Na madrugada do dia 20 de abril de
1997, Galdino, 44 anos, dormia sob um abrigo de usuários de ônibus da
703/704 - via W-3 Sul, em Brasília – DF, quando foi alvo de um dos
crimes mais bárbaros e torpes de que se tem notícia na capital federal e
no País.
Por volta das 05:00 hs da manhã,
acordou completamente em chamas. Socorrido por jovens condutores e
passageiros de veículos que por sorte transitavam pelo local, e que com
muito custo conseguiram apagar o fogo que lhe ardia em todo o corpo,
Galdino deu entrada agonizante mas ainda consciente no Hospital Regional
da Asa Norte. Completamente cego devido às queimaduras nas córneas,
conseguiu se identificar para a equipe médica e indicar a localização de
seus companheiros. Antes de entrar em coma, perguntou repetidas vezes:
POR QUE FIZERAM ISSO COMIGO? Galdino achava que havia sido atingido por
um coquetel molotov.
Para todos, choque maior veio poucas horas depois,
com a descoberta feita pela polícia: o fogo havia sido ateado às suas
vestes por um grupo de cinco rapazes de classe média alta, entre 17 e 19
anos, a título de BRINCADEIRA! Dias depois, o menor Gutemberg
participante do atentado, confessava: o grupo fizera uso de dois litros
de álcool combustível, comprados cerca de duas horas antes do crime,
especificamente para efetuar a "brincadeira".
Com queimaduras em 95% do corpo, o que lhe
comprometeu a integridade e o funcionamento dos órgãos internos, Galdino
não resistiu e faleceu, às 02:00 horas da madrugada do dia 21 de abril.
Galdino Jesus dos Santos era indígena do povo Pataxó
Hã-Hã-Hãe, localizado no sul da Bahia. Ocupava a função de conselheiro
em sua comunidade. Chegara em Brasília no dia 17 de abril, como parte de
uma delegação composta por oito lideranças de seu povo. Com o
acompanhamento da assessoria jurídica do Secretariado Nacional do Cimi,
cumpriria a partir do dia 22 de abril, uma intensa agenda de reuniões
com procuradores da República, parlamentares e membros do alto escalão
do Ministério da Justiça e da Fundação Nacional do Índio – Funai.
O objetivo era buscar apoio para a solução de um
imbróglio judicial criado pelo Juízo da Vara Federal em Ihéus - BA, que
impedia o cumprimento de uma decisão do Tribunal Regional Federal (TRF)
da 1.º Região em Brasília, que meses antes havia reconhecido à sua
Comunidade o direito de posse provisória sobre uma área de cinco
fazendas encravadas na terra indígena.
Diferentemente do que fora planejado, no dia 22 de
abril Galdino fazia a sua viagem de volta, para ser enterrado, junto aos
restos mortais do seu irmão João Cravim, o cacique Pataxó Hã-Hã-Hãe que
dez anos atrás também fora vítima de assassinato, até hoje impune.
Habitantes do sul da Bahia, os Pataxó Hã-Hã-Hãe
tiveram garantida, pela lei estadual n.° 1.916, de 09/08/1926 uma área
de 53.400 ha (cinqüenta e três mil e quatrocentos hectares), denominada
Caramuru - Catarina Paraguaçu, entre os municípios de Camacã, Itaju do
Colônia e Pau Brasil.
Nos anos 30, boato dos fazendeiros invasores, de que
estaria em curso no local uma "revolução comunista", serviu de pretexto
para o massacre dos índios – muitos de contato recente com a
"civilização" - e funcionários do antigo SPI (Serviço de Proteção ao
Índio) que atuavam no local.
Pressionado, o órgão indigenista reduziu a extensão
da área para 36.000 ha (trinta e seis mil hectares), o que ocorreu em
1937, também arrendando-a progressivamente a particulares.
Com tais arrendamentos (vigentes ilegalmente e até os
anos 80) e as titulações a particulares pelo Governo da Bahia, quase
nada restou aos Pataxó Hã-Hã-Hãe, nem mesmo o acesso à água potável,
motivo de um altíssimo índice de mortalidade infantil.
Na década de 70, a despeito da repressão militar, os
Pataxó Hã-Hã-Hãe reorganizaram-se em torno da recuperação de seu espaço
territorial, o que levou ao ajuizamento de três ações em que se discute
a posse e a propriedade da área.
Só nos últimos 11 anos, 12 índios – entre os quais o
cacique João Cravim - foram mortos em razão do conflito com os
fazendeiros invasores.
Após os
funerais de Galdino, a Comunidade efetuou a retomada da posse das
terras ocupadas pelas cinco fazendas, e lá se encontra até o momento,
por força de decisão judicial.
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