24-1-2012

 

 

Um poema inédito de André de Resende

 

 

 

Na pág. 191v. do manuscrito designado como &-IV-22 (1.º), da Real Biblioteca do Mosteiro de São Lourenço do Escorial, em Madrid, encontra-se uma poema com o título “Andreae Resendii Ode in Gallos”, que a seguir vai transcrito.

Segundo a ficha no site da Biblioteca, o manuscrito, com 232 folhas, foi copiado pessoalmente pelo Padre Juán Paez de Castro em meados do sec. XVI e na mesma ficha o poema é atribuído a André de Resende (1498-1573).

Juán Paez de Castro (1510-1570) foi Jesuíta, Filósofo e Humanista espanhol.  Estudou em Alcalá, Salamanca e Bolonha. Foi a Roma na comitiva de Diego Hurtado de Mendoza em 1547 e aí foi ordenado sacerdote. Viajou por vária vezes por Itália e pelos Países Baixos, tendo sido nomeado por Carlos V Capelão Real. Foi amigo de homens cultos do seu tempo como Florián do Campo, Ambrósio de Morales e Jeronimo Zurita.  Acumulou uma grande biblioteca privada, que mais tarde deixou em herança ao Rei Filipe II. Em vida, sugeriu a este que fundasse uma boa biblioteca, sugestão que foi aceite pelo Rei que fundou a Biblioteca Laurentina.

Segundo a mencionada ficha, o manuscrito pertenceu ao Conde-Duque de Olivares, a quem o comprou o Marquês de Eliche, e deu entrada na Biblioteca do Escorial em 1656.

No início do Sec. XX, o Padre Mariano Gutiérrez Cabezón, transcreveu e publicou várias dezenas de poemas do manuscrito na revista do Mosteiro La ciudad de Diós, com o título  “Algunas poesías latinas de Paez de Castro”, nos volumes seguintes:

 

Ano XXXII, 1912 – Volume N.º 91 – Pags. 424-426

Ano XXXIII, 1913 – Volume N.º 92 – Pags. 54-57, 109-112, 269-273, 369-370, 438-441

Ano XXXIII, 1913 – Volume N.º 93 – Pags. 120-122, 262-265, 412-416

Ano XXXIII, 1913 – Volume N.º 94 -  Pags. 52-54, 106-113, 200-206

 

Entre as poesias publicadas, uma de D. Miguel da Silva, o Cardeal-Viseu, no Volume XCIV, de 1913, pag. 203 com o título In statuam puellae ad aquam virginem Michaëlis Sylvii Cardinalis, que também se encontra copiada noutro manuscrito da Biblioteca Nazionale de Florença e foi depois também publicada em Itália. Está transcrita aqui.

No mesmo volume  XCIV, a pags. 205, é mencionado o poema Ode in Gallos, atribuído a André de Resende, mas não está transcrito, não se diz porquê e não são dadas outras informações.

Todos estes dados apontam para a autenticidade da atribuição do poema a André de Resende.  Se tal for verdade, vejamos em que altura é que poderá ter sido escrito.

Num artigo intitulado A Torre de Augusto, em um poema atribuído a André de Resende (B.N. Madrid, MS 3610, fol. 260r), publicado em Coimbra na revista Humanitas n.º 58 (2006), pags. 333-346, a Professora Virgínia Soares Pereira transcreve um poema encontrado num manuscrito da B.N. de Espanha, e conclui:

 

5. Conclusão

Em função do que foi dito e a confiar nos dados disponíveis, poderá afirmar-se que:

1. O poema a  ”Torre de Augusto” é (será) da autoria de André de Resende;

2. Terá sido composto por volta de 1526, quando o poeta, em viagem pelos mares da Galiza, passou (terá passado) pelo litoral da Corunha e avistou (terá avistado) o Farol romano.

 

Na minha opinião, a conclusão é perfeitamente aceitável, mesmo sem os dubitativos. André de Resende terá avistado do mar a Torre e possivelmente, terá lá ido depois fazer uma visita, após ter naufragado no litoral da Corunha.    Diz o próprio poeta no Erasmi Encomium:

 

E vós, praias da Calácia, que largo tempo, hóspede triste e indigente, habitei como náufrago

      (Tradução do Prof. Doutor Walter de Medeiros e Dr. José Pereira da Costa)

 

Se o navio naufragou no litoral da Corunha, ele não pôde prosseguir a viagem por mar. Nem tinha como contratar nova viagem, nem os navios que partiam de Lisboa aportavam na Galiza ou na Corunha.

Náufrago, terá conseguido que alguém lhe desse abrigo, talvez mesmo algum Convento de Dominicanos que por lá houvesse. Terá então feito uma excursão à Torre de Augusto, hoje mais conhecida por Torre de Hércules.

Dos livros de Resende sabemos, recuando no tempo:

 

- que em 17 de Setembro de 1529 já estava em Lovaina

 

 

 

Elogio da Cidade e da Academia de Lovaina, do português Ângelo André de Resende

Lovaina, 17 de Setembro de 1529 – Carta de Resende a Conrado Goclénio

 
 

 

- que em 1528 estava em Paris – Vida de Frei Pedro

 

 

Pags.209 --  Chegado pois o tempo que a Nosso Senhor aprouve levar para si este seu servo, em um domingo depois da Epifania, ele, acabadas as matinas, se confessou a Frei Afonso Banha, padre antigo e homem de verdade, do qual eu depois houve esta informação, porque em este tempo estava em Paris, e fez-lhe a saber que esse dia havia de partir deste mundo.

………………………………………………………………………………………………

Pag. 210 - …As quais palavras acabadas, com ũa pequena onda de esmorecimento cerrou os olhos e a boca, e a alma se foi a seu Criador, em o ano do nascimento de Nosso Senhor Jesu Cristo de 1528.

 
 

 

- que antes disso, esteve mais de dois anos em Marselha, tendo recebido as ordens de Subdiácono e Diácono em Aix en Provence – Carta a Bartolomeu de Quevedo.

 

 

At ego me juvenem commoratum fuisse aio Massiliae ultra biennium, et ibi apud Aquas Sextias Hypodiaconatus et Diaconatus ordinem suscepisse…

Ora, no que me toca, devo dizer que, na minha juventude, vivi em Marselha mais de dois anos, e que, aí, perto de Aix, recebi as ordens de subdiácono e de diácono… -- pag. 95

 

 
       Tradução da Prof. Doutora Virgínia Soares Pereira, ob. citada  

 

Desta sucessão de datas e acontecimentos, bem como do que ele diz no poema Erasmi Encomium (conforme artigo citado da Prof. Doutora Virgínia Soares Pereira), podemos concluir que ele embarcou em Lisboa com destino ao norte da Europa, no ano de 1526.

Note-se que Aix en Provence era um grande centro de vida conventual, tendo um importante mosteiro de Dominicanos.

Tudo aponta, assim, para que André de Resende, tendo naufragado na Corunha em 1526, tenha prosseguido a sua viagem por terra, eventualmente alojando-se nos conventos da Ordem dos Pregadores. Tê-lo-á feito sem pressas, de tal modo que encontrou inspiração ainda para escrever poemas.  Demorou-se depois mais em Marselha, ao tempo, grande centro de vida monástica.

Vejamos agora o poema Ode in Gallos,  a seguir reproduzido, com tradução da Prof. Virgínia Soares Pereira, que corrigiu o meu esboço e também os meus erros de leitura do manuscrito.

É fácil de explicar a raiva existente em Espanha contra os Franceses e a simpatia de um poeta Português para com os espanhóis naquela data. 

A 11 de Março de 1526, a Princesa Isabel de Portugal (1503-1539), filha do Rei D. Manuel I  e da Rainha Maria de Aragão e Castela, ambos já então falecidos, desposou o Imperador Carlos V. Foi um grande casamento real, que deixou contentes os Portugueses, apesar de mais tarde conduzir à União Ibérica (1580-1640).

Entretanto, Carlos V estava em guerra com a França. No âmbito das chamadas Guerras de Itália (1494-1559), teve início, no ano de 1526, a guerra da Liga de Cognac (1526-1530), uma aliança política e militar que juntava a França com o Papa Clemente VII, as República de Veneza e Génova, o Ducado de Milão e a cidade de Florença contra Carlos V, representando a Espanha e o Sagrado Império Romano Germânico.  Foi esta a também chamada Sétima Guerra de Itália (1527-1529).

Estas circunstâncias – a amizade com Espanha e o ódio reinante ali contra os Franceses – terão levado Resende, quando passou por aquele País a escrever uma ode contra os Franceses.  Nela acusa o Rei Francês, Francisco I, de ter iniciado as hostilidades. Por causa dele, os Turcos, que estavam em Belgrado desde 1522, lançaram em 1526 uma ofensiva para Norte. Suleimão, o Magnífico, à frente de um exército de muitas dezenas de milhares, passou o Sava, tomou Varadin (Novi Sad),  postou-se em frente do Drava, o afluente do Danúbio na fronteira da Hungria e em 19 de Agosto de 1526, derrotou Luis II da Hungria na Batalha de Mohacs.

Mercenários aos milhares foram recrutados nos Cantões Suiços.

O poeta termina augurando a vitória do exército imperial de Carlos V e que Francisco I de França fique de novo preso em Espanha – em Fevereiro de 1525, tinha perdido a batalha de Pavia e ficado prisioneiro do Imperador, sendo libertado aquando do Tratado de Madrid, de 14 de Janeiro de 1526.

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

A Santa Vida e Religiosa Conversação de Frei Pedro, Porteiro do Mosteiro de S. Domingos de Évora, Transcrição, Introdução e Notas de Serafim da Silva Neto, Prefácio de Jaime Cortesão, Edições Dois Mundos Rio de Janeiro, 1943.

Online: Online: http://www.bdalentejo.net/BDAObra/BDADigital/Obra.aspx?id=190

  

Algumas obras de André de Resende, com um estudo de Manuel Cadafaz de Matos, leitura diplomática e versão portuguesa act. de Walter de Sousa Medeiros... [et al.], Vol. I, Lisboa, Edições Távola Redonda, 2000-ISBN 972-9366-17-9

Vol. II, Lisboa, Edições Távola Redonda, 2008-ISBN 972-9366-30-6

 

Carta a Bartolomeu de Quevedo / André de Resende ; introd., texto latino, versão e notas de Virgínia Soares Pereira, Coimbra, INIC, 1988, 263 pags.

 

Ad Clem. VII. Pont. Max. & Carolum V. Imp. Aug. de nostrorum temporum calamitatibus Sylva Bononiae aedita. IX. Decemb. M.D.XXIX. ; Ioannis Secvndi Hagien. de Pace dudum Cameraci confecta, ac Caroli V. Imp. coronatione, Carmina ; Ang. Andreae Resendii Lusitani Encomion vrbis & academiae Louaniensis, Joannes Graph. Excudebat Antuerpiæ anno assertionis humanæ M D XXX

Online: https://opacplus.bsb-muenchen.de e http://books.google.com

François Guichardin, Histoire des Guerres d’Italie, traduite de l’italien, à Londres, Chez Paul & Isaac Vaillant, 1738. 3 vol.

Online : http://books.google.com 

  

 

 

 

Andreae Resendii ode in Gallos

 

Rursum tumultu Gallia turbido

Dextras obarmat non bene masculas,

Martisque duros ad labores   

Molle genus rapiens proterve

Bellacis iras urget Iberiae.                                5

Plectenda rursum proelia perfidus

Non auspicato edit tyrannus

Caesario reprimendus astro.

Arma, arma quamvis improbe clamitas

Arma, arma quaqua est Gallia perstrepat,           10

Arma, arma Gallorum procaces

Congeminent animi ferocum.

Te bellicosus Turca Liburnicis

Auctore laxet claustra Propotidos

Tonsisque palmatis tremendae                         15

Jonium quatiant triremes.

Helvetiorum quidquid habet iugis

Arctos nivosis quidquid ab algidae

Radice Iurae per Lemanum

Vergit ad interiora Rheni                                 20

Venale vulgus, contrahe quam potes

Jam foederatis adde cohortibus

Mercede conductas cohortes,

Ac populos numerosiores.

Vinceris, odit falsa Diespiter                           25

Non peierati numinis immemor,

Vinceris, Hispanasque collo

Experiere iterum cathenas,

Stacte calentes nos memori Jovi

Ponemus aras, nos merito Deo                       30

Marti bis ultori trophaeum

Exuviis statuemus amplis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ode de André de Resende contra os Gauleses

 

De novo a Gália, em violento tumulto,

arma as dextras ainda pouco viris

e,  aos duros trabalhos de Marte

a débil geração arrastando, com atrevimento

incita à cólera a guerreira Ibéria.                                                       5

De novo o pérfido tirano [1], sob um astro aziago, por édito decide

ser forçoso empunhar armas,

ele a quem a estrela do César [2] há de dominar.

Às armas!  Ainda que ‘às armas’ iniquamente grites,

‘Às armas!’, por todo o lado a Gália faz retinir as armas,                      10

Às armas! Às armas! os ânimos audazes dos feros

Gauleses as armas redupliquem.

Por tua causa, o belicoso Turco até aos Libúrnicos [3

há de dilatar os limites da Propôntide,  [4]

e as temíveis trirremes com seus remos em forma de palma                15

o mar Jónio hão-de ferir.

Bem podes ajuntar quantos Helvécios tem a terra do Norte no cume dos seus montes

nevados, tudo quanto da nascente do gelado Jura [5]

desce, através do Lemano [6],

para as regiões do interior do Reno,                                                 20

multidão de gente que se vende;  bem podes tu ajuntar  quantos possas,

bem podes acrescentar às legiões já em pacto unidas,

legiões atraídas pela paga [7]

e populações muito variegadas!

Serás vencido. Odeia a falsidade Deus pai, [8]                                   25

que não esquece um assentimento perjuro. 

Serás vencido e de novo experimentarás,

na tua cerviz, as cadeias Hispanas.

Por nós, queimaremos mirra nos altares, consagrados

a Júpiter “que se lembra”; merecidamente, ao deus Marte,                  30

duas vezes vingador, um troféu

de avultados despojos haveremos de erguer.

 
 

     

 

[1] Francisco I, rei de França (1494-1547)

[2] Carlos I de Espanha (1500-1558) e também Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico

[3] Habitantes da Libúrnia, aqui por Croácia.

[4] Propôntide, equivalente a Mar de Mármara, significando aqui o Império Turco.

[5] Rio Jura, na Suiça.

[6] Lago Lemano, na Suiça.

[7] Legiões atraídas pela paga = legiões mercenárias.

[8] Júpiter