12-4-2012

 

 

Dr. Diogo (Samuel) Nunes Ribeiro (1668 – 1741)

 

 

 

 

O relato da vida do Dr. Diogo Nunes Ribeiro, que depois de fugir para Inglaterra mudou o nome para Samuel, permite-nos conhecer mais de perto o funcionamento da Inquisição.  Um médico com alguma reputação em Lisboa, que já não era jovem, pois tinha 35 anos quando foi preso, mostrou ignorar totalmente como funcionava a Inquisição e teve de aprender rapidamente à sua custa para salvar a vida.

Teve ele uma vida aventurosa pois, após fugir de Portugal para Inglaterra, emigrou depois para a América, onde foi pioneiro de relevo. Tal facto deu-lhe importância nas comunidades judaicas, originando narrativas perfeitamente lendárias, que é preciso pôr de lado.

Desde logo, a interpretação dos factos do seu processo (n.º 2367) está completamente desvirtuada nos textos dos académicos judeus que não se coíbem de acreditar piamente nos depoimentos referidos no processo, de conversas sobre a crença de Moisés e de cerimónias judaicas que teriam sido realizadas.

A lenda da sua vida avoluma-se ainda mais pelo facto de sua filha mais nova, Maria Caetana Nunes (1711 ou 1714-1799), que em Inglaterra tomou o nome de Zipporah ou Zipra Nunes, nos anos finais da sua longa vida contar aos netos e bisnetos (gente prestigiada da sociedade americana da altura) uma história fantasiosa da vida de seu pai, que reproduzo traduzida no Anexo 1. Como todas as lendas têm um fundo de verdade, direi depois o que me parece ser verdadeiro da história.

O processo do médico serve ainda para constatar os truques às vezes bem soezes da Inquisição para continuar o seu trabalho de humilhar e espoliar os cristãos novos. Um destes foi chamar para interrogatório e mais confissões os réus, já depois de o processo estar findo e arrumado.  Era uma chantagem ignóbil. Estavam condenados a cárcere perpétuo ou cárcere a arbítrio e, por isso, não podiam deixar de fazer a vontade de entregar mais gente aos carrascos, para poderem ficar em liberdade.

Outro interesse do processo do médico é o facto de ele ter sido tio materno de António Nunes Ribeiro Sanches, que o referiu nas cartas a seu amigo, o médico, Dr. Manuel Pacheco de Sampaio Valadares (1673-1737), em 1733 e 1735. Conviveu com ele e com as suas cunhadas, quando, tendo acabado o curso foi para Lisboa e Benavente, até que teve de fugir apressadamente do País. Voltaram a encontrar-se em Inglaterra, mas separaram-se depois, também, em termos religiosos: o médico tornou-se judeu crente e fervoroso, Ribeiro Sanches regressou à fé cristã.

A vida do médico, enquanto esteve em Portugal, desenrolou-se numa época em que a Inquisição foi particularmente violenta, referindo-se que só para Inglaterra, fugiram 1500 cristãos novos, de 1705 a 1730. De facto, a vida deles tornava-se aqui impossível. Basta ver os processos duplos contra a mesma pessoa (o segundo com o sufixo -1), quando surgia uma denúncia contra um réu já anteriormente reconciliado, não considerada no processo anterior.

 

NA INQUISIÇÃO

 

Em 22 de Agosto de 1703, foram assinados os mandados de prisão de Diogo Nunes Ribeiro, de 35 anos  e de sua esposa, Grácia Caetana da Veiga, de 27 anos (Pr. n.º 3054 e 3054-1). No dia seguinte, 23, o familiar da Inquisição, André Lopes, prendeu os dois e entregou-os nos Estaus. Na mesma data, foi preso seu pai, Manuel Henriques de Lucena (Pr. n.º 1953), de 62 anos.

Contra o médico, havia já então quatro denúncias, a que se foram acrescentando outras, feitas por parentes, amigos ou simples conhecidos:

Depoimento de 8-1-1703 – Jorge Rodrigues Dias, nat da Guarda. res. em Lisboa – Pr. n.º 4781.

Dep. de 25-4-1703 – Clara Rodrigues de Chaves, mulher de Martinho Mascarenhas  - Pr. n.º 4544

Dep. de 22-6-1703 – Luis Rodrigues Ferreira – nat. e res. na Guarda – Pr. n.º 536

Dep. de 24-7-1703 – José  Nunes Chaves, nat. de Londres – res. em Lisboa – Pr n.º 138

Dep. de 26-8-1703 – Jorge Mendes Nobre, advogado, nat. de Trancoso, res. em Lisboa – Pr. n.º 8279

Dep. de 26-9-1703- Gaspar Mendes Henriques, nat. Trancoso, res. em Lisboa – Pr. n.º 151

Dep. de 29-10-1703 – Inês da Fonseca, casada com Luis Nunes da Costa, de Pinhel – Pr. n.º 3034

Dep. de 15-12-1703 – Leonor Rodrigues, viúva de Manuel  Dias, Monsanto, Guarda, res. em Lisboa, Pr. n.º 4693

Dep. de 13-1-1703 – Francisco de Sá e Mesquita, Pr. n.º 11300

Dep. de 8-4-1704 – Jorge Rodrigues Dias – Pr. n.º 4781 –

Dep. de 22-4-1704, Brites Nunes, casada com António Henriques, filha de Belchior Mendes e Branca Rodrigues, nat. e res. na Guarda- não aparece o processo nos índices.

Há um depoimento de Manuel Henriques de Mercado em 4-1-1704, a fls. 50 v. do Pr. n.º 1954, que não se encontra transcrito no processo, embora seja referido depois nas culpas.

Como habitualmente, o conteúdo das denúncias repete-se, com mais ou menos variantes e acrescentos,  seguindo as fórmulas estabelecidas: “entre práticas, se declararam observantes da lei de Moisés, para salvação de suas almas”.

Inventário – 24-9-1703 – Ao iniciar a sessão, diz não ter culpas que confessar. Declara não possuir bens de raiz, mas descreve os móveis que possui em sua casa, alguns de valor, como uma cama e dois contadores de pau Brasil, a que atribui o valor de 20 000 e 40 000 réis, respectivamente.

Genealogia – 5-10-1703 – Volta a dizer que não tem culpas que confessar. É natural de Idanha-a-Nova, filho de Manuel Henriques de Lucena, Procurador da Casa dos Sincos (funcionário da Alfândega) e de Maria Nunes, já falecida. Neto paterno de Diogo Henriques e de Isabel Henriques, de São Vicente da Beira, já falecidos. Avós maternos foram Luis Lopes, já falecido e Maria Nunes, residente em Idanha-a-Nova.

Por parte do pai, tem duas tias, Clara e Maria Henriques, ambas já falecidas. Clara foi casada com Diogo Henriques, de quem teve dois filhos, Sebastião, residente em Idanha e João, residente na Baía-Brasil.  Maria foi casada com Álvaro Vaz, de quem não teve filhos.

Por parte de sua mãe, tem um tio e duas tias:

- Manuel Nunes, que era cirurgião, já falecido, casado com Mécia Nunes de quem teve uma filha chamada Maria Nunes casada com Manuel Rodrigues, residentes em Castela.

- Ana Nunes (Pr. n.º 663), viúva de Francisco Lopes Henriques, residente em Idanha-a-Nova. Tem quatro filhos chamados António Ribeiro Sanches, Leonor Henriques (Pr. n.º 8162), João (Pr. n.º 8190)  e Diogo (Pr. n.º 10153), todos residentes com sua mãe.

- Leonor Lopes, casada com Francisco Rodrigues, de cujo matrimónio tem seis filhos chamados Isabel, casada com Francisco Lopes, soldado de cavalo, Maria, casada não sabe com quem e os outros são pequenos e residem com sua mãe em Idanha.

Ele declarante tem um irmão e duas irmãs:

- António Ribeiro, solteiro, estudante de medicina, residente em Lisboa.

- Ana Nunes, casada com Simão Nunes, o “Flamengo” (Pr. n.º 7906), residentes em Penamacor. Têm dois filhos pequenos, cujo nome não sabe (o mais velho é António Nunes Ribeiro Sanches, nascido em 1699)

- Clara Henriques (Pr. n.º 6505), solteira, residente em Penamacor com sua irmã.

Ele declarante é casado com Grácia Caetana da Veiga, cristã nova, e têm dois filhos pequenos, chamados Manuel e Isabel.

Foi baptizado, crismado, aprendeu a catequese, frequenta os sacramentos e a Missa dominical. Foi mandado persignar-se e benzer-se e recitar o Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, Credo, Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Igreja, o que tudo soube.

O Inquisidor instigou-o a confessar as suas culpas, dizendo-lhe que a Inquisição não prendia ninguém “sem primeiro haver bastante informação de haver cometido culpas”.  Foi “admoestado com muita caridade da parte de Cristo Senhor nosso, trate do descargo de sua consciência, confessando inteiramente a verdade de suas culpas, não impondo porém a si nem a outrem falso testemunho, por ser o que lhe convém para descargo de sua consciência, salvação de sua alma e bom despacho de sua causa, e por tornar a dizer que não tinha culpas que confessar, foi outra vez admoestado e mandado a seu cárcere…”

Nesta altura, Diogo Nunes Ribeiro estaria já a cair das nuvens para a realidade. O espanto dele é-nos revelado mesmo por um documento datado de 24-2-1716 (Caderno do Promotor da Inq. de Lisboa, 1715, Liv. 276, fls. 325), transcrito por Maximiano de Lemos, na sua biografia de Ribeiro Sanches, que, porém, não o interpreta correctamente. A Madre Dona Bernarda Josefa de Miranda Henriques mandou chamar à grade do Mosteiro de Cós (concelho de Alcobaça) o Notário da Inquisição para fazer uma denúncia contra o médico Diogo Lopes Ribeiro. Desculpa-se por não o ter feito mais cedo mas pensava que não era obrigado a fazê-la, mas depois foi intimada a isso pelo seu confessor. Desde então, ficou muito desassossegada e por isso solicitou que fosse chamado o Notário.

Tempos atrás, a freira estava doente em Lisboa, em casa de sua prima Dona Francisca Xavier, viúva de D. Rodrigo de Miranda Henriques e chamaram o Dr. Diogo Nunes Ribeiro para a visitar e curar. Nessa altura “o delatado” dissera diante dela e de sua prima “muito mal dos senhores Inquisidores, e que eles favoreciam a quem lhes parecia, e que bem lhe podiam eles dar algum sinal para que ele entendesse o porque estava preso, pois lhe tinham alguma obrigação para lho fazerem…”

A visita do médico à freira em Lisboa não pode deixar de se situar muitos anos atrás, quando ainda estavam bem vivos no espírito e no corpo do médico os sofrimentos por que passara na Inquisição. Imagino que uns oito ou dez anos atrás, não é coisa recente como sugere Maximiano de Lemos (o mesmo autor escreve que a sentença de Grácia Caetana da Veiga foi publicada no auto de 12 de Dezembro de 1716, sem dar conta que a data correcta é 1706).

Cruzando esta informação com a lenda da vida do médico contada por sua filha, entendo eu que Diogo Nunes Ribeiro fora médico de um ou mais Inquisidores (até porque era médico do Convento de S. Domingos que tinha sempre um frade entre os Inquisidores) e teria ficado furioso, por eles não o terem orientado e protegido, quando lhe caiu em sorte ser preso. Outra lenda que corre nos Estados Unidos é que ele teria depois sido médico de D. João V, o que não tem qualquer fundamento.

Mas protegido não foi na Inquisição, sofreu como os outros. E, como muitos outros, teve a ingenuidade de pensar que se podia defender daquela máquina de triturar gente.

6-10-1703 –Fls. 39 r. -  Interrogatório in genere – Disse ter sempre procedido como bom católico, e que nunca teve qualquer prática de judaísmo ou cerimónia judaica: não fez jejuns, não recitou salmos judaicos, não guardou os sábados de trabalho, não sangrou a carne que vinha do talho. Disse apenas que não comia sangue, por lhe fazer mal.

31-10-1703 – Fls. 43 - Sessão in specie – Aqui o Inquisidor pergunta já sobre os factos e conversas denunciados no processo, não identificando nem o lugar nem as pessoas, dizendo apenas que eram da sua nação, isto é, eram cristãos novos. O Réu respondeu sempre ou que era falso ou que não se lembrava de ter tido tais conversas (“lhe não lembra passar tal”).

9-11-1703 – Fls. 46 – Admoestação antes do libelo

Fls. 47 – Libelo – São-lhe assacadas nove culpas, correspondentes a outras tantas “denúncias”. Lido o libelo, foi interrogado o réu. Disse este ser verdade que era cristão baptizado e que fora várias vezes admoestado na Inquisição para confessar suas culpas. Tudo o resto contesta por negação. Quer-se defender e que lhe seja nomeado um procurador. Foi nomeado o Licenciado Francisco de Quintanilha que prestou juramento em 12 de Dezembro de 1703.

17-12-1703 – Fls. 50 v. – O réu reuniu com o seu procurador que tinha cópia do libelo. Esta foi depois junta ao processo a fls. 50 e a ela juntou o procurador a defesa a fls. 54. Diz o Procurador pelo réu que sempre foi bom católico, frequentando os sacramentos e praticando actos de bom cristão. Que sempre comeu carne de porco, de coelho e peixe de pele.  Como testemunhas indica cinco frades do Convento de S. Domingos, o Padre Cura de S. Nicolau e dois de seus antigos criados. O réu era médico dos frades daquele Convento.

1-2-1704 – Fls. 54 v. – Os Inquisidores recebem a defesa e mandam chamar as testemunhas à Mesa.

Foram interrogados sucessivamente o Padre Frei Pedro da Trindade, Padre Mestre Frei Álvaro de Castro, Frei Bartolomeu do Sacramento, enfermeiro, Padre Frei Henrique Breganha  e os dois antigos criados, Mariana da Conceição e José Teixeira Torres, caixeiro de Manuel Salgado Lima. Todos afirmaram que o réu praticava actos de bom católico e bom cristão e frequentava os Sacramentos. A criada Mariana da Conceição confirmou a defesa do réu quando dizia que comia carne de porco, de coelho e peixe de pele.

Não foram interrogados nem o Padre Frei Amaro do Convento de S. Domingos, nem o Padre Cura de S. Nicolau.

Este tipo de defesa de pouco ou nada servia para a Inquisição. As testemunhas evitavam falar na crença íntima do réu que naturalmente não conheciam. Os Inquisidores tinham no processo testemunhos indicando que o réu era crente na Lei de Moisés e isso era o que lhes interessava. Mais uma vez salta à vista o absurdo que era este “tribunal” ao querer condenar os réus por aquilo em que criam.

É de destacar o depoimento de Fr. Pedro da Trindade. O médico praticava actos de bom católico e até o viu confessar-se e vir à missa, mas “como sabia que o mesmo era cristão novo e pela desconfiança geral de todos aqueles que o são, não dava muito crédito às obras exteriores que via fazer ao dito Diogo Nunes, sem para isso ter mais razão que a que a fama tem deposto; e que, quando no ano passado se começaram a fazer algumas prisões pela Inquisição, foi o dito Diogo Nunes ter à cela dele testemunha duas vezes queixar-se das muitas prisões que se faziam e algumas por testemunhos falsos; ao que ele testemunha lhe respondeu que no Santo Ofício se sabia averiguar a verdade e que quem se sentisse culpado se apresentasse e confessasse inteiramente suas culpas.” Típica hipocrisia fradesca!

31-1-1704 – O réu reuniu com o seu procurador para “formar interrogatórios”, isto é, indicar as perguntas que haveriam de ser feitas às testemunhas já constantes do processo que seriam reperguntadas sobre as suas denúncias.

O procurador quer saber detalhes das denúncias: a que horas se deu o caso, qual o tempo que fazia, quem mais estava presente, etc.

Também este tipo de defesa para pouco ou nada servia. As testemunhas não podiam correr o risco de se contradizerem, despertando a má vontade dos inquisidores e muitas até estavam presas.

Foi mandada uma comissão (deprecada) para a Covilhã para ser ouvido Luis Rodrigues Ferreira, que já havia sido libertado em Setembro de 1703.

Na Inquisição de Lisboa, foram sucessivamente reperguntados Clara Rodrigues de Chaves, Gaspar Mendes Henriques, Inês da Fonseca, Leonor Rodrigues, Jorge Mendes Nobre, Manuel Henriques de Mercado, José Nunes Chaves, Francisco de Sá e Mesquita e Jorge Rodrigues Dias.

12-4-1704 – Fls. 104 – O réu é citado de que há mais prova contra ele

14-4-1704 – Fls. 105 – Possivelmente a pedido do réu, é-lhe dado novo procurador, o licenciado Manuel da Costa de Oliveira. Na mesma data, reúne com ele.

15-4-1704 – Fls. 110 –Admoestação ao réu antes da publicação da prova da justiça – as denúncias que há contra o réu. São lidas ao réu, sempre sem indicação dos nomes, datas e locais. É-lhe perguntado se é verdade o que ouviu, responde que é tudo falso. Quer-se defender, tem contraditas com que vir e quer estar com o seu procurador, o que acontece nos dias 23 e 28 de Abril de 1704.

O procurador requere que lhe sejam ditos os lugares onde as testemunhas dizem que conversaram com o réu.

Apresenta então o procurador uma extensa defesa que é indicada pelo réu, declarando suas inimigas inúmeras pessoas que ele achava poderiam tê-lo denunciado.

Por vezes, quando as contraditas eram convincentes, os inquisidores retiravam crédito aos testemunhos, com o fundamento de que os inimigos do réu poderiam ser menos verdadeiros. Mas na maior parte dos casos, não davam valor nenhum a estas alegações.  Para provar as contraditas, o réu indicou inúmeras testemunhas que não chegaram a ser ouvidas, porque o réu inflectiu caminho; deu conta que a defesa que pudesse apresentar não servia para nada.

9-5-1704 – Citação de mais prova. É o testemunho de uma Brites Nunes, da Guarda, em depoimento de 23 de Abril de 1704. A Inquisição de Lisboa envia à de Coimbra uma comissão (deprecada) para ser reperguntada.

24-7-1704 – Fls. 150 – Finalmente, o réu deu conta que não ia a lugar nenhum com as defesas e corria ainda o risco de subir ao patíbulo. Percebeu neste momento que tinha de mesmo de confessar e denunciar pessoas.  Num longo depoimento de fls. 150 a 161 v., denunciou seu pai, seus amigos e conhecidos, coincidindo bastante com os nomes dos que o tinham denunciado.

30-7-1704 – Fls. 162- Sessão da crença, já conforme aos cânones da Inquisição.

1-8-1704 – Fls. 166 – Interrogatório in specie. Foi-lhe perguntado se se lembrava de episódios correspondentes às denúncias feitas contra ele. O médico responde negativamente, o que deve ter desagradado aos inquisidores.

5-8-1704 – Fls. 169 – Admoestação antes do libelo

Fls. 170 – Libelo. No final da leitura, o réu disfarçou a sua raiva, dizendo que queria ainda acabar de confessar as suas culpas, que não tinha defesa com que vir e que não queria estar com o seu procurador.

16-8-1704 – Citação de mais prova. É o testemunho de João Mendes ou João Mendes da Cunha, depoimento de 11-8-1704 (Pr. n.º 4694, fls. 120), que não é transcrito no processo.  Quando é interrogado sobre o assunto, diz que não tem defesa com que vir e que não quer estar com o procurador.

16-8-1704 – Fls. 176 v. – O escrivão faz o processo concluso.

18-8-1704 – Fls. 177- Visto dos Inquisidores e Deputados. Por unanimidade foi decidido aceitar as confissões do réu.  Mas, porque o réu não denunciou a esposa (!) e Manuel Henriques do Mercado, com quem tinha muita comunicação, decidem submetê-lo ao tormento. Por maioria dos votos sofrerá um trato corrido, por não ter referido a sua participação em nenhuma cerimónia judaica. O trato corrido era mais demorado e por isso mais doloroso que o trato esperto.

20-8-1704 –  Fls. 179 - Tormento – Apenas lhe foi aplicado meio tormento, isto é, foi atado com quatro cordas em vez de oito. O réu pediu a cessação do tormento para fazer mais confissões. De qualquer modo, ficou incapaz de assinar, o que nunca mais fez enquanto esteve preso na Inquisição.

21-8-1704 – Fls. 182 – Ratificação ad bonum – É a ratificação das confissões no tormento, nos termos do n.º IX do título XIV do livro II do Regimento.

22-8-1704 – Fls. 183 – Ratificação coram honestis – Ratificação feita diante de pessoas religiosas: está prevista no final da mesma norma

13-9-1704 – Fls. 184 v. – O escrivão faz o processo concluso.

13-9-1704 – Fls. 185 – Visto da Mesa pela 2.ª vez. Por unanimidade foi considerado que o réu dissera “de si bastantemente, de seu Pai, e de outras mais pessoas nem algumas das quais não estava indiciado, satisfazendo a maior e mais principal parte da prova da justiça que tinha contra si” e portanto poderia ser absolvido “in forma ecclesiae da sentença de excomunhão maior em que incorreu” sendo condenado na “confiscação de todos os seus bens para o Fisco e Câmara Real e nas mais penas de Direito e que tenha penitências espirituais e instrução ordinária”.

Fls. 187 – Sentença – Note-se que a sentença omite a ida do réu ao tormento. Nas penas, acrescenta-se: “Terá cárcere e hábito penitencial perpétuo”.  Foi ao auto público da fé que se celebrou a 19 de Outubro de 1704, onde figura sob o n.º 36.

Fls. 191 – Abjuração em forma – não assina por não poder assinar.

Fls. 192 – 21-10-1704 – Termo de segredo -  a mesma coisa

Fls. 193 – 6-11-1704 – Termo de ida a penitências

Fls. 194 – 29-10-1704 – Um capelão declara que o ouviu de confissão e o “instruiu nos mistérios da nossa Santa Fé Católica neste Cárcere da Penitência”.

Fls. 195 – Conta de custas: 9 823 réis, mas a soma não está certa.

Fls. 196 – 14-5-1706 – Diz o processo que o médico se apresentou na Inquisição para fazer mais confissões, mas o mais provável é que tenha sido instigado a fazê-lo, sobretudo porque não denunciara sua esposa. Era um sistema absolutamente iníquo. A Inquisição tinha-o condenado a cárcere perpétuo; se não fizesse as vontades aos inquisidores, podia ser metido na cadeia a qualquer altura. Num longo texto, denuncia ele o seu sogro, André de Sequeira (Pr. n.º 9758), sua sogra Isabel Maria da Veiga (Pr. n.º 3039 e 3039-1), sua esposa Grácia Caetana da Veiga (Pr. n.º 3054 e 3054-1), sua cunhada Teresa Eugénia da Veiga (Pr. n.º 2987 e 2987-1), sua cunhada Francisca Soares da Veiga (Pr. n.º 3258 e 3258-1), Manuel Franco (Pr. n.º 7017) e esposa Maria Soares Pereira (Pr. n.º 2795), Maria de Sequeira (Pr. n.º 8271), Pedro Alves ou Pedro Lopes Alves, do Fundão (Pr. n.º 3049), Manuel Mendes Pinto (Pr. n.º 3215) e filho Jorge Rodrigues Pinto (Pr. n.º 2731) e Manuel Henriques de Mercado (Pr. n.º 1954).

Quando o médico foi libertado, sua esposa ainda estava presa. Foi mais valente que ele, não fez confissões.  Foi por isso levada ao tormento em 10 de Julho de 1705. Sofreu o tormento completo de oito cordas (duas por cada membro) e fizeram-lhe dois tratos espertos. Segundo consta do processo n.º 3054, nem assim confessou.  Do Acórdão final consta: “Havendo porém respeito ao que a ré alegou em sua defesa e contraditas e a prova da justiça não ser bastante para maior condenação…” Fez abjuração de vehementi, mas não assinou por estar “impedida” (nem poderia nunca assinar após o tormento) e foi ao auto da fé de 6 de Setembro de 1705.

Entretanto os Inquisidores descobriram mais denúncias que não tinham sido tidas em conta no anterior processo. Não lhes interessou que as denúncias se referissem a factos de vários anos atrás, nem que tivessem sido omitidas no anterior processo por culpa deles, pois tinham datas anteriores ao auto da fé.  Prenderam-na em 28 de Abril de 1706 com base nas denúncias de Clara Maria da Paz (Pr. n.º 7164) em depoimento de 12 de Agosto de 1705, referindo factos (?) de 4 anos atrás e de Catarina Henriques (Pr. n.º 6784), em depoimento de 5 de Setembro de 1705, referindo factos (?) de 10 anos atrás. Juntaram-lhe depois denúncias do próprio pai dela (de 22-4-1706) e do marido dela (de 14-5-1706), esta feita já depois de findo o processo (tem o n.º 3054-1), e ainda outras de depoimentos posteriores à data da sua segunda prisão.

Desta vez, Grácia Caetana estaria já instruída pelo marido e fez as denúncias que os Inquisidores queriam ouvir, de todos os parentes, amigos e conhecidos. Assinou a abjuração e foi ao auto da fé de 12 de Setembro de 1706. Mas os Inquisidores exigiram ainda mais confissões depois de o processo já estar findo, que ela fez em 22 de Setembro de 1706, para acusar sua sobrinha Maria de Sequeira (Pr. n.º 8271), que os Inquisidores se preparavam para levar ao cadafalso.

 

O processo do médico foi estudado pelo académico judeu R.D. Barnett, que dele escreveu um relato com não poucas inexactidões derivadas certamente de pouco conhecimento que tinha da língua. Por exemplo, bastaria ter reparado na Genealogia  do pr. n.º 7299 (Simão Lopes Henriques) para ver que o médico teve 3 filhos e 3 filhas, e não apenas duas, como ele diz. Outro erro foi considerar como verdadeiras as denúncias, quer contra o médico quer depois as feitas por ele.

 

REFAZENDO A VIDA

 

Tendo sido esbulhado dos seus bens pela Inquisição, Diogo Nunes Ribeiro regressou ao exercício da medicina para sobreviver.  Como referi, a sua esposa só foi libertada quase um ano depois dele e voltou a ser presa durante cinco meses no ano seguinte (1706).

Alguns elementos do processo dão a entender que que o médico era pessoa voluntariosa, simpático (mais do que os seus colegas) e com espírito de rapaz. Esta última característica é sugerida  por se atrever a dizer à freira que o denunciou que (na Inquisição) “de noite se punha de bruços quando estava preso e que por baixo da porta (fora de horas) falava com os outros presos que estavam encelarados”.

Depois de libertada a esposa pela segunda vez, foi tendo mais filhos, ao todo três rapazes e três raparigas. Mandou o mais velho,  Manuel, estudar Medicina para Coimbra.  Em 3-9-1726, António José da Silva (1705-1739) acusou Manuel Nunes Ribeiro no seu processo de uma culpa, dois anos antes, em Coimbra (Proc. n.º 8027, fls. 39 v).

Tinha naturalmente convicções judaicas, mas não as manifestava. Já tinha chegado para o susto aquilo por que tinha passado. Deveria ter sido sua cunhada Teresa Eugénia a doutrinar Ribeiro Sanches no judaísmo. António Nunes Ribeiro Sanches fala do assunto na carta de 14 de Julho de 1735 enviada de São Petersburgo ao Dr. Manuel Pacheco Sampaio Valadares, de Benavente, em que ele faz uma pequena biografia da sua vida em Portugal.  Ribeiro Sanches terminara o curso de Medicina em Salamanca em 5 de Abril de 1724 e fora exercer para Benavente. Dali fez várias visitas a Lisboa a casa de seu tio, onde conheceu a família, até que, em Novembro ou de Dezembro de 1726, teve de fugir de Portugal para Itália, por ter sido denunciado à Inquisição por um seu primo.

Também Diogo Lopes Ribeiro se preparava para abandonar o País. Por sorte dele, ainda nenhum dos seus seis filhos tinha sido preso, mas o provável é que isso viesse a acontecer. Teria já acumulado bens que a Inquisição haveria de cobiçar. Por outro lado, estava já acusado de ter ajudado a fugir para Inglaterra a cristãos novos. Uma denúncia do capitão Henrique de Baulssay (Caderno do promotor, Liv. 289, fls. 163 a 167 v.) de 25 de Abril de 1726 dava o médico como implicado na fuga para Inglaterra de Manuel Rodrigues Sarzedas e seis ou sete filhos. De facto, nessa altura já ele se tinha circuncidado em Londres e mudado o nome para David. Também Francisco Mendes Sarzedas (Pr. n.º 10406), filho dele, declarou na Inquisição que seus pais e seus irmãos se encontravam em Inglaterra; este mesmo fugiu também depois para Inglaterra, quando pediu uma licença para ir à sua terra, Idanha-a-Nova.

Na mesma data (primeiros meses de 1726) Diogo Lopes Ribeiro preparava a fuga de sua família para Inglaterra. Animá-lo-ia o facto do sucesso profissional alcançado naquela cidade pelo confrade Jacob de Castro Sarmento e sobretudo do primo de sua esposa, Isaac Sequeira de Samuda.

Partiram de Lisboa para Londres, por volta de Maio de 1726, o médico, a esposa, os seis filhos e um genro, marido da filha Isabel, e, na mesma altura ou pouco depois, sua cunhada Teresa Eugénia e o marido Sebastião Nunes Henriques.

Era tempo de o fazerem. Pouco tempo depois, apareceram na Inquisição denúncias contra o médico e sua família, em 1729,  de um seu primo direito, Diogo Nunes (Pr. n.º 7488), filho de uma irmã de seu pai e, em 1730, de Simão Lopes Henriques (Pr. n.º 7299), sobrinho direito de sua esposa, filho de sua irmã, Francisca Soares da Veiga ou Francisca Micaela (nome que adoptou depois de passar pela Inquisição). Estas eram denúncias inofensivas, porque se referiam a pessoas ausentes no estrangeiro.

Convém referir aqui os nomes dos filhos do médico e de sua esposa:

 

 

Filhos– Nome cristão

 

    Idem – nome judeu

 

 
 

Manuel Nunes Ribeiro, 1700-1787

Isabel da Veiga Caetana, casada com Rodrigo Soares

Teresa Eugénia

Rodrigo Lopes

André  de Sequeira  (1710-1789)

Maria Caetana Veiga (1714-1799)

 

Moses Nunez

Raquel Veiga, casada com Jacob Soares de Bivar

Esther que casou com Abraão de Leão em Maio de 1732

José Nunes

Daniel Nunez

Zippora Nunez ou Zipra, casou com David Mendes Machado

 

 

O médico foi circuncidado em 2 de Julho de 1726 tomando o nome de Samuel. Foi padrinho o primo da esposa Isaac Sequeira de Samuda. “Refez” o casamento com a esposa no rito judeu, agora chamada Rebecca ou Ribca em 7 de Agosto de 1726.

A cunhada Teresa Eugénia de Sequeira,  casou também de novo com Sebastião Nunes Henriques  em 14-9-1736 e tomaram os nomes judeus de Abigail e Isaac.

Com a família do médico, fugiu também a família Vila Real, composta por

 

PAIS

João da Costa Vila Real, n.1653, f. 1737       1703 – Pr. N.º 2366

Fora casado em 1.ªs núpcias com Isabel de Sá, mãe de seus filhos, depois casado de novo com  Leonor Nunes, n. 1665, f. ?            1703 – Pr. n.º 3605

 

FILHOS

José da Costa Vila Real, n. 1688, f.  ?            1706 – Pr. N.º 1193, filho de Isabel de Sá

2.º processo em 1726 – Pr. N.º 8568

Casou com Catarina da Costa

 

Luisa de Sá, n. 1794 – 1711 – Pr. N.º 8158, filha de Isabel de Sá

Casou com Luis Álvares Nunes

 

Mariana de Sá, n. 1688 – 1706 - Pr. N.º 6233, filha de Isabel de Sá

Casou com Alexandre de Morais Pereira

 

Manuel da Costa Vila Real, n. 1689 – 1712 – Pr. N.º 9990, filho de Isabel de Sá

 

A VIDA EM LONDRES

 

Chegados a Londres, abandonaram as práticas cristãs e imergiram nos meios judaicos. Os homens foram circuncidados, os casais voltaram a casar-se pelo rito judeu, adoptaram nomes judeus e estudaram a doutrina da religião. O Dr. Samuel tornou-se mesmo um apóstolo da doutrina judaica, tanto que, em 1729, quando esteve em Londres o seu sobrinho António Nunes Ribeiro Sanches, ele o terá convencido a circuncidar-se. Quando, pouco mais tarde, abandonou as práticas hebraicas, Ribeiro Sanches ficou algo sentido com seu tio, como revela na carta citada ao Dr. Sampaio Valadares. Também doutrinou o seu primo Diogo Nunes e o sobrinho de sua esposa, Simão Lopes Henriques, já referidos, que, regressados a Lisboa, se apresentaram na Inquisição para fazer as suas confissões.

Não terá sido fácil a vida da família em Londres. O médico tinha já 58 anos, possivelmente falava mal Inglês. Como era costume nos meios judaicos, terá sido ajudado financeiramente por outros membros da Comunidade. Foi-o sem dúvida pelo primo da esposa, o Dr. Isaac Sequeira de Samuda, mas este faleceu em 1729. Também terão recebido auxílio dos membros da família Vila Real, companheiros da fuga de Portugal, bastante mais abonados que o médico. A sua condição modesta é demonstrada pelo facto de ele pagar à Congregação a finta mínima de 10 xelins.

Apesar da idade já avançada para a época, o médico não hesitou em meter-se noutra aventura.

 

EMIGRANTES NA AMÉRICA DO NORTE

 

Em 1732, o Rei Jorge II estabeleceu um Conselho de 21 “trustes” para dirigir o estabelecimento de uma colónia na Geórgia, na América. Tratava-se sobretudo de proteger a Carolina dos Espanhóis, estabelecidos no Forte de S.to Agostinho, na Flórida e também dos Franceses. Foi nomeado Governador James Edward Oglethorpe (1696-1785).  Este era um idealista, interessado na reforma penal, propondo-se regenerar os criminosos através do trabalho. A Comunidade Judaica de Londres mostrou-se interessada, pedindo sobretudo que os judeus não fossem considerados em plano inferior ao dos Ingleses.

A preparação para a partida do grupo de judeus foi feita no decurso do ano de 1732, sob a orientação do Dr. Samuel Nunes Ribeiro, agora com 64 anos. Entretanto, em 4 de Junho de 1732, a sua filha Teresa (agora Ester), casou com Abraão de Leão, cujo nome cristão não se consegue saber. Apesar de o Conselho dos “trustees” ainda não se ter pronunciado sobre a ida de judeus para a colónia (e a verdade é que a seguir votou contra), o grupo de 42 pessoas embarcou no início de Janeiro de 1733 no navio William and Sarah, para uma viagem de seis meses até à Geórgia.

No grupo, ia parte da família do médico. Em Londres, tinham ficado a filha Isabel (Raquel) e o marido, o filho Rodrigo (José) e a filha Ester. Iam com ele a esposa Grácia (Rebecca ou Ribca), os filhos Manuel (Moses) e André (Daniel) e a filha Maria Caetana (Zipporah ou Zipra), o genro Abraão de Leão e ainda a cunhada Teresa Eugénia (Abigail) e o marido Sebastião (Isaac), com dois filhos, o mais velhito Shem e o outro bebé; finalmente uma criada com o nome judeu de Shem Noah (por isso, não era escrava). O bebé da cunhada morreu na viagem. Não consta da lista a filha Ester, que alguns meses depois partiu de Londres para se juntar ao marido, levando as duas filhas, Rebecca e Raquel.

O grupo tinha 34 judeus sefarditas e 8 asquenazitas.  Chegaram a 3 de Julho de 1733.

O Governador Oglethorpe não contava com a vinda de judeus. Consultou os juristas de Charleston, que, baseados na liberdade de culto, disseram que eles podiam desembarcar. Na altura, os colonos, que não tinham nenhum médico, sofriam de doenças intestinais e de febres, que já tinham levado para a cova mais de vinte. O Dr. Samuel começou a tratar dos doentes, recusando qualquer tipo de pagamento. Mandou tomar banhos frescos, bebidas frescas e medidas de higiene. As mortes pararam.

Interessante também a iniciativa do genro dele, Abraão de Leão, agora conhecido por Abraham de Lyon. Sabendo o interesse do Governador em introduzir o cultivo da vinha, mandou vir videiras de Portugal e iniciou a cultura com bastante sucesso. Mais tarde, a empresa falhou, porque não lhe foi emprestado o capital de que precisava para um cultivo em larga escala.

Em 1733, Maria Caetana (Zipporah) casou com David Mendes Machado, que possivelmente foi mandado vir de Londres para o efeito, num casamento arranjado pela mãe da noiva. No ano seguinte os dois abandonaram a colónia e foram para New York, onde David passou a ser Hazan (cantor) da Congregação Shearith Israel. Ignoramos o nome cristão de David Mendes Machado, sendo tradição que um seu irmão foi queimado em Lisboa num auto da fé.

Mais sefarditas vieram de Londres ainda em 1733 para a colónia. Em 1738, André (Daniel) filho do médico, tinha aprendido a língua dos índios suficientemente para ser contratado pelo Governo como intérprete.

Em 1740, os Espanhóis do Forte de S. Agostinho na Flórida ameaçavam a colónia. Oglethorpe tinha-os atacado com sucesso e eles queriam invadir a colónia como represália. Os judeus ligavam os Espanhóis à Inquisição e ficaram inquietos. A 20 de Agosto de 1740, o médico, seu filho André (Daniel) e a filha Teresa (Ester) partiram para Charleston, Carolina do Sul (Stephen’s Journal, pag. 656). Abraão de Leão ficou para trás, não por muito tempo.

Em Fevereiro de 1741, quase todos os judeus tinham abandonado a colónia. Mas muitos regressaram depois mais tarde, entre os quais os filhos do médico. Este foi em 1741 para New York, assim como seu genro Abraão de Leão e a esposa deste, sua filha.  Diogo (Samuel) Nunes Ribeiro deverá ter falecido pouco depois.

 

DESCENDÊNCIA

 

Os mais ilustres da família são os descendentes de Maria Caetana (Zipporah):

Zipporah e David Mendes Machado (1695-1747) só tiveram a primeira filha Rebecca em 17 de Novembro de 1746. Pouco depois tiveram uma segunda filha Sarah. O marido faleceu logo a seguir em 4 de Dezembro de 1747. Zipporah voltou a casar em 1753 com Israel Jacobs (1714-1810) e foram então viver para Filadélfia. Teve outra filha, a que chamou Raquel.

Rebecca Machado casou em 10 de Novembro de  1762 com Jonas Phillips, um asquenazita nascido na Alemanha em 1736. Tiveram 21 filhos, entre os quais

Zipporah Phillips Noah (1764-1792) que casou em 4 de Agosto de 1784, com Manuel Mordecai Noah, nascido em 1765 em Mannheim, na Alemanha.

Mordecai Manuel Noah, filho dos anteriores, nasceu em 14 de Julho de 1785. Órfão de mãe aos 7 anos, foi praticamente criado e educado pelos avós maternos.

Zipporah, bisavó do anterior, faleceu em 16 de Novembro de 1799.

Jonas Phillips faleceu em 29 de Janeiro de 1803. Rebecca Machado faleceu com 85 anos em 21 de Junho de 1831; está sepultada no cemitério Mikveh Israel  de Filadélfia.

Mordecai Manuel Noah casou com Rebecca Esther Jackson  on 26 de Novembro de 1826.  Ele faleceu em 22 de Maio de 1851. Foi um notável diplomata, político e escritor (dramaturgo). A viúva faleceu em 1866.

 

Releve-se ainda o Comodoro Uriah Phillips Levy, (1792-1862), filho de Michael  (1755-1812) e Raquel Phillips Levy (1769-1839), esta filha de Jonas Phillips, portanto, primo direito de Mordecai. Foi o primeiro Comodoro judeu nos USA.

 

 

Anexo 1

História do Dr. Samuel Nunes Ribeiro, tal como era contada por sua filha Zipporah a seus netos e bisnetos, no final do Sec. XVIII

 

Dr. Samuel Nunes, cujo nome pertencia a uma ilustre família de Lisboa, foi um eminente médico, e tinha uma clientela muito numerosa, mesmo no tempo em que os Judeus desta cidade estavam sob vigilância da Inquisição. A rivalidade e a inveja, no entanto, fizeram com que ele fosse denunciado àquele horrível tribunal e ele e a família fossem presos como hereges e atirados para os calabouços da Inquisição. Naquela época, não era permitido aos Judeus praticar abertamente a sua religião; não tinham sinagogas nem outros lugares públicos de culto, mas reuniam-se para fins de devoção nas casas uns dos outros, e os seus livros de oração ficavam escondidos nos assentos das cadeiras, e abertos por molas. De há muito se verificava que as famílias nunca saíam de casa nas tardes de sexta-feira, por ser a véspera do Sábado, e levantavam-se suspeitas em relação à sua verdadeira fé, embora todos eles fossem à Missa no domingo, para não dar nas vistas. Os familiares da Inquisição, que eram geralmente espiões, dedicavam-se a descobrir onde é que eles iam no Sábado, e se dessem conta que iam rezar, apreendiam os livros de oração judaicos e metiam-nos todos na prisão.

O Dr. Nunes, que era homem muito popular e habilidoso, era médico do Inquisidor Geral, que se preocupava sempre em o salvar. Fez tudo o que estava ao seu alcance para aliviar o sofrimento da família dele; mas um deles, Abby de Lyon, que morreu em Savannah, levou para o túmulo as marcas nos pulsos das cordas, quando submetido a interrogatório. Ficaram algum tempo na prisão; mas como os serviços médicos do Dr. Nunes eram muito procurados em Lisboa, o conselho eclesiástico, com base no parecer do Inquisidor Geral, concordou em pôr em liberdade a ele e à família, na condição que dois oficiais da Inquisição deveriam morar em permanência com a família, para evitar que eles voltassem a cair no Judaísmo. O médico tinha uma grande e elegante mansão nas margens do Tejo, e, sendo homem de grande fortuna, tinha por hábito receber as principais famílias de Lisboa. Numa agradável tarde de Verão, ele convidou um grupo de amigos para jantar; e entre os convidados, estava o Capitão de um bergantim inglês, ancorado no rio a uma certa distância. Enquanto os hóspedes se divertiam no relvado, o capitão convidou a família e parte dos visitantes para o acompanharem a bordo do bergantim e servirem-se da refeição preparada para a ocasião. Toda a família, juntamente com os espiões da Inquisição e parte dos convidados dirigiram-se para bordo da nave; e enquanto eles estavam em baixo na cabina, desfrutando da hospitalidade do capitão, foi levantada a âncora, desfraldadas as velas, e, sendo o vento favorável, o bergantim saiu do Tejo, depressa chegou ao mar e levou o grupo todo para Inglaterra. Tinha sido tudo combinado previamente entre o médico e o capitão, o qual tinha concordado, mediante o pagamento de mil moidores em ouro, em levar a família para Inglaterra, vendo-se ambos na necessidade de adoptar este plano de fuga, para evitar serem apanhados. As senhoras tinham escondido todos os seus diamantes e jóias, que tinham cosido às suas roupas, e o médico tinha previamente transformado todos os seus haveres em ouro, que foi repartido entre os homens da família, e levado por eles em cintos de couro. A sua casa, louça, mobília, criados, carruagens, e até o jantar preparado para a ocasião, tudo foi deixado e foi a seguir apreendido pela Inquisição e confiscado para o Estado.

Depois de o Dr. Nunes e a família terem chegado a Londres, o colonato da Geórgia e o bom clima e solo daquela terra, eram assuntos muito falados. O célebre John Wesley e o seu irmão Charles, tinham decidido visitar este El Dorado; e quando o navio que levava o Governador Oglethorpe para esse novo colonato estava para partir, o médico e toda a sua família embarcaram como passageiros, embora nenhum deles falasse Inglês; e deles descenderam as famílias, já mencionadas nesta obra. Depois de alguns anos, uma parte embarcou para New York; e Zipra Nunes casou-se com o Rev. David Machado, Ministro da congregação hebraica naquela cidade. O Major Noah diz lembrar-se da sua bisavó, Zipra Nunes, como uma notável personagem. Ela morreu com quase noventa anos de idade, e era conhecida pela sua beleza e pelas suas proezas. Falava várias línguas,  teve até ao fim uns lindos dentes, intactos, e dava-se conta, sempre que o relógio dava horas, que ela dizia uma oração silenciosa, o que tinha que ver com a sua prisão pela inquisição. Toda a família era severa no seu apego às doutrinas da sua fé. Dois dos seus irmãos, que vieram de Londres no mesmo navio, estão sepultados no cemitério judeu em Chatham Square, New York, e deles teve origem uma longa lista de muito respeitáveis descendentes em Savannah, Charleston, Philadelphia, e New York, todos eles na crença judaica até hoje.

 

       (De A bicentennial festschrift for Jacob Rader Marcus, ao cuidado de Beltram Wallace Korn, pags. 59-61)

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

 

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O Dr. Diogo Nunes Ribeiro figura nas genealogias das páginas de António Nunes Ribeiro Sanches e de Maria de Melo Rosa.