4-11-2005

 

PADRE MANUEL DE MORAES

(1596 ? - 1651?)

 

O Padre Manoel de Moraes, brasileiro, natural de S. Paulo, foi um célebre aventureiro do início do sec. XVII. Foi sacerdote jesuíta (depois expulso da Ordem), chefe militar dos índios lutando contra os holandeses, na guerra de Pernambuco. Capturado pelos holandeses, passou para o lado do inimigo, abjurou da religião católica e converteu-se ao calvinismo. Mandado para a Holanda, aí casou duas vezes e teve 3 filhos.

Foi julgado no Tribunal da Inquisição e queimado em efígie em 6-4-1642.

Em 1643, regressou ao Brasil e fez-se explorador e comerciante de pau-brasil.

Denunciado de novo, foi preso e mandado para Portugal a fim de ser outra vez julgado pela Inquisição. Foi condenado a prisão perpétua, mas acabou por ser posto em liberdade.

 

 

O P,e Manuel de Moraes (ou Morais) é referido nestes sites:

 

                    

 

Em vida, publicou um livrinho intitulado “Pronostico y respuesta a una pregunta de un Caballero  muy illustre sobre las cosas de Portugal”, impresso em Leiden (Holanda) em 1641, folio - 4.  Dedicado a Tristão de Mendonça Furtado, Embaixador do Rei de Portugal D. João IV, na Holanda. "Nesta obra se intitula o Autor Teólogo, Histórico da Ilustríssima Companhia das Indias Ocidentais. A este livro por ser em favor da Aclamação do Sereníssimo Rey D. João IV, impugnou com razões inconcludentes, D. João Caramuel na Respuesta al Manifesto de Portugal, liv. 5, cap. 8, e no Joannes illigitimus Rex demonstatus, p. 197" (de Bibliotheca Lusitana, de Diogo Barbosa).

O livro ou panfleto (difícil de encontrar) defende a restauração de Portugal ocorrida em 1640, depois de 60 anos sob o domínio de Espanha.

Que o livro pelo menos existiu, prova-o de facto a crítica cerrada que contra ele escreveu um partidário de Espanha contra a Restauração de 1640, o Padre Juan Caramuel Lobkowitz (1606 – 1682),  Respuesta al Manifesto del Reyno de Portugal, por Dom Juan Caramuel Lobkowitz, Religioso de Dunas, Dotor de S. Theulugia, Abad de Melrosa y Vicario General  de la Orden de Cister por los Reynos de Inglaterra, Irlanda, Escócia, etc. En Anberes, en la Oficina Plantiniana de Balthasar Moreto, M DC XL II.

 

Encontra-se pelo menos um exemplar nos “reservados” da Biblioteca Nacional. Assim começa o Capítulo VIII:

 

Capitulo VIII – Examinase el libro de Manoël de Moraëz

 

Salió, pocos dias á, un tratado en idioma Hispano – bárbaro, com tantos solecismos como líneas y tantos barbarismos como clausulas. Intitulose, Pronostico y Respuesta a una pregunta de un Caballero muy ilustre sobre las cosas de Portugal; hecho por Manoël de Moraëz, Lusitano Theologo, Histórico de la Ilustríssima Compañia de las Índias Occidentales. Impreso en Leyden, año de 1641.  Reparo en el titulo, y hallo en el muchas cosas dignas de gran ponderación.  Pronostico o Calendário se intitula. y de que Astros colige los sucesos futuros que nos profetiza? de los que observó en emisferio de las Índias, un Portugues trasplantado en Holanda y un Theologo ingerto en Historiador de Calvinistas; donde la consequencia pide, que Theulugia y Historia sinbolizen. Mejor la intitulara Anzuelo; pues en la Dedicatoria engrandece y repite muy fuera de propósito la liberalidad de Don Tristan; blanco a que apuntaba este mendigo adulador. Iré examinando algunos puntos principales, sin detenerme en tildar muchos yerros de pluma; porque siendo Moraëz Licenciado por Amsterdam, á de tener licencia de casar no solo Theulugia Catholica com Historia de herejes, sino también la língua Castellana con la Portuguesa, haziendo conposiciones peregrinas de elementos contrarios.

 

A crítica prossegue por cinco páginas. O texto completo pode ser consultado online, aqui (págs. 213 a 217 do software). O mesmo livro do Padre Juan Caramuel foi reproduzido no 1.º volume (pags. 35 a 185) do livro Papéis da Restauração - selecção e estudo prévio de António Cruz, da Fac. de Letras do Porto, 2 vols., Editora Marânus, 1967, 1969. Infelizmente o Prof. António Cruz não reproduziu o Pronóstico y Respuesta de Manuel de Moraes, embora lhe faça uma referência na nota 26 (pag. XXIX) da Introdução, referindo uma cópia manuscrita existente na Biblioteca Pública Municipal do Porto.

6-11-2009 - Finalmente encontrei referências a vários exemplares do Pronostyco y respuesta. Ver aqui.

 

António de Sousa de Macedo (1606-1682) respondeu à crítica de Juan Caramuel Lobkowitz no seu Juan Caramuel Lobkovvitz, religioso de la orden de cister abbad de melrosa, &c.: convencido en su libro intitulado, Philippus prudens Caroli V, Imper. filius, Lusitania, &c. legitimus rex demonstratus, impresso en el anäo de 1639 : y en su respuesta al manifiesto del reyno de Portugal, en el año 1642,  por Antonio de Sousa de Macedo,  impresso por Richard Herne, 1642, Londres - páginas 129 a 131:

 

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Examina en el cap. 8. un libro de Manuel de Moraes, segun dice, mas el examinador queda examinado, y reprovado miserablemente; porque aviendo Moraes trasladado con fidelidad unas palabras Castellanas del P.e Mariana lib. 10 c. 13 dice el examinador: estrané estas palabras, y reconociendo el lugar citado no lo reconoci, porque Mariana dice, etc.  pone las palabras de Marianna en Latin, y luego las traduce en Castellano, como quiere, accusando al examinado de que no las supo traducir; Pensé (dice) que sabia latin el licenciado, pero, como veo, es graduado en la lengua vulgar, porque a saber quatro conjugaciones, no confundiera sentencias, y clausulas contrarias. Y es el caso que el Moraes no hiço traducion alguna, sino que trasladó puntualmente las palabras de la misma traduccion que el mismo Mariana hiso de la historia que avia compuesto en latin, y ni esto le bastó para escapar de la lengua de Caramuel, son las palabras, hablando de Portugal: La gente es mũi desseosa de honra, y mũi valiente entre todas las de España,  señalada en la templança del comer, y del vestido, dada a la piedad, y a los estudios de sabiduria, de toda humanidad y policia. Y como como la alegacion de derecho que se hiço por parte de la Sen. D. Catalina, (de onde Caramuel sacó todo el tezoro de su sciencia, como ya mostramos) no le dixo que el P.e Marianna avia compuesto la misma historia en Castellano, el no lo sabia, y accusa al otro en lo que no sabe, y siempre de dos es la una, o no sabia que aquel historiador se avia traducido a si mismo, y es demasiada ignorancia para quien examina, y reprueba; o, si lo sabia, y reprobó  sin verlo primero, es demasiada temeridad; que dirá ahora? yo de mi digo, que si mi cogieran tanto alas manos (como dicen) en semejante falta, tuviera verguenza de mas tomar pluma en la mano.

…………………………………………………

O texto pode ser visto online, aqui - págs. 79 e 80 do software, bem como no livro Papéis da Restauração, acima referido.

 

O “Pronostico y Respuesta …..“é também mencionado em Juan Alonso Calderón, Portugal concluido y el tirano Braganza conbenzido de sus mismos argumentos por el Rei Católico y obligación de el Papa para salir contra ella con anbos cuchillos, Apéndice II com o título “Libros que an salido apoiando la tiranía de Bragança i en fabor de el Rey Nuestro Señor” (Biblioteca Nacional de Madrid, Mss. 633, fols. 3 r.- 4 r.) conforme informa o historiador Fernando Bouza em “La guerra y la Restauração portuguesas en la publicística española de 1640 a 1668”.

 

Também existe na Biblioteca Nacional um códice com um “folheto” manuscrito em 11 páginas, copiando um “artigo” do Licenciado Manuel de Morais, com o título Resposta que deu (o Licenciado Manuel de Moraes) ao dizerem os Hollandezes que a paz era a todos útil mas a Portugal necessária y porque deste Reyno se lhe ofereçeo hũa proposta para a paz.  (Códices 2694, págs. 37 a 42 e 1551, págs. 59 a 64).

Este texto é referenciado como constando dos “Anais do Museu Paulista”, 1 : 119-133, 1648, e está transcrito aqui.

 

 

Livros que referem o Padre Manoel de Moraes:

  

João Manuel Pereira da Silva (1819-1898) publicou em 1866 no Rio de Janeiro um romance sobre a vida dele, com o título “Manuel de Moraes- Chronica do sec. XVII" (Online: http://books.google.com ). Existem exemplares nas bibliotecas de Lisboa.  O valor informativo da obra é quase nulo, mas mesmo assim, foi traduzido para inglês em 1886, por Sir Robert Francis Burton e esposa Lady Isabel Burton. Original e tradução aparecem no catálogo da British Library, em Londres.

 

Muito mais interessante a reprodução do processo da Inquisição (167 págs. em letra miúda), com o n.º 4847 (Inq. de Lisboa) publicada em 1908 na Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro volume LXX, parte I,  Rio de Janeiro 1907 – impresso em 1908 no Rio de Janeiro – Imprensa Nacional. Também já se encontra online na base de dados da Torre do Tombo.

 

Depois, há uma separata resumindo o mesmo processo da Inquisição:

 

LIMA, Manuel de Oliveira, 1867-1928
O padre Manoel de Moraes / M. de Oliveira Lima. - S. Paulo:Typographia do Diario Official, 1907.-18 p. ; 24 cm. - Sep. Revista do Instituto Historico de S. Paulo, vol. 12

É este livro que se encontra reproduzido a seguir.

 

Nos Anais do Museu Paulista:

    - Tomo I, 1922, págs. 119-133 :"Resposta que deu o Ldo  Mel de Moraes a dizerem os Olandezes que a paz era a todos útil mas a Portugal necessária quando por parte deste Reino se lhes offereceo hũa proposta para a paz". 1648, final do ano.

    - Tomo II, 1925, págs. 7-49: Padre Manoel de Moraes, artigo de Affonso de E. Taunay.

 

O Padre Manoel de Moraes é referido em curtas biografias, todas com muitos erros, em:

 

 - Dicionário de autores paulistas, de Luís Correia de Melo, publicado em 1954, pela Comissão do IV Centenário da Cidade de S. Paulo

 

-  Dicionário biographico e bibliographico de Inocêncio Francisco da Silva, edição de 1893.

 

 - Bibliotheca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado – 1752, onde a sua entrada diz:

 

MANOEL DE MORAES, natural da Villa de S. Paulo, hoje Cidade Episcopal em o Estado do Brasil. Sendo admittido á Companhia de Jesus, foy della expulso, quando já era Sacerdote, e Theologo, e passando a Olanda esquecido da Fé prometida no bautismo, e da educação virtuosa, que tivera em tão sagrada Religião professou os abominaveis dogmas de Calvino, e se desposou com mulher sequaz dos mesmos erros, por cuja detestavel apostasia foy relaxado em Estatua no Auto da Fé celebrado em Lisboa a 6. de Abril de  1642. Passados tres annos veyo a Portugal, e sendo preso pela Inquisição de Lisboa, esteve muito tempo obstinado profitente dos delirios de Calvino,  e sahindo no Auto da Fé, que se celebrou a 15. de Dezembro de 1647, com insignias de fogo, illustrado da divina graça, abjurou a sua perfidia com muitas lagrymas testemunhas do seu arrependimento.

 

Compoz:

 

Prognostico, y repuesta a una pregunta de un Cavallero muy illustre sobre las cosas de Portugal. Leiden .  1641 .4.- Dedicado a Tristão de Mendoça y:Furtado, Embaixador delRey de Portugal D. João IV. aos Estados de Olanda. Nesta obra se intitula o Author Theologo, Historico de la Illustrissima Compania de las Indias Occidentales. A este livro por ser em favor da Aclamação do Serenissimo Rev D. João IV. impugnou com razoens inconcludentes D. João Caramuel na -Repuesta al Manif. de Portug.  liv. 5. cap. 8. e no Joannes illigitimus Rex demonstratus. p. 197.

 

Historia da America.Esta obra por estar incompleta a não imprimirão os Elzeviros em Olanda como queria seu Author. Della extrahio noticias importantes João Laet, que collocou na sua Historia Indiae Occidentalis. Fazem memoria desta Historia, como de seu Author Nicol. Ant. Bibl. Hisp. Tomo 1. p. 269 col. 2. Zacuto Lusit. Med. Princip.Hist. lib. 5. hist. ult. Quaest. onde allega o cap. 24. do liv. 1 da dita Historia da America. Theodoro Spizel. de Orig. Gent. Americanae, e o moderno addicionador da Bib. Occid. de António de Leão. Tom. 2. Tit. 12. col. 677.

 

- Bibiotheca Hispana Nova, de Nicolau António - Vol I, pags. 352, do teor seguinte:

 

EMMANUEL DE MORAIS, Lusitanus, scripsisse dicitur accurate, mihi alias ignotus:

De Rebus Brasiliensibus: quod opus, tanquam ineditum etiamnum fuisset, Theodorus Spizelius laudas in Elevatione Realationis Montesinianæ de origine gentium Americanarum.

 

Como diz Barbosa Machado, Abraão Zacuto, no seu livro Zacuti Lusitani, medici et philosophi praestantissimi, Operum -  Tomus primus,  faz uma referência a Manuel de Morais e à sua Historia Brasiliensis a pgs. 905, conforme pode ser visto aqui.

  

Manoel de Oliveira Lima, no seu livro, diz que é da autoria do Padre Manoel de Moraes o Vocabulário Tupi – Latim que aparece no Capítulo IX do Livro VIII da Historia  Naturalis Brasiliae, coordenada por Willem Piso (1611 – 1675) e George Marcgrave (1610-1644), publicada em Amsterdam em 1648 (outra edição em 1658 e outra traduzida para português em São Paulo em 1942). A edição de 1648 aparece facsimilada na Internet na íntegra neste site.

No livro, o Vocabulário (Dictionariolum nominum et verborum linguae Brasiliensibus maxime communis ) tem antes do título o nome de George Marcgrave, mas no final do Capítulo anterior dá o seu a seu dono: "Porro ut gustum demus aliquem huius linguae, Dictionariolum adjungo, quale ab Emanuele de Moraes, linguae illius peritissimo accepi, et quidem primo nominum." Transcrevi a versão portuguesa do Dicionário, aqui.

 

Novas referências bibliográficas a Manuel de Moraes, aqui.

 

  

O PADRE MANOEL DE MORAES

 

 I

 

A figura do Padre Manoel de Moraes, pelo quasi mysterio que a rodeava e pelo romanesco que suggeria o pouco que sobre ela transpirára das narrativas do tempo, tem tentado vários dos que no Brasil se dedicam a assumptos históricos. Pereira da Silva idealizou-a numa novella que não vale grande coisa, e Eduardo Prado pensava consagrar-lhe uma monographia que devia valer muito. O erudito paulista - porque em Eduardo Prado havia debaixo da bohemia do globe trotter um fundo de pacata erudição, que ele avivava com o brilho da sua graça - pretendia fundar o seu trabalho principalmente no processo da Santa Inquisição, a que respondeu o curioso personagem que foi missionario jesuita e praticante calvinista, andou vestido de roupeta e “de grã com traçado, chapéu e trancelim” como gente de guerra, fez voto de castidade no Brazil e casou duas vezes na Holanda, foi lingua do gentio, capitão de indios nas guerras de Pernambuco  e comerciante de páu brasil.

Aquelle processo, cujo conhecimento desmancha muita asserção errada, de Innocencio da Silva entre outros, acaba de ser mandado copiar na Torre do Tombo de Lisboa pelo Instituto Historico e figurará num dos futuros volumes da excellente Revista, que ha quasi setenta annos mantem a benemerita associação. Entretanto interessará o resumo das suas 500 paginas aos que se não contentam com as poucas informações de Duarte de Albuquerque Coelho, entre os antigos, ou de Varnhagen entre os modernos historiadores, acerca de um brasileiro que foi bastante habil para escapar à sanha do terrivel tribunal e bastante instruido para figurar com seu vocabulario tupi-latim na obra classica de Piso e Marcgraf sobre a historia natural do Brazil.

 

*

* *

 

A 25 de Fevereiro de 1646 entrava no Palacio dos Estáos, onde funccionava em Lisboa o Santo Oficio (no local em que hoje se levanta o Theatro de D. Maria II) um homem por nome Antonio Ribeiro, que se disse mestre de uma caravella recemchegada de Pernambuco e a bordo da qual se achavam dois presos, remettidos pelo ouvidor geral Domingos Ferraz de Sousa, para serem apresentados ao referido tribunal religioso.

Allegava o maritimo que, tendo sua embarcação surta junto à terra, melhor fôra não deixar a bordo os acusados.

Informado do ocorrido, mandou o Bispo inquisidor-geral buscal-os e entregal-os no carcere da penitencia pelo familiar Antonio Franco: como é sabido, honravam-se de servir de beleguins  dessas diligencias ecclesiasticas  pessoas de toda a consideração e até da mais alta nobreza. Um dos presos era o Padre Manuel de Moraes, o outro um judeu conhecido por Miguel, francez, natural porém de Lisboa e que, indo a Flandres, se circuncidára e apostatára.

Na manhã seguinte, reunidos em conselho os senhores inquisidores, liam os papeis enviados d’além mar e inteiravam-se do caso, que aliás não era novo. Annos antes, em 1639, fôra Manuel de Moraes denunciado por haver abjurado a religião catholica e vivido escandalosamente entre os schismaticos, julgado e condemnado à revelia pela Santa Inquisição.   O ouvidor geral dos povos da capitania de Pernambuco, que exercia tambem as funções de auditor geral da gente de guerra, ao acompanhar as forças em operação contra hollandezes aquem de S. Francisco, trouxera ordem do governador geral Antonio Telles da Silva de promover a prisão do antigo religioso da Companhia, que se achava novamente praticando a fé romana e vivendo entre portuguezes leaes.

Telles da Silva tinha tão feroz a beatice que, segundo acaba de informar-nos o sr. Capistrano de Abreu, se offerecia para montar e custear do seu bolso a Inquisição no Brazil. A malevolencia de Martim Soares Moreno, um dos tres mestres de campo desse periodo de campanha, servindo aquella intransigencia, permitiu que se effectuasse a captura do revel, seguida da entrega ao mestre da caravella por J. Cosmo de Crasbeco quiçá parente do célebre impressor de Lisboa.

Os libertadores tinham já então chegado às proximidades do Recife, restabelecendo o arraial do Bom Jesus, e dominavam a menor parte do littoral, por onde exerciam francas suas comunicações com a Bahia e com o Reino. Manoel de Moraes, a esse tempo o licenciado, não o padre, nenhuma resistência podia offerecer e as próprias ruas do Recife, ainda em poder dos hollandezes, não lhe proporcionariam a guarida da primeira estada. Na sua defesa, aliás, affirmou elle, repetidas vezes, nutrir o intento de apresentar-se à mesa do Santo Officio desde a sentença, afim de eximir-se das suas culpas, umas reaes, outras imaginarias, porquanto, declarava, peccára gravemente contra a honestidade, mas nunca contra a fé. Demorára em fazêl-o porque tivera que voltar a Pernambuco por questões de dinheiro. Tambem o acto merecia certa hesitação por parte de quem não podia mais gosar do favor e beneficio dos apresentados, havendo sido “relaxado em estatua e avertido”.

Do primitivo processo consta quaes as culpas attribuidas a Manoel de Moraes, denunciado por um Duarte Gutterres, commerciante que assistira em certo tempo em Amsterdam. Algumas das testemunhas de acusação revelaram manifesta parcialidade, sobretudo um clerigo pernambucano, por nome Manoel de Carvalho. O licenciado aproveitou comtudo o intervallo para, no segundo processo, apresentar em seu abono extenso rol de testemunhas, entre ellas o embaixador portuguez junto aos Estados Geraes, Francisco de Andrade Leitão.

Da exactidão das informações prestadas pelas primeiras, logo dá desvantajosa idéa a  contradicção concernente à idade que o réu apparentava ter. Suppunha-lhe Gutterres 34 anos em 1639, 30 o christão novo João Fernandes, 50 o carmelita Thomás Olagre, 50 também o christão novo Diogo Henriques,  45 o mestre de caravela Domingos Vicente. Concordaram todavia todas em que era de poucas carnes e moreno de côr, quasi todas em que era de estatura meã, ajuntando algumas que começava a ter cãs: uma descreve-o “alto, preto, magro e féo”.

Na verdade tinha Manoel de Moraes 43 anos naquelle tempo, pois que confessava 50 em 1646, e muito provavelmente, paulista de nascimento e posto que só accusando na sua genealogia ascendencia portugueza, tinha parte de mameluco, mostrando-a na côr da pelle e nas feições.

Por outra contradicção jurava o denunciante Gutterres e jurava tambem Fernandes, que este era “professor da ley de Moysés nos Estados da Olanda”,  terem em Amsterdam, nos annos de 1634 e 1635, conhecido Manoel de Moraes casado e com filhos, quando os demais depoentes relatavam - o que era a verdade - ter elle caido em poder dos hollandezes por occasião da conquista da Parahyba, que occorreu precisamente de 1634 para 1635.

Pelo depoimento do Padre Raphael Cardoso, procurador que foi da Companhia do Brazil, ficamos sabendo que Moraes estivera, rapazola, no collegio dos jesuitas na Bahia, que passára a Pernambuco com o provincial e que, ao estalar a guerra, em 1630, era superior de uma aldeia de indios, o que faz crêr que ali mesmo recebêra as ordens. Segundo informação ulterior do provincial da Companhia em Portugal, Simão Alvares, Manoel de Moraes nunca chegou a prestar votos solemnes, apenas os simplices, acabados os dois annos do noviciado, e já se achava despedido da Ordem, por suas faltas, antes de se passar para os hollandezes e muito antes, portanto,  de abandonar seu credo.

De positivo ha que, homem de acção por temperamento, commandou seus tutelados indigenas na primeira phase da guerra, quando no primitivo Arraial Mathias de Albuquerque defendia obstinadamente a campanha contra os invasores herejes: a circunstancia não é contradictada no processo e expressamente a refere um christão velho de Alcobaça, por vinte annos residente no Brasil. Não tendo parecido aos seus superiores decente tal combinação de missionario e guerrilheiro por gosto, foi Manoel de Moraes compelllido a deixar a lucta de certo com desagrado. Retirou-se com varios jesuitas mais para uma aldeia de suas missões, dahi passando a Itamaracá e, ao ser tomada a ilha em 1633, transferindo-se para o Rio Grande do Norte.

O seu conhecimento da lingua geral facilitava-lhe habitar entre os aborigenes e levou-o naturalmente então a fixar-se em Cunhahú, onde dizia missa e exercia as outras funcções sacerdotaes, ao mesmo tempo preparando um contingente de 300 indios para qualquer emergencia bellica. Arguiu o seu inimigo, Padre Manoel de Carvalho, de haver após a abjuração determinado esses indios a pelejarem contra os portugueses, mas o facto é inacreditável, por suspeita a fonte. O certo é que da Parahyba, onde provavelmente se encontrava desde a conquista do Rio Grande em 1633, foi o jesuita levado prisioneiro para o Recife, onde é corrente que passou a trajar de secular e sacudiu com a roupeta as crenças, sendo por semelhante motivo e não anteriormente - ao que se deduz do processo - expulso da Ordem pelo provincial Domingos Coelho, uma vez avisado este do occorrido.

Ao partir para a Hollanda, fazendo a embarcação escala pela Parahyba, já o padre horrorizara os catholicos presentes á mesa do governador, à qual se sentavam uns vinte hollandezes e varios moradores principaes, comendo carne em quinta-feira de Endoenças, quando os outros portugueses só se serviam de queijo e azeitonas. Os hollandezes, entre os quaes era o zelo calvinista pelo menos tão intenso quanto entre os portuguezes o fervor romano, regosijavam-se sobremaneira com uma tal apostasia singular da parte de um letrado religioso e apontavam-no como exemplo aos outros captivos, entre elles frei Antonio Caldeira, da Ordem do N. S. da Graça, que relata o facto.

Por acceitavel se póde ter que, bandeado com o inimigo, tivesse Manoel de Moraes, para crear-se posição, prestado, como outro mameluco celebre, o Calabar, informações valiosas aos invasores, feito mesmo um livro «dos portos e entradas do Brazil”. Isto explicaria a referencia de uma das testemunhas de que, em Amsterdam, vivia o ex-jesuita à custa da Companhia das Indias Occidentaes, por serviços a ella prestados; pois que se fica sabendo, pelas confissões do réu, não poder ser verdadeiro o dizer de outra testemunha allusivo ao casamento de Moraes com a filha de um dos principaes da Bolsa.

Não que não tivesse o antigo cura fortes instinctos commerciaes. Ao ser ordenada sua prisão «pelas paixões particulares de Martim Soares Moreno”, estava elle, segundo pessoalmente declarou, numa aldeia do limite de Pernambuco «a fazer pau”, isto é, a embarcar páu-brazil. A prisão não foi todavia tão inesperada, nem tão desprevenido andava elle que, ao ser apresentado á mesa do Santo Officio, não tivesse em seu bahú um maço de papeis “que diziam a bem da sua causa”. O tribunal parecia do resto de algum modo predisposto em seu favor, logo decidindo contra o requerimento do promotor Domingos Esteves, que não passasse o preso dos carceres da penitencia para os secretos «visto sua enfermidade e não poder ser curado comodamente senão onde está”. De todo tempo valeram os empenhos: estamos vendo que até pesavam na casa sinistra das torturas, cujos juizes era de suppor fossem a elles inaccessiveis. A principal razão da comtemplação usada reside seguramente nas certidões e recommendações dos mestres de campo João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, que por esse tempo andavam, sem auxilios directos da metropole, recuperando para o seu Rei os dominios americanos em poder dos hollandezes.

Ambos intercediam vivamente pelo accusado junto ao Santo Officio, descrevendo-o descalço e de crucifixo na mão a acompanhar e exhortar os combatentes do seu berço e da sua primeira fé, entre os quaes livremente vivia e porventura exercia o sacerdocio, tendo-lhe - assegurava elle -sido restituidas as ordens por um commissário de Sua Santidade com quem, na Hollanda, se confessára e de quem alcançara a absolvição, uma vez desertada a segunda mulher com a qual se casára no rito calvinista  - cerimonia que não envolvia para elle mais do que uma mancebia legalizada.

 

II

 

Na confissão espontaneamente feita a 23 de Março de 1646 perante o Inquisidor Belchior Dias Pretto, assentiu Manoel de Moraes em que effectivamente casára na Hollanda, não só uma, mas duas vezes: a primeira na provincia de Gueldria, com uma filha de Arnaldo Vanderhait, o qual tinha o contracto do peso na cidade que no processo se denomina de Ordrnick. Para ahi tinham remettido o prisioneiro á chegada do Brazil, negando-lhe passagem para a Hespanha--recusa attribuida por Manoel de Moraes ao receio que o seu regresso ao theatro da lucta inspirava por causa da influencia que exercia entre o gentio, com o qual se armára para a defesa ou para a traição, conforme dermos credito a sua versão, ou á versão do marquez de Bastos donatario de Pernambuco.

Mais ou menos dous annos viveu com essa esposa de nome Margarida, que ao fallecer lhe deixava um filho, com quem ficou o avô. A Companhia, vendo o antigo jesuita assim publicamente renunciar ao celibato ecclesiastico, portanto á doutrina romana, quis, pretende elle, confiar-lhe um cargo de governo no Brazil. Moraes, porêm, o não acceitou, para não deixar sua fé, do que lhe faziam condição - assim pelo menos contou as cousas nos Estáos - e passando a Leyde, onde pensava imprimir um livro sobre o Brasil e sua fertilidade, conheceu perto da Universidade uma Adriana Smetz, com a qual casou e da qual teve duas filhas.

Porventura será esta a viúva pobre que frei Thomas Olagre lhe dava por mulher em seu depoimento. O que é menos facil de conciliar é esse seu sacrilego viver matrimonial com a sua asserção de que não perdia missa, frequentando em Leyde oratorios particulares e em Amsterdam a egreja do Cordeiro Branco. Manoel de Moraes invocava a tal proposito extensa lista de testemunhas.

Ao cabo de outros dous annos, cançado do flamengas e hollandezas, saudoso dos tropicos e dos seus encantos, sensivel mesmo ao parecer ás formosuras exoticas, pois que, ao ir preso para Portugal, declarou com empenho alforriar, caso morresse, a mulata Beatriz que lhe servia de governante, abandonou o lar legitimado e embarcou para Pernambuco, ainda sob o dominio da Companhia das Indias, numa das expedições de soccorro.

Os recursos muito provavelmente faltavam-lhe. A Companhia não tomára encargo indefinido de sustental-o. Entre os documentos recolhidos na Hollanda pelo dr. José Hygino, figura uma reclamação pecuniaria do licenciado Moraes contra o conselho da associação mercantil. Lá, se frei Manoel Caiado, o auctor do Valeroso Lucideno, catholico e frade, lográra desfructar a amizade do Principe Mauricio de Nassau, que proventos não poderia auferir entre os herejes elle, que havia dado tão valiosas arrhas da tibieza da sua moral religiosa?

Do inventario a que não muito depois Manoel de Moraes procedeu no carcere, «dos bens adquiridos por sua industria” - entre os catholicos, porque ahi lhe correu mais de feição - vê-se que não perdera seu tempo. As dividas a receber excediam bastante as que tinha a pagar. Com cinco casaes novos de escravos da Guiné o mais tres negros solteiros bem dispostos, algumas juntas de bois, carros, um cavallo de sella e quantidade de machados, foices, enxadas e outros instrumentos, explorava o corte do pau brasil no lugar de Tapacurá, cinco leguas distante do Arraial. Vendia-o aos judeus do Recife a cruzado o quintal: num sitio da Alagoa Grande possuia, ao partir, um deposito de 1.200 quintaes, e noutro ponto algum mais de que lhe fizera mercê João Fernandes Vieira.

Isto indirectamente explica a nova conversão politica, senão religiosa - dando do barato que nunca abjurou formalmente - do tráfego paulista. As conversões mui raramente deixam de ter uma base interesseira. Manoel de Moraes voltou para Pernambuco em Dezembro de 1643.

Em 1644 dava-se a sublevação portuguesa e João Fernandes Vieira, o governador da liberdade divina, passava edictos pelos quaes dava quitação aos que servissem a dita guerra do que deviam aos hollandezes.

Intelligente como era, o ex-jesuita comprehendeu de relance todo o partido a tirar da situação. Em primeiro lugar, fazia jus ao seu perdão, no caso que previa de vencer a revolução: tendo vivido em Amsterdam e no Recife e convivido com directores e soldados, ninguem melhor podia aquilatar a corrupção e o desanimo do lado hollandez. Em segundo legar, livrava-se do melhor modo dos committentes pois que, segundo suas declarações, recebera de hollandezes peças, escravos da Guiné, bois e dinheiro, uns 2.500 cruzados, para restituir em pau-brasil. Em terceiro logar tomava logar entre os especuladores e não entre os espoliados, porquanto a guerra da liberdade foi nos processos um formidavel roubo.

A fé impellia menos que o amor do ganho. Naquelle tempo mesmo não se podia chamar rara a indiferença religiosa: a intolerancia occultava muita cobiça. Manoel de Moraes fala de muitos christãos novos e alguns velhos que, passando para terras neerlandesas, de novo se fizeram hebreus ou abraçaram o calvinismo. O facto é conhecido, e bem assim que os bens dos hollandezes e judeus de Pernambuco foram postos a saque, não tanto por serem de inimigos da santa religião quanto por serem de inimigos abastados.

João Fernandes Vieira, cuja moral foi caprichosa, pilhou á grande. Neste ponto tem razão o sr. Pereira da Costa no seu recente trabalho sobre o Castrioto Luzitano: apenas, não foi elle o único, sendo dos poucos que, tendo sacrificado haveres, procuravam uma compensação que não era de todo injusta. Do processo do Padre Manoel do Moraes consta que elle se apoderou - serve tão sómente de exemplo - de cincoenta e tantos bois de carro do judeu Balthazar da Fonseca e que mandou para a Bahia em curto prazo 200 a 300 escravos, uns de presente ao governador Telles da Silva, outros para serem vendidos por conta propria.

O que sobrava, distribuia pelos amigos. Os bens em Olinda daquelle Fonseca foram doados a um Luis da Costa, homem sem merecimento, diz a testemunha, e constavam de casas, jardins e olarias, tudo calculado em 20.000 cruzados. O interessante é que o indio Camarão tinha suas peças africanas e, mais extraordinario ainda, corria voz, que Henrique Dias, capitão-mór dos negros, "tomára muitissimos escravos e os vendera». Até para Portugal iam de presente desses escravos roubados, quiçá tambem para negocio; na caravella em que seguiu Manoel de Moraes, embarcou um «valente negro” remetido como mimo por Martim Soares Moreno a um sobrinho clerigo.

A situação era pois de tentar qualquer aventureiro ganancioso, e Manoel de Moraes não perdeu tempo no decidir-se. Com efeito depoz André Vidal de Negreiros que ao chegar á povoação de Santo Antonio do Cabo com algumas companhias do seu terço em auxilio dos moradores levantados, já encontrou o licenciado encorporado aos soldados de João Fernandes Vieira, que seguiu até a Casa Forte, animando-os com suas pias exhortações. Manoel de Moraes estava, pois, perfeitamente ao facto de quanto se passava do lado dos portugueses, das glorias como das vergonhas, e por isso chega a pretender que o proceder de Martim Soares Moreno para com elle obedecia ao receio de que, desembarcando solto em Portugal, podesse ter acesso junto ao Rei e referisse cousas menos agradaveis tocantes ao procedimento do mesmo mestre de campo. A prisão teria até sido feita em desaccôrdo com as ordens de Telles da Silva, que eram de mandar fornecer embarcação ao licenciado para que podesse ir apresentar-se ao Santo Oficio, recommendando que fosse seguro porque escrevia em seu favor a Sua Majestade.

Diz Moraes que a desconfiança hostil de Martim Soares Moreno nascera da circunstancia. de, numa relação que aquelle escrevera, calarem-se os serviços desse cabo de guerra e elogiarem-se os dos dous outros, Vieira e Negreiros.

A facilidade com que o mameluco mudava de aspecto e de opinião leva a duvidarmos, até segunda prova, de quanto affirma, e conduz a crer que tanto falavam verdade as testemunhas que no Recife o viram escutando as predicas evangelicas quanto as que na Holanda o viram assistindo ao santo sacrificio. Os interrogatorios sofridos pelo accusado levaram meses e muitos, sendo verdadeiramente inquisitorios, como os de todo e qualquer processo do celebre tribunal. As perguntas insistentes, repetidas, repisadas, capciosas deviam fatigar espiritos já abalados pelo sofrimento e predispol-os a confissões mesmo exaggeradas, mesmo inverosímeis.

No caso em questão, travaram-se sobre pontos de fé longos dialogos entre o Inquisidor Belchior Dias Pretto o o ex-jesuita, cujo sangue frio e argucia se não deixavam desmontar facilmente, guardando-se de ambiguidades theologicas. Em assumptos secundarios teve porem que ir cedendo, posto ressalvando sempre energicamente o essencial, a pureza de suas crenças immaculadas através de todas as peripecias do seu viver, até não se acanhando de em plena Gueldria, entre protestantes, agarrar-se com uma imagem da Virgem Maria em occasião de borrascas.

Assim, admittiu Manoel de Moraes ter revelado na Hollanda estarem mal defendidos os fortes da Companhia no Brasil, invocando comtudo como poderosa attenuante haver salvado a Bahia de um ataque de funestas consequencias. Sustentara, ao que asseverava, em conselho dos directores, serem fartos os recursos da capital brasileira quando uma carta do governador Diogo Luis de Oliveira. apprehendida peles corsarios hollandezes expunha a triste condição da defesa do centro do dominio portuguez na America. Seu conselho foi não obstante seguido.

Outrosim, aconselhara as autoridades a não vexarem antes tratarem bem os pernambucanos, pretextando o interesse da Companhia mas de facto para salvar seus patricios de tyranias. Os serviços prestados por elle ao inimigo não passavam, em verdade, de semelhantes suggestões e avisos. Tambem era exacto, reconheceu, que comera carne em dia de preceito e com isto dera escandalo, mas por só haver a mais farinha de mandioca. A predicas calvinistas egualmente concorrera, no Brazil e na Europa, sem todavia entender palavra, apenas por curiosidade, para apreciar a gesticulação dos pregadores.

 

III

 

Uma vez formulado o libello da Justiça, com seus longos e severos provarás, constituiu-se corno procurador da causa do Padre Manuel de Moraes o licenciado Manoel da Cunha-substituido no andamento do processo pelo licenciado Luiz Ferrão - que apresentou em resposta uns artigos de contrariedade. A Santa Inquisição não deixava as suas victimas sem advogado de defesa: os seus processos revestiam todas as formas ordinarias da Justiça, excepto que corria tudo secreto, jurando as proprias testemunhas nada revelarem do que tivessem dito e ouvido.

É claro que á infracção do juramento correspondiam penalidades.

O licenciado Manoel da Cunha tomou a serio seu encargo, invocou os feitos de guerra do seu cliente, praticados contra os hollandezes no Arraial, em Itamaracá, no Rio Grande do Norte -porque mesmo depois de deixar o Arraial, fôra elle obrigado a pelejar com seus indios em ajuda dos moradores portuguezes, atacados no gradual alastramento da occupação estrangeira - como a melhor, mais tangivel prova da sua sinceridade e lealdade á causa portugueza, que era a causa catholica. E’ de ver que por completo repelliu a hypothese aventada de uma capitulação traidora, em formal comtradicta áquella lealdade.

Assim narrou a defesa o episodio que é conhecido na sua outra luz, porque delle se occupam as Memorias Diarias. Achava-se Manoel de Moraes no engenho de Antonio de Valladares, na Parahyba, com o seu gentio que retirára do Rio Grande, quando Antonio de Alburquerque e Martim Soares Moreno lhe pediram que fosse buscar, para reunil-os aos outros, os indios da aldeia de Gararaca. O jesuita assim fez, deixando á guarda dos dois militares os seus tutelados. Atacados entrementes pelos hollandezes, teriam os cabos de guerra fugido, sem se defenderem, com os soldados do seu commando, abandonando ao inimigo os indios, mas assegurando a Manoel de Moraes, a quem encontraram de volta da sua missão, que estavam esses em salvo. Adiantando-se desacautelado o Padre, deparou pelo contrario com o seu rebanho tornado e a si proprio se viu cercado, não lhe restando mais do que entregar-se, visto ser impossivel qualquer defesa. Accusava elle os fugitivos da origem de tal infamia: para encobrir sua covardia teriam ido falsamente informar Mathias de Albuquerque de que o missionario desleal se mettêra de caso pensado com o inimigo.

A defesa, recebida a 23 de Novembro de 1646, apresentava uma consideravel lista de testemunhas, em abono dos seus dizeres, no Brazil, Portugal e Hollanda.

A inquirição respectiva começou a 18 de Março de 1647, tendo-se passado as commissões necessarias para serem perguntadas umas e vendo-se as demais por informação. Algumas foram favoraveis, outras desfavoraveis.

O desembargador Antonio de Sousa Tavares por exemplo, Secretario que fôra da embaixada de Tristão de Mendonça Furtado, o primeiro enviado portuguez junto aos Estados Geraes depois do rompimento da união com Castella, depoz que o Padre Manuel de Moraes, seu conhecido da Hollanda, mostrára sempre nas suas praticas ser verdadeiro catholico romano, usando como bom religioso de grande modestia nas suas falas, e manifestando repetidos desejos de mudar-se para Portugal, afim de ser de utilidade aos seus patricios, empenhados na recuperação de Pernambuco, e ver seu filho criado na fé catholica.

Declarou mais o desembargador haver então visto uma certidão em latim de Artichofsky, o notável polaco ao serviço da Companhia das Indias e seu mais illustre capitão na guerra do Brazil, de como poupára a vida de Manoel de Moraes no encontro em que o captivára, pelo grande valor com que elle se defendera, pois mandára degolar a mór parte dos soldados rendidos.

O padre, aliás, não menciona esta façanha entre as que em geral se lhe attribuem, parecendo antes que lhe não fôra dado offerecer resistencia.

Um camareiro do já defunto embaixador Tristão, por nome Jeronimo Esteves, confirmou com a autoridade peculiar á criadagem os dizeres de Sousa Tavares, depondo que o accusado de facto almejava por transferir-se para Portugal e derramava por esse motivo sentidas lágrimas: só o retinham a consideração dos filhos e o receio do castigo capital. Concordava entretanto o famulo diplomatico em que o antigo jesuita ensinava a seita que os hollandezes seguiam, não por certo de coração, mas para não morrer de fome ou para não ser por elles morto.

Ao contrario destes, o Padre Manoel Calado do Salvador, o confessor de Calabar na hora extrema e amigo de Mauricio de Nassau, foi cruel com o accusado. Affirmou que, com seus indios, elle auxiliára os hollandezes contra os portuguezes, chegando a avançar - basta isto porém para se lhe descobrir o exaggero – “que se não fôra o dito padre, nunca os Olandezes entrarão pella terra dentro e fizerão o damno que tem feito”. O auctor do Valeroso Lucideno estava certamente pensando no renegado a quem assistira no patibulo: do seu depoimento indirectamente se conclúe todavia, bem como de outros, que o mameluco ordenado só reabraçou sua fé quando presentiu que os portuguezes ganhariam a partida e que a sua salvação estava em acompanhal-os.

Nenhuma testemunha se avantajou com effeito na defesa do réu ao procurador de João Fernandes Vieira em Lisboa, chamado Jeronimo de Oliveira Cardoso; o que mais prova que foi o restaurador da liberdade pernambucana o maior protector do Padre apostata e arrependido. Confirmou-lhe Cardoso todas as falas sobre o remorso que em certo tempo invadiu sua alma; authenticou a historia da confissão geral em Amsterdam, onde por esse tempo se achava a testemunha, vivendo com o réu na mesma casa; corroborou finalmente, pelas informações que então e no local colhera, que Manoel de Moraes jámais escrevera contra a doutrina catholica e até frequentava assiduamente as egrejas romanas.

As testemunhas de Pernambuco, interrogadas em virtude da commissão dada ao vigario de Santo Antonio do Cabo, licenceado Matheus de Sousa Uchoa, foram de resto uniformemente excellentes para o accusado: no seu numero conta-se o famoso Camarão, cuja idade era em 1647 de 46 annos, e que declarou conhecer o missionario, de quem fôra depois companheiro d’armas por dois annos, de quando seus superiores o mandaram ensinar o catecismo na aldeia de Meretibi, onde o indio residia. Seja dito de passagem que esta declaração parece decidir completamente a questão da naturalidade do Camarão em favor do estudioso sr. Pereira da Costa, que sempre o reputou pernambucano, ficando a referida aldeia dentro dos confins do feudo de Duarte Coelho.

Recordaram essas testemunhas de além mar os combates do Padre contra os hollandezes á frente do seu gentio da aldeia de São Miguel, duas légoas distante de lguarassú, e abonaram seu manifesto arrependimento de quaesquer erros commettidos na Hollanda, pois que o viam, após o regresso, ir assistir, ajuda mesmo quando aboletado no Recife, aos serviços divinos na egreja de N. S. do Amparo em Olinda, onde prégava frei Manoel dos Oculos, como era popularmente conhecido o Padre Calado.

Para dar o devido valor a estes depoimentos e calcular quanto elles podiam influir sobre a sorte do réu, é mistér ter presente que Manoel de Moraes ainda desembarcou no Brazil vestido de «flamengo»— o que elle todavia explicava pela prohibição que na Hollanda existia para os religiosos de vestirem seus hábitos - e que, ao ir residir na mata, em Aratangi, a dez legoas do Recife, «onde tinha casa de vivenda, pau brazil e rossarias”, o antigo jesuita se conservava apesar de tudo numa situação pelo menos dubia. Tinha, portanto, sua importancia, e grande, saber-se no Santo Officio que nesse periodo costumava, posto que afastado dos sacramentos, ir em todo a caso á missa a duas leguas dali, trazer contas ao pescoço e rezar horas inteiras.

Contou João Fernandes Vieira no seu depoimento, aliás de todo o ponto sympathico, que o Padre lhe fora primeiro trazido preso por um alferes a quem mandara “fazer gente”, e que primeiro o conduziu ao cabeça João Lourenço francez, junto ao qual intercedeu o recrutado para ser apresentado áquelle mestre de campo. Levado à sua presença, lançou-se-lhe aos pés e confessou seus erros e pesares, respondendo-lhe Fernandes Vieira com ar majestatico e magnanimo que facilmente assumia, não ser seu juiz para o castigar.

A segunda conversão de Manoel de Moraes não foi por conseguinte espontanea, conforme apregoava o interessado em seu costume de constante duplicidade, filho porventura nessas condições de não saber mesmo, em circumstancias taes, o que mais vantajoso lhe seria fazer. O interessante é, e fala pela sua habilidade mais ainda do que pela bondade alheia, que o accusado encontrou tambem testemunhas bastantes para confirmarem suas praticas romanas na Hollanda, nenhuma havendo mesmo, - afóra uma referencia vaga - que jamais o tivesse lá ouvido falar mal da santa religião.

Manoel de Moraes pretendia provar mais do que isso, que só faltara bater-se por sustentar contra judeus e calvinistas a intangibilidade do credo catholico e repelir suas heresias - o que admittia Francisco de Andrade Leitão, embaixador que era a esse tempo na Haya, apenas com relação aos judeus - ponderando com muito bom senso que em relação aos outros “me não persuado que diria mal delles em sua presença, dependendo do seu favor e sustentando-se do que lhe davam».  Não passariam de algumas patacas os soccorros que o antigo jesuita recebia cada mez para alimentos, da Companhia das Indias, mas o positivo é que, ainda ao partir Moraes para o Brazil, o representante portuguez ouviu, e muito provavelmente assim era, que ia elle em serviço daquella associação mercantil «em causas de que os directores o encarregavam, dando-lhe por isso ordenados e obrigando se a sustentar sua mulher em Amsterdam.

No entanto a Francisco de Andrade Leitão pedira o Padre que lhe procurasse meio de ir a Lisboa sem receio de ser executado por virtude da sentença contra elle passada, e que obtivesse do Rei alguma tença para manutenção dos filhos e da mulher, no seu dizer uma das mais formosas da Hollanda: “com pretexto - informava o embaixador - de que o iria servir na guerra do Brazil onde poderia ser de grande utilidade para esse Reino e muy prejudicial aos inimigos”. Assim reza o depoimento escripto com que, a 6 de Setembro de 1646, respondeu Andrade Leitão, de Munster, onde se acha como plenipotenciario nomeado para o Congresso de Westphalia, ao pedido da Inquisição.

 

IV

 

No seu alludido depoimento de Munster o embaixador portuguez, posto que não eximindo o Padre Manuel de Moraes das faltas e embustes praticados, todavia o desculpava e achava digno de misericórdia. Opinava que o réu lhe não parecia em suas communicações hereje formal, execrando até os erros dos que o eram, e acreditava que elle só não abandonava a mulher “por luxuria, affeição natural e necessidade, temendo que, se o fizesse, perderia os alimentos que os directores lhe davam e outras commodidades necessarias para a vida mundana». A familia, isto é, a precisão de dar-lhe de comer foi, de resto, o motivo, em certo momento invocado pelo antigo jesuita, para explicar seu regresso ao Brazil - a ver se lhe podia grangear alguns meios de subsistencia.

A disparidade dos testemunhos provem em grande parte, pelo que logo se percebe, das incongruencias da vida do accusado. O seu advogado, por via de contradictas, apontou mesmo, no decorrer do processo, varios inimigos do réu, com os quaes tinha elle tido diferenças, e cujo depoimento se fazia por isso suspeito: no numero contava-se um Frei Angelo, monge capucho e filho tambem do Brazil, com quem Manoel de Moraes discutira acaloradamente o argumento de um caso de consciencia, acabando por dizer-lhe, no ardor da disputa, que mais sabia um cozinheiro da Companhia de Jesus do que um letrado da religião do arguinte, pelo que se poz o Frade muito sentido e lhe ficou com odio.

O facto de ter sido fronteiro na guerra e feito, ao que apregoava, grande damno ao inimigo com o seu gentio, despertou contra o missionario-guerrilheiro muitos emulos que lhe queriam mal, especialmente Capitães e officiaes da milicia, que ficaram outros tantos inimigos seus, encobertos, os da peor especie, porque muito mais difficilmente se consegue combatel—os.

Negando a pés juntos que se houvesse bandeado de interesse e de crenças com os hollandezes, quer na aldeia parahybana de Itapúa, onde foi preso, quer no Recife, onde apenas o guardaram dois mezes, antes de despachal-o para Amsterdam, o accusado apontou outras testemunhas, e as mesmas antigas em segunda condição, com o fim de contrariar as que contra elle tinham deposto, segundo se vira da revelação das mais provas da justiça no seguimento dos tramites do processo. Esta nova inquirição para probança da defesa apparecia comtudo difficil nesse anno de 1647, pela guerra que mais e mais se generalizára no Brazil - 1647 foi o anno do massacre e occupação de Itaparíca e devastação do Reconcavo - não se tendo por outro lado, no relativo ás Provincias Unidas, realizado ainda a paz com a Hespanha, que só no anno immediato occorreria em Munster. Por isso fez o réu desistencia da sua supplica e pediu mesmo prompta sentença, por se achar muito achacado e sofrendo grandes calamidades.

A 29 de Agosto foi encerrado o processo, depois de vistos os autos, culpas e confissões do reu, parecendo a todos os votantes da mesa que, com o accrescido em seu favor, em parte se diminuiria a prova que contra elle existia no primeiro processo, no qual não fôra ouvido; mas que ainda assim resultavam graves e urgentes presumpções de erros contra a fé. A organização judicial, mais exigente, nada encontraria que dizer contra a equidade de taes conclusões.  Antes da despacho final devia, portanto, o réu, de acordo com o estylo da epoca, commum a quaesquer tribunaes e a todos os paizes, ser posto a tratos.

Dos nove inquisidores, uns opinaram por todo o tormento, outros por dois tratos espertos, outros ainda por um esperto e um corrido: por esta ultima combinação foi que em appellação se decidiu o conselho. A 6 de Setembro, levado para a casa das torturas e instado para que confessasse tudo, Manuel de Moraes fraquejou diante dos instrumentos e, antes que o executor o segurasse, revelou afinal que de facto repudiára sua religião em fim de 1637, quando na Gueldria, impellido a isso pela communicação constante com herejes e tentado da lascivia.

Ajuntou que «teve crença na ceita dos calvinistas” coisa de quatro annos. Foi comtudo sincero no seu erro, quer dizer que imaginou piamente durante esse tempo que se não perderia aceitando a doutrina reformada. Frequentou - era infelizmente verdade -‘as egrejas protestantes, ouviu as predicas dos pastores, comeu carne nos dias de preceito e deixou de lêr as suas horas canonicas: por não saber hollandez, lia, porém, pelo seu antigo breviario os psalmos de David e, se não usava assim da Biblia dos herejes, tão pouco commungava ao modo delles «que é comer pão em memoria da Ceia». A ninguem todavia podia accusar de seducção. Elle proprio deixara-se corromper pelo mau exemplo, convencido em certa época de que os sacramentos da Egreja, excepção feita do baptismo, não fossem bens necessarios para a salvação da alma. O remorso veio-lhe querido foi abrir-se com Tristão de Mendonça Furtado: o caminho da embaixada foi a sua estrada de Damasco.

Dir-se-ia que á Inquisição apenas esperava esta franqueza para mostrar-se clemente ao réu. Mercê da confissão referida, de haver reconhecido sua apostasia e ter procurado ir apresentar-se ao Santo Officio para tal fim recorrendo a catholicos, dando signaes de arrependimento e pedindo perdão e misericordia, recebeu o tribunal religioso, consoante a supplica formulada, no gremio da união da Santa Madre Egreja e não relaxou o braço secular, segundo até aqui se acreditava na fé de Innocencio da Silva. O erudito author do Diccionario Bibliographico Portuguez não só menciona que Manoel de Moraes caiu na simplicidade de apresentar-se nos Estáos, fiado na caridade christã do Santo Officio, corno relata que foi elle por muito favor garrotado em vez de queimado.

Na verdade mandou a mesa que, em pena e penitencia de suas culpas, comparecesse o réu no auto publico da fé no modo costumado, isto é, com o habito penitencial e as insignias de fogo e ali, junto ao crepitar das fogueiras destinadas a outros, ouvisse sua sentença, abjurando seus hereticos erros em forma. Outrosim eram-lhe assignados carcere e habito penitencial perpetuos sem remissão; ficaria para sempre suspenso das suas ordens, via-se mandado instruir nas coisas da fé necessarias para a salvação da alma, e teria de cumprir «as mais penas, e penitencias espirituaes» que lhe fossem impostas. Da excommunhão maior em que incorrera o absolviam, entretanto, os juizes in forma ecclesiae, mas os bens materiaes ficavam-lhe confiscados. O resultado era mais duro do que terrivel.

A sentença confirmatoria da mesa, passada pelo conselho presidido pelo Bispo-inquisidor geral traz a data de 10 de Setembro da 1647, e o auto da fé em que foi ella lida ao réu, teve lugar no Terreiro do Paço no Domingo, 15 de Dezembro do mesmo anno. O outro, em que o tinham relaxado em estatua ocorrera a 6 de Abril de 1642.

A indulgencia de Santo Officio para com o Padre Manuel da Moraes, apostata e perjuro, não se esgotou com preservar-lhe a vida. Por carcere foi-lhe dada, a 11 de Janeiro de 1648, a cidade da Lisboa, onde teria do satisfazer suas penas espirituaes, sendo-lhe sómente vedado usar prata, ouro ou seda nas suas vestes e andar em bestas de sella. A vergonha do habito penitencial foi-lhe poupada contra o voto mesmo dos inquisidores que acompanharam todo o processo tendo elle requerido aquella graça visto estar contricto e sofrer de asthma, de gotta e de outras enfermidades, ao ponto do não gosar um dia sequer de boa saúde.

Concedeu-se-lhe tambem a 27 de Janeiro o poder commungar uma vez por mez. Finalmente foi deferido por completo o seu pedido de poder sair para fora do Reino e ir para qualquer provincia catholica—em cujo fundamento allegara estar peregrino, suspenso e sem meios, não se podendo pois sustentar, ninguem o ajudando nem ao menos lhe acudindo com esmolas, antes, sendo de todos desprezado, passando com muito trabalho e padecendo necessidades tão excessivas que dormia sobre uma esteira, sem colchão nem enxergão, coberto com suas pobres roupas.

A ultima noticia que temos do Padre Manuel de Moraes, pelo processo da Inquisição aqui condensado, é justamente a permissão do Santo Officio, de 10 de Março de 1648, para que pudesse ausentar-se para qualquer parte do Reino «como fosse de catholicos”, tendo esta sido a redacção adoptada pela inquisidor geral. A mesa, aliás, annuira pura e simplesmente à formula do pedido que, considerando mesmo então Pernambnco província contaminada pelos herejes, a cujo dominio não conseguira ainda subtrahil-a por completo o esforço pernambucano - 1648 foi o anno dos Guararapes —dentro em poucos annos lhe permittiria, se a vida lhe fosse poupada pelos achaques, como o fôra pelos juizes, voltar urna vez mais á mata de Pernambuco e rever ou substituir a sua fusca governante. E’ provavel que os sustos e os sofrimentos tivessem, porem, abatido os enthusiasmos sensuaes do sacerdote apaixonado, a quem a Inquisição, de ordinario tão inclemente, fez mercê até da liberdade, quiçá porque elle muito amou e os que assim amam fazem jus á misericordia divina, da qual o Santo Officio se proclamava o conselheiro.

 

Rio, 1907.

 

M. DE OLIVEIRA LIMA

SEPARATA

Destacado do vol. XII da Revista do Instituto Histórico de S. Paulo, de 1907.