O caso do índio pataxó queimado em Brasília.


  A sentença da juíza

 

Elaborada por Sandra De Santis M. de F. Mello,, juíza do Tribunal do Júri de Brasília.

Processo nº 17901

 
Acusados:
Max Rogério Alves
Antônio Novély Cardoso de Vilanova
Tomás Oliveira de Almeida
Eron Chaves de Oliveira.


 
Vistos etc.


 
MAX ROGÉRIO ALVES, ANTÔNIO NOVÉLY CARDOSO DE VILANOVA, TOMÁS OLIVEIRA DE ALMEIDA E ERON CHAVES DE OLIVEIRA, todos qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público, como incursos nas sanções do artigo 121, §2º, incisos I, III e IV do Código Penal e artigo 1º da Lei 2252/54 e artigo 1º da Lei 8072/90 porque, juntamente com o menor G.N.A.J. (Nota do Editor: o nome completo do menor será sempre omitido, embora conste do original) jogaram substância inflamável e atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, causando-lhe a morte.

 
Narra a inicial da acusação que, ao amanhecer, o grupo passou pela parada de ônibus onde dormia a vítima. Deliberaram atear-lhe fogo, para o que adquiriram dois litros de combustível em um posto de abastecimento. Retornaram ao local e enquanto Eron e G. despejavam líquido inflamável sobre a vítima, os demais atearam fogo, evadindo-se a seguir.

 
Três qualificadoras foram descritas na denúncia: o motivo torpe porque os denunciados teriam agido para se divertir com a cena de um ser humano em chamas, o meio cruel, em virtude de ter sido a morte provocada por fogo e o uso de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, que foi atacada enquanto dormia.

 
A inicial, que foi recebida por despacho de 28 de abril de 1997, veio acompanhada do inquérito policial instaurado na 1ª Delegacia Policial. Do caderno informativo constam, de relevantes, o auto de prisão em flagrante de fls. 08/22, os boletins de vida pregressa de fls. 43 a 55 e o relatório final de fls. 131/134. Posteriormente vieram aos autos o laudo cadavérico de fls. 146 e seguintes, o laudo de exame de local e de veículo de fls. 172/185, o exame em substância combustível de fls. 186/191, o termo de restituição de fls. 247 e a continuação do laudo cadavérico, que está a fls. 509.

 
O Ministério Público requereu a prisão preventiva dos indiciados. A prisão em flagrante foi relaxada, não configurada a hipótese de quase flagrância, por não ter havido perseguição, tendo sido os réus localizados em virtude de diligências policiais. Na mesma oportunidade foi decretada a segregação preventiva dos acusados, com fundamento na necessidade de salvaguardar a ordem pública, evitar o descrédito do Poder Judiciário, para que a liberdade não servisse de incentivo a práticas similares. Além da garantia da ordem pública, a prisão foi decretada por conveniência da instrução criminal, para assegurar a integridade física dos réus e de seus familiares e para salvaguardar a aplicação da lei penal, porquanto tão logo praticado o crime os réus evadiram-se do local, demonstrando que pretendiam furtar-se a eventual condenação.

 
O MM. Juiz Federal da 10ª Vara oficiou notificando ter prolatado decisão firmando a respectiva competência para apreciar e julgar os autos da ação penal. Suscitado conflito de competência, o processo ficou paralisado. Julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, foi declarado competente o Juízo de Direito da Vara do Tribunal do Júri.

 
O genitor da vítima foi admitido como assistente do Ministério Público, conforme despacho de fls. 286.

 
Os réus foram interrogados. Max Rogério afirmou que, ao avistarem a vítima no ponto de ônibus, tiveram a idéia de "pregar um susto para ver a vítima correr". Adquiriram álcool combustível, que foi parcialmente despejado sobre a pessoa que dormia, sendo ateado o fogo. Asseverou que ficaram assustados e saíram do local, tendo em vista a aproximação de um veículo, embora tivessem cogitado ajudar a vítima. Alegou ter consciência de que o álcool combustível é substância altamente inflamável mas que não esperavam que o fogo "tomasse a proporção que tomou." (fls. 292/294)

 
Antônio Novély Cardoso de Vilanova argumentou que resolveram dar um susto na vítima, que a brincadeira seria com uso de álcool e fósforos. Mencionou a ida ao posto de abastecimento para aquisição do combustível, que não seria usado por inteiro, razão pela qual Eron despejou o conteúdo de um dos litros em um gramado situado próximo à parada de ônibus. Assevera que enquanto Eron deixava cair o combustível sobre a vítima, um dos autores riscou precipitadamente o fósforo, momento em que as labaredas subiram na direção de Eron que assustou-se e jogou o vasilhame no chão. Narrou que entre os acusados houve o comentário de que "a vítima pegou fogo demais". Mencionou ter consciência de ser o álcool combustível substância altamente inflamável mas alegou que sua intenção, como a dos demais, era somente derramar o líquido sobre a vítima, a fim de dar-lhe um susto para vê-la correr, sendo que em momento algum lhe passou pela cabeça que a vítima poderia morrer, como também ficar lesionada. Assegurou que a intenção era só dar um susto na vítima.

 
Tomás Oliveira de Almeida, interrogado em Juízo, também relatou que ao ser avistada a vítima surgiu a idéia de atear-lhe fogo para que esta corresse. Confirmou que adquiriram dois litros de álcool combustível e que, após darem mais algumas voltas, dirigiram-se ao local do crime onde decidiram esvaziar um dos vasilhames, pois entenderam que não haveria necessidade de utilização dos dois litros de álcool. Afirmou ter sido Eron quem despejou o líquido na vítima e que, ao riscarem os fósforos, a labareda foi em direção à garrafa que estava nas mãos de Eron, que a soltou, tendo todos saído do local. Afirmou também ter consciência de que o álcool combustível é substância altamente inflamável mas que em nenhum momento lhe passou pela cabeça que o fogo "pegasse com rapidez e queimasse toda a vítima".

 
O acusado Eron, ao ser ouvido, informou que todos assentiram na idéia de atear fogo à pessoa que estava no abrigo, para o que adquiriram álcool combustível. Alegou que todos imaginaram que a vítima fosse acordar e correr atrás do grupo para agredí-los. Argumentou ter derramado o conteúdo de um dos vasilhames no gramado e que estava jogando o líquido nos pés da vítima quando iniciou o fogo "que subiu de baixo para cima", vindo em direção às suas mãos. Asseverou ter largado o vasilhames, saindo do local às pressas.

 
Todos os réus apresentaram as defesas prévias, que estão às fls. 337/379, requerendo a realização de diligências. Algumas delas foram deferidas, não o sendo a instauração de incidente de insanidade mental, além da oitiva de testemunha que não constava do rol apresentado com as alegações preliminares.

 
Na fase instrutória foram ouvidas nove testemunhas arroladas pela acusação e trinta e uma pelas defesas, conforme assentadas e termos de audiência de fls. 390/409, 434/454 e 470/474.

 
A fls. 485 está carta precatória expedida para depoimento de testemunha de defesa residente em Pau Brasil - Bahia.

 
Na oportunidade do art. 406 do Código de Processo Penal, o Ministério Público e as defesas apresentaram alegações finais. A Promotora de Justiça, por entender presentes os requisitos necessários à pronúncia, manifestou-se pelo julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri, mantidas as qualificadoras e a imputação de corrupção do menor. Asseverou que, "se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte da vítima, no mínimo assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo. A pretendida desclassificação, se fosse o caso, só poderia ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário de Júri." (alegações de fls. 512 e seguintes - grifos no original)

 
A assistência da acusação ratificou as razões finais do Ministério Público.

 
A defesa de Eron e Tomás pugnou pela desclassificação do ilícito, argumentando que a prova produzida leva à inconteste conclusão de que os defendentes, ao realizarem as condutas, não previram o resultado morte e sim a lesão corporal, ocorrendo crime preterdoloso. Pretende o afastamento das qualificadoras, caso pronunciados os réus e a impronúncia com relação ao crime previsto no artigo 1º da Lei 2252/54.

 
Na mesma linha, a defesa do réu Max Rogério. Nas alegações, que tecem comentários à personalidade do acusado, diante das informações obtidas quando da oitiva das testemunhas de defesa, pretende também a revogação da prisão preventiva.

 
Nas alegações finais apresentadas, a defesa de Antônio Novely rechaça os argumentos do Ministério Público e argumenta que o dolo do agente, ainda que eventual, deve ser provado e não presumido. Pretende a desclassificação para o ilícito previsto no artigo 129, §3º, do Código Penal ou no artigo 121, §3º, do mesmo Codex e a impronúncia em relação ao cirme descrito no artigo 1º da Lei 2254/54.


 
É o relatório. Decido.


 
Finda a instrução, apresentadas as alegações finais, o Juiz sentenciante terá quatro opções: a pronúncia, porque determina o artigo 408 do Código de Processo Penal que, se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o autor, pronunci-á-lo-á, dando os motivos do seu convencimento; a impronúncia, quando não se convencer da existência do crime ou de indício suficiente da autoria; a desclassificação, prevista no artigo 410 do mesmo diploma, quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso daquele da competência do Tribunal do Júri e a absolvição sumária, quando ocorrente alguma causa de justificação, na forma do disposto no artigo 411 do Código de Processo Penal.

 
Assim, não tem razão a douta representante do Ministério Público quando afirma que a desclassificação só poderá ser feita pelo Conselho de Sentença, após os debates em Plenário do Júri. Se por um lado é certo que também durante a sessão de julgamento, quando da votação do questionário, pode ser operada a alteração da classificação penal, por outro lado não se pode negar vigência ao disposto no artigo 410 do Código de Processo Penal.

 
Os acusados foram denunciados porque, ao praticarem o crime, teriam agido com animus necandi, na forma do dolo eventual. É o que consta da peça acusatória: "No dia 20 de abril de 1997, por volta de cinco horas, na EQS 703/704 - W3 Sul - Brasília - DF, os denunciados, juntamente com o menor de idade G.N.A.J., mataram Galdino Jesus dos Santos, índio Pataxó, contra o qual jogaram substância inflamável, ateando fogo a seguir, assumindo claramente o risco de provocar o resultado morte".

 
Nas alegações finais, o Ministério Público argumentou: "se não tinham os agentes do crime manifesta intenção de causar a morte da vítima, no mínimo assumiram o risco de provocar o resultado lamentavelmente advindo.

 
Não se contende sobre autoria e materialidade do ilícito. Os acusados assumiram a responsabilidade pela prática delituosa. A confissão está corroborada pela ampla prova trazida aos autos. Já a materialidade, está patenteada no laudo de exame cadavérico. As fotografias anexadas à peça técnica demonstram as lesões sofridas pela vítima do crime e que, certamente, lhe causaram sofrimento atroz. A conduta dos agentes, sem dúvida, deixou a todos indignados, tal a reprovabilidade da selvagem "brincadeira", independentemente de tratar-se de mendigo ou índio - ambos seres humanos.

 
Assim, o único ponto controvertido é o elemento subjetivo. Deve ser salientado que a vontade é elemento integrante do tipo penal. Importante saber se os réus quiseram o resultado morte ou assumiram o risco de produzi-lo, para fixar a competência constitucional deste Tribunal do Júri, ou se ocorreu outro crime com resultado morte, hipótese em que competente para julgamento o juízo singular.

 
A atividade humana é um acontecimento finalista, não somente causal. Toda conduta humana é finalisticamente dirigida a um resultado. Nosso Código Penal é finalista. Neste sentido o entendimento jurisprudencial:

 
"Após a reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, operada em 1984, a análise do elemento subjetivo que move a conduta do agente de qualquer delito é medida que se impõe em razão da Lei, eis que o Diploma Penal Substantivo adotou como seu corolário a teoria da Ação Finalista (TJDF - Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves)

 
"Hoje, pela doutrina de Welzel ("Das deutesche Strafrechet") a denominada "teoria finalista da ação, adotada por nosso CP, a culpa integra o tipo." (Resp. 40180, MG - Rel. designado Min. Adhemar Maciel)

 
A denúncia veio fundada no dolo eventual. Pretendem os réus a desclassificação do ilícito, seja para o crime de lesões corporais seguidas de morte, previsto no artigo 129, §3º, ou o do artigo 250, §2º, do mesmo diploma. Desde já afasto a possibilidade de se tratar somente de cirma culposo pois, no tipo culposo, o agente realiza uma ação cujo fim é lícito mas, por não se conduzir com observância do dever de cuidado, dá causa a um resultado punível. E atear fogo em pessoa que dormia no abrigo de ônibus, para assustá-la, à evidência não é atividade lícita. Também não pode ser aceita a pretendida capitulação do ilícito como incêndio culposo. Os acusados confessaram que atearam fogo na vítima. E o tipo subjetivo do crime de incêndio é a vontade deliberadamente dirigida ao incêndio de alguma coisa, tendo o agente consciência e vontade de produzir uma situação de perigo comum. Um ser humano não é coisa, seja ele índio ou mendigo.

 
Assim, restam somente o homicídio praticado com dolo eventual e o cirme de lesões corporais seguidas de morte, denominado "preterdoloso", em que há dolo quando à lesão corporal e culpa quanto ao homicídio. A linha divisória entre ambos é tênue. Cumpre trazer a lição dos doutrinadores a respeito do que sejam as duas figuras em cotejo.

 
Para Assis Toledo, "A culpa consciente limita-se com o dolo eventual (CP, art. 18, I, in fine). A diferença é que na culpa consciente o agente não quer o resultado nem mesmo assume deliberadamente o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não acontece com erro de cálculo ou por erro na execução. No dolo eventual o agente não só prevê o resultado danoso como também o aceita como uma das alternativas possíveis." (Princípios Básicos de Direito Penal - Saraiva - 4ª ed.)

 
O saudoso Heleno Fragoso leciona: "Há dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado (CP, art. 18, I, in fine).Assumir o risco significa prever o resultado como provável ou possível e aceitar ou consentir sua superveniência. O dolo eventual aproxima-se da culpa consciente e dela se distingue porque nesta o agente, embora prevendo o resultado como possível ou provável, não o aceita nem consente. Não basta, portanto, a dúvida, ou seja, a incerteza a respeito de certo evento, sem implicação de natureza volitiva. O dolo eventual põe-se na perspectiva da vontade e não da representação, pois esta última pode conduzir também à culpa consciente. Nesse sentido já decidiu o STF (RTJ, 35/282). A rigor, a expressão "assumir o risco" é imprecisa para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento." (Lições de Direito Penal - 8ª ed. Forense)

 
Segundo a teoria positiva do consentimento, formulada por Frank, que é útil como critério prático para identificar o dolo eventual, ocorre tal tipo de dolo quando o agente diz a si mesmo: "seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei."

 
Fernando de Almeida Pedroso, na obra Direito Penal - 2ª ed. - Leud, pag. 407, cita Albani Pecoraro: "No dolo eventual, o agente, ao prever como possível a realização do evento, não se detém. Age, mesmo às custas de realizar o evento previsto como possível." E, mais adiante, acrecenta: "Dessa maneira, enquanto o dolo direto se respalda e embasa na teoria da vontade (por sua determinação quanto ao crime), tem o dolo eventual supedâneo e alicerce no princípio do assentimento, ex vi da anuência manifestada pelo sujeito ativo no que pertine com o delito."

 
O exemplo citado pelo autor, retirado da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é elucidativo: "Existe dolo eventual, outrotanto, no comportamento do militar que pratica "roleta russa", acionando por vezes o revólver carregado com um só cartucho e apontando-o sucessivamente a cada um dos seus subordinados, para experimentar a sorte deles, culminando por matar alguém."

 
Alberto Silva Franco in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial (5ª ed. - Editora Revista dos Tribunais) alerta: "Assim, não basta para que haja dolo eventual que o agente considere sumamente provável que, mediante seu comportamento, se realize o tipo, nem que atue consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, e nem mesmo que tome a sério o perigo de produzir possível conseqüência acessória. Não é exatamente no nível atingido pelas possibilidades de concretização do resultado que se poderá detectar o dolo eventual e, sim, numa determinada relação de vontade entre esse resultado e o agente." (grifos que não constam do original)

 
Em suma, há dolo eventual quando o agente prevê como provável e não apenas como possível o resultado que tenha eventualmente aceito. A situação psíquica do agente em relação ao fato deve ser deduzida das circunstâncias do fato e do caráter dos agentes. No julgamento do AC 285.215 - TACRIM SP, o Rel. Silva Franco deixou assentado: "O momento volitivo se manifesta na esfera do subjetivo, no íntimo do agente e, deste modo, não é um dado da realidade que possa ser diretamente apreendido. Mas isto não significa que não possa ser extraído do caráter do agente e de todo o complexo de circunstâncias que cercaram seu atuar."

 
Traçados os balizamentos, tarefa mais árdua é a de pesquisar, no caso concreto, o animus que conduziu os agentes ao crime. Coloca-se o julgador à frente do dilema: "queriam os jovens matar aquele que dormia no abrigo de ônibus ou fazer uma brincadeira cujo resultado foi mais grave que o desejado? Para obter a difícil resposta sobre o elemento subjetivo, um dos meios é considerar a potencialidade lesiva do meio empregado, dado bastante relevante. O fogo pode matar, e foi o que o ocorreu, mas sem dúvida não é o que normalmente acontece.

 
No julgamento do habeas corpus 7651/97, o Des. Joazil Gardès deixou consignado:

 
"Se perguntarmos: tiro mata? Veneno mata? Enforcamento (esganadura) mata? Afogamento mata? A resposta inevitável será: mata; mas, se perguntarmos queimadura mata? A resposta até mesmo de médicos que não sejam especialistas em queimados, invariavelmente será: queimadura não mata, isto porque toda a sorte de queimadura, produzida por fogo ou substâncias de efeito análogo é possível de ser tratada, sendo natural avistarmos pelas ruas e salões sociais, pessoas com rostos, membros e corpos deformados por queimaduras."

 
Por outro lado, mais um dado importante evidenciou-se durante a instrução. É que, apesar de terem adquirido dois litros de combustível, logo que chegaram ao locus delicti o conteúdo de um dos vasilhames foi derramado na grama. O laudo de exame de local demonstra a afirmativa, principalmente a fotografia de fls. 182. A prova técnica, por seu turno, também vem ao encontro da versão dos acusados de que os fósforos foram acesos precipitadamente, enquanto Eron derramava o líquido inflamável sobre a vítima, fazendo-o largar abruptamente o vasilhame. A fls. 173 dos autos está consignado que "sob o banco do abrigo havia um recipiente plástico, opaco, na cor verde, com as inscrições "LUBRAX SJ ÓLEO PARA MOTORES A GASOLINA E A ÁLCOOL - Volume 1000 ml, vazio, que se encontrava com a parte superior comburida.

 
No interrogatório Antônio Novely afirmou:

 
"... que nesse instante alguém cuja identidade o interrogando não se recorda riscou precipitadamente um fósforo e o jogou na direção do pano, momento em que este começou a pegar fogo e as labaredas subiram na direção de Eron, o qual estava com o litro de combustível em suas mãos; que o interrogando estava ao lado de Eron e pode sentir as labaredas do fogo bem próximas de si e nesse instante Eron assustou-se e jogou o litro de combustível no chão; que nesse instante todos os quatro correram ...."

 
O acusado Eron confirmou:

 
"... que concomitantemente alguém riscou um fósforo , sem que o interrogando saiba quem foi, momento em que iniciou-se o fogo "que subiu de baixo para cima", vindo em direção à mão do interrogando que imediatamente soltou a garrafa e saiu correndo; ..."

 
As testemunhas que presenciaram a fuga dos réus informaram o estado de ânimo dos mesmos após os fatos: estavam todos afobados. José Maria Gomes asseverou que "quando viu os elementos atravessando correndo a viaW3 Sul eles pareciam estar com muita pressa e desesperados".

 
Assiste razão à defesa do acusado Antônio Novely quando afirma que desespero e afobação não se coadunam com aqueles que agem com animus necandi.

 
O caráter dos agentes foi exposto durante a instrução criminal. Por outro lado, as declarações prestadas imediatamente após os fatos demonstram que não havia indiferença na ocorrência do resultado.

 
Assim, analisada como um todo, a prova dos autos demonstra a ocorrência do crime preterintencional e não do homicídio. A ação inicial dos réus, sem qualquer dúvida, foi dolosa. Não há como afastar a conclusão de que, ao atearem fogo à vítima para assustá-la, sabiam que iriam feri-la. O resultado morte, entretanto, que lhes escapou à vontade, a eles só pode ser atribuído pela previsibilidade. Qualquer infante sabe dos perigos de mexer com fogo. E também sabe que o fogo queima, ainda mais álcool combustível, líquido altamente inflamável. Os réus também têm este conhecimento. Entretanto, mesmo sabendo perfeitamente das possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado, não está presente o dolo eventual. Uma frase constante do depoimento de Max, no auto de prisão em flagrante, sintetiza o que realmente ocorreu. Está a fls. 15: "pegou fogo demais, a gente não queria tanto." Como já enfocado, assumir o risco não se confunde, em hipótese alguma, com previsibilidade do resultado. Assumir o risco é mais, é assentir no resultado, é querer ou aceitar a respectiva concretização. É necessário que o agente tenha a vontade e não apenas a consciência de correr o risco. E o "ter a vontade" é elemento subjetivo que está totalmente afastado pela prova dos autos, que demonstrou à saciedade que os acusados pretendiam fazer uma brincadeira selvagem, ateando fogo naquele que presumiram ser um mendigo, mas nunca anuíram no resultado morte. Tem razão o Ministério Público quando afirma que "não se brinca com tamanha dor nem de um animal, quanto mais de um desprotegido ser humano." Acrescento que a reprovabilidade da conduta mais se avulta quando estreme de dúvidas que os acusados tiveram muitas e variadas oportunidades para desistirem da selvagem diversão. Por outro lado, agiram de forma censurável pois, após avistarem a vítima no ponto de ônibus da EQS 703/704 Sul, deslocaram-se a um posto de abastecimento distante do local, nas quadras 400, para adquirir o combustível, dizendo que o fariam porque havia um carro parado por falta de combustível. O acusado Antônio Novely, no interrogatório, asseverou:

 
"... que o interrogando não se recorda de quem partiu a idéia de dar o susto na vítima, sabendo dizer que todos concordaram com a idéia; ... que em seguida alguém teve a idéia de que o susto seria aplicado com uso de álcool e fósforos, porém o interrogando não sabe dizer de quem partiu a idéia, mas todos concordaram com a mesma; que assim combinados, todos se dirigiram para um posto de gasolina, localizado na 405 sul, salvo engano; que ali chegando todos desceram do veículo e se dirigiram ao frentista alegando que tinham um carro ali próximo sem combustível e precisariam de um vasilhame para levar até o carro; que o frentista sugeriu que todos olhassem em um latão de lixo próximo, a fim de procuraram um vasilhame vazio; que todos procuraram e o interrogando não se recorda quem achou os dois litros de óleo vazio, os quais encheram de álcool combustível; ... que não foram de imediato ao encontro da vítima, já que depois da compra do combustível ainda rodaram um certo tempo pelas ruas da cidade a fim de procurarem algo para fazer..." (fls. 296/297)

 
Por mais ignóbil que tenha sido a conduta irresponsável dos acusados, não queriam eles, nem eventualmente, a morte de Galdino Jesus dos Santos. A emoção e a indignação causadas pelo trágico resultado não podem afastar a razão. Assim, os réus devem ser julgados e punidos unicamente pelo crime cometido que, salvo entendimento diverso do MM. Juiz competente, é o de lesões corporais seguidas de morte. Inexistente o animus necandi (por não terem os acusados querido o trágico resultado ou assumido o risco de produzi-lo, repita-se), está afastada a competência do Tribunal do Júri, devendo os autos ser encaminhados a uma das Varas Criminais, a que couber por distribuição.

 
Por último cumpre examinar se deve ou não persistir a custódia cautelar dos acusados, diante da desclassificação do ilícito.

 
Em princípio, salvo entendimento diverso do MM. Juiz a quem couber o julgamento do feito, os réus deverão responder pelo crime previsto no artigo 129, §3º do Código Penal, verbis:

 
Art. 129 - (omissis)

 
§3º. Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo.

 
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

 
A nova capitulação que se delineia não é afiançável e, como sabido, o fato de os réus serem primários e de bons antecedentes não pode, por si só, desautorizar a prisão fundamentadamente decretada. Por outro lado, persistem, ao menos parcialmente, os motivos que levaram à segregação cautelar. Acrescento que a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça, por maioria, negou habeas corpus impetrado em favor de Max Rogério Alves. Assim, não se vislumbrando qualquer maltrato a preceito constitucional que justifique antecipação da decisão que o juiz da causa venha a tomar, deixo de examinar o pedido de liberdade provisória para não subtrair do Juízo competente a direção do processo.

 
Diante do exposto e com fundamento nos artigos 408, §4º, e 410 do Código de Processo Penal, desclassifico a imputação de homicídio doloso contra Max Rogério Alves, Antônio Novely Cardoso de Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida e Eron Chaves Oliveira e declino da competência para uma das Varas Criminais, determinando que, após o decurso do prazo recursal e feitas as anotações de estilo, remetam-se os autos à Distribuição.


 
P.R.I.


 
Brasília, 9 de agosto de 1997


 
Sandra De Santis M. de F. Mello