10-9-2013
NOTAS SOBRE A INQUISIÇÃO
ALGUMAS NOTAS JURÍDICAS (importantes)
I
Defesa - a primeira arguição de defesa no processo de inquisição é a contestação por negação – O arguido nega as acusações que lhe são feitas e indica testemunhas. Era sempre rejeitada, sendo o réu classificado como negativo.
O réu podia, depois, levantar suspeições ou arguir contraditas ou coarctadas. Note-se que a palavra contradita não tem o sentido geral de contraditar ou impugnar. São contraditas das testemunhas (art.º 642.º do Código de Processo Civil), que é pôr em dúvida a capacidade das testemunhas, geralmente, por serem inimigos capitais do réu.
Coarctadas são a invocação de um alibi, por exemplo, a impossibilidade de a testemunha se encontrar no lugar onde diz que estava na altura dos factos.
II
A expressão arcaica “não tendo apresentado defesa, foi lançado da com que pudera vir” significa “não tendo apresentado defesa, foi extinta a possibilidade de a apresentar, por se ter esgotado a oportunidade para o fazer”.
Conforme:
Dicionário de Bluteau, reformado e acrescentado por António de Morais Silva, 1789:
Lançar alguém de mais prova, no foro – não admitir a dar mais prova; e assim lançá-lo da acção – não admitir, ou fazer perder o direito de a propor, absolvendo o réu da demanda.
Está no Liv. II, Tit. X,n.º XI do Regimento de 1640:
Dizendo o réu confitente, que não tem defesa, será lançado dela.
XI . E se o réu confitente, por seu procurador, disser que não tem defesa, com que vir, se ajuntará ao processo a declaração que o procurador nisto fizer, com o traslado do libelo, na forma que fica dito, e feito tudo concluso, pronunciarão os Inquisidores, que o lançam da defesa, com que pudera vir, e que o processo se continue em seus termos ordinários.
III
A “sentença” dos processos da Inquisição não tem valor jurídico porque não é uma verdadeira sentença, não era ali que se decidia a sorte do réu, mas sim no último Assento da Mesa do Conselho Geral ou no último da Mesa da Inquisição se o processo não tivesse de subir ao Conselho Geral nos termos do Regimento. As sentenças dos processos eram um documento de propaganda que era lido no auto da fé e, por vezes, estavam cheias de inexactidões. Este facto passou despercebido a muitos dos que nos sec. XIX e XX, escreveram sobre a Inquisição.
Do mesmo modo, não se deve falar de "acórdão", embora as "sentenças" da Inquisição comecem muitas vezes pela palavra "Acordam". Um acórdão é uma decisão de vários juízes e ali não há decisão nenhuma.
IV
Há quem pense que a Inquisição podia condenar o réu apenas por presumir que ele no seu íntimo não cria na religião católica. Não podia. Tinha de haver factos ou declarações que o provassem.
JUDAIZAR – JUDAIZANTES – CRIPTOJUDAISMO
Os historiadores têm o costume de estudar a Inquisição Portuguesa, descrevendo a sua estrutura, as relações com o poder real, com o Papa e com os Bispos, sem se preocuparem muito com a sua relação com os réus. Por isso, limitam ao mínimo indispensável a consulta dos processos. Acho que isso não está correcto.
São os processos que nos revelam a verdadeira actuação da Inquisição.
Quem é que a Inquisição perseguia? Cerca de 80 % da sua actividade era dirigida contra os cristãos novos. Aí os historiadores, para dizer de que eram acusados os cristãos novos presos, limitam-se a dizer, que judaizavam, que erem judaizantes e não adiantam mais nada. Na realidade, a palavra judaizar nem aparece nos processos, foi inventada pelos historiadores para justificar a Inquisição.
Que é judaizar?
Na realidade, para a Inquisição, judaizar era ser cristão novo, ou ter parte de cristão novo no sangue. Apurado isso, ficavam à espera de que outros desgraçados se lembrassem de acusar o primeiro de actos judaicos para o prender. Depois de preso, teria, primeiro, de tentar adivinhar quem o havia denunciado e depois por sua vez fazer denúncias de outros judaizantes (= cristãos novos), para obter a benevolência dos Inquisidores.
Parece-me poder dividir os cristãos novos em quatro grupos para efeitos da perseguição inquisitorial:
1.º grupo
Cristãos novos, que, tendo sangue de judeus, eram crentes católicos no exterior e no interior.
2.º grupo
Cristãos novos que no seu interior tinham muitas dúvidas ou não acreditavam na fé cristã. Não eram mesmo religiosos. Não praticavam nenhum ritual judaico, não falavam em religião mas praticavam todos os actos obrigatórios da fé católica: confissão e comunhão anuais, ida à missa dominical, e tinham respeito (exterior) pelas igrejas, imagens, sacramentos e cerimónias.
3.º grupo
Cristãos novos que no seu interior acreditavam ainda na religião judaica e na Lei Velha (Antigo Testamento). Porém, não praticavam nenhum ritual judaico, não falavam em religião mas praticavam todos os actos obrigatórios da fé católica: confissão e comunhão anuais, ida à missa dominical, e tinham respeito (exterior) pelas igrejas, imagens, sacramentos e cerimónias.
4.º grupo
Cristãos novos que acreditavam ainda na religião judaica e na Lei Velha (Antigo Testamento). Praticavam alguns rituais judaicos, nomeadamente jejuns e às vezes confessavam a outros as suas crenças. No entanto, praticavam todos os actos obrigatórios da fé católica: confissão e comunhão anuais, ida à missa dominical. Alguns, quando presos, faziam jejuns judaicos, ignorando o sistema das vigias nas cadeias da Inquisição. Não eram verdadeiros judeus, porque não conheciam o catecismo judaico, nem tinham instrução religiosa.
De todos os grupos encontramos exemplos nos processos da Inquisição. Porém, só os do 4.º grupo é que podiam ser legitimamente condenados pela Inquisição, desde que acusados com testemunhos verdadeiros. Para efeitos da Inquisição, só interessa a definição do 4.º grupo, embora se possam classificar como cripto-judeus os dos 3.º e 4.º grupos. Mas a Inquisição não deveria poder tocar nos do 3.º grupo, porque se o fez, foi com falsos testemunhos.
Há tendência para classificar os do 3.º grupo como “judaizantes” e, assim, sujeitos à acção da Inquisição. Está errado. É que o processo inquisitorial baseava-se no direito comum, civil e penal, não podia acusar por presunções, tinha que ter provas concretas. Estou convencido que essas provas começaram a desaparecer quando terminaram as denúncias de cristãos velhos contra cristãos novos. Daí em diante, entrou em jogo o horrível ciclo de denúncias e confissões falsas, que permitia à Inquisição perseguir todos os cristãos novos, os dos quatro grupos acima referidos. Faço excepção para os que fizeram jejuns no cárcere, que (concedo) davam um sinal de crença judaica e, por isso, integravam o 4.º grupo.
Costumam algumas pessoas dizer que os cristãos novos eram todos judaizantes, porque quando fugiam para o estrangeiro iam logo circuncidar-se e inserir-se na comunidade judaica. Ora, isto, por si só, não prova nada. Poderiam ter sido judeus no seu íntimo, mas não poderiam ser acusados se não o tivessem demonstrado em actos exteriores.
Aliás essa adesão ao judaísmo dos que fugiam para o estrangeiro nem sempre era motivada por sentimentos religiosos. Muitos chegavam totalmente desprovidos e tinham de ser sustentados pela comunidade judaica, à qual tinham naturalmente de aderir.
Tenha-se também em atenção que fugiram para o estrangeiro com medo da Inquisição, cristãos novos que lá fora continuaram a ser católicos praticantes.
Estamos a concluir, pois, que a palavra judaizante pode querer dizer muita coisa e seria bom que, quem a usa, acrescentasse o que quer dizer com ela.
Quais era os actos exteriores que demonstravam o judaísmo de quem os praticava? As sentenças dos processos dizem: “guardava os sábados de trabalho, vestindo neles camisas lavadas, e às sextas feiras, consertava os candeeiros e varria as casas ao modo judaico, e jejuava em certos dias, sem comer, nem beber até à noite, em que ceava coisas que não eram de carne. E estando sã e bem disposta, comia carne nos dias proibidos pela santa Madre Igreja, e dessangrando a que vinha do açougue, a lançava em água e sal, e cozia com cebola e azeite frito, e se abstinha da de porco, lebre, coelho e peixe de pele, comunicando estas coisas com pessoas de sua nação e apartadas da fé e com elas se declarava por judia”.
Mas o texto das sentenças ia muitas vezes além do que constava dos depoimentos das testemunhas.
OS INQUISIDORES ERAM MUITO PODEROSOS, MAS NÃO SÓ...
I
Outro costume dos historiadores é o de tratarem a Inquisição como estância de poder, mas depois falarem dos Inquisidores como meninos de coro. Ora, é sabido que o poder corrompe; com aquele poder todo, não podiam ser uns santinhos.
A propósito, gostava de indicar um exemplo: diz-nos o Padre Lupina Freire que o Inquisidor Geral D. Francisco de Castro era muito amigo do negociante cristão novo Manuel Lopes de Carvalho e, através dele, de toda a família Carvalho. Repare-se no mapa que indica os processos da inquisição contra as pessoas dessa família e os anos em que foram instaurados. São todos posteriores ao falecimento do Inquisidor-Geral em 1653! Entre os primeiros presos, a esposa de Manuel Lopes de Carvalho, Isabel Marques (1655-Pr. n.º 8331, relaxada), o qual decidiu fugir para o estrangeiro depois de falar com o amigo dele, Lupina Freire. Este teve medo de ser acusado e apresentou-se na Mesa a confessar que tinha aconselhado o amigo a fugir. Parece-me evidente o que tudo isto quer dizer.
II
A crueldade dos Inquisidores para com os réus vem expressamente documentada nalguns processos. Era banal mandarem os réus pôr-se de joelhos. Nalguns casos, mandavam-nos açoitar e tinham o descaramento de dizer ao Notário para anotar o castigo no processo – ex. Miguel Henriques da Fonseca – Pr. n.º 9485 – fls. 373: O Inquisidor Bento de Beja de Noronha deu-lhe ordem para se ajoelhar diante do crucifixo e quando ele se negou a fazê-lo, mandou-o açoitar .
No processo n.º 1747, de Francisco Rodrigues Mogadouro, de 22 anos, o rapaz estava a ficar tresloucado do juízo com os açoites. Chorando, pedia ao Procurador que fizesse um requerimento aos Inquisidores para que não o açoitassem mais (fls.86).
A RELAÇÃO ENTRE OS INQUISIDORES E OS BISPOS
Tem sido muito estudada a relação entre os Inquisidores e os Bispos, designadamente pelo Prof. José Pedro Paiva, que há pouco publicou o livro:
Baluartes da fé e da disciplina – O enlace entre a Inquisição e os Bispos em Portugal (1536 – 1750), 480 pags., Fevereiro 2011 – Imprensa da Universidade de Coimbra, ISBN 978-989-26-0090-1
O livro está muito bem documentado mas não acho que seja muito conclusivo. Trata essencialmente da convivência dos dois poderes, o dos Bispos e o da Inquisição e parte da premissa que ambos contribuíam para a luta contra a heresia. A luta contra a heresia seria uma defesa da fé católica, o que não é demonstrado.
Fala muito da fé, defesa da fé, heresia, castigo dos heréticos, mas todos os episódios narrados se referem ao poder e à luta pelo poder. Os Bispos queriam ser mais importantes que os Inquisidores e estes mais que os Bispos; nunca chegaram a uma conclusão definitiva.
Por isso, o tema principal do livro é a luta pelo poder entre os dois grupos: Inquisidores e Bispos. Não há uma ligação ao título. Aliás o título “Baluartes da fé e da disciplina” suscita reservas. Fé e Disciplina não emparelham. A Disciplina mascara a inexistência da fé. É natural rejeitar aquilo a que somos obrigados. Exemplificando: Na época da ditadura salazarista, nas nossas aldeias, quem não ia à Missa ao Domingo era rotulado de comunista e, por isso, de opositor ao regime. Por isso, as pessoas sentiam-se obrigadas a ir à Missa, mesmo contra vontade, para não serem apontadas como sendo do reviralho. Por isso, também todos os cristãos novos frequentavam os sacramentos, missa dominical, confissão e comunhão anual, para não serem apontados à Inquisição, mesmo que no íntimo continuassem fiéis à fé judaica.
O livro poderia muito bem ter o título : “A Inquisição e os Bispos de Portugal em luta pelo poder “. É claro que também não subscrevo a conclusão. De facto, no decorrer do livro, Bispos e Inquisidores lutam pelo poder, os presos são humilhados, amarfanhados e relaxados: no meio disto tudo onde anda a fé? No coração de quem?
Quais são as verdadeiras premissas?
Diz-se na pag. 208: [havia que] “solucionar o problema dos cristãos novos”. Mas não se diz qual era o problema. Na pag. 206: “Só com a graça de Deus e a acção conjugada da Inquisição e dos Bispos seria possível evitar a proliferação da heresia judaica no Reino”. Esta a premissa: os cristãos novos praticam o judaísmo, tinham de ser castigados. É o costume: diz-se que judaizavam, não se especifica em que consistia esse judaizar e vai-se por aí fora.
Antes, porém, o Autor refere (pag. 198) a teoria de Alonso de Espina no livro Fortalitium Fidei, (1459), segundo o qual, “todos os conversos, por uma questão “racial” eram maus cristãos, continuavam a judaizar e a negar o Novo Testamento”. A esta ideia opunha-se Alonso de Oropesa, que no livro Lumen ad conversionem gentium, defendia “que se havia conversos que permaneciam judeus, outros eram verdadeiros cristãos, sendo a sua fé tão válida como a dos cristãos velhos, tentando assim evitar os ataques baseados em pressupostos raciais contra os recém convertidos.” Mas o Autor conclui: ”Em Portugal, ao longo de toda a Época Moderna, a corrente que vingou e teve mais seguidores entre os homens da Igreja, sobretudo depois da criação, foi a da matriz do franciscano Espina. Se é certo que houve divisões na Igreja a este respeito, foi esta a visão dominante e vencedora”. Eu disso estou convencido, mas o Autor é que esqueceu, no resto do livro, o que aqui dissera.
Diz-se e repete-se pelo livro fora que a Inquisição se destinava à defesa da fé, mas a pag. 209, cita-se D. Afonso de Castelo Branco, Bispo do Algarve e de Coimbra, o qual disse que “os sentenciados pela Inquisição, devido aos castigos que lhes aplicavam, ainda ficavam mais “finos e figadais judeus”.
Cita-se também uma frase de Filipe III, em Julho de 1609: “Desejando eu que a Inquisição se conserve nesse Reino com toda a autoridade e respeito devido e tendo consideração que, com o terror de suas penas e castigos se refreia mais a frequência destes delitos…” Sem dúvida que o texto foi redigido por algum Bispo ou Inquisidor.
Na pag. 308, há outra “confissão” do Autor: “…
"Por último, pode não ter sido desprezível o facto de a Inquisição ter concentrado a sua actuação na perseguição dos cristãos novos. Isso teria permitido – até que, em 1773, Sebastião José de Carvalho e Melo impusesse o fim da distinção entre cristãos novos e cristãos velhos – a existência de um contingente de potenciais alvos que alimentavam a dinâmica de funcionamento da instituição e, de certo modo, justificavam a sua existência, sem que para isso tivesse que actuar em zonas onde os riscos de desentendimento com os prelados podiam ser mais sensíveis.” Também estou muito de acordo com esta afirmação: a Inquisição perseguiu os cristãos novos para ter uma razão de existir; não tinha nada a ver com a fé.
A colaboração dos Bispos na Inquisição
(pag. 158) Nos termos do Regimento, os Bispos deviam participar no despacho dos processos nos Assentos da Mesa. Mas o Autor fala em “voto que lhes era requerido na sentença final dos processos inquisitoriais”, o que não é correcto. O Assento da Mesa só era sentença final nos processos que não iam à apreciação do Conselho Geral, isto é, os menos importantes. E na decisão do Conselho Geral não participavam os Bispos. Muitas vezes, o Conselho Geral decidia em discordância com a Mesa da Inquisição ou seguindo posições minoritárias; as suas decisões aparecem sempre como tomadas por unanimidade. O Autor não fala nesta faceta do caso mas ela reduz a colaboração dos Bispos nos processos a bem pouco.
Aliás, com o passar do tempo, tal como refere o Autor, os Bispos começaram a delegar a sua presença na Mesa da Inquisição em várias pessoas, depois a delegar nos próprios inquisidores. A participação dos Bispos nas decisões tornou-se assim um mero pro forma.
A confissão
Refere o Autor a importância da confissão sacramental na fé católica, depois do Concílio de Trento. Foi estabelecido o rol da desobriga que permitia saber os fiéis que não faziam a confissão e comunhão anuais obrigatórias. O rol da desobriga persistiu na nossas aldeias até meados do séc. XX. Permitiu aos padres que iam para o Brasil enriquecer a passar certificados da desobriga ("conhecenças") que chegaram a custar 1 500 reais, cada.
No entanto, a Inquisição manobrou a confissão de modo a que esta não servisse de impedimento à acção inquisitorial. Os confessores não só não podiam absolver os hereges (a quem mandavam apresentar-se à Inquisição), como também negavam a absolvição às pessoas que tinham testemunhado declarações heréticas, enquanto não denunciassem essas pessoas à Inquisição (pag. 116).
Mas o Autor não fala noutra perversão do sistema: é que a Inquisição negava aos presos a confissão durante todo o tempo da prisão (assim como a comunhão).
Inexactidão
Diz o Autor (pag. 369) que a obra de Frei Francisco Machado, “Espelho de cristãos novos convertidos”, “nunca viu a luz do prelo”. Não é exacto porque foi editada e traduzida para inglês por Mildred Evelyn Dordick Vieira e Frank Ephraim Talmage e publicada em 1977 pelo Pontifical Institute of Medieval Studies, em Toronto, sob o título “The mirror of the new Christians”; encontra-se na BNP (cota: R. 14445 V).
Decadência da Inquisição
Diz o Autor (pag. 394) que há uma nítida decadência da Inquisição a partir da disputa de 1674-1681. Não dá razões claras para isso. Para mim, a razão da decadência é que já tinham sido penitenciados todos os judeus ricos e fora cortada aos cristãos novos a possibilidade de enriquecerem. A "clientela" era assim menos interessante.
De acordo
Estou de acordo com o Autor quando diz que não foi criada a Inquisição no Brasil, porque estava perto, a três meses de viagem (pag. 196). Acresce ainda que havia muitos barcos a fazer a viagem, devido sobretudo à importação do açúcar. Sempre tive essa opinião. Vi nos processos da Inquisição cartas precatórias para interrogar testemunhas no Brasil demorar até menos de seis meses, o que é admirável, sabendo que hoje uma carta rogatória demora anos!
Crise de 1672-1681
O Autor não aprofunda a história desta crise, cujo estudo é complicado pela enorme abundância de documentos.
Costuma referir-se que os cristãos novos tentaram obter o perdão para libertar os abastados pertencentes à comunidade que tinham sido presos. Eu tenho uma opinião diferente: a Inquisição fez uma jogada de antecipação com essas prisões que implicaram o arresto de todos os bens. Desapareceu assim o dinheiro que serviria para dar ao Rei pelo perdão e os cristãos novos (bem como os que os apoiavam) partiram para a discussão já derrotados.
Bispos e Inquisidores tinham por força de colaborar de vez em quando; afinal, eram recrutados no mesmo meio e bispos tornavam-se inquisidores e inquisidores passavam a bispos, tal como refere o Padre António Vieira, também citado pelo Autor (pag. 243):
O Residente continua com a sua suspensão daquela ordem [1], de que primeiro recebeu a revogação que o decreto; os procuradores dos homens de negócio não se descuidam, mas, desassistidos da autoridade real, não podem alcançar a justiça que os ministros lhe concedem com as boas palavras que aqui nunca faltam. Dizem-lhe quem há-de dar vista as partes, e elas em Portugal procuram não chegar a esses termos. Têm por si todos os bispos que todos foram ou inquisidores ou deputados, e terão também todos os que querem este degrau para subir aquele, e seus pais e parentes e dependentes e familiares, enfim tudo. Haverá três dias que aqui chegou Raviza [2]; dizem que vem empenhado pela mesma parte.
[1] sobre a reforma dos estilos da Inquisição
[2] vindo de Lisboa, onde era Núncio Apostólico
(Carta CCCXIV, de 14 -11-1673 a Duarte Ribeiro de Macedo, in Cartas do P.e António Vieira, editadas por J. Lúcio de Azevedo, vol. II, pag. 678 – edição de 1926 da Universidade de Coimbra)
Concluindo, há uma falta de lógica no livro que, tratando em todo o texto de lutas pelo poder, dá de barato que a Inquisição agia na defesa da fé católica.
Vou agora transcrever da pag. 13 da Introdução do livro, um trecho com o qual concordo inteiramente:
Na Torre do Tombo (ou o que quer que agora se designe) foi imprescindível a diligência e apoio do Paulo Tremoceiro. Sem ele ter-me-ia sido impossível consultar documentação do espólio inquisitorial, particularmente nos anos convulsos em que boa parte dela esteve a ser digitalizada. E alguma que poderia ser muito relevante ficou de fora, apesar dos pedidos que fiz à Direcção da instituição para a consultar. Pelas lacunas que possam daí ter resultado, todavia, só eu sou responsável. Mas convém alertar para este problema. Actualmente os historiadores são confrontados com algumas políticas excessivamente fundamentalistas dos arquivistas, os quais têm dificuldade em entender que o património que têm a obrigação de preservar, só justifica esse esforço se servir para o disponibilizar à consulta, por forma a que, a partir dele, entre outros aspectos, se possa edificar uma outra forma de património: a História. A negação pura e simples aos historiadores de acesso a documentos, alegando-se o seu mau estado de conservação é hoje frequente, tal como recorrente é impedir-se a consulta de originais, com base no argumento de que os mesmos estão disponíveis em suporte de microfilme ou noutros formatos digitais. Esquecem os sábios da arquivística como muitas das pesquisas de alguma documentação, pela forma como está organizada e pelo seu volume, são impossíveis de consultar por historiadores, em tempo útil e com total rentabilidade da exploração da fonte, sem o acesso aos originais. E, seguramente, não se lembram que os próprios arquivistas jamais se sujeitariam a fazer o tratamento da documentação consultando-a sob estes formatos. No fundo, há quem se recuse a entender que a documentação custodiada num arquivo, se não for disponibilizada de forma eficaz é como se não existisse.
O ABADE ANTÓNIO DA COSTA SOBRE A INQUISIÇÃO
Vossa Mercê saiba que quanto mais me afasto de Portugal, em mais horrendo conceito acho estarem os portugueses em matéria de costumes. Chamam-nos aqui os homens mais bárbaros de todo o mundo, os mais odiendos, mais vingativos, mais desconfiados, mais cruéis, e enfim de quem se deve fugir como de uma nação de diabos, se a houvesse no mundo. O que lhe faz a esta gente maior horror é o ódio que temos, e a crueldade com que tratamos, e víamos tratar, e castigar os nossos naturais, nascidos de pais, avós, bisavós. etc., portugueses, criados connosco na escola, e estudo, com a mesma língua, e costumes, com as mesmas inclinações, e gostos, e com a mesma crença de cristãos católicos romanos; e certo que neste ponto não se pode negar que têm mais que razão; amar a quem é nosso inimigo actualmente, como nos aconselham os pregadores por boca de Cristo, é ao nosso parecer contra a natureza, e contra a razão; mas ter ódio a quem nos não faz mal, antes bem muitas vezes e nos quer bem, e até nos parece em muitas ocasiões de um excelente natural, é uma das mais refinadas maldades a que pode chegar o coração humano, e indigníssimo de perdão, se não nascesse de falta de juízo.
Desta matéria acabarei de estalo, senão nunca acabo, porque nada me parece bastante para ponderar a tolice com que ajuizamos destes nossos patrícios, chamando-os homens de nação como se não fossem da nossa, cristãos novos, como se tivessem sido circuncisados no nascimento, criados na Lei velha, e, depois de grandes, se fizessem cristãos, como se fazem cá os judeus, e se faziam os de Portugal, quando lá os havia, etc.; e o ódio que mostramos nas nossas acções ter-lhes, sem a mínima razão, o desprezo com que falamos deles, a grande infâmia de que os julgamos merecedores, etc.?
Da Carta XI, de 4-12-1779, dirigida a Manuel Gomes da Costa Pacheco
Cartas do Abade António da Costa, introdução e notas de Fernando Lopes Graça, Cadernos da “Seara Nova”, Biblioteca do Século XVIII, Lisboa, 1946
O CARDEAL D. HENRIQUE E OS CRISTÃOS NOVOS
Carta do infante D. Henrique a Pedro Domenico
10 de Fevereiro de 1542
Traslado da carta que o Infante Dom Henrique escreve a Pedro Domenico sobre o negócio da Inquisição.
Pedro Domenico, vi a carta que me escreveis, feita a três de agosto passado, em resposta do que vos escrevi que trabalhásseis para que Sua Santidade revogasse o privilégio de Duarte de Paz [1], e breve concedido a Beatriz Fernandes [2], e o que o papa respondeu a isso, e que o pôs em dilação; e, segundo vejo, até agora não é feito mais nada, porque não vi mais resposta vossa acerca disto. Ao presente não tenho mais sobre isto que vos escreva, senão que o mal é cá muito grande entre estes cristãos novos, e o que se suspeitava à primeira deles se acha agora por experiência, e ainda muito mais. E os que são condenados não podem alegar serem condenados por testemunhos falsos ou de cristãos velhos, porque todos até agora o são por suas próprias confissões e testemunhos de cristãos novos. São cá compreendidos em coisas tão feias e abomináveis contra Nosso Senhor e sua santa fé católica que se não poderiam crer, se não fossem tão claras e tão provadas como são. Um sapateiro em Setúbal, cristão novo, per nome Luis Diz, se fez Messias, e com milagres feitiços provocou muitos cristãos novos a crerem que o era, e o adorarem e lhe beijarem a mão por Messias, e fazerem outras exorbitâncias com ele, entre os quais havia físicos e letrados, que eram havidos por homens de bem. Outros se fazem profetas, e um mestre Gabriel, cristão novo, físico, andava em Lisboa pregando aos cristãos novos de casa em casa a lei de Moisés, e se provou que circuncidou muito número deles, e fez muito dano. Outro, em Coimbra, adquiriu a si muitos discípulos, aos quais lia em hebraico e os convertia à lei de Moisés. Também em Lisboa fizeram com uma cristã velha que se tornasse judia, e com grande solenidade lhe cortaram as unhas, como costumam em tal auto, e fizeram todas as mais superstições. E se achou em Lisboa uma casa em que se ajuntavam e tinham sinagoga secretamente, o que tudo está aprovado e averiguado per eles mesmos. E estas e outras muitas coisas semelhantes tão abomináveis fazem os cristãos novos deste Reino. Quis tocar isto brevemente para onde vos achardes e virdes ser tempo o poderdes dizer e representar. E se este não partira tão depressa, eu vos mandara o traslado das sentenças que se deram contra eles: e porém se vos parecer necessário o farei logo. E Nosso Senhor sabe que o zelo de El-Rei meu senhor e meu nesta parte não é outro, salvo ele ser servido e sua santa fé católica exalçada e acrescentada.
Escrita em Évora a dez de Fevereiro, Jorge Coelho secretário a fez, de 1542.
Corpo Diplomático Português, vol. V, pag. 34
[1] Representante dos cristãos novos que em Roma lutou contra a introdução da Inquisição em Portugal no período de 1538 a 1538; tinha um salvo conduto do Papa Paulo III, passado em 16 de Novembro de 1535.
Ver James W. Nelson Novoa, “The Departure of Duarte de Paz from Rome in the light of documents from the Vatican Secret Archive”, in Cadernos de Estudos Sefarditas n.º 7, 2007, pags. 273-300,
Online: http://www.catedra-alberto-benveniste.org/_fich/15/James_W._Nelson_Novoa.pdf
[2] Ré no processo n.º 8575, da Inquisição de Lisboa. Conseguira do Papa Paulo III dois breves de 28-1-1541 e de 8-1-1542, dispensando-a de cumprir as penitências decretadas pela Inquisição e de trazer o sambenito.
Portugueses na Inquisição de Sevilha
A antiga xenofobia, o sentimento anti-judeu será manipulado de novo aproveitando uma dupla conjuntura: por um lado, a secessão de Portugal em 1640, que colocará os cristãos novos portugueses na posição de quinta coluna do inimigo instalado no país; por outro, a perda de influência do Conde Duque que os favorecia. A dura repressão que distingue este período desencadeou-se exactamente à volta de 1640, data que marca o início da depressão sócio económica mais profunda de todo o século XVII.
A vida dos portugueses residentes em Espanha tornar-se-ia ainda mais difícil no século XVIII, quando Portugal ficou entre os vencidos da contenda disputada por franceses e austríacos para a sucessão da Coroa de Espanha, após a morte de Carlos II. O anti-semitismo subiu a tal grau de virulência que voltaram a aparecer as lenda de meninos cristãos martirizados, crime outrora achacado falsamente aos judeus, e de que se culpavam agora os cristãos novos que foram, por isso, processados pela Inquisição.
A repressão prolongou-se até 1730 aproximadamente. O Santo Ofício procedeu com tanto rigor, depois de a guerra ter acabado em 1713 – convertida pela propaganda em cruzada contra a heterodoxia - que o criptojudaísmo deixará de existir praticamente em Espanha. Após cinco séculos, o chamado perigo do judaísmo desapareceu do seio da sociedade espanhola que o tinha criado e alimentado. Surgiu no século XIII, com os sangrentos pogroms que foram o início da conversão em massa dos judeus espanhóis ao catolicismo.
No século XVII encontramos em Sevilha e sua província uma florescente comunidade de portugueses que ali tinham chegado atraídos, sobretudo, pela riqueza desta cidade, a que afluíam dinheiro e negócios, convertida pelo seu porto no centro privilegiado do comércio das Índias. Para além disso, rinham vindo para fugir aos rigores da Inquisição Portuguesa, e fugindo também da perseguição de outros distritos inquisitoriais espanhóis. Este êxodo contínuo levá-los-á também a outros países da Europa e possessões do Ultramar, seguindo as redes comerciais internacionais em que os portugueses vão paulatinamente aumentando a sua presença até atingirem uma posição destacada. Cádiz, El Puerto de Santa Maria, Sanlúcar de Barrameda e Jerez, foram também lugares de residência escolhidos por estes portugueses. A sua afluência à cidade de Cádiz será contemporânea com a decadência de Sevilha e a perda dos seus privilégios comerciais. Huelva e o porto de Ayamonte, pela sua posição limítrofe com Portugal, serão igualmente residência procurada por estes portugueses.
A eliminação deste grupo de homens e mulheres laboriosos e empreendedores, dedicados sobretudo à medicina, aos negócios e ao artesanato, teve que ter necessariamente consequências negativas para o desenvolvimento de Espanha. Os cristãos novos que, temendo cair nas redes inquisitoriais, fugiam do país dirigiam-se para poderem praticar livremente as suas crenças, para as nações que os acolhiam, colaborando no seu crescimento, enquanto Espanha decaía. Do mesmo modo, esta repressão, feita em momentos tão cruciais para a história de Sevilha, teve sem dúvidas influência no seu ocaso.
Minha tradução, de
Maria Victoria González de Caldas Méndez, El Santo Ofício en Sevilla, in Mélanges de la Casa de Velásquez, Tome 27-2, 1991, pags. 59-114
Online: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/casa_0076-230x_1991_num_27_2_2585
D. Luis da Cunha criticou D. João V, por ir assistir aos Autos da Fé.
Advirto, porém, que para se ver a utilidade de qualquer dos ditos remédios, que à primeira vista parecerão violentos, ainda que no fundo, e bem considerados são muito suaves, será necessário dar tempo ao tempo; porque os que obram lentamente são os mais seguros e os homens não crescem como os cogumelos, quero dizer, de um dia para o outro. O que não obstante todos estes remédios, além dos já referidos, se oferece um quase irreparável obstáculo, o saber, o da educação que se deu a El-Rei nosso senhor, porque sendo Príncipe, foi o Senhor D. Nuno da Cunha, hoje Inquisidor Geral e então deputado do Santo Ofício o que para ganhar a sua graça lhe foi inspirando como santas, justas e infalíveis as máximas daquele tribunal, sem lhe insinuar as objecções que elas sofriam, antes lhe exagerava somente o grande merecimento que teria diante de Deus de preservar a sua Santa Fé aniquilando o judaísmo, de sorte que estas impressões dadas e recebidas em tão tenra idade ficaram indeléveis e o que mais é, que honrando o dito Senhor os Autos da Fé com a sua real presença autoriza e qualifica o procedimento dos inquisidores; o que Filipe V, depois de subir ao trono de Espanha, nunca quis fazer, antes sai de Madrid todas as vezes que se faz aquela celebridade; mas o que mais me admira, é que El-Rei N.S. queira ver as execuções como se aqueles miseráveis não fossem seus vassalos. Tal é a força da criação que faz perder os sentimentos da humanidade e tais foram também as ideias as ideias que se deram, ainda que mais gloriosas, ao Senhor Rei D. Sebastião, a respeito dos maometanos, com os quais se perdeu a si mesmo e a todos nós; porque os que o faziam ler as vitórias dos Reis seus antepassados contra os infiéis, não acompanharam esta boa lição das más consequências, que poderiam ter. se as perdesse e assim de todos os funestos acidentes, que se seguiram da desgraçada batalha de Argila terão dado conta a Deus os Jesuítas, que inspirando-lhe o bem daquelas virtuosas e cristãs empresas, não lhe fizeram ver o revés da medalha, para considerar, que era injusta a que meditava, e poderia ter o mau sucesso que experimentou.
D. Luis da Cunha sobre a Inquisição – pags. 65 a 100
Instruções inéditas de D. Luis da Cunha a Marco António de Azevedo Coutinho, revistas por Pedro de Azevedo e prefaciadas por António Baião – Academia das Ciências de Lisboa – Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930.