10-11-2006
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Manuscrito de Manuel de Moraes - Outubro de 1648
Resposta que deu o Licenciado Manuel de Moraes a dizerem os Olandezes que a paz era a todos útil mas a Portugal necessária quando por parte deste Reyno se lhes offereceo hũa proposta para a paz
Não ha duvida ser a paz útil e proveitosa a todos os Reynos e províncias, porque emquanto della gozão são ricos, e abundantes; sabendo isto dizia o real propheta fiat pax in virtude tua et abundantia, in turribus tuis: Senhor fazeinos mercê da paz, e logo se siguira a abundancia; e donde ella falta tudo são mizerias, e necessidades e provações; ouve no mundo mais figuras que as da Alemanha, que Reyno mais florente que Castela, emquanto gozavão da bella paz? E hoje os vemos, com a guerra presente, aniquilados, despovoados, e desbaratados. Comtudo a paz ha de ser com gente que a estime, e guarde as Leis della; e como os Olandezes são variaveis inquietos e mal intencionados, e que somente a conservão emquanto mais não podem e tanto que vem occazião de se melhorarem quebrão as leis della, estimando mais o interesse que as alianças, e concertos com os Príncipes a quem se deve guardar fidelidade, e respeito: seguesse logo, que he melhor ter com elles guerra declarada que paz fingida, a qual he ordinario a sua, porque da guerra procurareis guardarvos, e evitar os perigos pois são conhessidos, que nunqua são de tanto damno com a paz fingida, que quando menos cuidais, peresseis no descuido com damno irremediável; o qual suposto, me paresse que da linha para o Sul, haja com elles guerra declarada, e que por armas se lhes tirem as praças das Conquistas deste Reyno que tem uzurpadas, visto que as não querem entregar por justos, e honestos partidos que se lhes tem offeressido por vezes querendo antes que lhes compremos a paz largando-lhes as milhores e mais importantes Conquistas deste Reyno; com condissoens tão exhorbittantes, como indignas de se proporem a pessoa real de S.Magestade que Deus guarde, para que com suas forças e bom conco e valor de seus Vassalos, não somente restaure seu patrimonio e Conquistas de seus antepassados, mas também occazionará maiores aumentos deste Reyno: e assim não julgarão os Olandezes por falta de forças deste Reyno a Clemência com que S.Magestade está procurando conservar a paz, com elles há tantos annos, por não quebrar sua real palavra, que lhes deu de tregoas por dez annos, quando muito se lhes pode conseder a paz da Linha para o norte, donde elles não podem fazer tanto damno pella fortaleza das terras. Dizem os Olandezes que a paz he útil a elles, e aos portuguezes, se a paz for da Linha para o norte consedo pelo que agora disse; para o sul nego ser útil aos portuguezes com os Olandezes; acresentão que aos portuguezes he necessária supondo que não tem forças para lhe resistir, e assim dizem que S.Magestade lha compre com condissõens seguintes:
Que lhes largue todas as terras que elles tinhão uzurpadas, quando Pernambuco se levantou contra elles; que pelas perdas e damnos que resseberão no levantamento lhes dê S.Magestade hum milhão e quinhentos mil cruzados ou des mil caixas de asucar da Baia; que S.Magestade lhes mandará entregar os mres de Pernambuco para elles castigarem os que tomaram armas contra elles; que se ouver duvidas no Brasil entre os portuguezes, e olandezes as julgarão já os Governadores portuguezes e olandezes; em cazo que não concordem os remetterão a S.Magestade os portuguezes, e aos estados os Olandezes; que vinte legoas das suas ultimas forças, ou povoaçoens, não estará força nenhuma, ou povo de S.Magestade e outras cousas.
Sobre estas proposiçoens discurramos hum pouco, e veremos a pouca rezão com que se propuzerão, e a tirania a que nellas se contem; querem os Olandezes, que a paz seja necessária aos portugueses, esta necessidade quando a ouvera, ouvera de ser hũa de duas cousas, ou porque os portuguezes se não podião conservar sem o trato dos Olandezes, deixando suas naos de vir aos portos de Portugal, ou porque se não poderão no Brasil deffender de suas armas, e ganharão todas as praças delle, e por evitar este damno lhes he necessário conseder o que elles tam injustamente pedem, por nenhuma destas cabessas julgo ser necessária a paz com os Olandezes: não pela do Contrato, porque os Olandezes não trazem cousa algũa nativa na sua terra e tudo o comercio que comercião é de carreto, trazido de outras terras nas suas naos. O trigo vamno buscar a Alemanha e a França, por quanto não aver na sua terra, e depois no lo vem vender; a água ardente a França, as monições de guerra a Dinamarca, Amburgo, e outras partes; o ferro e cobre a Suecia; as madeiras a Noroega: seguesse logo que se elles no las não venderem, as podiamos aver daquelles que lhas vendem a elles por melhor preço do que se vê claramente que nos não he necessário o Contrato Olandez na fórma que elles querem: antes a elles he necessário porque as cousas que levão de Portugal as não podem achar em outra parte de Europa; se aqui se lhes serrar o trato, em que parte de Europa acharão o sal que levão de Setúbal na quantidade e bondade com que ali se acha? se Portugal não lho der? donde levarão o asucar? o pau do Brasil? as conservas? o tabaco? E outras muitas cousas he certo que de nenhuma.
Pois cuidarem que nos he necessária a paz com elles, porque não poderemos resistir a suas armas he engano notavel, assim delles, como de quem tem pouca experiencia de guerra, ou faz suas gtes secretamente. E se não considerasse a guerra que há tantos annos lhe fazem os moradores de Pernambuco; por aggravos que delles tínhamos tomamos as armas contra elles, e aclamamos ao Sereníssimo Rey de Portugal, D. João o 4.º nosso Senhor. O anno de 1645 vieramnos buscar as Lihras do Tapacura os Olandezes com mil e cem homens abundantes de armas e moniçoens, acharam-nos faltos de gente, armas, pólvora, e ballas. Com tudo fiados na justiça que tínhamos com as esperanças postas no Céo lhes demos batalha Cento e sinquenta homens e os vensemos, matandolhe trezentos os fizemos fugir vergonhozamente em três de Agosto do dito anno. Tornaram-se a refazer os Olandezes tornamos apelleijar com elles a 17 do mesmo, e não só os vensemos, mas ainda os desbaratamos de todo tomando prizioneiros ao Governador de suas armas com todos os officiaes maiores com que ficamos senhores da Campanha; veiolhes depois disso de Olanda hum vallente socorro de seis ou sette mil homens e cuidando que com elles recuperassem a campanha, e tomassem as praças que estavam por nós, sahirão fora de suas fortificações, e poucos homens nossos os desbaratarão, matandolhes muita gente, e os atimorizarão de maneira que já não ouzão intentar cousa algũa em terra: E se poucos moradores de Pernambuco estão triunfando delles sem a ajuda do braço real, que fará se S.Magestade se rezolvera a lhes ter feito guerra? mudarão o conseito, e botalos hemos facilmente do Brasil, e conhesserão que a paz he necessária aos Olandezes, e não só aos Portuguezes. Hé já este tempo outro, trocaremse as mãos de Jacob já não estimamos as armas dos Olandezes, elles temem os portugueses; que se athé agora estiverão cahidos por lhe faltar Rei natural hoje com a mercê, que Deus nos fez, com nos dar o Sereníssimo Rei D.João o 4º. tornaremos a ressurgir, e campiar em todo o mundo com signalladas Victorias de todos seus inimigos e cada vez esperamos vão em aumento.
Pois cuidarem, que nos ganhavão ao diante praças de novo he cousa de rizo: porque quem em campo razo, com peito descuberto, os espera, pelleija com elles, e os desbarata, sendo elles em muito maior numero, com mais rezão se deve crer, que detrás de hũ muro, ou trincheira de hũa villa, ou herdade, fará seu dever, os rebaterá, e fará voltar sem alcansarem o que pretendem, frustadas suas esperanças, como lhes succedeo na Baia em companhia do Conde de Orassao (sic), que ainda que vallerozo Capitão a não pode tomar, e se retirou com perda de reputação e se tomarão Angola, São Thome e Maranhão for mais por engano que por esforço; em tempo que se não esperava delles cousa algũa de hostellidade poes se tratava de pazes; estando actualmente em Olanda Embaixador de El Rei nosso senhor procurando asentallas com os estados e senão vejasse a facelidade com que foram lançados do Maranhão por poucos portuguezes e agora vejasse o que lhes suscedeo e Angola tudo sem S.Magestade o mandar em entrevir nisso porque S.Magestade mandou a Salvador Corrêa ao Rio de Janeiro, e não a Angola, que se lá o mandara sem duvida lhe dera mayor poder.
Dirão os Olandezes que tem os portuguezes necessidade de paz por amor da guerra que nos podem fazer no mar, por terem mais naos que nós, Consedo na vantagem do número das naos: mas nego que as nossas poucas não possão rezistir as muitas suas, porque as nossas são muy fortes, e as suas muito fracas, porque as madeiras de Portugal são melhores que as do norte: e valle mais hũa nao nossa de guerra, ou hum Galleão que muitas de Olanda: Exemplo temos na nao Santa Thereza, que pelleijou nas Dunas de Inglaterra com toda armada Olandeza: tinha defronte mais de Cem vellas inimigas, e nenhuma se atreveo a combater com ella: de longe a varejavão com suas ballas as quais dando no forte costado como se forão de barro, sem fazerem mossa algũa cahião no mar, porquanto se resolverão a queimala com navios de fogo, couza facil por ella estar em hũa enseada e não poder sahir della por faltar o vento que a pudera favoresser, que se ella estivera no mar largo aonde pudera vallerse de sua artelharia, e do vallor dos portuguezes ella afastara de si os Inimigos, e se desapressara, ou os mettera no fundo, e athe agora não pelleijou armada nenhuma nossa com elles em forma salvo se dissermos que foi a de Dom Antonio Oquerido (sic) que ainda que Biscainho, foi levar soccorro ao Brazil, e pelleijou lá com o General Adrião Preter a quem metteo no fundo com a sua Capitania, e se pelleijarão todos os Hespanhoes peressera toda a armada Olandeza mas elles trazião os Galleoens carregados de caixas de asucar pouco acomodados para pelleijar; occazião de se hir a pique a almirante de Castella. E por rezão da carga se lhe não pode dar remédio donde se vê que as naos de guerra não hão de empacharse com carga por se não arriscarem a algum desastre; só nisto nos fazem ventagem os Olandezes em trazerem as suas nauos leves mas nem por isso temos necessidade de sua paz porque as nossas nauos deterão as suas, quanto mais que se S.Magestade quizer; Portugal terá tantas nauos que compitão com as de Olanda: E já hoje as vemos muito acrescentadas: favoressa sua Magestade sendo servido aos Vassallos que fizerem nauos que elles se animarão, e farão tantas que senhoreem o mar, como já em outro tempo, e sendo senhores do mar o serão também da terra, e dirão que os Olandezes tem necessidade de lhes pedir pazes.
E sendo verdade tudo assima refferido he couza de admiração que haja quem proponha a S.Magestade e lhe queira persuadir que asseite as condissoens exhorbitantes que os Olandezes apresentão, e que com isso conservava o Reyno de Portugal, e se tal há não pode o tal conselho nascer senão de hũa de três couzas, ou porque a tal pessoa está prendada dos Olandezes e dezeja vellos acrescentados ainda que seja a custa do Reyno de Portugal ou porque tem pouca experiência de negócios e não considera nem alcansa que defraudando o Reyno de suas Conquistas o enfraquesse de modo que quando se não perca ao menos pode vir a dar em pobreza, e hũa baixa muito grande: ou pode também ser que não saberá que terras são as que os Olandezes pedem: não duvido que as ouvisse nomear mas não as correria, vão saberá a quantidade nem quallidade dellas; e porque isto hé couza que elle ignora, e ha outras muitas pessoas que desejão saber o que he, daremos aqui hũa breve Rellação dellas.
Pedem os Olandezes se lhes conceda passifiqua posse das terras e Capitanias que elles tinhão uzurpadas no Brazil quando tomamos armas contra elles o anno de 1645 são as Capittanias de sergipe Del Rei, a de Pernambuco, a de Tamaracá, a da Paraíba, a do Rio Grande, a do Siará que he tudo o que há entre a Baia e o Maranhão. Estendense estas Capittanias pella Costa do mar quatro centas legoas pouco mais, ou menos, e para o Certão terra a dentro muito mais; há nella Cento, e trinta, ou Cento, e quarenta engenhos de asucar que todos os annos dão ao menos quinhentas mil arrobas de asucar; os povos Villas e cidades que nellas tem os portuguezes são as seguintes: a cidade de sergipe del Rei as duas povoações das alagoas, as do Porto do Calvo, Una, Pojuca, Muribera, as Villas de Serinhaem de santo Antonio do Cabo, de Olinda, Cabeça da Capitania de Pernambuco, do Recife, e ilha de Santo Antonio nas quais hoje os Olandezes estão recolhidos por senhorearmos toda a Campanha; Item as Villas dos Santos Cosme e Damião de Igaruçú e a de Nossa Senhora da Conceição, de Itamaraca e as Cidades Phillepea da Paraíba, e a do rio grande, além de que cada hum dos Engenhos que dissemos, na quantidade da gente que nelles mora e dos Lavradores da Cana que habitão com suas famílias os termos delles; são hũa formoza aldea hũas de 400 outras 600, e muitas de mil almas, e ainda de mais, pois pela terra dentro e sertão não faltão naçõens de gente inculta e bárbara, e ainda que tais se nisso se puzera cuidado poderão ser de muito proveito aos portuguezes, e ao serviço real; mas os portuguezes, athé agora fizerão pouco neste particular: Os Olandezes nesse pouco tempo que há, que ocupão o Brasil, domesticarão três naçoens destes bárbaros Tapuyas, e os tem servido, e ajudado muito na guerra, e a nós feitos notáveis damnos, nos alcanses da gente que foge, ou se retira desordenada. E dando de rapina na fazenda dos portuguezes, matando, queimando, e assolando tudo que achão, com discuido, e sem forças com que lhes rezistão chamanse estas naçoens Tareriyus, Inqueriyus, e Cariris ( das quais com o favor devino daremos mais larga rellação na historia do Brazil que temos comessada) a mais poderosa destas naçõens he a dos Tareriyus se offereceo aos portuguezes para os ajudar na guerra contra os Olandezes, não se lhes asseitou o offerecimento desestimandoos, e tendoos em pouco parecia seja sentila que foi para nosso mal os Olandezes o aceitarão e se aproveitarão delles para nosso damno. E a mais nestas Capittanias muitas aldeias do gentio doméstico da nação Pettiguar gente bellicoza. O soldo dos Olandezes, e algũas de Tobujaras em menor numero no Siará, dão estas terras muito pao de tinta chamado pao Brasil: muitas, e excellentes madeiras assim para cazas como para naos, Engenhos ou outras quaesquer obras, muito algodão, tabaco escolhido, gengibre, e todo o gênero de mantimento de que se uza naquellas partes por serem as terras muito férteis; ainda que muitas dellas estão despovoadas, se podem povoar, e fazer nellas hum rico império maior, que Hespanha, França e grande parte de Italia: De modo que se só com que dão estas terras, pode Olanda ser rica, e fazer guerra a todo mundo: donde se colhe a pouca fidelidade de quem persuade que cousa tão grande se dê aos Olandezes para o possuírem para sempre, privando della ao Reyno de Portugal; que tantos annos a chora, e sente fartarlhe com os fructos a elle por tantas rezões devidas.
Dizem mais que lhe mande S.Magestade dar hum milhão e quinhentos mil Cruzados ou dez mil caixas de asucar pellas perdas, e damnos que lhes derão os moradores de Pernambuco, e das demais Capitanias em tomarem armas contra elles: poderasselhes perguntar em que lei achão que S.Magestadee estava obrigado a pagar as perdas, e damnos que dos moradores do Brazil resseberão sem ordem de S.Magestade pois he certo que não deu ordem para o tal levantamento antes elles tinhão obrigação de satisfazer a Real Coroa os damnos que recebeo de elles terem uzurpadas há tantos annos aquellas praças que como tanto proveito seu disfructarão: Dirão que as ganharão a El Rei de Castella seu Inimigo em justa guerra, e se senhorearão dellas pelo direito das gentes que dão as armas: Conçedo que as ganharão em tempo del Rei de Castella, mas nego, que justamente as ganharão, e justamente as pessuissem, pois he El Rei de Castella as não possuio nunca em boa Conçiencia, por ser intruzo no Reyno de Portugal a quem aquella Conquista de direito pertence à força e violentamente; E quando muito alcansarião pessuillas no mesmo foro de intruzos injustamente, pois o Reyno esteve sempre clamando, por seu Rei e Senhor natural, que era o sereníssimo Duque de Bragança hoje por graça de Deus o poderozo Monarca El Rei D.João o 4º. nosso senhor. Couza tão clara que não tem necessidade de prova, e patente aos Olandezes: pois tanto que o Ceo foi servido restaurarlhe o setro, e a Coroa que lhe erão uzurpados, logo segnificou por seus Embaixadores, pedindo-lhe a restituição daquellas praças comettendo-lhes pazes e partidos convenientes e elles estiverão tam fora de acudir ao que devião, que no mesmo tempo quando o tracto de pazes estava em seu ponto, e ellas já quasi sellebradas, mandarão tomar de novo Angola, S.Thomé, e Maranhão praças das Conquistas deste Reyno, por engano, e como atreição tomandoas descuidadas com o tracto das pazes das perdas, que elles derão a S.Magestade com estas acçõens tão injustas não tratão elles: pois mais rezão há para que se lhes pessão as perdas e damnos dellas, pois elles as mandarão, e forão autores de se uzurparem, que das que elles pedem a S.Magestade fazendosse sem ordem sua e naquillo que elles injustamente possuião.
Nem he menor a injustiça do que pedem na outra proposta que S.Magestade lhes mande entregar os moradores de Pernambuco para elles castigarem os que dellinquirão contra elles tomando as armas por sua Liberdade; não devem saber quam grande Catholico he S.Magestade couza a todo mundo clara, e patente: pois cuidam que lhes mandaria entregar tantos innocentes para os mandarem a todos com cruéis tormentos: couza que tenho por muito certa, pois vejo que o anno de 1645 matarão a todos os moradores da Capittania do Rio Grande com hũa crueldade e fereza bárbara, quebrandolhes a fee, e palavra que lhes tinhão dado por escripto, despedassando a huns, e degollando a outros; a este arrancarão o coração pelos peitos, àquelle cortarão pés e mãos deixandoo assim sem o acabar de matar para que o tormento fosse mais prolongado, uzando de outras crueldades tão grandes, que paresse quizerão renovar todos os tormentos que os antigos tiranos inventarão contra os Christãos daquelle tempo pois se elles uzarão de tantas crueldades contra os moradores do Rio grande, sem cometerem contra elles crime ou culpa algũa sendo tão innocentes que o mesmo Ceo, o publicou com manifestos milagres, sellebrando os santos Anjos suas exéquias com muzica Cellestial; achandosse o sangue do bom padre Vigário Francisco Ferro que como bom pastor acompanhou suas ovelhas athé a morte, fresco fervendo sobre a terra, hum mês depois de padesser como o sangue do justo Abel, clamando ao Ceo vingasse o sangue de tantos innocentes, tão injustamente derramado que se espera fizerão aos moradores de Pernambuco, que tomarão as armas contra elles e tantas vezes com tanto valor e esforso os desbaratarão, matando a muitos, triunfando das armas Olandezas: favoressendo-os o Ceo por ser sua cauza justa, em defença da liberdade que os Olandezes lhes tinhão tirado, e por esta cauza sem culpa, e innocentes: pois que rezão há para os castigarem acudindo elles como devião, por sua liberdade, por suas vidas, pellas de suas mulheres, e filhos? E pella honra de tantas matronas, e donzelas, violladas, à força pellos Olandezes, e por seu mandado pelo bárbaro gentio Petiguar? E pella veneração das sagradas Imagens tão mal tratadas dos Olandezes? pella restauração, e immunidade dos templos sagrados por elles profanados? E se os moradores de Pernambuco meressem ser castigados, por tomarem armas contra quem os tiranizou? com mais rezão devem conseder que elles devem ser punidos, pois se levantarão contra seu senhor El Rei natural El Rei de Castella dizem elles como ouvimos a muitos, que não, e que o fizerão com justiça, e estão em boa consiencia: digamos logo que com mayor a fizerão os moradores daquellas Capitanias e que elles devem conseder que são innocentes, e que injustamente requerem lhes sejão entregues para os castigarem como levantados, sendo na verdade Libertadores da pátria dignos de serem premiados.
Consideremos a ultima preposta, que dizerem que avendo discórdias entre portuguezes e Olandezes, e se os governadores os não poderem compor, que se remettera a cauza pellos portuguezes a El Rei nosso senhor, e aos Estados de Olanda pelos Olandezes: paresserá a que tem pouca experiência desta gente, que isto he desejo de conservar a paz quando a ouvesse, mas latet anguis in herba, he terem hum caminho aberto para todas as vezes que quizerem poderem quebrar a paz, e avendo, as tendo elles força para isso envadirem as praças de El Rei nosso senhor, que acharem em descuido, de que elles sam grandes innstigadores, exemplo temos em Angola, São Thomé, e Maranhão: e para que possão dar de rapina sem serem sentidos. Dizem que vinte legoas de suas povoaçoens e forças não terão os portuguezes nem povo nem força alguma: Do que se vê claramente que he melhor ter com elles naquellas partes, guerras declaradas que pazes fingidas. Que fiador darão elles para estarem pellas condiçoens das pazes que jurarem? que fiador para que antes do tempo, as não quebrem, e se passem para nossos Inimigos? a quem devião mais os Olandezes que ao Christianissimo de França, que tantos annos há os deffende, e ampara com dinheiro, e gente contra a potencia Castelhana: Quantos annos há que os tivera sogeitado El Rei de Castella se lhes faltara esse protettor? sem duvida há muitos. Com tudo quebrando por obrigaçoens tão grandes, e tão precizas, esquecidos de tantos benefícios, dandolhe de mão fizeram pazes com El Rei de Castella seu Inimigo, sem se quer ter hum comprimento, com o Christianíssimo. Hora fazei pazes com tal gente: só por ella dizer pax nobis et vobis est utillis, vobis vero nessessa? (sic).
Temos visto que Portugal não tem necessidade da paz de Olanda, nem tem algũa della. Com tudo se os Olandezes quizerem largar as praças das Conquistas, que ainda tem uzurpadas, com S.Magestade lhe dar pellos gastos que fizerão, o que for justo e rezão fora conveniente por não se derramar tanto sangue de Christaons, e quando não queirão vir no que he bem forças tem S.Magestade para as mandar recuperar, tem generaes vallerozos, Capitães Vallentes, esforsados soldados. Em todas as suas terras: tem para o mar muito boas Nauos, e quando faltarão ahi está Inglaterra que as alugará, ao menos tão boas quando não sejam melhores, que as dos Olandezes. Tem conselheiros experimentados: tem ministros deligentes para acudirem ao que for necessário. Tem mais por si S.Magestade a justiça muito clara, e particular favor do Ceo em todas suas couzas, como a experiência cada dia o mostra, nos bons sucessos de sua boa fortuna. E esperamos vá sempre de bem, em milhor, athé triumfar de todos seus Inimigos, para aumento da santa fé Catholica, e amparo dos seus Vassallos.
Isto escrevo como fiel Vassallo de S.Magestade como quem correo todas aquellas terras, tractou todas aquellas gentes, e lhes conhesse de experiencia as condissoens.
Sub sençura (sic)
O Ldo Mel de Moraes
(Biblioteca Nacional de Lisboa – códice ms. n. 1551, de fls. 59 a 63, frente e verso e 64 rosto.)
Idem - códice ms. n. 2694, de fl. 37 a 41, frente e verso e 42, rosto)
Anais do Museu Paulista:
Década de 20, tomo 1 parte 2 – págs. 119-133