10-12-2001

 

O crime que abalou o Brasil e o mundo

O assassínio do índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por brincadeira

 

 

 

 

Na madrugada do dia 20 de abril de 1997, Galdino, 44 anos, dormia sob um abrigo de usuários de ônibus da 703/704 - via W-3 Sul, em Brasília – DF, quando foi alvo de um dos crimes mais bárbaros e torpes de que se tem notícia na capital federal e no País.

Por volta das 05:00 hs da manhã, acordou completamente em chamas. Socorrido por jovens condutores e passageiros de veículos que por sorte transitavam pelo local, e que com muito custo conseguiram apagar o fogo que lhe ardia em todo o corpo, Galdino deu entrada agonizante mas ainda consciente no Hospital Regional da Asa Norte. Completamente cego devido às queimaduras nas córneas, conseguiu se identificar para a equipe médica e indicar a localização de seus companheiros. Antes de entrar em coma, perguntou repetidas vezes: POR QUE FIZERAM ISSO COMIGO? Galdino achava que havia sido atingido por um coquetel molotov.

Para todos, choque maior veio poucas horas depois, com a descoberta feita pela polícia: o fogo havia sido ateado às suas vestes por um grupo de cinco rapazes de classe média alta, entre 17 e 19 anos, a título de BRINCADEIRA! Dias depois, o menor Gutemberg participante do atentado, confessava: o grupo fizera uso de dois litros de álcool combustível, comprados cerca de duas horas antes do crime, especificamente para efetuar a "brincadeira".

Com queimaduras em 95% do corpo, o que lhe comprometeu a integridade e o funcionamento dos órgãos internos, Galdino não resistiu e faleceu, às 02:00 horas da madrugada do dia 21 de abril.

Galdino Jesus dos Santos era indígena do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, localizado no sul da Bahia. Ocupava a função de conselheiro em sua comunidade. Chegara em Brasília no dia 17 de abril, como parte de uma delegação composta por oito lideranças de seu povo. Com o acompanhamento da assessoria jurídica do Secretariado Nacional do Cimi, cumpriria a partir do dia 22 de abril, uma intensa agenda de reuniões com procuradores da República, parlamentares e membros do alto escalão do Ministério da Justiça e da Fundação Nacional do Índio – Funai.

O objetivo era buscar apoio para a solução de um imbróglio judicial criado pelo Juízo da Vara Federal em Ihéus - BA, que impedia o cumprimento de uma decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1.º Região em Brasília, que meses antes havia reconhecido à sua Comunidade o direito de posse provisória sobre uma área de cinco fazendas encravadas na terra indígena.

Diferentemente do que fora planejado, no dia 22 de abril Galdino fazia a sua viagem de volta, para ser enterrado, junto aos restos mortais do seu irmão João Cravim, o cacique Pataxó Hã-Hã-Hãe que dez anos atrás também fora vítima de assassinato, até hoje impune.

Habitantes do sul da Bahia, os Pataxó Hã-Hã-Hãe tiveram garantida, pela lei estadual n.° 1.916, de 09/08/1926 uma área de 53.400 ha (cinqüenta e três mil e quatrocentos hectares), denominada Caramuru - Catarina Paraguaçu, entre os municípios de Camacã, Itaju do Colônia e Pau Brasil.

Nos anos 30, boato dos fazendeiros invasores, de que estaria em curso no local uma "revolução comunista", serviu de pretexto para o massacre dos índios – muitos de contato recente com a "civilização" - e funcionários do antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) que atuavam no local.

Pressionado, o órgão indigenista reduziu a extensão da área para 36.000 ha (trinta e seis mil hectares), o que ocorreu em 1937, também arrendando-a progressivamente a particulares.

Com tais arrendamentos (vigentes ilegalmente e até os anos 80) e as titulações a particulares pelo Governo da Bahia, quase nada restou aos Pataxó Hã-Hã-Hãe, nem mesmo o acesso à água potável, motivo de um altíssimo índice de mortalidade infantil.

Na década de 70, a despeito da repressão militar, os Pataxó Hã-Hã-Hãe reorganizaram-se em torno da recuperação de seu espaço territorial, o que levou ao ajuizamento de três ações em que se discute a posse e a propriedade da área.

Só nos últimos 11 anos, 12 índios – entre os quais o cacique João Cravim - foram mortos em razão do conflito com os fazendeiros invasores.

Após os funerais de Galdino, a Comunidade efetuou a retomada da posse das terras ocupadas pelas cinco fazendas, e lá se encontra até o momento, por força de decisão judicial.

 

 

 

 

 

 

CRONOLOGIA:

 20/4/1997 - Depois de participar da festa do Dia do Índio, Galdino Jesus dos Santos é queimado vivo, quando dormia num ponto. Os acusados - Max Rogério Alves, Eron Chaves Oliveira, Antônio Novély Villanova, Tomás Oliveira de Almeida, todos de 19 anos, e o menor Gutemberg Oliveira de Almeida. - são presos horas após o crime, pois o chaveiro Nairo Magalhães anotou a placa do Monza preto em fuga.

21/4 - Morre Galdino Jesus dos Santos. O presidente Fernando Henrique Cardoso diz estar revoltado com o ataque.

22/4 - O menor Gutemberg, de 16 anos, irmão do Tomás Oliveira de Almeida,  admite, em depoimento à polícia, que o "ataque ao índio foi premeditado e preparado durante quase duas horas".

25/4 - O delegado Valmir Alves de Carvalho conclui o inquérito, convencido de que o crime foi premeditado e hediondo. A promotora da Procuradoria-Geral da União Maria José Pereira denuncia os rapazes por homicídio doloso triplamente qualificado.

28/4 - A juíza Leila Cury relaxa a prisão dos acusados.

21/5 - No Tribunal de Justiça, os rapazes declaram que só queriam fazer "brincadeira", inspirados em "pegadinha".

12/8 - A presidente do Tribunal do Júri de Brasília, a juíza Sandra de Santis Mello, desclassifica o crime de homicídio para lesão corporal seguida de morte. Pela decisão, os adolescentes livram-se do júri e o julgamento passa a ser de competência de uma vara criminal.

18/8 - A promotora Maria José Pereira entra com recurso.

12/9 - Gutemberg é libertado, por decisão do TJ. Em sessão secreta, juízes substituem a internação do adolescente em instituto correcional, que deveria durar três anos, por liberdade assistida.

29/9 - A juíza Sandra de Santis reafirma a sentença que retira do júri popular a competência para julgar o caso.

5/3/1998 - TJ de Brasília confirma a sentença da juíza.

14/10 - O Ministério Público entra com recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), pedindo que se transfira o julgamento ao Tribunal do Júri.

9/2/1999 - O STJ decide que os estudantes devem ser julgados por júri popular e retoma a tese de que ocorreu homicídio triplamente qualificado, sujeito a pena de até 20 anos.

20/3 - Supremo Tribunal Federal (STF) mantém julgamento por júri popular.

27/3/2001 - STJ nega todos os recursos e marca a data do júri popular. Juíza será Sandra de Santis.

31/10 - A promotora Maria José Miranda deixa o caso.

5/11 - O promotor Maurício Miranda pede afastamento da juíza, mas ela fica.

6/11 - Começa o julgamento.

11/11 – Os quarto rapazes são condenados a 14 anos de prisão maior, da qual terão de cumprir pelo menos dois terços  Conta a prisão já sofrida desde o crime e ainda terão de ser levados em consideração os dias trabalhados - para cada três dias de serviço, um será descontado da pena.

Em 12 de Setembro de 1997, o menor Gutemberg, que também participou do ataque a Galdino, acabou libertado, por decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Em sessão secreta, juízes substituíram a internação do adolescente em instituto correcional, que deveria durar mais três anos, por liberdade assistida.

 

 

 

Peças jurídicas:

Sentença de pronúncia da Juíza Sandra De Santis M. de F. Mello - 9-8-1997

Recurso em sentido estrito do Ministério Público - 26-8-1997

Parecer de Damásio E. de Jesus -13-10-1997

Acórdão do Superior Tribunal de Justiça - 9-2-1999