem o Procurador com as contraditas:

1 – As irmãs Francisca Soares da Veiga, Teresa Eugénia de Sequeira e Grácia Caetana da Veiga são suas inimigas;

2 – Que também é sua inimiga Clara de Chaves;

3 – Que também são suas inimigas as irmãs de D. Clara de Chaves;

4 – Que são suas inimigas suas primas, filhas de Isabel Henriques;

5 – Que também é seu inimigo o irmão destas, Manuel Samuda de Leão;

6 – Que também são suas inimigas Maricota (sic) de Melo e a mãe desta, Violante Nunes Rosa.

Indicou a seguir as testemunhas desta alegação (fls. 151 a 152).

O interrogatório das testemunhas indicou algumas “diferenças” entre a Ré e algumas delas, mas nada de relevante. Por outro lado, os Inquisidores tomaram a iniciativa de ouvir pessoas que testemunharam o bom crédito das testemunhas.

A 12 de Setembro de 1707, teve lugar a 1.ª sessão apertada (fls. 188 e ss.) em que a Ré voltou a declarar que não tinha culpas que confessar. Lembra-se do que lhe disseram acerca da sua prisão e culpas. Lembra-se das admoestações que lhe têm feito. Reconhece que lhe deram um Curador para a aconselhar e um Procurador para a defender.  Que não lhe faltaram com qualquer coisa necessária para a sua defesa. Disse que não tem mais que alegar e que não quer estar com seu Procurador. Lembra-se de lhe haverem publicado 23 faltas de judaísmo. Mas não sabe em que termos está o seu processo.

No dia seguinte, a 2.ª sessão apertada (fls. 191 e ss.). Disse de novo que não tinha culpas que confessar e que se lembra da sessão anterior. Lembra-se que se lhe tinha dito o perigoso estado em que estava.  Lembra-se das admoestações que se lhe fez.  Repete que não tem culpas que confessar; que não tem de examinar a sua consciência. Não tem mais que alegar e também não quer estar com o Procurador.

No dia 12 de Outubro de 1707, vão os autos a vista a todos os Inquisidores e Deputados da Inquisição de Lisboa, que aprovam por unanimidade este assento fatal para a Ré (fls. 195, r. e v.):

 

Foram vistos na Mesa do Santo Ofício desta Inquisição de Lisboa em os 12 dias do mês de Outubro de 1707, estes autos e culpas de Maria Lopes de Siqueira x.n., solteira, filha de Joseph de Siqueira, mercador, na. e moradora desta Cidade, Ré presa neles conteúda, sendo primeiro chamada, ouvida e admoestada. E pareceu a todos os votos que a Ré, pela prova da Justiça,  estava legitimamente convicta no crime de heresia e apostasia de judaísmo por que foi presa e acusada, visto deporem contra ela vinte e três testemunhas de culpas de declaração de judaísmo em forma, todas de bom crédito, igual qualidade e reperguntadas pelos interrogatórios  que a Ré formou pelo seu Procurador, entre as quais se acham seus tios André de Siqueira, 15.ª testemunha, suas Primas direitas, Francisca Soares, 16.ª, Teresa Eugénia, 18.ª, Gracia Caetana, 22.ª e sua tia Isabel Maria, 17.ª, e ainda que algumas das testemunhas se repitam com menos lembrança a respeito do tempo, não ficam de menos crédito, suposto conferirem nas circunstâncias mais essenciais e também se não debilitam com as contraditas da Ré, porquanto alegando no 1.º artigo que Francisca Soares sua Prima, 16.ª tt.ª, suas Irmãs, seus Pais, eram seus inimigos porque atirando-lhe a dita Francisca Soares com um púcaro de água, ela lhe quisera dar umas pancadas e por esta causa ficaram todas suas inimigas; depõem as testemunhas perguntadas a este artigo de aud.º à Ré, mas que esta se tratava sempre com as contraditadas e assim ficam estas com mais crédito, e contraditando outrossim a Josefa de Valença, 1.ª, José de Chaves, 4.ª, e Clara Rodrigues, 8.ª, porque a Ré as não recebia em sua casa com muito agrado e porque ela as arremedava, depõem as testemunhas que não sabem coisa alguma do conteúdo nos artigos e o mesmo dizem a respeito do alegado no 6.º artigo em que a Ré diz que Violante Nunes, filha do médico Samuda era sua inimiga, porque indo uma vez a sua casa  uns parentes seus fizeram menos caso da Ré; e assim que com as ditas contraditas se não debilita a prova da Justiça, antes com elas e com as diligências que ex officio se fizeram, ficam de maior crédito, visto constar que a Ré não teve dúvidas ou diferenças com pessoas algumas de nação, e que as testemunhas da Justiça são pessoas verdadeiras; e que assim, atendendo a o número e qualidade das mesmas serem 23 em que entram cinco com parentesco próximo com a Ré, devia esta como hereje apóstata de nossa Santa fé Católica, convicta, negativa e pertinaz ser entregue e relaxada à Justiça secular, servatis servandis, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e confiscação de todos seus bens para o Fisco e Câmara Real e nas mais penas de Direito e que devia ser havida por hereje pela mais concludente provada Justiça do mês de Maio de 1701 em diante mas que antes de se executar este assento seja com os autos levado ao Conselho Geral na forma do Regimento e assistiu a este despacho pelo Ordinário de sua comissão, o Inquisidor mais antigo.

 

 

Paulo Afonso de Albuquerque

Jerónimo Vaz Vieira

Afonso Manuel Menezes

Frei António Pacheco

Martim Monteiro de Azevedo

 

João de Sousa de Castelo Branco

Dom Álvaro Pires de Castro

Francisco Carneiro de Figueirpa

Miguel Barbosa Carneiro

 

 

 

 

É uma condenação à morte, pura e simples.

Os autos sobem ao Conselho Geral que, “na presença de Sua  Ill.ma, (...) confirmam sua sentença por seus fundamentos e pelo mais dos Autos. Mandam que assim se cumpra e dê execução. Lisboa, 21 de Outubro de 1707.

 

 

 

João Carneiro de Morais

Pedro Hasse de Belém

João Duarte Ribeiro

Fr. Domingos da Encarnação

 

João Moniz da Silva

António Monteiro Paim

Luis Alves da Rocha

 

 

 

 

É o assento de fls. 197, a que se segue, como processo de sua prima, um auto de notificação que não tem a assinatura da Ré, soando bastante a falso. Mais: o auto termina dizendo “Manuel Rodrigues Ramos o escrevi”. Falso: a letra não é a do Notário Manuel Rodrigues Ramos, como se vê pela assinatura deste noutros locais.

No dia 1 de Novembro, é citada de que existe mais uma testemunha contra ela: é Maria Soares Pereira que está presa nos cárceres da Inquisição (Depoimento de 27 de Outubro de 1707, a fls. 38). Seguem-se as formalidades, todas datadas de 1 de Novembro:  Citação de mais prova (fls. 199), estância com procurador (fls. 200), citação anónima da culpa e defesa do procurador (fls. 201) que pede seja reperguntada a testemunha, o que acontece no dia seguinte (fls. 202). Ainda no dia 2, requerimento do promotor para publicação (fls. 204), publicação de mais prova da justiça (fls. 205) e notificação à Ré. Esta declara mais uma vez que é tudo falso, que não tinha mais contraditas com que vir para estar com o seu Procurador.

Esta encenação sugere, como no caso de Maria de Melo Rosa, que os Inquisidores a queriam entreter até ao dia do auto de fé, a 6 de Novembro. O processo não diz o que se passou, mas é fácil adivinhar que alguém lhe terá dito que ela estava condenada à morte. Ela caiu em si e ficou desesperada, porque de facto, queria viver e não morrer.

Sem mais, aparece-nos a fls. 207 uma “Confissão de mãos atadas”, datada de 5 de Novembro de 1707. Está de facto previsto no n.º VII, Tit. XV do Liv. II do Regimento, que os réus serão ouvidos de mãos atadas, porque já estavam para sair para o auto de fé.

Finalmente, a Ré deu conta que, para tentar salvar a sua vida, tinha de dizer tudo o que os Inquisidores queriam, tinha de “confessar” que dissera às testemunhas que acreditava na Lei de Moisés.

Às 6 e meia da manhã do dia 5, perante o Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque, começou as suas confissões transcritas em 16 páginas na bela letra do escrivão.

Começou por referir seu falecido pai, José de Sequeira que, quinze anos antes, lhe dissera que cria la Lei de Moisés. Depois, Grácia Micaela da Veiga, casada com Diogo Nunes Ribeiro, as primas Francisca Soares da Veiga e Teresa Eugénia de Sequeira, o médico Diogo Nunes Ribeiro e o pai deste, Manuel Henriques de Lucena. Refere a seguir António Sanches, estudante em Coimbra, irmão de Diogo Nunes Ribeiro. Não há que confundir com o sobrinho deste, António Nunes Ribeiro Sanches, que nasceu apenas em 1699; este é que nos diz que esse seu tio, o médico António Ribeiro Sanches foi morto em São João da Pesqueira em 1706. Refere Filipa Maria, Manuel de Mesas, Rodrigo Lopes e sua irmã Inês Maria, o irmão dela Ré, Manuel Lopes de Sequeira, Mariana de Chaves, Maria da Conceição de Luna, Pedro Lopes Henriques (filho de Manuel Gomes e de Grácia de Luna),  o irmão deste João Rodrigues de Paiva, Grácia Antónia, Leonor da Fonseca, Agostinha irmã da mencionada Grácia Antónia,.

A fls. 217 e ss. uma sessão de crença, datada também do dia 5 de Novembro. em conformidade com as “confissões” antes feitas. No final, refere-se: “Foi-lhe dito que as suas confissões têm ainda muitas faltas e diminuições as quais são não dizer de todas as pessoas com quem comunicou a crença da Lei de Moisés, nem todas as cerimónias que fazia em observância da mesma Lei e de que há informação nesta Mesa, de que tudo se presume com grande fundamento não estar verdadeiramente arrependida de todo o seu coração de ter vivido na dita crença”.

A fls. 220, um interrogatório in specie do mesmo dia em que o Inquisidor começa por perguntar se não tem mais culpas que confessar. Ela responde que não se lembra de mais nada. O Inquisidor pergunta então factos constantes dos depoimentos das testemunhas e ela ingenuamente diz que não se lembra ou que não teve tais conversas. Confessa, porém, que quando podia, guardava os sábados de trabalho (fls. 222 v.). A Ré não se saiu bem neste interrogatório.

A fls. 227, ainda no mesmo dia, “Mais confissão”. Refere Francisco da Paz, filho de Isabel da Paz e Félix Leandro, irmão do anterior.

Segue-se a admoestação antes do libelo e a acusação repetida a fls. 230 e ss. A Ré não assina por não poder escrever por estar de mãos atadas.

Embora a Ré tenha dito que não quer estar com o seu Procurador, há uma “Estância com Procurador” a fls. 235 v. Este alinhava umas linhas de defesa a fls. 240: oferece a matéria das confissões e pede que a Inquisição use com a Ré de misericórdia.

Os autos vão pela 2.ª vez a visto dos Inquisidores e Deputados da Inquisição de Lisboa. Os votos estão divididos: a maior parte considera que o assento do Conselho Geral de 21 de Outubro é definitivo e que a Ré deve ser relaxada; os deputados Álvaro Pires de Castro e Francisco Carneiro de Figueiroa, discordam.  Dizem estes que lhes “pareceu que a Ré não estava convicta no crime de fautora, porque, posto estivesse indiciada de muitos cúmplices de que não dizia, além de serem pessoas a maior parte delas estranhas, nenhuma das cumplicidades estava suficientemente provada, com o que cada uma ficava de per si fazendo um indício leve”.  O processo deveria voltar ao Conselho Geral.

O Regimento permitia confissões em qualquer altura, mesmo no cadafalso. Havia má vontade contra a Ré.

Uma decisão da Mesa do Conselho Geral “em presença de Sua Ill.ma” (fls. 244) começa dizendo “Vistos… estes Autos,  culpas e confissões de mãos atadas”, mas mantém a decisão de relaxar a Ré, sem indicar quaisquer fundamentos.

Depois da meia noite e já dia 6, a Ré pediu audiência para continuar as suas “confissões”, perante o Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque. (fls. 246).  Relata uma conversa de há onze anos com Filipa Maria, Maria Soares e também Violante Nunes Rosa; a seguir outra conversa com Violante Nunes Rosa (diz viúva de Rodrigo Machado em vez de Rodrigo Sequeira), com Pedro Lopes, filho do Samuda Velho; outra conversa há dez anos em casa de Violante Nunes Rosa com Simão Lopes Samuda, médico; outra conversa há 10 anos, com Violante Nunes Rosa  e sua filha Maria de Melo Rosa; outra conversa há 10 anos em casa de Filipa Maria, com Maria Soares; outra conversa há 10 anos em casa de Filipa Maria com Manuel Franco; há 11 anos, em casa de Violante Nunes Rosa, com Manuel de Samuda Leão, médico; outra conversa com José de Chaves e Mariana de Chaves;  outra conversa há 11 anos com o médico António de Sá e Mesquita;

A seguir, no mesmo dia ( o do auto de fé) os autos vão de novo a visto dos Inquisidores e Deputados, pela 3.ª vez (fls. 251A). Por maioria acham que as confissões não devem ser recebidas por não melhorar nos sinais de arrependimento. São os mesmos os dois deputados discordantes, embora aceitem que ela tenha um castigo exemplar, com cárcere e hábito perpétuos e degredo de 7 anos para o Reino de Angola.

Subiu este visto ao Conselho Geral (fls. 253) e, “em presença de Sua Ill.ma, …“assentou-se que o disto assento ( de 21 de Outubro) não estava alterado e se devia dar execução como nele se contém. Mandam que assim se cumpra. Lisboa, 6 de Novembro de 1707”.

A Ré pediu de novo audiência por volta do meio dia no cadafalso, que é denominada “Confissão no Auto” (fls. 255). Referiu a conversa que há 10 anos, tiveram em casa de seu tio André de Sequeira, com ele e esposa Isabel Maria da Veiga; outra conversa na mesma casa com Branca Soares, filha dos anteriores; há 12 anos, com sua própria mãe Inês Lopes.

Depois desta confissão, foram mais uma vez vistos os autos pelos Inquisidores e Deputados (fls. 258). Agora os votos em contrário foram de Jerónimo Vaz Vieira e de António Manuel Menezes, que foram de opinião que a Ré deveria ficar “reservada”. A maioria votou que ela devia ser relaxada.

Por volta das duas horas voltou a pedir mesa para mais confissões.  Referiu uma conversa em casa de sua tia Isabel Maria, com a mesma, e com Branca Cardoso, Clara de Chaves, e Josefa Valença.

Subiram os autos ao Conselho Geral (fls. 262) na mesa preparada no cadafalso “e assentou-se que as ditas confissões (de mãos tatadas) não eram de receber e que se executasse o dito assento como nele se contém.  Mandam que assim se cumpra. Lisboa, 6 de Novembro de 1707”.

De fls. 264 a 268, o Acórdão final, que não traz nada de novo. Diz nomeadamente:

E sendo a Ré levada ao Auto público da Fé para ouvir sua sentença, dele pediu audiência para continuar sua confissão e disse que comunicara a crença da Lei de Moisés com mais certas pessoas que nomeou.

Sendo vista em Mesa a nova confissão da Ré, se assentou que com ela se não alterava o assento do seu processo e que se devia dar a condenação”.

E assim foi queimada.

A fls. 271, a conta de custas bem salgada: 20 682 réis.

 

 

Maria de Melo Rosa e Maria de Sequeira eram duas jovens ingénuas que não conheciam a maldade do mundo. Foram ambas surpreendidas por uma condenação à morte em que nunca haviam pensado, nem mesmo em sonhos. Ninguém as havia ensinado para representar na Inquisição o papel de judias convictas e demonstrar um arrependimento daquilo que nunca tinham feito.

Não são mártires de fé nenhuma, nem da Judaica, nem da Católica. São mártires da própria dignidade, que não lhes permitia dizer mentiras para agradar a uns poderosos a quem não conheciam de parte nenhuma.  Poderosos que sabiam muito bem que estavam a condenar à morte duas inocentes.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Fortunato de Almeida – História da Igreja em Portugal, 2.º volume,  Portucalense, Porto, 1967

 

Maria Luísa Braga, A inquisição na época de D. Nuno da Cunha de Ataíde e Melo (1707-1750 / Maria Luísa Braga. - contém transcrição de cartas do Padre Miguel de Almeida a outro padre. Trabalho estatístico feito sobre os dados da Colecção Moreira, In: Cultura : história e filosofia. - v. I (1982), p. 175-260

 

Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición y política. El gobierno del Santo Oficio en el Portugal de los Austrias (1578-1653), Lisboa, CEHR-UCP, 2011. ISBN 978-972-8361-39-6.

 

Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición portuguesa y Monarquía Hispánica en tiempos del perdón general de 1605, Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS/UE, 2010. ISBN 978-989-689-039-1.

 

Rafael Valladares, A independência de Portugal, Guerra e Restauração, 1640-1680, Prefácio de Joaquim Romero Magalhães, Tradução de Pedro Cardim, A esfera dos livros, Lisboa, 2006, ISBN 989-626-042-7

 

Michael Geddes, Miscellaneous Tracts, 1.st volume, London, MDCCXIV:

V. A View of the Inquisition of Portugal; with a List of the Prisoners which came out of the Inquisition of Lisbon, in an Act of the Faith, celebrated Anno 1682. And another in 1707.

VI. A Narrative of the Proceedings of the Inquisition in Lisbon, with a Person now living in London, during his Imprisonment there.

Online: http://books.google.com

 

António José Saraiva, The Marrano Factory: the Portuguese Inquisition and its New Christians 1536-1765, translated, revised and augmented by Herman Prins Salomon, I.S.D. Sassoon, Brill, Leiden, Boston Köln, 2001

 

António José Saraiva, Inquisição e cristãos-novos, 5.ª edição, Imprensa Universitária n.º 42, Editorial Estampa, Lisboa, 1985.

 

Oxford Dictionary of National Biography, Isaac de Sequeira Samuda, by Edgar Samuel, Sept. 2004, 820 words, index - 101071570

 

Augusto de Esaguy, Breve notícia sobre o médico português Isaac de Sequeira Samuda, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934, Separata de O Instituto, vol. 87, n.º 3 , pgs. 262-269.

Online: http://www.catedra-alberto-benveniste.org/_fich/15/Esaguy_-_Isaac_Samuda.pdf

Online: http://webopac.sib.uc.pt/search~S17*por?/tinstituto/tinstituto/1,291,309,E/l856~b1594067&FF=tinstituto&1,1,,1,0

 

Giuseppe Carlo Rossi, Un poema portoghese inedito in manoscritto romano del secolo XVIII, in Sep. Miscelânea de Estudos em honra do prof. Hernâni Cidade, Lisboa 1957.

 

Dr. Aubrey Newman (Rapporteur), Migration and Settlement, Proceedings of the Anglo-American Jewish Historical Conference, held in London jointly by the Jewish Historical Society of England and the American Jewish Historical Society, July 1970. Published by The Jewish Historical Society of England, 1971.

 

Neste site:

António Nunes Ribeiro Sanches - António Nunes Ribeiro Sanches (1699 - 1783)

Jacob de Castro Sarmento - Jacob de Castro Sarmento (1691 - 1762)

Os judeus de Tondela - Os "judeus" de Tondela (nota 34 - texto de António Nunes Ribeiro Sanches sobre a tortura)