Página principal, aqui                 

 

ANA TERESA PEREIRA

 

EXPRESSO n.º 1730

Actual, de 23 de Dezembro de 2005

Os gestos do amor

Mais uma belíssima História por Ana Teresa Pereira

Texto de Helena Barbas

O Mar de Gelo, de Ana Teresa Pereira, Relógio de Água, 2005, 138 págs., € 14

Ana Teresa Pereira reincide no tema do amor eterno: "Em todos os livros há duas pessoas tão ligadas como se se conhecessem há muito tempo" (pág. 49). De novo o que interessa não é tanto a intriga em si, mas o modo como é contada.

Trata-se de "uma história de amor entre três pessoas", que podia cair no banal triãngulo amoroso, ou no ainda mais banal adultério, mas não. Tudo se passa entre um casal de actores – Katie e Clive – que se conhecem desde a infância; foram o rapaz/a rapariga da casa do lado. Clive escreve peças de teatro que Katie vai protagonizando e em que ele próprio também entra. E depois há Tom, um escritor de sucesso, ex-professor em Oxford. Todos tentam ter êxito nas suas artes. Subordinam-lhes as suas vidas, e não é possível distinguir onde começam umas e acabam as outras. "Era bom para o trabalho. Observar os outros. O rosto de uma pessoa quando pensa que está sozinha. Quando pensa que não está a ser olhada. Um gesto, uma expressão, um olhar, podiam ser reproduzidos mais tarde, num palco, e ganhar uma importância que nunca haviam tido. Era um pouco assim que compunha as suas personagens, pedaços de si própria, pedaços dos outros. E também era interessante ver a reacção de uma pessoa quando percebia que estava a ser seguida todas as noites" (pág. 43). Mas este processo pode ser perigoso: "Katie, que se transformava em tantas mulheres, Miranda, Stella, Hilde, Cecily, por vezes tinha medo de não ser ninguém. De ter escolhido aquela profissão para fugir ao vazio, à falta de identidade. Talvez com um escritor acontecesse o mesmo" (pág. 59). O entendimento entre as personagens assim o insinua. Katie procura seduzir Tom, com quem já tivera um caso quando era estudante, e que não se recorda dela. Vai então segui-lo pelas ruas escuras de Londres, pelas livrarias e jardins, suscitando encontros de olhares fortuitos que foram premeditados. Encena os gestos do relacionamento amoroso: "Eram actores profissionais e a paixão tornava-se fácil de representar. O mundo é um palco e eles tinham consciência disso. No fundo, muito no fundo, sentiam-se superiores ás outras pessoas. Porque eles sabiam que era só uma peça (pág. 13). Todas as hierarquias são invertidas, subvertidas, subordinadas à verdade de cada par de amantes: "Katie bebeu o chocolate lentamente. Não, nenhum deles criava algo para ficar. Estavam de passagem e não deixavam marcas. A única forma de serem eternos ( pág.27). Um estranho e paradoxal elogio do efémero.

JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias

Ano XXV n.º 921, de 18 a 31 de Janeiro de 2006

 

Ana Teresa Pereira, O MAR DE GELO, Relógio d’Água, 127 pp.

 

“Como muitos actores ingleses, Kate Dylan era uma becomer: transformava-se nas personagens que tinha de interpretar. Do mesmo modo que em menina se identificava com as personagens dos seus livros de aventuras, e depois com Lizzy Bennet e Emma Woodhouse; mais tarde com as mulheres de Henrik Ibsen e Tennessee Williams”. Assim começa o novo livro de Ana Teresa Pereira, uma das vozes mais singulares da ficção contemporânea, recentemente distinguida com o prémio literário PEN Clube Português. Fazendo eco de O Mar, O Mar, de Iris Murdoch, (também editado pela Relógio D’Água) e de um quadro de Caspar David Friedrich (reproduzido na capa), O Mar de Gelo é uma cintilante novela, fortemente marcada pelas recorrências literárias da autora, como citações literárias, pictóricas, musicais e teatrais. Neste caso, Kate e Clive, dois jovens actores desempregados, unidos por um amor inquestionável, têm pela frente um Inverno impiedoso. Com poucos recursos, a solução para o superar talvez esteja no escritor Tom Stewart…

 

                                                 

PÚBLICO,  Mil Folhas, 21 de Janeiro de 2006

 

Eduardo Prado Coelho

Tendo começado por fazer narrativas de índole policial, Ana Teresa Pereira, foi criando um espaço, um tipo de casas, alguns lugares públicos, paisagens invernosas, uma forma de diálogo, um modo de se alimentarem acentuadamente frugal, e quase sempre as mesmas personagens. 

Onde tu estás é sempre o fim do mundo

Há escritores que deambulam pelo mundo à procura de pontos de apoio. Outros escolhem uma região polar – e instalam-se nela: vivem do gelo e do deserto, do desamparo e da luz que se inclina sobre os rostos fatigados. Exploram até à exaustão a terra que inventaram e aí implantaram objectos, corpos, desenhos marítimos, bolsas de vento. Não será por acaso que a capa da mais recente ficção de Ana Teresa Pereira reproduz um pormenor dum quadro de Caspar David Friedrich intitulado “O Mar de Ciclo’’: brancura fracturada em lajes que restaram de uma catástrofe antiga, formas pontiagudas que perfuram o céu, infinita distância do vazio.

Ana Teresa Pereira pertence a este segundo grupo. Tendo começado por fazer narrativas de índole policial (Sherlock Holmes ou William Irish são referências insistentes), Ana Teresa foi criando um espaço, um tipo de casas, alguns lugares públicos (velhas livrarias, teatros), paisagens invernosas, uma forma de diálogo, um modo de se alimentarem acentuadamente frugal, e quase sempre as mesmas personagens (um homem mais velho, escritor, e alguns amantes de contornos esquivos), um conjunto obsessivo de referências literárias e cinematográficas (às vezes alargadas às artes plásticas), formas de vestuário (camisolas de lã, “jeans”). Há o risco de uma certa monotonia, mas cria-se o contorno dos reencontros, como quem todos os anos pelas férias regressa à mesma praia e aos pequenos bares que a rodeiam e às casas de madeira sobre a areia.

Desta vez, o ambiente é totalmente inglês. Temos um casal de actores, sendo ela Kate e ele Clive. O texto designa-os como “os amantes de Kensington Gardens”. Depois surge a memória de um escritor que Kate conheceu numa livraria, quando ele fazia uma conferência sobre Henry James. E Kate conta como ele a tinha convidado para tomar um copo. E depois tinham ido para “a casa de Portobello Road”. Ana Teresa Pereira gosta de enunciar nomes de lugares, que deixam de ser uma topografia neutra, para ganharem uma espécie de sensualidade (memória, ternura, desejo). Clive pergunta: “Fizeste amor com ele?” E Kate responde com indiferença: “Sim.” “Ele sorriu sem vontade. Foi bom?’ -Acho que sim. Foi há muito tempo.” Kate recorda: “A casa verde de Portobello. Entre a casa branca e a casa cor de telha. O jardim nas traseiras coberto de neve. Os braços do homem à volta da sua cintura. A voz funda, com o sotaque de Oxford, a voz de um actor que faz o público ter vontade de ajoelhar. O desejo.” Aqui introduz-se um novo elemento que imprime as marcas de uma atmosfera: as cores nítidas, concisas, o branco, o verde. A casa verde pode ser estritamente referencial: mas abre uma espécie de fantasia que a imaginação vem ocupar.

Há um arco que atravessa as personagens: elas estão entre o princípio do mundo e o fim do mundo. Tom (nome obsessivo no universo de Ana Teresa Pereira, que dedica a Tom o seu romance) diz a dada altura, ao reaparecer anos depois: “há qualquer coisa na tua beleza que me comove. E assim, com a neve no cabelo, pareces um anjo do princípio do mundo.” A noite Kate vai ouvir um concerto numa igreja. Tocam A Criação de Haydn: “O princípio do mundo. Um anjo do princípio do mundo.”

Aqui entram em cena os amos. Estas personagens inclinam-se entre serem gente que caminha sobre a terra, corpos aconchegados, na recusa de serem deuses, e anjos que abrem a multiplicidade dos céus que cabem na alma de unia pessoa. “Eu encontrei na Rússia os anjos que desdobraram os céus no princípio dos tempos.” E este princípio dos tempos tem a ver com certos livros com naturalmente os de Ana Teresa Pereira. “Em todos os livros há duas pessoas que estão ligadas... mas como já se conhecessem há muito tempo (...) “Desde o princípio do mundo’? Algo assim. E eles encontram-se... - Suponho que em todos os livros... eles se encontram de novo.” É isso que redime a repetição: o que se repete é sempre a primeira vez e é como primeira vez irrepetível que se repete.

Há uma intromissão de “Andrei Roubliev” ou da obra de Tarkovski, um misticismo ardente, uma religiosidade terrestre (que se combina com uma sexualidade displicente e e vagabunda). “Mais tarde ele dissera-lhe que os seus menores movimentos tinham um sentido religioso. Como se fosse um anjo. Um anjo do princípio do mundo, que atravessara os milénios intocado e sem memória. Era por isso que o mundo se transformava num lugar solitário onde quer que ela estivesse: a vaguear na margem do rio, sentada nos degraus da igreja de St. Martin-in-the-Fields, adormecida na relva de um parque, reclinada no balcão de um pub a beber cerveja.” As personagens têm um estatuto insólito: ela vive a navegação brumosa da identidade: “Não sabia quem era quando não estava a representar. Katie, que se transformava em tantas mulheres, Miranda, Stela, Hilde, Cecily, por vezes tinha medo de não ser ninguém. De ter escolhido aquela profissão para fugir ao vazio, à falta de identidade. Talvez com um escritor acontecesse o mesmo. Viver através das suas personagens para fugir ao vazio, ao horror de estar sozinho e não ser realmente ninguém.” Clive é uma paixão leve, um pássaro esvoaçante, um desejo “light”. Tom tem a espessura frontal e enigmática de um ícone: “Um ícone é uma janela para o reino de Deus.” Mas uma palavra inglesa diz que Kate é uma “becomer” (é logo no limiar do livro que esta expressão aparece, e vai reaparecendo ao longo do texto): “Ela era uma ‘becomer’ e transformava-se na personagem que estava a representar. Se Clive a achava parecida com um anjo era porque a amava. Palavras que um homem diz à mulher que ama. O princípio de um livro de William Irish. Um daqueles livros de que eles não se separavam nunca. Não eram muitos. Os poemas de W. B. Yeats e de Rilke, as peças de Shakespeare e de Ibsen, algumas de Tennessee Williams, os romances de Wílliam Irish, os livros de contos de William Irish, as aventuras de William.”

Um dia Marguerite Duras disse que tinha conhecido uma criança que perguntava à mãe o que era o calor. E a mãe respondeu: “É quando a gente estende a mão e se queima.” E a criança voltou a perguntar: “E o que é o calor quando não há ninguém?” Duras acrescentava que os seus livros eram escritos do mesmo modo: “E o que é o amor quando não há ninguém?”

Tom disse a Katie: “Gosto de te ver com a neve nos cabelos.” E dialogam os dois: “- Talvez houvesse neve no princípio do mundo. - Sim. Longas paisagens de gelo.— Como nos teus sonhos? — E nesse mundo feito de gelo ainda não havia homens.” É este o lugar de Katie. É este o olhar dos homens que a amam: “Com um estremecimento ele percebeu que não havia mais nada, só a neve, o gelo, e depois mais neve, e mais gelo, estavam no princípio do mundo, num tempo sem deuses e sem homens. O lugar mais solitário do mundo.”

 

 

EXPRESSO, Actual, n.º 1790, 17 de Fevereiro de 2007

 

Branco

deserto

imenso

 

Ana Teresa Pereira em registo cru, desolado e incontornável

 

Manuel de Freitas

 

A neve

Ana Teresa Pereira

Relógio d’Água

2006, 112 pags. € 11

 

Este livro quase nos obriga a um começo impróprio, desaconselhável segundo todas as regras hermenêuticas, mas nem por isso menos imperioso: de facto não é irrelevante o conhecimento do “lugar” a que A Neve é dedicado. «Para a Quinta do Palheiro Ferreiro, onde nasceram tantas histórias» (pág. 7), está longe de ser quer um capricho isolado quer um apontamento turístico, numa ilha concreta e situável, onde a barbárie do betão, sob camuflado fascismo, tem conhecido extremos de que só o pior Algarve é capaz. Essa quinta, simultaneamente real e fantasmática possui ainda hoje os ingredientes fundamentais dos melhores pesadelos de Henry James e esteve na origem de muitos dos «fairy tales» com que já nos surpreendeu Ana Teresa Pereira. Dir-me-ão, com plena justiça, que “o silêncio pesado da capela» (pág. 13) poderá ter como referente muitos outros lugares, ou que não é preciso ter-se estado em Davos para perceber o torpor de Hans Castorp ou em Quaunahuac para sentir o desespero de Geoffrey Firmin. Certamente que não. Mas, sintomaticamente, Ana Teresa Pereira acrescenta: «posso continuar a escrever a vida toda sem sair deste jardim» (pág. 13).

Talvez seja assim há muito tempo; ou o tempo tenha mesmo perdido toda a sua importância face á desmemória da infância e ao absoluto poder que nela então se pressente: «Aos onze ou doze anos acreditava que era capaz de fazer nevar (pág. 18). Rose e Rose indistinguem-se, mulher e criança que se encontram furtivamente nas páginas deste livro branco que (para imitar a neve?) se faz de acumulados fragmentos, murmúrios breves. Aí, porém, nos podemos deparar com súbitas iluminações que trazem a esta escrita um modo inesperado de autodecifração: «Havia sempre um homem e um livro, pelo menos um homem e um livro, um homem que algum tempo antes desejara com todas as suas forças e que agora não passava de um estranho, um livro que desejara com todas as suas forças e que morria lentamente debaixo dos seus dedos» (pág..16). Tão improvável como a neve em Agosto ou nesse Agosto quase perpétuo que recai sobre a Quinta do Palheiro Ferreiro é a confissão diferida que a certa altura nos tolhe: “Nunca sentira que existisse unia separação definida entre o que escrevia e ela própria, era doloroso, quase insuportável, e era assim que devia ser, de outra forma não valia a pena» (pág. 83).

Não desesperem, porém, os que mais «diegeticamente» têm acompanhado o invulgar percurso de Ana Teresa Pereira. Existe neste livro uma surda e violenta história de amor, ou de quase impronunciado sexo, algures muna estalagem que se chamou Jamaica Inn (tributo a Daphne du Maurier ou ao filme “maldito» de Hitchcock que nesse texto se inspirou). E também não faltam, com a mesma pose nenhuma de sempre, as referências a Robert Browning, Turner, Paganini, Ted Hughes, John Dickson Carr. São, entre tantos outros, os anjos e demónios que esta escrita há muito reclama como seus. Mas nunca, parece-me, o fez de um modo tão despojado, que apeteceria até colocar sob a égide de Rothko (outra figura tutelar deste universo fechado), a quem talvez não desagradasse a extrema austeridade de uma capela onde tudo, de novo, se funde: «os livros são como os amantes, o último é sempre o primeiro. Ele é o meu primeiro amor, este é o meu primeiro livro» (p 97). E é isso, como a neve em Agosto, que se toma paradoxalmente verdadeiro a cada novo livro de Ana Teresa Pereira: a diferença entre Rose e Rose num mesmo jardim.

 

EXPRESSO, Actual n.º 1810, de 7 de Julho de 2007

  

A criação de um mundo

 

O deserto da paixão segundo Ana Teresa Pereira

 

Manuel de Freitas

 

Quando atravessares o rio

Ana Teresa Pereira

Relógio d’Água, 2007, 112 págs.

 

A poder falar-se dum efeito “eternidade”, tão preciso e intenso como a luz que de um ícone escuramente emana, teríamos de o detectar na obra de Ana Teresa Pereira. À margem, claro, de fáceis misticismos ou de reconhecíveis engrenagens religiosas, pois não é disso que se trata, mas antes de um cada vez mais asfixiante e depurado continuum. A autora, acrescente-se, sabe-o bem melhor do que nós: “As suas personagens eram sempre as mesmas: uma mulher um pouco parecida com ela e um homem mais velho chamado Tom” (pág. 48). Desta vez, Tom quase chega a ter um rosto, talvez o de Jeremy Irons, assumido agora como o “actor nos seus livros”. Mas pouco importa, afinal, a substância de que são feitos Tom ou Katie Dylan, cujos duplos teimam em assombrar estas páginas inquietantes. Abate-se sobre Quando atravessares o rio uma espécie de beleza terminal, inexorável. Este poderia muito bem ser o último – ou o primeiro – livro de Ana Teresa Pereira, ao confrontar-nos com questões  tão irresolúveis quanto raramente formuladas:

“O que acontece às personagens quando o autor vai embora?

“Os livros de um escritor estão contados. E depois ele fica sozinho com os seus demónios. Ela mesma escrevera essas palavras, alguns anos atrás” (pág. 20).

Dir-se-ia que a “autobiografia” irrompe, neste livro, ainda menos veladamente do que em obras anteriores: “[Katie] queria ser uma grande escritora, não queria fazer mais nada na vida” (pág. 25). Já sabemos que isso – em Portugal – é o menos realizável dos projectos, a não ser que se tenha agentes literários e uma evidente pobreza de espírito, dócil e exportável. No entanto, é esse o quase impossível desígnio de Katie: “esculpir no gelo”, afastar-se solitariamente do esplendor frívolo do cimento dominante. A suspeita de uma crise ou de um impasse revela-se, porém, indissociável de uma extrema e desapiedada lucidez: “Deitar-se na neve para morrer. Como ele. // Mas a neve era muito pouca” (pág. 24).

Uma escrita deste calibre, com tudo o que tem de obsessivo e de inalienável, obriga-nos a ficar “algures do outro lado das palavras” (pág. 55). Como se, de falésia em falésia, só o susto e a derrota – no que estes possam ter de júbilo ou celebração – fizessem ainda algum sentido, à sombra de um nome indomavelmente próprio: “Fingir dá muito trabalho. Eu prefiro ser (pág. 67).

 

13-07-2007

Às vezes basta um rosto, in Ípsilon, 13-7-2007, p. 44, recensão de Eduardo Pitta, de "Quando atravessares o rio".

Pode ser lida, aqui

 

EXPRESSO, Actual n.º 1861, de 28 de Junho de 2008

 

ANA TERESA PEREIRA.

O Fim de Lizzie

Biblioteca Editores Independentes,

Maio de 2008,

138 págs.

 

NESTE VOLUME, que assinala a estreia de Ana Teresa na mais elegante colecção portuguesa de livros de bolso, deparamos com dois textos que já haviam sido publicados. «Numa Manhã Fria», entretanto reescrito, constituía o texto inicial de Histórias Policiais (2006), ao passo que «O Fim de Lizzie» foi originalmente divulgado neste suplemento do Expresso», numa versão bem mais concisa. A pertinência de reunir estas duas novelas num único volume é inquestionável. Além de as personagens principais serem nominalmente as mesmas (um quarteto implacavelmente estigmatizado pela questão do «duplo»), repetem-se também os cenários: Wistaria Hall e as charnecas circundantes, o nevoeiro de Londres, uma noite escura que «pode durar o resto da vida». Mas seria decerto redutor atermo-nos à constatação destas afinidades, pois a elas se vem sobrepor outro tipo de inquietações, como seja a inexorável despedida da infância, essa época em que «o mundo ainda não nos parecia um lugar incompreensível». Não será por acaso que em ambos os textos surgem «nursery rhymes», emblemas esparsos do «conhecimento e sinistro que têm as crianças quando estão a cantar». Pode mesmo dizer-se que nunca essa nostalgia amarga se fez notar tão intensamente na obra de A. T. Pereira. Como se esse limiar, embora já trouxesse em si «qualquer coisa de errado, qualquer coisa de partido», constituísse, afinal, o único abrigo possível para a noite interminável que se adivinha - nos corpos, nos livros, nas casas onde não voltaremos a ser crianças. À fugaz realidade da infância sucede, em suma, uma permanente ameaça de desencontro e de irrealidade, um recorrente desejo de matar o que talvez nem exista. Lizzie, apesar da sensualidade com que é descrita, é a imagem exacta dessa imaterialidade e do negrume em que surge envolta: «Talvez àquela hora da noite todas as mulheres se parecessem com Lizzie.» Acontece, porém, que outra parecença se nos vai tornando evidente, desta vez a da própria autora com frases deste teor: «Eu quis usar a minha arte como se fosse magia, e os deuses não me perdoaram»; «as personagens tinham vida própria, e pareciam muito próximas da loucura». O que não oferece dúvidas é que a magia persiste, mesmo quando observada do «ponto de vista das gaivotas» ou de outros demónios igualmente atentos.

Manuel de Freitas

 

 

EXPRESSO, Actual n.º 1896, de 28 de Fevereiro de 2009

 

O Verão Selvagem dos Teus Olhos

Ana Teresa Pereira

Relógio d’Água, 2008, 130 pgs.

 

ROMANCE: A paixão de Rebecca segundo Ana Teresa Pereira, naquele que é um dos seus melhores livros.

 

Manuel de Freitas

 

Este romance de Ana Teresa Pereira não se adequa a epítetos teóricos tão estafados como palimpsesto, dialogismo ou intertextualidade. Em rigor, “O Verão Selvagem dos Teus Olhos“ será antes um livro que nasce literalmente de um outro livro, sem que por isso se possa considerá-lo uma sequela. Se é verdade que não se perceberá, em toda a sua dimensão, este magnífico exercício de A.T.P. sem a leitura de “Rebecca” de Daphne du Maurier (ou, pelo menos, sem o conhecimento do filme homónimo de Hitchcock), não é menos evidente que estamos perante um acto extremo de criação. Embora o cenário e o enredo sejam fielmente respeitados, verifica-se uma mudança radical de perspectiva. Os “mesmos” factos são-nos, afinal, relatados pela voz de Rebecca, podendo-se até falar de uma tentativa de resgatar “a linguagem áspera do mundo dos mortos”. E não faltam, nessa aspereza com que a morta (ou a morte?) se torna audível, momentos de intenso lirismo: “A noite chegou sem que me desse conta. Não consigo ver as minhas mãos. É melhor voltar para casa”.  Contudo, e para além da destreza com que faz da ausência original de Rebecca uma presença central, a autora adensa o que, no texto de Daphne do Maurier, já existia de fantasmático. Acentua-se também, “numa encenação de pesadelo”, a sugestão demoníaca que o romance, tal como o filme de 1940, diferentemente veiculavam. É como se desta vez ninguém, nem mesmo Rebecca morta, pudesse vencer e, num palco chamado Manderley, anjos caídos e demónios se limitassem a actualizar o diálogo de Cristo e Lúcifer à beira da falésia. Os nomes, aliás, são o que menos importa, o que tenuemente se desvanece entre as azáleas e os rododendros que são e não são os mesmos que Daphne du Maurier descreveu. De um modo magistral, A.T.P. ancorou este seu livro no invulgar anonimato da sucessora de Rebecca:  “Ela não tinha nome, era apenas um segundo eu, uma segunda Mrs. De Winter.” Mas também aí as coisas se podem inverter, contrariando qualquer maniqueísmo. A inexaurível Rebecca, fragilizada e reabilitada nesta sua outra vida, acaba por perceber, “com uma sensação de horror”, que “não se lembrava do seu nome”.  “Aprende-se a morrer, num jardim” – será essa talvez a escura lição que nos traz este livro cimeiro numa obra que, de abismo em abismo, nunca deu um passo em falso.

 

 

 

EXPRESSO, Actual n.º 1911, 13-6-2009

 

 

Ana Teresa Pereira

As Duas Casas

Relógio D’Água, 2009, 146 pags. € 10

 

Manuel de Freitas

 

Conto: Um reencontro com o inimitável talento narrativo de Ana Teresa Pereira

 

De há uns anos para cá, Ana Teresa Pereira reescreveu alguns dos seus primeiros textos. Em “As Duas Casas”, exemplo mais recente dessa prática, são retomados os contos “A Casa das Sombras” (1991) e “A Casa do Nevoeiro” (1992), que se poderiam arrumar na categoria da literatura infanto-juvenil. Detenhamo-nos, para já, no processo de reescrita a que autora se dispôs, verificando que há mudanças tão drásticas como a dos nomes dos personagens (Cristina passa a chamar-se Rita, e o cão Charlie tem agora por nome Indy) que formam um quarteto fatalmente evocador dos Cinco de Enid Blyton. Mais significativo, ainda, é o evidente desejo de depuração que assiste a esta reescrita. Onde antes estava “Tinha à sua frente um monte de páginas vazias. Sem uma palavra escrita” passa a ler-se “Tinha à sua frente um monte de páginas em branco”. Mas depuração não é sinónimo de supressão. Há frases que são acrescentadas, formulações alteradas em prol da maior exactidão possível, sinais de pontuação repensados. Os capítulos, por seu lado, merecem agora títulos tão sugestivos como “Um lugar que só existe às vezes”. Nada disto surpreenderá os leitores das obras mais recentes de Ana Teresa Pereira; é para a concisão, para uma crua e desarmante sobriedade que esta escrita parece encaminhar-se, nos antípodas do lirismo aleatório ou da pobreza confrangedora em que soçobram tantos dos nossos prosadores. Aqui, no suposto registo da chamada literatura juvenil, dão-se a ler as obsessões principais de uma escritora maior que não desiste de conviver com os seus avatares, sejam eles Swedenborg, Chesterton, Poe, Balzac, Conan Doyle, ou Rilke. Não faltam, pois, sinistras bibliotecas, passagens secretas que levam para outros livros, anjos terríveis que só na pintura se tornam reais, casas e contos que se revelam duplos e contíguos. Mas seria erróneo ver nesta “estranheza familiar” qualquer truque místico: uma aura de mistério (e “a vida é sempre misteriosa”, por mais banal que pareça) envolve locais tão geograficamente precisos como o Jardim da Serra e o Paul do Mar. Precisa e inconfundível é também a figura da escritora (a tia Carla) que em ambos os contos tutela, numa espécie de distracção criadora, as aventuras dos cinco pequenos detectives. É quase inevitável ver nela um alter ego da autora – que escreve, dentro do livro, o livro e vive fora do mundo para que o seu mundo exista. No fundo, talvez se trate apenas de preservar em nós a infância: “Ser criança é gostar daquilo que é importante, a natureza, os quadros, os anjos”.

 

 

 

Expresso – ACTUAL  n.º  1969, de 24 de Julho de 2010

 

 

INVERNESS

Ana Teresa Pereira

Relógio d’Água, 2010, 132 pags.

Novela

 

Manuel de Freitas

 

 Há fortes razões para afirmarmos que a escrita de Ana Teresa Pereira se vem tornando cada vez mais despojada, perturbante e inclassificável.  Arriscando uma síntese ineficaz, “Inverness” seria a “história de uma atriz que representava o papel de outra mulher e se transformava nela”. Mas outras sombras – morte, loucura, medo – atravessam as páginas aparentemente diáfanas deste livro heterodoxo. E até o que parecia um quarteto, do qual Clive e Kate seriam o “lado sombrio, dois seres que conspiravam pela noite dentro”, se vê condenado à “suspensão da dúvida”. Poder-se-ia igualmente falar de suspensão da identidade, da misteriosa novela de Clive, do género a atribuir a um livro como “Inverness”  ou até do seu próprio desenlace. De um modo exímio, a autora proíbe-nos qualquer tipo de certeza vagamente romanesca, como se assistíssemos, no acto da escrita, ao lúcido esboroamento de um universo: “Já não consigo controlar o mundo que criei”. Em suma, a “suspensão da dúvida” conduz-nos a um grau superlativo de incerteza tão perigoso e impenetrável como o mar de gelo das costas escocesas. Podemos, claro, inventariar palimpsestos minimamente plausíveis para este teatro lúgubre em que “há elementos de Hamlet” e “elementos de Cinderela”; por exemplo, “I Married a Dead Man”, de William Irish, ou “Rebecca”, de Daphne du Murier. Owl Cottage, a mansão onde Katee Jenny se substituem ou indistinguem, lembra-nos inevitavelmente Manderley. Contudo, somos levados a acreditar. No final desta espiral irresolúvel, que Jenny, a dona da casa, está afinal mais viva e “real” do que Gate – e que é ínfima a “distância entre imaginar e recordar”. Nunca os fantasmas de Ana Teresa Pereira nos deixaram tão sós e desprotegidos.

 

 

               

Ipsilon, Sexta-feira, 2 de Julho de 2010

 

Esta inquietante estranheza

Inverness

Ana Teresa Pereira

Relógio d' Água,

Edição/reimpressão: 2010

Páginas: 144

Editor: Relógio D`Água

ISBN: 9789896411718

  

A experiência de ler "Inverness" não é muito distante da do idiota que se deixa arrastar atrás duma desconhecida na rua

 

Rui Catalão


Na página 103 somos presenteados com uma sinopse de "Inverness": "A história de uma actriz que representava o papel de outra mulher e se transformava nela." Juntamente com o tema do livro dentro do livro, o "doppelgänger" é um dos motivos mais banais na história da literatura. Está para a arte como o vidro duplo para as janelas. Ao 27º título de Ana Teresa Pereira volta então o duplo, e com ele os seus espelhos e reflexos no lago, a história da mulher, do marido e do amante, a mulher desaparecida do escritor e a actriz que a substitui, o livro dentro do livro, as personagens vindas de livros anteriores e a roupa que é sempre a mesma, o tema do nevoeiro, enfim, o estojo completo.

Ana Teresa Pereira (n. 1958, Funchal) faz piruetas sobre a sua obra como quem se passeia junto à costa até concluir que ainda se encontra na mesma ilha. Mesmo no interior do livro, repete-se, repete-se. Os capítulos sucedem-se como ondas que teimam em subir os mesmos rochedos. "Às vezes acho que é disso que estou à procura quando escrevo. As velhas memórias", diz o escritor Clive. "Não imaginar, mas recordar...", responde a actriz Kate. "E as palavras são só uma forma de chegar lá. Têm de ser simples, e claras, e obedecer a um ritmo próprio, que inclui a repetição."

A autora, ou a personagem do escritor do livro dentro do livro, ou as personagens narcísicas por ele recriadas (a sua mulher; a actriz que a encarna), entidades que o avanço do livro confunde, procuram obsessivamente reviver, ou retomar, qualquer coisa mais ou menos tangível que ficou para trás, e que os tornou dependentes.

Não há novidade. "Inverness" é um romance de aparências banal e encantador. Seduz como uma mulher muito bonita, cujo principal talento é o modo de insinuar segredos e mistérios. A técnica de diferença e repetição usada por Ana Teresa Pereira resulta num filtro mágico depurador. Ela convoca géneros populares (em particular as histórias de fantasmas) e procede à destilação do fascínio por essa literatura, discorrendo por frases ou palavras ("velha casa inglesa", "chapéu de feltro azul", "rosas vermelhas, frescas", "rosto quase escondido por um chapéu", "as mãos geladas nos bolsos da gabardina", "candeeiros a gaz" ou mesmo "Inverness" - a cidade escocesa junto ao rio Ness, famoso pelo seu mítico monstro) que são signos, marcos luminosos que hipnotizam.

A escrita de Ana Teresa Pereira revela-se no domínio da sedução, de fazer o leitor aguardar pela promessa de um nada e que a nada vai dar. Ou melhor, vai dar ao nevoeiro: "Um dia, eu e um amigo avançámos pelo mar [gelado] dentro... Não havia ninguém por perto para nos impedir... lembro-me de que estava um pouco de nevoeiro... e o desafio era dar mais um passo..."

Em "Inverness", por via de atmosferas devedoras do policial e do fantástico, chegamos ao centro nervoso do fascínio pelo conto de fadas. É o território mental da realidade alada: "Uma manhã, ao acordar, sentira que o mundo estava diferente. O som do mundo era diferente. Quando abriu as vidraças, o vento trouxe flocos de neve que derreteram no chão do quarto." Estes eventos "banais", do "quotidiano", são a matéria-prima que Ana Teresa Pereira elege e selecciona para a sua versão gasosa, e abstrata, do conto de fadas.

O encanto é a possível manifestação, em actos ou gestos, do que entendemos por beleza. O leitor não é cúmplice, ou testemunha, das manobras de sedução de Ana Teresa Pereira. A escritora usa o leitor como alvo do seu charme. A experiência de ler "Inverness" não é muito distante do idiota que se deixa arrastar atrás duma desconhecida na rua.

O capítulo 15 inicia-se assim: "Naquela manhã, [Kate] acordou com o pressentimento de que Jenny ia voltar." À noite, numa festa em que deve fazer-se passar por Jenny em frente aos amigos dela, Kate usa o vestido verde de Jenny. Antes, no capítulo 7, Clive conta a Kate a primeira vez em que viu Jenny: "Jenny tinha o cabelo preso na nuca e um vestido verde. Ela gosta muito de verde. Ali, debaixo dos lilases, parecia saída de um poema de um escritor russo, parecia uma recordação de infância." O capítulo 15 termina com uma frase de Clive: "Não tenhas medo, Jenny nunca vai voltar"; mas no capítulo 16, depois de duas páginas de transição, em que é apenas uma "rapariga", Kate, a actriz, desaparece para dar lugar a Jenny, mulher de Clive. O mistério da transformação da actriz na sua personagem tem o seu quê de charada ao estilo de Robbe-Grillet. Perseguimos, seduzidos, o enredo e as personagens como uma criança a contar as pintas de uma girafa num aglomerado de nuvens altas.

O livro devolve-nos a sua construção, ou melhor, os seus truques e jogos de fascínio. A "inquietante estranheza das histórias" é também a forma como Ana Teresa Pereira traduz o seu olhar, estampado numa trama de falsos enredos. Esse olhar é de uma candura desarmante quando enumera as plantas do lago, as flores que se encontram num canteiro, quando nos fala do "estalar de um ramo debaixo de um pé" ou de como "é possível transformar um relvado num campo florido. Irá atrair milhares de insectos, pássaros e borboletas. Mas só o podemos aparar duas vezes por ano, para que as flores tenham tempo de dar sementes". A fascinante "banalidade" desta história está em ser uma colecção, maravilhosamente disposta, de réplicas esquecidas dos originais. Como se o passado da literatura, ou da própria obra da autora, não tivessem outra materialidade para além de figuras deambulando no nevoeiro. Ana Teresa Pereira escreve como Jenny faz amor ("tinha a experiência de uma mulher que começou a fazer amor aos catorze ou quinze anos. O sexo nela era tão natural... como comer, ou andar, ou dizer uma oração à noite"). E num livro cujo instrumento sensorial é a visão, é divertido notar que o amante de Jenny descobre o disfarce de Kate pelo cheiro. Apesar de usarem o mesmo perfume.

 

 

 03-06-2010

«Inverness» de Ana Teresa Pereira - Relógio d’Água, 131 páginas

Pedro Teixeira Neves

 

De há muito que assim é. A obra, prolífica e regular (também regularmente editada pela Relógio d’Água), que Ana Teresa Pereira vem a editar desde que em 1989 publicou «Matar a Imagem», encerra, uma e outra vez, a cada novo título, uma série de coordenadas ou especificidades que lhe conferem uma personalidade muito concreta, palpável e logo reconhecível. A chamada marca autoral. Muitas vezes, disso mesmo recorrendo, ao lermos os seus livros, julgamos estar a ler o já lido, o já antevisto, o já percepcionado. Como se as personagens voltassem ou não quisessem despedir-se da autora. O escritor, é sabido, nem sempre apenas escreve quando à escrita; andamos sempre a escrever, se calhar andamos sempre a escrever o mesmo livro, como se a vida que todos os dias vivêssemos. É recorrente em vários autores. A páginas tantas, na primeira pessoa das suas personagens deste novo pequeno romance «Inverness», de algum modo, Ana Teresa Pereira confirma o que acabo de escrever, desmontando para o leitor os seus mecanismos e modos de escrita. Assim:

«Clive não se desprendia dos seus afectos e das suas obsessões e havia coisas que tinham passado naturalmente do primeiro livro para o segundo. (…)

Têm qualquer coisa de policiais… os teus livros.

Ele sorriu.

Espero que sim.

Mesmo a linguagem, simples, sem uma palavra a mais. O que lhe interessava eram as histórias. A inquietante estranheza das histórias.»

Bosques, bibliotecas, homens e mulheres misteriosas, casas cheias de tempo, lugares frios, marítimos, nublados, lagos, lugares em ruína, atmosferas que enfermam aqueles que as vivem, as referências cinematográficas, os actores, os filmes, por aí vogam as obsessões identificáveis na escrita de Ana Teresa Pereira. Os seus livros têm sempre um pouco de tudo isso e daí, justamente, a «estranheza das histórias», o quanto baste de policiais que confere aos seus enredos. De resto, está tudo aqui, neste «Inverness», belíssimo nome de cidade escocesa vertido a título de livro.

Espaços e tempos tendem, pois, nos livros de Ana Teresa Pereira a condensar-se num universo sem nome e intemporal, como se a neblina que tolda as vidas das suas personagens confundisse igualmente o leitor, como se delas passasse para aqueles que lêem, numa espécie de convite a partilhar os seus destinos, as suas angústias e ansiedades. A vertente atmosférica, a criação de um quase levitar narrativo (como se igualmente estivéssemos dentro de um filme, portanto de uma ficção) é um outro dado fundamental na escrita de Ana Teresa Pereira, seja, neste caso, no modo como nos impregna de uma qualquer nostalgia e lonjura assente nas paisagens do Norte que nos desenha (e que passa também pela singularidade das vidas das personagens), seja ainda no capítulo do suspense que confere ao relato, assim ao jeito de «Uma atmosfera de policial negro»).

E este livro então, quê de particular no seu dizer?

« Conta-me mais coisas do teu livro.

Há uma actriz…

E a mulher de quem ela tomou o lugar.

Às vezes penso que elas são uma só… que sempre foram uma só.»

O tema do duplo preside-lhe. Esta é a história de uma actriz que toma a pele e vida de outra mulher, uma mulher que se julga desaparecida mas que, no final, se percebe não ser assim, ficando o leitor a braços com a dúvida identitária das personagens que tem em mãos. É um tema clássico na literatura, de uma forma geral explorada por todos os grandes escritores desde a Antiguidade até aos nossos dias. E lembro, no instante da memória, os casos de «O Retrato», de Gogol, «O Visconde Partido ao Meio», de Italo Calvino, ou um mais recente «O Homem Duplicado», do “nosso” José Saramago, entre muitos outros exemplos.

Sem confabular grandes teorizações sobre o assunto, sem sequer, julgo, pretender fazê-lo, o que Ana Teresa Pereira faz é contar uma história, uma história que por mero acaso ou circunstância se radica nessa temática ou dela se alimenta. É claro que aquilo que as suas linhas romanescas enunciam nos podem levar a reflectir as questões por regra subjacentes ao tema, nomeadamente a Morte ou a essência do Eu, bem como a permanência da Vida, é certo que poderia eventualmente filosofar-se em torno do assunto quando, por interposta personagem, a escritora a si mesma se desmonta nos mecanismos de escrita (numa espécie de escrita dentro da escrita), mas não é esse o desejo adivinhado na mão da autora. De alguma forma, e consubstanciando uma vez mais aquilo que no próprio livro se lê («o que lhe interessava eram as histórias»), o que em primeiro lugar interessa a Ana Teresa Pereira são as histórias. Boas histórias. Como esta.

 

Transcrito daqui.

 

 

EXPRESSO, Actual n.º 1995, de 21 de Janeiro de 2011

 

O ponto de vista do fantasma

Texto: José Mário Silva

 

A Outra

Ana Teresa Pereira

Relogio d’Água, 68 pgs. ISBN 978-989-641-187-9

 

Em 2004, numa das suas crónicas no “Público”, Ana Teresa Pereira escreveu o seguinte: “No conto ‘O Desenho no Tapete’ (...), Henry James fala do ‘segredo’ que o autor vai tecendo no próprio corpo do texto, o fio no qual estão enfiadas as pérolas, enfim, a verdadeira história que, se o romance ou conto tiver vida, está em todas as partes, e é contada por cada palavra, por cada sinal de pontuação. Claro que se existe um inconsciente do texto, e eu não tenho dúvidas de que existe, o autor pode ser o último a saber ou até nunca saber. Em ‘A Volta no Parafuso’, James deixou falar livremente o seu desejo e o seu medo. Mas é o nosso desejo e o nosso medo que vamos encontrar na novela.” Foi a partir desta projeção da escritora madeirense numa história alheia que nasceu o seu livro, mais recente: “A Outra”, um conto perfeito, daqueles que apetece ler em voz alta, várias vezes, pecando apenas por ser demasiado breve e, por apresentar uma estrutura narrativa, tão elíptica, tão reduzida ao mínimo dos mínimos, que se torna opaca para quem não conheça a novela de James.

Publicada em 1898, A ‘Volta no Parafuso” é uma ghost story em que uma precetora chega a um casarão na província para cuidar de duas crianças (Miles e Flora), cujos pais morreram e de quem o tio não se pode ocupar. Um dia, ela começa a ver o que aparentemente mais ninguém vê: um homem e uma mulher que correspondem às descrições de Miss Jessel, a anterior precetora, e Peter Quint, o seu amante, ambos mortos. A narradora convence-se de que os meninos também reconhecem os fantasmas e que estes querem roubá-los. O desenlace é trágico. Ainda hoje, há discussões entre os leitores da novela em torno da questão de saber se os fantasmas eram reais ou apenas alucinações, fruto de um estado psicótico da protagonista. Depois de Freud, a história fantástica de James até pode ser reduzida a um caso clínico, mas não perde a sua capacidade de nos perturbar.

O que Ana Teresa Pereira faz não é apenas contar de novo esta história. É olhá-la de outra perspetiva. É virá-la do avesso, para nos mostrar o ponto de vista de Miss Jessel, o fantasma. É, no fundo, invadir o território de James com a sua própria linguagem: ali onde um se demora, construindo lentamente a tempestade, a outra espalha relâmpagos, fragmentos curtos, súbitos clarões. E, como sempre nos seus livros, há insistências, simetrias, circularidades, imagens que se repetem vindas de obras anteriores: as charnecas batidas pelo vento, as flores; ou o lago “assombrado”, com uma leve neblina a nascer das águas.

No princípio, vemos como Miss Jessel se predispõe a desempenhar o papel principal, semelhante ao das heroínas dos romances que lia às escondidas do pai (“Jane Eyre” e “O Monte dos Vendavais”, com esse Heathcliff capaz de lhe tirar o sono). Ela é bonita e tem consciência da sua beleza: cabelo cor de cobre pela cintura, olhos azuis, uma aura como a das mulheres etéreas e carnais pintadas por Dante Gabriel Rossetti. Já Quint parece uma “versão áspera e brutal” do seu patrão, o senhor de Bly, de cujas roupas e pose se apropria. Ele é o homem omnipresente, à janela ou no cimo da torre, o que tem “todo o conhecimento das coisas selvagens”, o actor (“quase como alguém”, mas “só quase”) que há de representar com Miss Jessel uma “peça diabólica”, em que no limite usurpam as próprias crianças. E Miles e Flora caminhavam num mundo criado por nós. E sentiam-se protegidos, e felizes.” Até que a morte os relega para o lugar de quem não encontra o caminho para o Céu ou para o Inferno.

Quando, por fim, se reconhecem e enfrentam, as duas precetoras tocam no tal “segredo” mais fundo do texto: “Por quem está apaixonada a precetora de cabelo castanho?” A resposta óbvia seria Quint, mas Ana Teresa Pereira, na crónica de 2004 insinua que pode ser Miles. Na verdade, tanto faz. Porque “os fantasmas de Bly são os nossos” e, tal como em relação à história original de James, “é o nosso desejo e o nosso medo que vamos encontrar”.

 

 

               

Ípsilon, Sexta-feira, 2 de Julho de 2010

 

Sou capaz de qualquer coisa pelos meus livros

 

Ana Teresa Pereira sabe brincar ao toca e foge e tem poderes hipnotizadores. De onde vem o fascínio, da Madeira ou do nevoeiro escocês? E o mistério deve ser investigado ou é uma forma de enlouquecer? Eis alguns dos brinquedos favoritos de uma escritora.

 

Rui Catalão

 

O objectivo principal desta entrevista era descobrir as diferenças entre as ilhas do forte da Escócia e a Madeira. As primeiras pertencem ao mistério de “Inverness”, o 27.º livro de Ana Teresa Pereira. A segunda é a ilha onde nasceu e trabalha. Enviámos-lhe uma lista de perguntas e recebemos um texto meio hipnótico, meio fascinante. A entrevista que se segue é um exercício de montagem. “Inverness” é um objecto de sedução que leva o leitor à perdição (isto é, a apaixonar-se sem razão aparente): uma actriz (Kate) interpreta o papel da mulher desaparecida de um escritor (Clive), para que este termine o seu livro. No processo, a actriz desaparece e entramos na bruma (ou no nevoeiro), atmosfera de policiais, contos de fada e também de loucura: “todas as frases se tornam misteriosas. Todas as palavras se tornam estranhas. De certa forma, é uma língua desconhecida”, explica, sem explicar, a autora. Expliquemos nós: o mistério é a própria construção do livro, O escritor dentro do livro, a mulher deste e a actriz que faz de conta ser ela, confundem-se, e todos buscam algo, de que são dependentes. E enquanto as personagens se dissolvem no corpo do texto, a leitura materializa a experiência do fascínio. Ana Teresa Pereira diz que para escrever um livro é capaz de usar uma pessoa. O leitor arrisca desgraçar-se nesta escrita fatal.

uma loucura partilhada - ou que transita - entre as quatro personagens de “Inverness”, ao ponto das suas identidades se confundirem (nomeadamente entre Clive, Jenny e Kate). Qual é a relação de Ana Teresa com o outro lado, ou seja, com a loucura?

Interessa-me a alucinação. Todos nós criamos a nossa realidade. Algumas das minhas personagens levam isso ao extremo. Talvez estejam a enlouquecer, mas essa e a sua realidade. E torna-se interessante ter duas personagens com versões da realidade (histórias) que se excluem mutuamente. Uma delas está a alucinar, mas não sabemos qual.

E quanto às personagens? Pode estabelecer a sua genealogia?

uns dois ou três anos, escrevi os primeiros capítulos de um livro que se chamava “Inverness”. Começava num teatro. E a ideia central estava logo nas primeiras linhas: não há diferença entre escrever e representar. Algum tempo depois, numa entrevista de Orson Welles, encontrei a mesma ideia: o escritor, como o actor, deve entrar na pele da personagem e criar a suspensão da incredulidade.

A certa altura interessei-me muito pela personagem de Sherlock Holmes e os actores que o interpretaram. Jeremy Brett era um “becomer”. Um actor que se transforma na sua personagem.

Só há alguns meses a nova versão de “Inverness” começou a tomar forma. A história de uma actriz que toma o lugar de outra mulher e se transforma nela.

As personagens. Nunca sabemos de onde elas vêm. Kate e Clive surgiram pela primeira vez em “O Mar de Gelo” [2005]. Kate voltou em “Quando Atravessares o Rio” [2007]. De certa forma não são personagens mas actores que representam diferentes papéis.

E com o teatro?

O teatro para mim é o teatro de Londres. Os teatros de Londres. As minhas personagens vão ao teatro como vão à igreja de St Martin-in-the-Fields assistir a um concerto à luz das velas. São lugares onde se entra religiosamente, lugares onde pode acontecer uma epifania.

A Ana Teresa consegue traçar uma linha de demarcação entre a sua identidade, e aspectos dela que possam passar para as suas personagens?

Acho que não faz sentido separar os livros da vida, e também não faz sentido separar as minhas personagens de mim própria.

Quando Kate diz “A primeira casa de que me lembro ficava no extremo de uma povoação. Não tinha jardim, nem sequer um muro. E o vento era constante”, trata-se de uma recordação de um lugar por si conhecido?

A primeira casa de que Kate se recorda. Um quadro que vi em Amesterdão. Não me lembro do pintor, Redon, talvez, mas eu já conhecia aquela rua, aquelas casas.

“Hoje, amanhã ou dentro de uma semana, é igual para um habitante das ilhas.” O tempo também é assim, cerradamente circular, no Funchal?

A observação sobre o tempo VÍRGULA vem de um filme de Michael Powell e Emeric Pressburger: “I Know Where I’m Going”

“A menina que acompanhava o pai de uma ilha para a outra, essa sabia quem era. A adolescente que estudava em Inverness e tinha grandes planos, essa também sabia quem era.”. É capaz de reformular estas duas frases, trocando “Inverness” pelo Funchal, e Kate por Ana Teresa?

O meu pai era médico, não professor. Mas foi ele que me ensinou a ler. Foi ele que me comprou os primeiros livros. Ainda me lembro da altura em que comecei a explorar a sua estante de policiais.

Até que ponto é que transpôs recordações da sua infância para a sua obra?

Nasci numa ilha, cresci numa ilha. Há imagens que fazem parte de mim: a neve a cair no Pico do Areeiro, a estrada velha do Seixal num dia de tempestade, o Paul da Serra coberto por um lençol de água; o Paul do Mar que até há alguns anos era um lugar solitário, “the edge of the world”. O jardim da Quinta do Palheiro, onde se passam tantas das minhas histórias.

Mas também cresci numa casa onde havia gatos e livros, sobretudo livros ingleses. Há imagens de livros que são tão fortes como as outras: a rapariga que se perde de noite nas ruas cheias de nevoeiro e encontra uma loja aberta; a casa junto à charneca e as quatro crianças que brincam no jardim e cantam ‘Mulberry Bush”. Eu podia passar o resto da vida a escrever a partir dessas duas imagens.

«Era como se sempre tivesse vivido no meio da chuva, do vento forte que empurrava os corpos, dos gritos dos pássaros, das ondas que batiam contra as rochas. Uma pequena ilha que ficava isolada quando o mar estava muito agitado”. Se tivesse que fazer uma cena filmada deste parágrafo que ilha escolheria como cenário?

As ilhas de “Inverness” vêem dos filmes de Michael Powell, em particular “The Edge of the World”. De fotos. De “A Aventura no Mar” de Enid Blyton.

As campainhas brancas e azuis, as flores do viburno, as folhas de gunera, as ervilhas- de-cheiro, as plantas de nigela, os fetos aquáticos, os corações flutuantes, a merugem da água; elodea canadensis, utricularia vulgaris, myriophyllum verticalatum, são algumas das plantas citadas em “Inverness”. Podem encontrar-se na Madeira?

As plantas são as dos campos ingleses. Quando escrevi o romance anterior, “O Verão Selvagem dos Teus Olhos”, fiz inúmeras perguntas a um amigo meu, um botânico, porque queria criar um jardim possível. Queria saber se uma planta podia crescer ao lado de outra, ou se precisavam de terrenos muito diferentes, se uma planta podia crescer perto do mar. Aquele jardim é o de Manderley mas é também um pouco meu. Tal como Rebecca, sendo a personagem de Daphne du Maurier, tem as minhas marcas. O centro da história, o confronto entre o anjo caído e o anjo bom, estava em “Rebecca”, eu só o trouxe mais para a superfície.

Quando já tinha escrito a primeira versão de “Invemess”, senti que a segunda parte do livro precisava de “detalhes”. Afinal, Deus (e o diabo) está nos detalhes. Tinha de conhecer a casa, tinha de “ver” a casa, tinha de ver o jardim, para compreender Jenny. E foi depois de encontrar a casa e o jardim que Jenny ganhou vida, na verdade ganhou tanta força que quase fez desaparecer as outras personagens.

No capítulo 20 escreve que Jenny “era suficientemente forte para manter aquela situação [ter dois amantes] mesmo que eles não o quisessem. Ela continuava a controlar o mundo que criara.” Clive, o escritor, diz por seu lado: “já não consigo controlar o mundo que criei”. Qual é a sua opção?

Não acredito que as personagens se possam tomar autónomas. O escritor tem de controlar o mundo que criou.

Escrever, como ler, deve ser uma experiência muito forte. Viver com o livro durante meses ou anos, tomar apontamentos. E um dia sentar-se à secretária e começar a escrevê-lo a partir de um bloco de notas. Quatro ou cinco dias a escrever, sem reler nada. E o livro está todo naquela primeira versão. Depois é preciso continuar a trabalhá-lo, mas ele já existe.

Eu acredito que há um inconsciente do livro. A partir de certa altura começo a senti-lo. Uma frase que surge inesperadamente. Um gesto que ganha um novo sentido. Existe algo lá no fundo que por vezes vem até à superfície.

E então todas as frases se tomam misteriosas. Todas as palavras se tomam estranhas.

De certa forma, é uma língua desconhecida.

E apaixono-me profundamente pelo livro.

E depois, na altura de rever, o desencanto, as frases transformam-se em frases, e as palavras em palavras, e as imperfeições tomam-se bem visíveis -

Mas depois, quando o livro está terminado, o que fica é o vazio, e sinto a falta das personagens, e da casa, e do colar, e compreendo que não gosto muito de mim mesma. Kate a sair do teatro vazio. Kate que venderia a alma ao diabo para trabalhar de novo.

Pode partilhar um pouco do seu dia-a-dia, na Madeira, a sua forma de trabalhar?

A minha forma de trabalhar é cada vez mais cinematográfica. Não só escolher actores para representarem os papéis, mas escolher o guarda-roupa. Criar os cenários. Estes livros são os meus filmes, as minhas peças de teatro. E posso trabalhar com Jeremy Irons e Gabriel Byrne e Keira Knightley...

À minha volta tenho os meus livros, os meus quadros, os meus ícones, e uma primeira edição de bolso de uma novela de Truman Capote, e um policial de uma biblioteca itinerante da Escócia, e a caixinha de música... e a minha cadela dorme aos meus pés.

Às vezes leio os manuscritos num jardim.

Primeiro escolher os actores, reunir algumas fotografias deles. As fotos de Keira Knightley, o chapéu azul, o vestido de noite verde. As capas dos livros de Clive, a primeira edição de uma novela de Truman Capote, uma velha edição de um policial de Wilhiam Irish.

Escolher a música: a banda sonora de “La Double Vie de Véronique”.

Escolher o perfume da personagem. Das duas personagens.

E o colar celta de Kate, o meu colar.

E, como Clive, ser o escritor e a personagem, ser aquele que move as marionetas e uma marioneta, e às vezes quase ver os fios.

O pacto do escritor Clive com a actriz Kate é tremendo. Ela deve representar o papel de Jenny (a mulher desaparecida de Clive) para o livro ser acabado. Conseguiria trabalhar numa situação semelhante?

Tal como Clive, eu sou capaz de qualquer coisa pelos meus livros. Se um escritor está em total sintonia com o livro, esse é quase um estado de consciência alterada. E o que é mais estranho é que o escritor pode forçar a realidade. Pode invocar as suas personagens (e foi num teatro de Londres que uma das minhas personagens se veio sentar ao meu lado). Pode entrar numa livraria numa cidade desconhecida e encontrar o livro ou a gravura de que precisava. Entrar numa galeria e encontrar o quadro certo. Entrar numa loja de ícones, atravessar uma ponte, ver um gato num barco e sentir que aquilo faz parte do livro.

Sou capaz de usar uma pessoa. O escritor de “Intimações de Morte” é inspirado num escritor real, e lembro-me de que usei frases dele e fragmentos das suas cartas.

E sou capaz de tudo para defender o livro que estou a escrever do mundo exterior.

Mas depois Clive fica perplexo por Kate encarnar Jenny. Como se Jenny já não existisse. A charada entre recordar e imaginar gera então o medo em Kate “como nunca sentira antes na vida”. De onde vem esse medo? Que vida está em perigo?

O medo de Jenny vem de uma recordação ou daquilo que ela imagina... não posso responder a isso. Robert Mitchum a dizer a Teresa Wright: “Imagining? Remembering...” O filme chama-se “Pursued” [Raoul Walsh, 1947]. Os dois actores fizeram outro filme juntos, “Track of the Cat” [William A. Wellman, 1954]. Lembro-me de uma frase igualmente enigmática: “A pantera negra é o mundo”.

Que lugar é o de Owl Cottage, a casa onde Kate encarna Jenny?

Owl Cottage é uma casa de campo num vídeo de jardinagem... Se o romance anterior me fez mergulhar nos livros de botânica, para “lnverness” tive de aprender algumas coisas de jardinagem, e plantar ervilhas de cheiro e narcisos... E para o livro que estou a escrever tenho de voltar à Irlanda e aprender gaélico...

 

 

EXPRESSO – Atual n.º 2018, de 2 de Julho de 2011

 

A Pantera, Relógio d’Água, 2011, 115 pags.

 

José Mário Silva

 

Para os leitores fiéis, o universo ficcional de Ana Teresa Pereira é uma paisagem imediatamente reconhecível. Entra-se num livro da autora madeirense como não se entra em mais lado nenhum. De livro para livro, há personagens que regressam obsessivamente, circularidades, repetições, simetrias, imagens que funcionam como leitmotifs (o nevoeiro, o castelo, o lago, a neve, o colar de prata com um nó celta). Enfim, uma atmosfera romântica saturada de referências literárias e pictóricas (maioritariamente britânicas), cenário para relações impossíveis, quase sempre entre mulheres jovens e homens mais velhos. É como se houvesse um continuum narrativo que atravessa toda a obra de ATP, uma mesma história de “inquietante estranheza”, que vai sendo contada em sucessivas variações. À semelhança de “Quando Atravessares o Rio” (2007), a protagonista desta nova ficção é uma escritora (Kate) que transforma o actor com quem se envolve (Tom) em personagem do seu livro. Mas a obra anterior com que “A Pantera” dialoga mais explicitamente é “Inverness” (2010). Não só porque parte da ação decorre na mesma casa de campo (Owl Cottage) e o seu jardim luxuriante, mas porque coincidem no tema central: a dificuldade de separar a realidade da imaginação quando os dois planos se confundem. Num caso como no outro, o corolário desta ambiguidade é a tentação do artifício (“Há algum tempo que ela usava as palavras representar e escrever como se fossem exactamente a mesma coisa”). O estilo “simples” esconde uma estrutura densa, complexa, onde coexistem “a ternura e o terrível”, bem como o pânico de enlouquecer, de cair nesses “lugares escuros” onde nos defrontamos com os  nossos “demónios”. É um “jogo cruel”, sim, mas cheio de beleza.  

 

               

 

Ípsilon, 26 de Agosto de 2011

 

Anjos e demónios na companhia de Ana Teresa Pereira

 

Ana Teresa Pereira está de regresso com um romance escrito ao ritmo da música de Van Morrison (que é também óptima companhia para a leitura), “A Pantera” é mais uma viagem ao seu universo, aos seus fantasmas, à sua pequena companhia de teatro, uma família que se repete de livro para livro.

 

Gonçalo Mira

 

As personagens de Ana Teresa Pereira costumam parecer-nos, simultaneamente, sempre distintas e sempre semelhantes. No novo “A Pantera”, regressa o autor que se confunde com o actor, que se confunde as com personagens - e nisto é a própria escrita que se confunde com o teatro.

“Já há muitos anos que as minhas personagens têm o rosto de actores,” diz-nos a escritora. “Gabriel Byrne, Jeremy Irons, Keira Knightley... A minha pequena companhia de teatro. Quando começo a planear um livro, tenho de descobrir quem são os actores. As personagens e os actores confundem-se totalmente.” Já lhe aconteceu mesmo sentar-se ao lado de um destes actores, feito personagem: “Quando escrevi ‘Se Nos Encontrarmos de Novo’, o protagonista era Gabriel Byrne. Uma noite, no Albery Theatre, ficámos sentados ao lado um do outro. Se eu escrevesse isto numa novela, seria inverosímil. E no entanto aconteceu. Encontrei a minha personagem, falei com a minha personagem… e o livro seria diferente se isso não tivesse acontecido.”

Também em “A Pantera” há ecos desse encontro. A personagem central é Kate, uma jovem escritora que se envolve com Tom, um actor de teatro que, no auge da carreira, decide deixar de representar para se refugiar na sua casa de campo a ler policiais e a fumar. Kate aproxima-se de Tom porque vê nele a personagem ideal para o seu novo romance - do qual, mais do que autora, ela própria se diz actriz, levando-nos assim para um jogo de espelhos ou de bonecas russas do qual fazem parte Ana Teresa Pereira, as suas personagens (que têm muito dela), e as personagens das suas personagens. “No meu caso, sinto que tenho de entrar na pele das minhas personagens e de certa forma transformar-me nelas. Ou seja, um escritor também pode ser um ‘becomer’.” Podíamos ir mais longe, mas por aqui já se tem uma ideia do que é o universo da escritora madeirense. E se Kate usa, ainda que a palavra possa soar demasiado pesada, Tom para escrever um livro, Ana Teresa Pereira admite já ter feito o mesmo por um livro seu. Ainda assim, não vê nisto um sinal de frieza: “Kate não é fria. Acho que é extremamente apaixonada. Corre o risco de destruir as pessoas à sua volta, mas também de se destruir a si mesma. Segundo Tennessee Williams, o único crime imperdoável é a crueldade deliberada. Kate nunca é deliberadamente cruel.”

E Ana Teresa? “A Pantera’ é talvez o mais autobiográfico dos meus livros, mas de uma forma muito oblíqua,” diz-nos a autora, e tememos de facto que esteja a falar de si, quando fala de Kate. “Senti uma angústia enorme ao deixar a minha personagem feminina no final do livro. Porque no fundo não sei o que lhe vai acontecer. Não quero saber.”

Para além de continuar a escrever, como Ana Teresa Pereira, Kate terá provavelmente outras existências que anularão esta, ou que funcionarão como realidade alternativa. Na obra de Ana Teresa Pereira, as personagens, os lugares e as histórias são recorrentes. “A repetição fascina-me”, diz-nos. Descarta-se, assim, qualquer acusação de auto-plágio: é um gesto consciente e faz parte do jogo literário que é a obra de Ana Teresa Pereira.

Não se trata, aqui, de haver um leque de personagens que vão sendo acompanhadas em diferentes fases da sua vida — opção relativamente comum em alguns escritores, de que é exemplo o trabalho genial de Salinger com a família Glass — , mas antes um sem fim de vidas alternativas para as mesmas personagens. “No livro ‘O Fim de Lizzie’, há três histórias com as mesmas personagens, os mesmos cenários, quase as mesmas palavras. Há páginas de ‘O Mar de Gelo’ que passaram para ‘Quando Atravessares o Rio’. E alguns parágrafos passaram para ‘Inverness’.”

Kate e Tom, as personagens centrais de “A Pantera”, já tiveram outras vidas noutros livros de Ana Teresa Pereira. E, como estas, outras personagens vão sendo repetidas de livro para livro. Ao invés de se complementarem, as suas biografias tornam-se cada vez mais labirínticas, ao ponto de umas histórias tornarem impossíveis outras. Quase como se as personagens fossem não só inspiradas em actores, mas elas próprias actores, e cada livro novo fosse uma nova peça em palco com os actores de Ana Teresa Pereira, que muito provavelmente contracenaram noutras ocasiões.

Faz, por isso, todo o sentido, em “A Pantera”, a referência aos fantasmas e demónios que assombram os actores. Os fantasmas das personagem que já passaram pelos palcos, dos actores que as encarnaram; e os demónios que povoam cada actor, das personagens a que já deu vida — e aqui dar vida funciona nos dois sentidos: no sentido de o actor ser possuído pela vida de uma personagem, mas também no sentido de lhe entregar um pedaço da sua vida, de haver um intercâmbio naquela existência comum do qual nenhum dos dois sairá sem marcas.

O escritor, como o actor, está vulnerável à presença dos seus fantasmas. Ana Teresa Pereira, ainda assim, garante-nos: “Na minha casa não há fantasmas de escritores e actores. Não por enquanto.” O que não significa que tenha medo deles. “O que me assusta é não poder fazer o mesmo que Tom. Passar o resto da vida numa casa com um jardim, a ler romances policiais e a fumar. Na companhia dos anjos e dos demónios.”

 

Uma escritora - mistério

 

A ligação de Ana Teresa Pereira às suas personagens não fica por aqui: “A minha secretária parece-se de uma forma assombrosa com a de Byrne [pai de Kate].” Percebemos, então, que o que há de autobiográfico nos livros de Ana Teresa Pereira não se esgota nas personagens femininas. Também há muito de seu em Tom e em Byrne, que são personagens simétricas: “Não é por acaso que Tom e Byrne têm quase a mesma idade, vivem em lugares parecidos, lêem os mesmos livros. Mas uma explicação freudiana seria demasiado simples.” E, no entanto, há sempre uma relação muito forte das personagens femininas com a figura do pai, aliada a uma quase inexistência da figura da mãe.

O próprio título do livro — o de Ana Teresa Pereira, mas também o de Kate — é roubado a Byrne. Uns obscuros versos sobre uma pantera que “não são versos, são linhas soltas, anotações num caderno de Byrne.” Ou seja, num caderno de Ana Teresa Pereira, na secretária de Ana Teresa Pereira, que é a secretária de Byrne.

Quando este universo começa a ser desvendado, ocorre-nos perguntar se a autora pensa nos seus leitores, durante o processo criativo. Se não teme confundi-los. Ana Teresa Pereira diz-nos que a sua “relação é com o livro”:

“Chegar a um ponto em que, como num conto de Borges, a realidade começa a ceder.” Esta ligação ao que escreve assume quase um carácter religioso: “No fundo, é o que sinto quando passeio num jardim abandonado com a minha cadela, quando estou sentada junto a uma ninhada de gatos recém-nascidos, quando encontro num alfarrabista de uma cidade desconhecida um livro que procurava há muitos anos... Uma ligação com o universo, ou com qualquer coisa de que não sei o nome. É a única religião que conheço.”

Escrever será a forma que Ana Teresa Pereira encontrou de rezar. Kate reza em gaélico, a língua que o pai lhe ensinou, desde pequena. No livro há algumas passagens nesta língua irlandesa, que permanecem obscuras para o leitor. A autora estudou a língua propositadamente para “A Pantera” (que de resto escreveu ao ritmo da música de Van Morrison). Não é capaz de explicar a sua ligação com o gaélico, “mas é muito forte”. E, diz, “faz sentido, rezar em gaélico.”

Pode dizer-se que há tanto de misterioso em Ana Teresa Pereira como nos seus livros. “O mistério atravessa o livro todo, o mistério que tem a ver com a natureza das personagens, com aquilo que as liga...”, diz-nos, para depois nos confundir, rematando com um desejo transparente: “Raymond Chandler disse que um bom livro é aquele que leríamos mesmo que não tivéssemos as últimas páginas. Espero que A Pantera’ seja um bom livro.”

 

  

 

Atual, 28 de Janeiro de 2012

 

O Lago

Ana Teresa Pereira

Relógio d’Água, 2011, 144 págs.

ISBN 9789896412661

 

Manuel de Freitas

  

Não é fácil distinguir se este novo livro de Ana Teresa Pereira é um romance breve, um conto extenso, uma novela ou uma “peça para dois” habilmente transfigurada em prosa. Sabemos, isso sim, que estamos perante “duas horas num único cenário, dois atores, nenhum intervalo”. Aos que pudessem achar que a escrita da autora se estava a enredar de modo quase previsível nas suas próprias obsessões, “O Lago” vem responder que não é exatamente assim. O deserto cresce confundindo-se com a neve, e a trama deste livro resume-se ao encontro entre um dramaturgo/autor e uma “dançarina ferida” que, ao tornar-se atriz e amante do primeiro, se coloca à mercê de um deus sinistro, alguém que só podia amar “um ser criado por ele” e que “não separa o palco da vida”. Capítulo a capítulo, torna-se quase tangível “uma espécie de loucura” em que o medo se torna informe mas determinante. “O medo era parte do processo, talvez fosse mesmo necessário.” E poucas vezes terá sido tão belo e asfixiante, na obra de Ana Teresa Pereira este progressivo fechamento num “vale maldito” e sem regresso. Quando no final a primavera parece vencer a neve, sabemos que já não há saída. Estamos todos do outro lado do túnel, irremediavelmente desfigurados ou esbatidos num dia que se perpetua, inexorável. Partindo de uma tela ficcional aparentemente linear, “O Lago” confronta-nos com um gélido e difuso terror em que não seria impertinente evocar Rothko ou a última fase de Monet. Aí onde, graças à lucidez implacável desta escrita, somos forçados a reconhecer que “Não criamos nada, juntamos coisas”.

 

               

 

Ipsilon, 13-12-2013

 

A rapariga que falava de Deus entre as plantas carnívoras

 

A história dos romances de Ana Teresa Pereira é a da apropriação da ficção pela criação do real.

 

Hugo Pinto Santos

 

As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães

Ana Teresa Pereira

 Relógio D’Água

 

De todas as estirpes de escritores que a exegese tente engendrar, talvez esta pertença à dos criadores de atmosferas. Ana Teresa Pereira forma geografias humanas e físicas com uma capacidade que apenas não é anestésica pela acção vigilante do estilo, que se mantém numa neutralidade quase obsessiva. Como numa técnica de cor que optasse pelo preto e branco, ou pelo azul e rubro dos quadros de Rothko, que habita e assombra alguns dos seus livros. Língua de animal acossado, a sua, quase infantil, em certas realizações — “O desejo dava lugar ao ressentimento, e no final estavam feridos e muito perigosos” (p. 43) —, mas com o condão, plenamente maturo, de potenciar sentidos cuja detonação se vai prolongando, sem nunca deixar de preencher toda a sua ficção.

 

Quase no início de As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães há como que uma perda de pele, análoga à das cobras, à medida que o papel de Blanche Dubois vai passando de actriz para actriz. Esse circuito de vidas fictícias tem implicações e convoca ressonâncias na ficção de Ana Teresa Pereira, enquanto vestígio e possibilidade de sentido — “Era inquietante ver Blanche passar do corpo de Vivien Leigh para o de Ann-Margret, para o de Jessica Lange” (p. 16). É esse, em parte, o destino das personagens da autora: perderem a sua pele, metamorfosearem-se, apenas o suficiente, de história para história. E é esse o estatuto de dimensões como espaço, tempo, e mesmo do narrador, no seu universo ficcional. Neste romance, a actriz tornar-se-á escritora, como a escritora se torna actriz noutros momentos da sua obra. Uma dicotomia que os livros de Ana Teresa Pereira tão bem estabelecem e glosam como subvertem. Mesmo quando tudo indica que a personagem não é uma actriz, como a Rebecca de O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Relógio D’Água, 2008), ela representa “o seu papel quase a tempo inteiro”.

 

Esta é uma história intoxicada pelas sensações experimentadas no palco, seduzida pela vertigem do teatro, o qual fornece a sugestão do título do romance e lhe atribui as tábuas que as personagens pisam. Mas não por muito tempo. Porque estes seres estão destinados à perdição. Deixam a vida do palco, são preteridos, desenganados — pelos seus camaradas de mister, pelo narrador, pela fatalidade da ficção —, locomovidos pelo magnetismo de uma perda inescapável. Neste novo romance de Ana Teresa Pereira, a peça de Tennessee Williams começa por ser o móbil da narrativa, mas acaba por constituir o agente da sua corrupção. Até que, por fim, e uma vez mais, acabada a peça, a única certeza é a constatação do incerto. O da vida, que toma o lugar da ficção do teatro, a vida concreta que corrói o brilho da representação, tida por mais real do que o legítimo real.

 

O romance põe em jogo uma gradação, um escalonamento valorativo, que se estende da peça teatral — cume da realidade, da genuinidade — à transposição para o pequeno ecrã, passando pela adaptação cinematográfica. Na base dessa cadeia encontra-se o vídeo, o meio de mais funda intimidade e individualidade, no qual a solidão espelha o afastamento do supremo modo do ser: o teatro. De um extremo ao outro, é a própria espessura do real, a sua viabilidade, que se esboroa. Várias vezes ao longo do livro se aponta a perversidade existente nesse afunilamento da representação, desde a amplitude cénica do teatro até à estreiteza televisiva. E é “como uma droga” (p. 27), essa tendência para a representação, semelhante a uma fórmula retorcida que postulasse que quanto mais teatral mais verdadeiro. Do mesmo modo, a personagem de um dos contos que acompanha As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães (significativamente chamado Charlie, um dos demónios recorrentes da ficção de Ana Teresa Pereira) pode dizer: “Sou eu que escrevo a tua história. Tu limitas-te a vivê-la” (p. 125). Mas também de Ryan, personagem de um dos outros contos aqui incluídos (A rua sem nome), se diz que ele é “menos real do que as personagens dos (...) livros” (p. 112). Esse sistema de valores conhece, ainda, uma analogia tão poderosa quanto subterrânea — mas, afinal, derradeira, na sua importância —, na valoração do simulacro em detrimento do genuíno, ainda quando se fala do material de uma peça de adorno. Mas será apenas disso que se fala? “Só gostava de pérolas falsas, de brilhantes de vidro. Eram reais sob as luzes de um palco. As jóias verdadeiras perdiam o brilho, pareciam simples imitações” (p. 107).

 

As personagens de Ana Teresa Pereira estão permanentemente a deslizar entre a ficção e a realidade, e vice-versa — sempre a encontrarem corredores que as sugam de um ponto para outro, ambos igualmente ínvios, igualmente terríveis. Com progressiva mas decidida anulação dessas categorias enquanto casulos calafetados — “Kate comprara um caderno barato e escrevera a peça, ao longo de duas noites” (p. 43). Como o Orlando de Virginia Woolf, estas personagens parecem atravessar as eras — muitas vezes mantendo o nome: Kate, por exemplo, ou, no caso dos homens, Tom —, independentes de géneros, modelos, limites. São como “um anjo vindo do princípio do mundo, que atravessara os milénios intocado e sem memória” (Quando Atravessares o Inverno, Relógio D’Água, 2007). São seres, são demónios e anjos. Vivem para se porem à prova, tão reais como nós. Como em tantos momentos da sua escrita, o pão é, se não o seu alimento exclusivo (por vezes, a autora recorre à expressão “refeição ligeira”, que alimenta a personagem, sem concretizar), o mais importante recurso nutritivo. Não porque as personagens de Ana Teresa Pereira “passem fome”, como, a certa altura, Vergílio Ferreira dizia das suas, reavaliando uma pecha que na sua ficção lhe apontavam, mas porque estes seres vivem de tal forma no arame, como funâmbulos da vida — mais do que da ficção — que não há, para eles, nutrição além do sustento mínimo.

 

Diversas vezes, a escrita da autora reflecte sobre as suas próprias condicionantes, num jogo de espelhos, dissimulações e desfigurações que sustenta (ainda que em bases sempre instáveis) o seu próprio caminho, e o figura, em estruturas fantasmáticas — “Um escritor não tem mais do que dois ou três temas. E escreve variações sobre eles” (p. 45); “No caso de Tom, creio que só há um tema” (id.). Nestas afirmações, simples esboços teóricos — pistas falsas, como as que surgiriam nas histórias de mistério que fazem parte do cosmos da autora —, Ana Teresa Pereira não avança princípios sólidos: cria discretos marcos miliários para os mais atentos e mais perplexos.

 

A história das ficções de Ana Teresa Pereira é a de uma apropriação dos terrenos ficcionais por parte daquilo que se cria como o real. A ficção e a narrativa cravam valas na terra de ninguém que é esse espaço desabitado, enquanto não tomam o seu lugar os componentes do real e do fictício: peças que nunca realmente se encaixam nesta ficção. E é esse um dos seus traços distintivos, e um dos apelos mais fundos desta criação.

  

  

 

 Atual n.º 2146

 14 de dezembro de 2013

 

Como o fio de uma teia

 

Ana Teresa Pereira regressa com mais uma novela “teatral” e um breve ciclo de três contos fantásticos

 

José Mário Silva

  

As longas tardes de chuva em Nova Orleães

Ana Teresa Pereira

Relógio de Água, 2013, 128 págs.

  

Kate é uma atriz irlandesa que chega a Londres com grandes sonhos e esbarra, como tantas outras, no muro duríssimo da realidade. Na sua curta carreira, conheceu mais zonas de sombra do que momentos na ribalta. Vive precariamente, em quartos alugados, tentando a sorte nas audições abertas e disposta a aceitar pequenos papéis. Um dia, quase por acaso, oferecem-lhe o papel de Blanche DuBois (a protagonista-de “Um Elétrico chamado Desejo”, de Tennessee Williams) e encarna essa “mulher frágil com uns restos de orgulho, uns restos de esperança, uns restos de desejo, porque o contrário do desejo e a morte, e ela ainda não queria morrer”. Quando se cruza com Tom, um dramaturgo que a viu fazer de Blanche “naturalmente, quase sem esforço”, este decide apostar nela para a sua próxima peça em um ato. Cenário: uma cabana no meio dos bosques, onde um homem e uma mulher vivem o fim do amor.

Quem conheça a obra de Ana Teresa Pereira, entrevê nesta breve descrição os sinais característicos do seu universo. Em “A Pantera” (2011) havia uma Kate, escritora, que empurrava um ator chamado Tom para dentro de um dos seus livros. Na novela “O Lago” (2012), Tom era um dramaturgo seduzido pela história de Pigmalião, a moldar de forma obsessiva uma atriz, Jane, até ao ponto em que se iam esbatendo todas as fronteiras entre a realidade e o teatro. As semelhanças de “O Lago” com “As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães” são particularmente notórias. Por exemplo, a personagem que Kate representa em palco é uma ex-bailarina que um dia caiu em palco e se feriu no tornozelo, exatamente o que acontece a Jane. E ambas as narrativas confluem para um palco que reproduz um lugar real (a cabana num caso, um alpendre rodeado pela neve, no outro) em que dois amantes vão, “mais fundo, onde fazia escuro, era perigoso, e não havia caminho de volta”.

A dada altura, alguém desabafa: “Um escritor não tem mais de dois ou três temas. E escreve variações sobre eles.” De certa maneira, é precisamente isso o que Ana Teresa Pereira tem feito de forma exemplar. Variações literárias que seguem o princípio das variações musicais: o material de base pode sofrer mudanças (melódicas, harmónicas, contrapontísticas), mas nunca deixamos de o reconhecer. Em As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães” encontramos de novo Londres sob o nevoeiro espesso, homens que esperam a saída dos teatros, com “ramos de flores amachucadas”, visitas à National Gallery, referências bibliófilas e cinéfilas (certas frases ditas por certas atrizes, em filmes quase sempre a preto e branco). As atmosferas são as mesmas, o que se passa no interior das personagens, apesar de todos os ecos e simetrias, é sempre diferente. E o desenlace também. Desta vez, numa trama que mais para o fim se aproxima das ambiguidades identitárias de “Inverness” (2010), há algo que se quebra e se perde. Lá onde os atores exibem “os ossos” e arriscam mostrar tudo o resto (“a sua ternura e a sua dignidade, e a sua embriaguez, e o seu desespero”), um gesto de recusa separa a ficção da realidade. O que unia as personagens, o que as distinguia dos demais, era algo de muito frágil, “como o fio de uma teia de aranha”. Ser outro é um processo “delicado” que de repente pode “desfazer-se no ar”. Subtil. Ana Teresa Pereira mostra-nos, em surdina, essa impalpável tragédia.

Além de “As Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães”, o volume reúne ainda três contos fantásticos: no primeiro, um escritor perde-se num labirinto de pesadelo, talvez engendrado inconscientemente pelo seu remorso; no segundo, uma personagem resiste ao criador que a quer matar; o terceiro faz lembrar uma célebre gravura de Escher: a mão que desenha outra mão e por ela é desenhada.

 

 

  

 

  

Atual n.º 2150, de 11-1-2014

 

A PORTA SECRETA

 

Ana Teresa Pereira

 

Ilustrações de Eduardo de Freitas

 

Relógio D’Água, 2013, 101 págs.

 

ISBN 975 – 989 – 641 - 383 - 5

 

 

Nos seus romances e novelas, Ana Teresa Pereira nunca escondeu o fascínio pelos livros de aventuras juvenis de Enid Blyton. Muitas das personagens os mencionam, chegando a procurar edições antigas em alfarrabistas. Esse suave encantamento britânico paira em cada uma das páginas de “A Porta Secreta", história escrita a pensar num segmento etário específico (algures entre o fim da infância e o início da adolescência), mas que pode ser lida com proveito em qualquer idade. Nos arredores do Funchal, Ema aluga, para si e para os dois filhos, Sara e Miguel, uma casa que fica “praticamente no meio do campo” — o oposto do “bairro tão feio onde viviam antes”. Nas traseiras há um belo jardim, a mãe deixa as crianças terem um cão e um gato, a família abalada em tempos pela morte do pai parece encontrar o equilíbrio. Mesmo ao lado, uma grande quinta e respectiva mansão, propriedade de uma família Inglesa, alimentam as fantasias de Sara e Miguel. Descoberto um acesso escondido, eles fazem amizade com um pintor de passagem e especulam sobre as luzes que se acendem, à noite, no torreão. Como em Blyton, os estremecimentos e receios não correspondem a um perigo efectivo e os heróis estão de volta à hora do lanche. Outonal e serena, a história reúne muitos elementos do universo da autora: flores, cinefilia, aparições no nevoeiro, pintura (a chave é uma aguarela que pode ser de Turner e representa o princípio do mundo). A escrita é despojada, precisa, acessível, mas capaz de achados. Por exemplo, a velha casa, ao luar, surge como “uma concentração de silêncio”. Mais do que para o mistério, a porta secreta ao fundo do jardim dá para a literatura.

 

José Mário Silva

 

  

Atual n.º 2187, de 27-9-2014

 

O QUE ESCONDE O NEVOEIRO

Seis contos e uma peça teatral da mais idiossincrática escritora portuguesa

José Mário Silva

 

Ana Teresa Pereira

As velas da noite

Relógio d’Água, 2014, 139 pgs. ISBN: 9789896414474

 

Entra-se num livro de Ana Teresa Pereira como numa casa que nos é familiar. Quase sempre assombrada, vagamente desconfortável, com quartos escuros ao fundo do corredor — mas familiar. As texturas da sua prosa trabalhadíssima (embora não o pareça) tomam-na única e imediatamente reconhecível. Volta a ser assim neste volume que reúne um ciclo de seis contos (“As Velas da Noite”) e uma peça teatral (“Harbinger”), textos que partilham uma atmosfera nocturna, inspirada em livros policiais baratos (“dos que se vendem nos quiosques de rua”), ou em “velhos fumes a preto e branco”, obras menores e de série B. Estas são histórias de mistério e de terror, ambos mais sugeridos do que explicitados. Em vez de emoções primárias, como o medo ou o desejo, o que está aqui em causa é algo de mais subtil, uma forma de desassossego que se instala devagar, através de ameaças veladas ou suspeitas de um maleficio que pode ser, afinal, intangível.

A semelhança de livros anteriores, as personagens são dramaturgos em crise, actrizes que passam para o outro lado do espelho e já não sabem como voltar, escritores que pensam nos seus livros como “pesadelos”. Sem surpresa, porque esta é uma das principais características da escrita de A.T.P., deparamos de história em história com elementos que se repetem, uma sucessão de ecos e rimas internas: gatos cinzentos que deixam de reconhecer os donos (porque quem regressa a casa transformou-se pelo caminho; ou é já outro; ou então os gatos não são os mesmos), portas abertas, livros em segunda mão, Ímpetos assassinos, vestidos vermelhos, amores intensos que se evaporam, versos de um poema de Aragon que fala da Pont Neuf, uma citação de Shakespeare. E há ainda elementos que rimam externamente, com outras obras da autora: as flores (narcisos, junquilhos), o tema do duplo (mulheres que tomam o lugar de outras, casas simétricas em frente uma da outra), o no celta num colar.

Após obsessivas aproximações ao mundo do teatro, faz todo o sentido que o texto mais confessional deste volume assuma a forma de uma curta peça de teatro, em três actos, sempre no mesmo cenário: o gabinete de um psiquiatra, sala impessoal, arena de um combate corpo a corpo, palavra a palavra. Através da “rapariga” que se sujeita a uma terapia ambígua (porque há zonas de sombra na relação passada entre ela e o interlocutor), A.T.P. aproveita para se deitar no divã e oferecer-nos um vislumbre do seu processo criativo. Tal como a personagem, ela tem “uma certa atracção pela loucura”, estudou botânica por causa das suas histórias (tão “cheias de plantas” que quase “podemos sentir-lhes o cheiro”), usa quase sempre um mesmo nome para o protagonista masculino, gosta de literatura de cordel, escreveu um western, e assume um fascínio por pessoas “partidas”, “quebradas”, “incompletas”. O seu é um “mundo pequeno” e “muito escuro” porque escava nos territórios do inconsciente (“Tudo se passa dentro de mim”), e é desse “dentro” que emergem as imagens, por vezes tao vacilantes como pequenas chamas, agitando-se na noite.

Num dos contos, surge um autor menor que escreve livros breves, intensos, e “fundos como poços”. O seu trabalho consiste em “procurar o que se esconde no nevoeiro...”, contando “sempre a mesma história, repetida ate ao infinito, com variações mínimas”. Depois de o ler, há quem se sinta a “voltar de um outro mundo”, precisando de “agarrar-se com as mãos feridas as bordas da realidade”, uma sensação que os leitores de Ana Teresa Pereira conhecem bem. E o que ela diz da escrita dele — “devia ter trabalhado muito para chegar àquela simplicidade absoluta” — podemos nós dizer da sua.

 

 

Pode ler-se uma recensão de "As Velas da Noite", de Isabel Lucas, no PÚBLICO de 3-10-2014, aqui.

 

 

E – A revista do Expresso

Edição 2203, 17 de Janeiro de 2015

A ESTALAGEM DO NEVOEIRO
Ana Teresa Pereira
Relógio D’Agua. 2014, 74 págs.,

literatura juvenil  

ISBN 978-989-641-424-5 

José Mário Silva


Em paralelo com as suas novelas e contos - atravessados por obsessões, zonas de sombra, formas do desassossego —, Ana Teresa Pereira tem escrito livros para um público juvenil. A simplicidade muito trabalhada da prosa é a mesma, mas posta ao serviço de histórias reconfortantes e amenas, sem qualquer tipo de angústias, estremecimentos ou ameaças. Serão, talvez, um contraponto solar ao negrume habitual da autora. Mas são sobretudo uma homenagem as atmosferas típicas das aventuras de Enid Blyton, transpostas para a ilha da Madeira. “Parece que estamos numa aventura dos Cinco”, diz-se a certa altura. E parece mesmo. Há crianças, há um cão, há passeios ao ar livre com farnel, há até um arremedo de mistério policial (em tomo do desaparecimento de um colar de pérolas). Tal como em muitos livros da escritora britânica, e como no anterior “A Porta Secreta” (2013), os irmãos protagonistas não têm pai. A mãe, omnipresente, leva-os de visita a uma estalagem no Paul da Serra, Lugar com “qualquer coisa de encantatório”. O clima é de despedida, porque o negócio já conheceu melhores dias, e as proprietárias ponderam a venda da estalagem a um casal que fará — temem os hóspedes habituais — alterações drásticas. Durante o tempo da estada, os gémeos Hugo e Daniela ficam a conhecera Lagoa da Bruma e os seus segredos; o fascínio da neve; mais a difícil amizade de Iris, a pouco sociável sobrinha das donas. Tudo é narrado com vagar e uma certa volúpia na descrição dos detalhes. O arco narrativo não podia ser mais suave. As arestas desaparecem, como a paisagem dentro do nevoeiro. Afinal, lembra-nos o último capítulo, nem todos os epílogos são tristes”.

 

 

 

E – A revista do Expresso

Edição 2252, 24 de Dezembro de 2015

NEVERNESS
Ana Teresa Pereira
Relógio D’Agua. 2015, 153 págs.,

José Mário Silva

 

Paira sobre a escrita de Ana Teresa Pereira, há muitos anos, a sombra de uma ameaça. Que ameaça? A do esgotamento de certas ideias e imagens que reaparecem sistematicamente na sua obra, com variações mínimas. Ora esse pretenso esgotamento está longe de acontecer porque as repetições não nascem de uma limitação criativa, antes dos próprios pressupostos ficcionais da escritora. O seu universo singularíssimo é um sistema fechado, imune à entropia. Um mundo de infindáveis ecos e rimas visuais, atravessado por um mesmo fluir de desespero e epifanias, tragédias íntimas e momentos de iluminação, vazios e fantasmas, abismos e assombros. Vistas à transparência, sobrepostas umas em cima das outras, as narrativas de ATP parecem formar uma única narrativa, um palimpsesto. Só que cada camada acrescenta sempre qualquer coisa, imponderáveis pormenores, uma espessura de que não nos apercebemos logo, embora esteja lá, conferindo sentido ao conjunto da obra, mais do que a um determinado texto. Este volume reúne duas novelas. A primeira, “Neverness”, convoca quatro personagens que partilham a memória dos Verões da infância, passados na casa do avô, junto a um dos cenários recorrentes da autora: a charneca agreste, oculta por um nevoeiro espesso. Há uma canção a unir épocas distantes, laços afectivos que se fazem e desfazem, esperas, desilusões, combates surdos, visitas à National Gallery, todo um teatro secreto e também um teatro literal, o espectro de Tennessee Williams a tocar cada página. É como se as personagens criassem, á sua volta, um contínuo jogo de espelhos, só reflexos de reflexos. Na segunda novela, “A Primeira Noite de Quietude”, mais complexa, mais densa, tudo gira em torno de Kate. Como outras protagonistas em livros recentes, ela é uma actriz falhada, ex-bailarina que certo dia se feriu num tornozelo, livreira que ama edições antigas. Na sua vida há vários tempos e, em cada um deles, um homem. O problema está na forma como estes três círculos se sobrepõem e não se fecham, empurrando-a para um reduto de vulnerabilidade máxima, semelhante ao estado de quem na representação teatral, se transforma noutra pessoa, esse limite onde a personalidade arrisca “partir-se” de vez, caindo na loucura. O desfecho acaba por ser surpreendente e bastante negro — de uma forma paródica, à maneira das “novelas baratas” de que Kate tanto gosta. Mas o que fica, mesmo na falsa harmonia de um final feliz, é uma semente de inquietude, esse pulsar comum a todas as heroínas de Ana Teresa Pereira.

 

 

E – A revista do Expresso

22 de Outubro de 2016

 

Manuel de Freitas

Karen, de Ana Teresa Pereira

Editor: Relógio D'Água

Outubro de 2016

ISBN: 9789896416287

 

Em Karen, a escrita de Ana Teresa Pereira adquire uma intensidade particularmente difusa, que joga com vários matizes e referentes. Parafraseando a narradora – talvez Karen – há aqui um pendor abstracto, também presente nos contos de Alan (o protagonista masculino), capaz de evocar “I Married a Dead Man”, de William Irish, ou “Rebecca”, de Daphne du Maurier, embora a lusão mais recirrente se reporte a um filme de Luchino Visconti, “Le Notti Bianche” (“As Noites Brancas”). De resto, poder-se-is aplicar a este livro o comentário feito acerca dos contos de Alan: “Tinham a leveza e a simplicidade dos textos muito profundos. Impressões de coisas que tinham passado por ele e voltavam transformadas, irreconhecíveis. E o encanto dos contos de fadas de Hans Christian Andersen, a indecisão perturbadora de alguns contos de James”. Mas prevalece, entre amnésia e desencontros, o timbre forte de Ana Teresa Pereira, nesse ardor sonâmbulo de descobrir “o que há do outro lado da cascata”. Daí resultam cicatrizes, dúvidas que ombreiam com as mais cruas certezas: “Nós somos feitos das histórias que lemos em crianças.” Ou, se preferirmos: “Cada um tem a neve que merece.” Mas a neve recusa-se a cair, é apenas chuva no magnífico final deste romance, cuja “banda sonora” fica entregue a Keith Jarrett e Mark Eitzel. E torna-se impossível não nos lembrarmos do cineasta Andrei Tarkovsky quando surge o propósito de acender algumas velas “para salvar o mundo”. Tem sido esse o modo de escrita de Ana Teresa Pereira, embora quase ninguém dê por isso. E não é sequer de espantar que os temas destas variações mudem pouco: “Em tempos pensava que todas as histórias eram uma só, a luta entre o anjo bom e o anjo caído, e sempre à beira de um abismo. Mas havia uma segunda história, a rapariga que se apaixonava por um homem numa casa assombrada por outra mulher.”»

 

               

Eu não sou eu nem sou a outra

Levar longe de mais a dúvida. Deixar que a possibilidade de ser o outro se instale com o seu exército do medo, coberto de nevoeiro e distância. Um romance que luta com as suas criaturas, encurralando-as junto ao abismo.

 

HUGO PINTO SANTOS 

27 de Fevereiro de 2017,

 

A temática do duplo tem sido uma das mais presentes na escrita de Ana Teresa Pereira. Aquele que é inquietantemente próximo, mesmo sendo (ou sobretudo por ser) o fantasmático outro, é um veio que tem sulcado muitos dos seus livros. A título de exemplo, refiram-se apenas três exemplos recentes: O Lago (Relógio D’Água, 2010), A Outra (Relógio D’Água, 2010), A Pantera (Relógio D’Água, 2011). Em muitos pontos destes lugares escritos se poderia adoptar como estribilho certo passo de A Pantera: “a história tinha algo de circular, como se os dois se encontrassem presos numa jaula”. Actrizes que se convertem em personagens, numa fusão de prática ficcional e encarnação teatral (O Lago), ou escritoras que refazem o caminho de forma inversa, criando no corpo performativo a personagem da sua escrita (A Pantera), ou o espectro condutor de um ponto de vista que recria na pauta da alteridade (A Outra) todos se confinam à sua jaula. A jaula de serem prisioneiros de uma compulsão, um desejo nunca saciável, porque sem fonte. A necessidade de encontrar na própria busca a sua presa.

Também no seu mais recente livro, Karen, Ana Teresa Pereira tematiza a ideia de um outro/uma outra —, levando até aos limites do concebível, do exprimível, a tensão que faz cruzar os corpos e as mentes com os seus pares, lá onde se tocam como tecido sobre pele. Uma luz a travessar uma cortina. Algo assim que pareça real, mas seja, no fundo, a dúvida de toda a irrealidade. A trama de Karen lembra Rebecca, o romance de Daphne du Maurier, e a película homónima de Hitchcock inspirada no livro. A chegada da personagem feminina à moradia antes ocupada por uma outra mulher (ou a mesma?), o misterioso viúvo, a governanta da casa, o ambiente de mistério que cerca e nubla os passos de todos estes seressão condicionalismos e estimulantes na leitura deste romance. 

Também essa possível coexistência, entre um livro e um filme, permite entender afinidades com o universo ficcional e com procedimentos e técnicas caros à sua novelística. A cinefilia é uma das marcas estilísticas da ficção de Ana Teresa Pereira. Karen começa com uma reflexão em torno de Noites Brancas, de Luchino Visconti. Por outro lado, Daphne du Maurier é a destinatária da dedicatória com que abre O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Relógio D’Água, 2008). Numa entrevista em tempos concedida a Maria Leonor Nunes, afirmava Ana Teresa Pereira: “Há pouco tempo reli Rebecca, de Daphne du Maurier, e tive, mais uma vez, a impressão de voltar a um lugar que conheço muito bem: a alameda de rododendros, o quarto fechado onde alguém muda as flores das jarras todos os dias, a enseada com a casa de barcos. Acontece o mesmo com alguns dos meus contos. Há lugares que já existem dentro de nós, Gaston Bachelard escreveu sobre isso, nós subimos sempre a escada que leva ao sótão, descemos sempre a escada que leva à cave, o quarto no fundo do corredor tem sempre três degraus…” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 988, 2008).

Nesta breve reminiscência, quase uma auto-análise, a escritora retraça uma parte importante da sua produção escrita: essa espécie de hiper-realidade que consiste em abicar da precisão nas fronteiras entre o ficcionado e o vivenciado, a repetição de cenários, o sortilégio que se queda no pormenor (mesmo em aspectos como os muitas vezes revisitados nomes próprios), o fatalismo de seres que são, como se lê na epígrafe de A Noite mais Escura da Alma (Caminho, 1997), “a presa dos anjos”. Um excesso de realidade que é, paradoxalmente, um excesso de ficcionalidade. Existe uma tal confiança, uma entrega tão completa à ficção, que o próprio texto do romance explicita essa estado suspenso entre duas margens mal separadas, e apenas por um escasso fio de água. “Porque viera para tão longe? Um comboio qualquer e a última estação. A história de sempre.” (p.25) Quando a protagonista de Karen chega à casa em Northumberland que será lugar fulcral do romance, logo compara a governanta com uma actriz. Quando ainda caminhava pelas ruas de Londres (um tropismo essencial dos romances de Ana Teresa Pereira), a personagem sente-se como se estivesse no cenário de um estúdio, numa “realidade” fílmica. A cascata que, na sua obsessão (memória de um livro marcante da infância, outro traço relevante), a protagonista quer a todo o custo atravessar, parece simbolizar a possibilidade de levar a cabo essa brevíssima passagem entre o fingimento e a verdade. E vale como um emblema para a ficção da autora. Qualquer uma destas criaturas, nos romances de Ana Teresa Pereira, podia afirmar como uma personagem de A Linguagem dos Pássaros (Relógio D’Água, 2001): “Eu tenho alma de Stalker. Tenho de procurar, procurar sempre.”

O conflito entre identificação e dissemelhança, vivido pela protagonista em relação a uma desaparecida Karen, integra-se numa construção engenhosa, que corresponde à totalidade do romance. Tais movimentos de aproximação e afastamento marcam os ritmos do romance, até àqueles momentos em que a dúvida é maior, e tudo se torna imponderável “Surpreendia-me sempre a forma como ela falava de Karen, embora fingisse estar a falar de mim.” (p.46) O irresolúvel que toma conta destas vidas não chega a aplacar-se: a dúvida, a tensão e o medo, pelo contrário, mantêm a sua garra fechada sobre as personagens. Sobre nós. Como leitores, sabemos tanto como os seres destas narrativas. Também precisamos de continuar a procurar.