2-2-2002
ANA TERESA PEREIRA
Ana Teresa Pereira
(N. 1958, Funchal)
PUBLICO Sábado, 6 de Outubro de 2001
Prémios: Prémio Caminho de Literatura Policial (1989)
Livros Publicados: "Matar a Imagem" (1989), "As Personagens" (1990), "A Última História" (1991), "A Casa dos Penhascos" (1991), "A Casa da Areia" (1991), "A Casa dos Pássaros" (1991), "A Casa das Sombras" (1991), "A Casa do Nevoeiro" (1992), "A Cidade Fantasma" (1993), "Num Lugar Solitário" (1996), "A Noite Mais Escura da Alma" (1997), "A Coisa Que Eu Sou" (1997), "As Rosas Mortas" (1998), "O Rosto de Deus" (1999), "Se Eu Morrer Antes de Acordar" (2000), "Até que a Morte Nos Separe" (2000).
Nota: Ana Teresa Pereira publicou, no final de 2001, mais dois livros: “A Dança dos Fantasmas” e “A Linguagem dos Pássaros”, ambos editados pela Relógio de Água. Estes dois livros são o tema desta página, depois de dedicar outras duas à Autora aqui e aqui.
A propósito destes dois livros, pode ler-se o artigo
Quando a ficção vive na e da ficção, de Anabela Sardo
2002: Neste ano, Ana Teresa Pereira publicou, na Relógio de Água, "O ponto de vista dos demónios" (crónicas saídas no "Público") e "Intimações de Morte", romance, 188 pág.
2003: Ana Teresa Pereira publicou um livro de "Contos".
Novembro 2004: Na Relógio d'Água acaba de sair, "Se nos encontrarmos de novo", Romance, 164 pp.,
ISBN 972-708-815-5. Ler críticas, aqui e aqui.
Junho de 2005: Saiu "O sentido da neve", 92 pp, ISBN 972-708-832-5, colectânea de crónicas publicadas no "Público", Ler crítica aqui.
Setembro de 2005: Publicou na Relógio d'Água "O Mar de Gelo", 138 pp, ISBN 972-708-864-3. Ler críticas aqui.
Junho de 2006: Na Relógio d'Água, saiu "Histórias Policiais", 254 págs., ISBN 972-708-887-2, que inclui os textos "Numa manhã fria", "A noite dá-me um nome" e "A cidade fantasma".
Novembro de 2006: Na mesma editora, "A Neve", 120 págs. ISBN 972-708-907-0. Ler críticas aqui.
Maio de 2007: Na mesma editora, "Quando atravessares o rio", 112 págs. ISBN 978-972-708-940-6. Ler críticas aqui.
Maio de 2008: Na Biblioteca Editores Independentes, "O fim de Lizzie", 144 págs., ISBN 978-989-641-024-7. Ler recensões, aqui.
Novembro de 2008: Na Relógio d'Água saiu "O Verão selvagem dos teus olhos", 132 págs., ISBN 978-989-641-051-3. Ler recensões, aqui.
Maio de 2009: Na mesma editora, "As duas casas", 146 págs., ISBN 978-989-641-090-2. Ler recensões, aqui.
Maio de 2010: Na mesma editora, "Inverness", 133 págs., ISBN 978-989-641-171-8. Ler recensões, aqui.
Dezembro de 2010: Na mesma editora, "A Outra", 68 págs., ISBN 978-989-641-187-9. Ler recensões, aqui.
Maio de 2011: Na mesma editora, "A Pantera", 128 págs., ISBN 978-989-641-236-4. Ler recensões, aqui.
Dezembro de 2011: Na mesma editora, "O Lago", 144 págs., ISBN 978-989-641-266-1. Ler recensões, aqui.
Outubro de 2012: O romance "O Lago" venceu o Grande Prémio de Romance e Novela 2011, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores (APE). Ver aqui.
Novembro de 2013: Na Relógio d'Água saiu "As longas tardes de chuva em Nova Orleães", 128 págs., ISBN 978-989-641-388-0. Ler recensões, aqui
Novembro de 2013: Na Relógio d'Água saiu "A Porta Secreta", 101 págs., ISBN 978-989-641-383-5. Ler recensões, aqui
Julho de 2014: Na Relógio d'Água saiu "As Velas da Noite", 139 págs., ISBN 978-989-641-447-4. Ler recensões, aqui
Dezembro de 2014: Na Relógio d'Água saiu "A Estalagem do Nevoeiro", 74 págs., ISBN 978-989-641-424-5. Ler recensões, aqui
Novembro de 2015: Na Relógio d'Água saiu "Neverness", 160 págs., ISBN 978-989-641-575-4. Ler recensões, aqui
Outubro de 2016: Na Relógio d'Água saiu "Karen", 136 págs., ISBN 978-989-641-628-7. Ler recensões, aqui
ENTREVISTA:
Jornal de Letras, Artes e Ideias n,º 988, 13 a 26 de Agosto de 2008 - Ana Teresa Pereira - O Outro lado do Espelho - ver aqui.
Outro texto de Anabela Sardo: “A propósito do texto “Os Insuspeitos”, as paixões de Ana Teresa Pereira”
Tese de Mestrado na UCP, de Ana Cristina Teixeira da Silva de Sousa Pereira, em Janeiro de 2015: O “fantástico” em O Lago (2011) - Ana Teresa Pereira
Intimações de morte com olhar 'very british'
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Todo o Anjo É Terrível
Sábado, 05 de Abril de 2003
Intimações de Morte
Autor: Ana Teresa Pereira
Editor: Relógio d'Água
184 págs, euros 9,99
Maria da Conceição Caleiro
"Intimações de Morte", o mais recente livro de Ana Teresa Pereira, abre com a referência ao filme que será de certo modo seu emblema - "A Noite do Caçador" de Charles Laughton e o mote que o embala: "leaning, leaning". Jane Frost, Jane, Janey, Jenny "apaixonou-se pelo caçador do filme quando era uma criança" e "durante anos contou histórias à sua boneca na margem do rio (...) com medo e desejo". As personagens: para além de Jane, Tom, a mais interessante e que melhor actualiza, a par de Jane, os mitos fundadores da autora, chegando a ganhar uma densidade singular, Michael e Byrne, ambos desdobramentos de Tom e Jane, respectivamente, e ainda o pai de Jane, figura contígua a todos eles, omnipresença velada de um passado que não cessa de configurar e deslocar o presente. O que está |
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Giotto, "A Fuga para o Egipto", 1304-06, detalhe, Pádua |
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em jogo e se acende repetidamente nos seus romances, insistindo sem muito se desenvolver, são arquétipos, os mesmos arquétipos, desde sempre. Pulsões arcaicas, absolutas, relançadas de livro para livro, obsessivamente, sem exterior que as modalize e introduza na natureza fractal do mundo à volta. Paixões e personagens originais, de alguma forma sem nada de irredutível para as particularizar, daí a sua força cega.
Numa entrevista ao PÚBLICO, aquando da edição de "O Rosto de Deus", Ana Teresa Pereira diria: "Os meus livros têm sempre poucas personagens, basicamente são quatro, que são dois, que são um." Fanáticos, ou loucos de Deus, nome possível do absoluto, irresponsáveis por aquilo que os habita e que perseguem. O mesmo "pathos" sob cenários ligeiramente diferenciados, sucedendo-se agilmente. Lembra as sequências demoníacas que tornam sempre ao mesmo já outro de David Lynch em "Mulholand Drive". Atraindo o leitor que se confunde e se deixa enfeitiçar, fatal e perversamente manipular.
O estilo da autora, como sempre, mas neste romance mais conseguido, é desenvolto, ganha velocidade, inebria. Para o bem e para o mal, é o outro lado do que seria a escrita de Tom. É imparável a leitura. A arquitectura romanesca aqui mais sólida. A chave inaugural revela-se-nos no fim, reiluminando muito habilmente o início. Vários parecem ser os pontos de vista, mas, parafraseando a escritora, são sobretudo dois, que afinal são um - a força soberana e impessoal que os guia inelutavelmente.
Tom é o escritor que parte e que regressa e que morre continuando Jane a esperá-lo: "Um dia vou matar-te, e ela encostava-se mais a ele, só quero que fiques comigo, para sempre, não é verdade que tens de voltar para o fundo do mar, passaram-se sete anos e eu quebrei o teu encantamento, o príncipe transformou-se num monstro, e és mais meu do que nunca, e amo-te mais do que nunca, és como Deus, a presença absoluta, estás nas pedras e no mar, és todos os meus dias (...) estás em tudo o que eu vi do mundo, as cidades e os rios, e as árvores e os peixes, e os pássaros, e os gatos, e os outros homens (..), nunca conheci nada além de ti." "You have been mine before, how long ago I may not know." Tom e Jane - metal fundente que se dissolve no inferno dos mares, insustentável à superfície da Terra.
"I've been here before, you've been mine before" é o verso de Dante Gabriel Rossetti que volta e subsume tudo o que acontece e eternamente torna a partir e a chegar, de livro para livro, dentro de o mesmo livro. Tom, d'"os olhos azuis", como a cor de todas as cores do livro, frios e assassinos.
Tom, absorto e vinculado à canção que o revela, perdido talvez de si e de Jane, que ouvia junto à porta (como a toada da máquina de escrever do pai no andar de baixo), escutava passos da ópera "Mikado" de Gilbert e Sullivan: "Defer, defer, to the Lord High Executioner, defer, defer..." As vozes dos homens exortando à submissão e veneração do Grande e Nobre Senhor. Tom escrevia em letra pequenina nos pequenos blocos trazidos do hospital. Ela "pensou nos livros dele, (...) os contos eram pequenos quadros, terríveis e perfeitos, mas (...) os seus romances eram longas construções vazias, em que ele trabalhava a linguagem como se ela existisse por si, o efeito era interessante enquanto durava mas depois deixava uma sensação de vazio" e "Tom não gostava das suas personagens, ainda que dissesse o contrário, sentia um certo desprezo por elas, como pelas pessoas em geral; era nos contos que deixava passar a sua ternura e o seu desespero, e escrevia algo que se parecia com um poema, por vezes de uma beleza lancinante. Mas ele também sentia um certo desprezo pelos contos, que eram escritos para revistas, em muito pouco tempo, e que só por insistência do editor reunira em livros, e dizia que era nos romances que jogava a vida. Jane sorriu. Cada um de nós vive o seu sonho, (...) e ele tinha reacções terríveis quando começava a dizer algo relacionado com os livros, era melhor deixá-lo em paz". Tom, "um monstro marinho", chegara à superfície vindo do muito fundo do oceano, vivendo algum tempo à superfície das águas, o chão que, imponderável, ela pisava; decidindo regressar ao abismo, quando mais não conseguia escrever, continuando ela a esperá-lo à beira do mar, porque aquilo que é nosso gravita para nós e, se ela o desejara, "ele tinha mesmo de existir, era a sua versão do argumento ontológico". Pois todos os seus dias já estavam escritos, "quando nem um deles havia ainda" (Salmos, 139).
Jane Frost, na origem estudante de Filosofia, "era algo de molhado, uma formação do vento ou do nevoeiro, ou do rio, como a bruma, talvez estivesse no fundo do mar, com as pedras e os peixes, e os cascos de navios afundados há muito tempo". Jane, uma mulher muito bela, muito magra, irreal, fora do tempo, vinda do mito, revivendo-o sonambulamente, "uma concentração de ser", de cabelos ruivos, longos, ondulando-se nas águas e nas camas (como Byrne, entre a promiscuidade e o ascetismo), vestindo "jeans", calçando sandálias, viajando a viagem com a mesma mochila, tendo frio, cruzando o nevoeiro, gostando de se descalçar e de mergulhar os pés na borda do rio, e na água que sobrevoava sem peso, de pedras que traziam incrustada a memória do mar, de dançar com Tom ou Michael, isto é, de albergar em si a dança que se dança sozinha, dentro dela indiferente, gostando ainda e sempre de Rothko, de flores, de "pão fresco à noite", abrindo por vezes uma garrafa de vinho, comendo frutos, nomeadamente tangerinas, o seu cheiro e o seu perfume, "Happy". Também isto vem de outros livros, assim como o azul em todas as roupas, e até nas flores, nos cadernos em que escrevia e desenhava e abandonava, esquecida. Seria o mar azulando o mundo vindo dos fundos junto ao verde, "blue with green should always be seen".
Ela escrevia ao contrário de Tom, desligada, ausente até do seu nome "próprio", que perdia como quando esvaída pela música de Bach: "A escrita fluía, a linguagem era límpida, ela anotara numa margem 'a linguagem viaja com a alma', e isso era na verdade o seu caso, a alma e o corpo, a escrita era sensual, quando falava de corpos, de pássaros e de peixes, de folhas, de água, de pedras, havia ali um olhar atento, uma atenção constante, mas de certa forma quase inconsciente, talvez ela não visse as coisas porque já estava dentro delas, talvez não fosse um olhar mas sim um habitar as coisas."
Anjos mais ou menos caídos
Dois livros de Ana Teresa Pereira com sombras de Íris Murdoch
Está a tornar-se uma redundância dizer bem de Ana Teresa Pereira. E, para cumprir a regra que ela própria estabeleceu, os dois livros que aqui se referem em nada desmerecem da qualidade e experimentações a que nos habituou. Com um “senão” que adiante se referirá. Mas comecemos pelo princípio. Em O Ponto de Vista dos Demónios foram reunidas as suas crónicas no suplemento literário do “Público”: mais uma experiência num novo “género” para juntar à multiplicidade de registos que vai acumulando na sua longa biografia. São pequenas reflexões sobre fascínios muito pessoais; meditações desencadeadas por outras obras de arte, do passado e do presente, da literatura, do cinema, da música, da pintura. Nalguns casos, re-conta-nos essas criações pelas suas palavras, pelo seu olhar, numa disfarçada “ekphrasis”. Noutros oferece-nos uma versão diferente do original, como este poderia ou deveria ter sido. Mergulha nas obras ressuscitando-nos uma personagem, um autor. Homenagens e gratidões onde perpassam as temáticas de outros livros – anjos mais ou menos caídos, “deuses animais, espíritos soltos que vagueiam no vazio”, as casas, pedras e fantasmas, mas principalmente o de Íris Murdoch. |
É a esta autora que dedica Intimações de Morte, que traz como epígrafe o Salmo 139 (em inglês): “porque criaste o meu ser mais interior…”, aqui a declaração de uma poética. O romance tem por heroína Jane Frost, talvez avatar de Murdoch, talvez duplo de Ana Teresa. Uma viagem da infância à idade adulta, uma educação sentimental ponteada mais uma vez e sempre por todas as artes, por mais uns anjos, um Michael e um Tom – nomes de outras histórias a desempenhar diferentes funções.
Mas este romance belíssimo traz uma marca – o tal senão – o recurso ao “seu/sua” pelo “dele/dela”. Trata-se de uma muito nova e modernaça “normalização” imposta pelos correctores ortográficos, que se está a expandir em epidemia incontrolável nos “media”. Pode parecer chique, mas não é. E não pertence às estratégias de escrita de Ana Teresa Pereira. Veja-se, por exemplo: “Tom nascera do seu desejo, fora ela que o fizera vir à superfície, do oceano remoto onde vivia, do mundo escuro onde hibernavam os monstros, sentada nos degraus do alpendre olhava para as suas pernas nuas que o sol tornara muito morenas… “ (pág. 47) – as pernas dele ou dela? E ainda: “Ajudou-a a despir-se e a vestir o pijama, um dos seus, pensou que o azul lhe ficava bem, a sua pele era muito macia, (…) (pág. 55) – o pijama, a pele de quem? Aqui instaura-se uma ambiguidade quanto à posse que nada tem a ver com a prática habitual e muito esmerada da autora. Na ficha aparece uma “Revisão técnica” atribuída a Raquel Dang – calculamos que a responsabilidade seja “dela”.
HELENA BARBAS
O Ponto de Vista dos Demónios
de Ana Teresa Pereira
Relógio de Água, 2002
Intimações de Morte
de Ana Teresa Pereira
Relógio de Água, 2001
Excerto de "A Dança dos Fantasmas"
PRÉ-LEITURAS
A
Dança dos Fantasmas
PÚBLICO
Sábado, 6 de Outubro de 2001
"A Dança dos Fantasmas", de Ana Teresa Pereira.
Capítulo 1
- Gostava que te fosses embora... e voltasses quinze anos atrás.
A frase pareceu-lhe familiar, como se a tivesse ouvido antes, mas não dita por ela, não naquele tom melancólico que era quase um gemido.
Mas estava demasiado ocupado a investigar o mistério dos seus cabelos, aquele louro, castanho, que a uma certa hora do dia era quase acobreado, o mistério dos olhos azuis, que por vezes eram quase cinzentos, e que ele não compreendia, por vezes eram tão vazios, como se não tivessem nada por detrás, um templo vazio, com flores e velas, mas onde não havia ninguém, ou talvez se sentisse, só, a presença de deus. E a sua boca, o desenho dos lábios, passou os dedos nos seus lábios quase com incredulidade, ela fora uma imagem distante e havia algo de irreal na forma como agora era possível tocá-la, e só se atrevia a fazê-lo devagar, a emoção concentrada nas pontas dos dedos, o pescoço dela...
De qualquer modo, quase não se lembrava do que fizera quinze anos atrás, devia estar ainda na universidade, planeando a entrada na Academia do FBI, fora ha muito tempo... e não era importante.
Mas sentia que tudo o que lhe acontecera na vida tinha por finalidade a sua presença ali naquele momento, o encontro com a mulher loura de olhos azuis, que fechara os olhos debaixo dos seus dedos, sentia-lhe as pálpebras pesadas, pensou pela milésima vez que nunca vira nada tão bonito como ela, que talvez as coisas se tivessem passado daquela forma porque nenhum deles vira nada tão bonito como ela...
Era estranho que tudo tivesse começado apenas algumas semanas antes, a casa estava pesada da presença deles, talvez porque ela era demasiado leve, e com ela a casa estivera sempre vazia, os seus pés descalços pareciam não tocar o soalho de madeira, sem tapetes, as suas pegadas no jardim pareciam ter estado ali sempre, nunca conhecera alguém que se confundisse assim com o mundo, e no entanto estivesse tão sozinho.
Mas a história começara, só, umas semanas antes. Finais de Outubro, tinham marcado a data com antecedência, tinham planeado o assalto ate ao mínimo detalhe, e bastara o acto de um guarda que quisera armar em herói para que os acontecimentos se precipitassem e o que estava traçado tomasse um rumo diferente. Não havia quase ninguém no pequeno banco de província, os vidros embaciados tornavam a rua invisível, os funcionários pareciam estátuas, o gerente era um homem magro com um ar assustado que lhes abrira o cofre sem dizer uma palavra (o mais estranho de tudo era o silêncio), e as coisas pareciam correr bem ate que o guarda surgira na sua frente com uma pistola em punho. Byrne perguntava a si mesmo quem era aquele homem, o que provocara o gesto suicida, mas os poucos jornais que conseguira arranjar mal falavam dele. George disparara imediatamente e atingira-o no lado esquerdo do peito, a loura bonita encostada à parede começara a gritar e dai a instantes ouvia-se a serena de um carro da policia não muito longe.
A neblina era como um muro esbranquiçado que escondia tudo o que estivesse a mais de dois metros. Byrne lembrara-se de ter lido algures que se alguém se perdesse no nevoeiro de Londres devia procurar um autocarro vermelho, mas não estavam em Londres...
Johnny esperava-os no automóvel estacionado ao voltar da esquina, um Fiat cinzento-metálico roubado no princípio da tarde.
Tinham saído da cidade ao anoitecer, no meio de farrapos de neblina, o Fiat afundara-se nos campos, e ao fim de umas horas parecia ser o único veiculo a circular naquela estrada dos bosques, que tinham assinalado previamente no mapa mas que nenhum deles conhecia. Nessa altura estavam todos mais descontraídos, Johnny assobiava baixinho uma melodia em voga, George ia ao seu lado sem dizer uma palavra, Byrne e Madsen no banco de trás.
Byrne infiltrara-se no bando alguns meses antes, e sempre perguntara a si mesmo o que fizera que aqueles indivíduos se juntassem. Tinham trabalhado sozinhos durante muito tempo, eram três solitários. Mas o acaso reunira-os num negocio de trafico de droga e a partir dai actuavam juntos. George era o que tinha uma ficha mais suja. Matara um policia dois anos atrás, num assalto a uma ourivesaria, e ferira dois civis durante a fuga. Madsen era no entanto o mais violento, o seu vulto pesado tinha algo de ameaçador, as mulheres achavam-no atraente, e seria capaz de matar alguém com um soco. Johnny era demasiado jovem, vinte e poucos anos, fugira de casa aos catorze, fizera alguns assaltos de pouca monta, mas George parecia gostar dele e confiar na sua inteligência e habilidade com as armas.
A Ficção de Um
Absoluto
Por
EDUARDO PRADO COELHO
PÚBLICO Sábado, 5 de Janeiro de 2002
Esta literatura de anjos, ícones e fantasmas, procura dar realidade às coisas para conseguir que elas se separem do mundo. Mas à medida que escreve para se separar do mundo Ana Teresa Pereira reconstitui o mundo de que se quis separar. É por isso que nascer e morrer se confundem.
Um dos mais recentes livros de Ana Teresa Pereira intitula-se "A Dança dos Fantasmas", e tem como data de saída Novembro de 200l. Se digo "um dos mais recentes", a razão é simples. Tenho a impressão de que, depois disso, já saiu outro, cujo título não fixei, e que ainda me não chegou às mãos. O que significa que Ana Teresa Pereira continua a escrever com grande intensidade, e já o podíamos adivinhar pelas excelentes crónicas que durante vários meses foi publicando no "Mil Folhas". Nessas crónicas, o universo continuava a ser fílmico e literário, profundamente obsessivo, e com aquela extraodinária marca vampiresca de conseguir apropriar-se de todas as ficções como se fossem aproximações da sua "ficção suprema". Aquilo que de outro modo disse um poeta que não costuma citar, Wallace Stevens, quando escreveu: "encontrar o real / ficar liberto de qualquer ficção excepto uma, / a ficção de um absoluto" ("Notes towards a Supreme Ficion")
O que caracteriza este livro que se chama "A Dança dos Fantasmas" é o facto de nele encontrarmos duas narrativas de géneros bem tipificados: a primeira é uma história de "gangsters" e intitula-se precisamente "A dança dos fantasmas"; a segunda pertence claramente ao género do "western" e o seu nome não procura a originalidade: trata-se de "O vale dos malditos", Acrescente-se o pormenor curioso de "A dança dos fantasmas" ser inspirada numa história de Jan Hutton, "La Cizaña", que confesso nunca ter lido.
De que se trata neste primeira narrativa? De quatro bandidos (mas um deles é um polícia infiltrado) que, depois de terem cometido um crime, se vêem forçados a fugir. O crime também não passa de uma sequência já vista e revista vezes sem fio: "Finais de Outubro, tinham marcado a data com antecedência, tinham planeado o assalto até ao mínimo detalhe, e bastara o acto de um guarda que se quisera armar em herói para que os acontecimentos se precipitassem e o que estava traçado tomasse um rumo diferente. Não havia quase ninguém no pequeno banco de província, os vidros embaciados tornavam a rua invisível, os funcionários pareciam estátuas, o gerente era um homem magro com um ar assustado que lhes abrira o cofre sem dizer uma palavra (o mais estranho de tudo era o silêncio), e as coisas pareciam correr bem até que o guarda surgira na sua frente com uma pistola em punho. Byrne perguntava a si mesmo quem era aquele homem, o que provocara o gesto suicida, mas os poucos jornais que conseguira arranjar mal falavam dele. George disparara imediatamente e atingira-o no lado esquerdo do peito, a loura bonita encostada à parede começara a gritar e daí a instantes ouvia-se a sirene de um carro da polícia não muito longe".
Como nem sequer falta a loira bonita encostada à parede, poderíamos pensar que Ana Teresa Pereira, envolvida num daqueles processos pós-modernos de intertextualidade, entrava pelo domínio da interminável paródia: a convenção do género policial ou do "western" seria apenas a convenção da inevitabilidade das convenções. É verdade que na narrativa seguinte (onde as imagens à Johnny Guittar remetem para a canção do filme convocada na primeira história), diz a dada altura: "porque tudo no universo estava escrito", mas corrige logo a seguir: "ou antes, tudo era uma escrita, aprendera-o muito cedo nos traços que os índios marcavam nas rochas, nos que pintavam no rosto e no peito, nas formas que surgiam do tear ou dos dedos ágeis dos fazedores de cestos. Algures no universo a sua vida estava escrita, e talvez fosse assim, um desenho parecido com uma constelação, que unia aquelas árvores todas umas às outras." Por outras palavras, o universo de Ana Teresa Pereira não se move no sentido da pluralidade proliferante, mas na direcção de uma teia cósmica que imprime a marca de um destino às personagens, todas elas suspensas de uma irrealidade que as torna mais vincadas, recortadas e espectrais. Recorro mais uma vez a Wallace Stevens para dizer que cada personagem de Ana Teresa Pereira é "como um corpo em todos os pontos corpo, agitando / as suas mangas vazias; no entanto o seu movimento imitado / criava um grito contínuo, causava continuamente um grito / estranho a nós embora o compreendêssemos, / inumano, o de um verdadeiro oceano".
Daí que, nesta distância em que inevitavelmente se propõem, estas personagens tenham sempre um traço comum: a intocabilidade. Faça-se um breve inventário: "havia algo de irreal na forma como era agora possível tocá-la" (p. 15), "os seus pés descalços pareciam não tocar o soalho de madeira" (p. 16), "estranhamente eles pareciam coexistir na casa sem se tocarem" (p. 33), "como se ela fosse algo de impossível que não podia roçar nem com um dedo" (p.36), "livros em que ninguém tocava há muito tempo" (p. 36), "andava como se não tocasse no solo, como uma deusa ou uma criatura dos bosques" (p.41), "os seus pés descalços quase não tocavam no solo" (p.51), "estavam muito longe uns dos outros, como se vagueassem no nevoeiro sem se poderem tocar" (p. 65) , "porque tinha a certeza de que George ainda não lhe tocara, quase não se atrevia a roçá-la com os dedos, estava apaixonado por ela como por uma imagem religiosa" (p. 66); e assim por diante.
Mas há uma outra figura que atravessa esta ficção, e que até se pode etiquetar na dependência de um nome: Tom. Digamos, se quisermos polarizar as coisas, que as histórias de Ana Teresa Pereira oscilam entre a distância infinita que separa os seres e a sua fusão devoradora. Tom é o lugar da fusão. Assim: "Se quebrasse o ramo de uma árvore Tom estaria nele, se mergulhasse mais fundo encontrá-lo-ia entre as pedras e os limos, entre os peixes que se moviam no silêncio; ele estava à sua volta como sempre estivera, se estendesse as mãos poderia arranhar o seu rosto, se começasse a correr cairia nos seus braços" (p.35). Esta figura é a figura da inclusão: coisas dentro de coisas. Leia-se na pág. 71: " o bosque rodeava-os como uma concha, e ela voltou a pensar em coisas dentro de coisas. Ela e aquele homem dentro de água, dentro do bosque. Dentro de Tom. Estranho pensar que se fizessem amor seria ainda dentro dele, e que não saberia distinguir as suas carícias das de Tom, as sensações provocadas pelo seu corpo das que Tom lhe transmitia, acordava muitas vezes de noite com o corpo dele à sua volta, sobre ele, tornando-a plena, como se ele mesmo fosse a escuridão, o ar, o vento que entrava pela janela. A água. E o fogo também, era esse o seu aspecto mais assustador. A terra, se um dia ela morresse."
As duas grandes realidades que dominam o universo de Ana Teresa Pereira são a escrita e a sexualidade. É nelas que se trava o combate decisivo: escrever dentro de Tom ("escrevia dentro dele, como fazia tudo o mais dentro dele", p. 72) ou escrever para manter Tom a distância. Ter amantes para fazer amor dentro de Tom ou fazer amor contra Tom: "Mas Jenny continuava a ter amantes, porque não suportava um mundo onde só existiam ele e ela, precisava de alguém entre ela e o escuro, entre ela e Tom" (p.73).
Esta literatura de anjos, ícones e fantasmas, procura dar realidade às coisas para conseguir que elas se separem do mundo: "era uma noite de luar, como as da sua infância, quando tudo estava muito próximo, tão próximo que não se podia tocar, o tempo em que ele ainda não se separara do mundo. Tudo estava dentro da placenta, o seu corpo, o da mãe, o dos companheiros da tribo... os seres de duas pernas, os de quatro, os que tinham asas, os que tinham raízes, os mortos, os que ainda não tinham nascido". Mas à medida que escreve para se separar do mundo Ana Teresa Pereira reconstitui o mundo de que se quis separar. É por isso que nascer e morrer se confundem, como se diz na bela epígrafe de Eliot que escolheu: "We die with the dying: / See, they depart, and we go with them. / We are born with the dead: / See, they return, and bring us with them."
O
Universo Mágico de Ana Teresa Pereira
Um «outro»
Ana Teresa Pereira. Um «outro», sim, mas não apenas mais um. Vertiginoso
poder-se-á dizer, sem dúvida, do ritmo editorial de Ana Teresa Pereira, mas
não devendo jamais pôr-se em causa a qualidade da escrita que lhe assiste.
Em 2001 mais dois livros, duas brilhantes incursões no seu muito peculiar
mundo, no seu muito característico universo. Desta feita, falemos de «A
Linguagem dos Pássaros», breve texto (104 páginas, Relógio d’Água) onde se
relata a atribulada história de amor entre Marisa e Miguel, que «aprendeu
russo para descobrir o que acontecia aos lábios do menino num poema de
Arsenii Tarkovski». |
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árvores e
das flores, eis o que também se poderá dizer desta escrita, matérica e
sensitiva e por isso convocante. Quanto ao mais, e a exemplo da generalidade
do seus últimos livros, regressam as menções aos universos predilectos da
autora: o
tributo sempre presente ao cinema, desta feita a Tarkovski, à pintura, toda a sua escrita ressuma cor e densidade plástica - Chagall, claro, uma vez mais --, ao universo da infância, revendo-se o leitor bastas vezes nos mundos aventurosos de Enyd Blyton, estes pejados de referências a um fantástico cheio de túneis, passagens subterrâneas, cavernas, casas ou torres abandonadas batidas por «rajadas de vento, as gotas de água do mar, os gritos das gaivotas». Por fim, registe-se a tranquilidade e inteligência desta escrita, fácil sem incorrer no facilitismo, agradável sem se confundir com o básico, fluída mas absolutamente consistente no modo como agarra o leitor. Assim: «Miguel fizera um escritório no quarto de cima da torre. Levara para lá uns quantos livros e cadernos, uma secretária, colara na parede reproduções de Rothko e fotografias a preto e branco, havia uma de Andrei Tarkovski, sentado na sua cadeira de realizador, algumas de Veneza em manhã de nevoeiro, e no lugar de honra, perto da janela, o seu ícone, os três anjos». Pedro Teixeira Neves AGENDA CULTURAL - Fevereiro de 2002 |
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Caminhar sobre as águas
Uma brilhante revisitação às obsessões de Ana Teresa Pereira
Helena Barbas
Do Expresso, Cartaz, de 23-3-2002
Mais um livro de Ana Teresa Pereira, em que a autora acrescenta algumas facetas à sua sempre mesma galeria de personagens. Conta-nos a história de um par, Miguel, com nome de anjo - como o seu homónimo de A Casa do Nevoeiro, um pintor de anjos, ou o psiquiatra, «com nome de Arcanjo» de As Rosas Mortas; e Marisa, uma jovem estudante de filosofia, que com ele contracena, à semelhança ainda da heroína deste último romance (e personagens de uns outros tantos). Mas ficam-se por aqui quaisquer semelhanças, embora sejam ainda muitas outras as igualdades. Há o cenário da casa velha encerrada entre plantas e pássaros, junto ao mar, situada num tempo moderno - com turistas e cafés - mas isolada dele pelas atmosferas que o narrador vai conseguindo criar. E são estes ambientes suscitados pelas referências a filmes, discos, músicas e actores, que melhor vão ancorar a história num presente nosso, embora sem datas. Também as obsessões são as mesmas: o desejo de unidade, do encontro com o outro, a alma gémea, num esforço de reconstituição, sempre frustrada - ou humanamente insuportável - do andrógino primordial; a busca de uma linguagem suprababélica, a demanda de um sentido puro e total ou, no mínimo, não contaminado pela matéria. |
Ana Teresa Pereira |
Todas estas similitudes se depuram em A Linguagem dos Pássaros, uma pequena novela de estrutura linear e muito simples: um par que se constrói como amoroso desde a infância (Miguel tem onze anos e Marisa nove quando se conhecem), que descobre esse seu amor durante a adolescência e que, após algumas breves separações (os estudos de Miguel, as suas viagens pelo mundo) se reencontram para se casarem aos vinte e poucos anos. E até são muito felizes.
Mas mais do que inverter a impossibilidade teórica que preside ao romance - os amores felizes não têm história - este texto reconfirma-a pela introdução sucessiva de impedimentos ao apaziguamento com que terminam as estórias: «Estavam ali agora, e as suas mãos tocavam o rosto dele como as de uma cega, e tudo estava certo, tudo estava certo, não havia qualquer estranheza, e ele disse desta vez trouxe-te esmeraldas, as pedras do inferno, e ela pensou não temos medo do inferno, continuamos a ter 'love' escrito nas duas mãos, 'leaning on the everlasting arms'.// - Meu Deus, meu amor, eu estive tão longe - disse Miguel minutos depois.// Longe, do outro lado do mundo, entre quadros e livros, e mares e neve, e estrelas frias, e braços frios, braços e asas, anjos esquecidos em velhos museus, o vazio, o caos.// Ela olhou em volta, para o calor familiar dos livros, da lareira apagada, a janela entreaberta pela qual entrava o cheiro dos lilases, o som do mar, e sussurrou:// - Eu também.» (pág. 56)
Todas as ausências são fatais, todos os regressos rasuram o tempo do intervalo e da espera. Porque o impedimento primeiro a qualquer realização é a condição humana: «Olharam-se nos olhos e ela pensou que talvez fizesse sentido, talvez eles fossem capazes de caminhar sobre as águas, talvez fossem imortais. A ideia era assustadora, mas não muito, pelo menos para ela. Era Miguel que tinha medo, era sempre ele que tinha medo. Envolveu-o nos braços para lhe dar segurança, para lhe dar calor.// - Se tu estás comigo eu sou mais forte - disse./ Mas se o perdesse ficaria reduzida a nada. Enquanto que ele podia viver sem ela, solitário, perdido, mas podia viver sem ela.» (pág. 66).
A intensa relação amorosa entre Miguel e Marisa revela-se como mero pretexto para a um discurso sobre impossibilidade humana de eternizar a paixão. E porque se trata de um romance, descobrem-se alternativas à continuidade dos afectos que ultrapassam os condicionalismos impostos pelas coisas, pelo corpo, pelo tempo. E porque se trata de um romance, usam-se as palavras para ultrapassar esses limites, dando-nos Ana Teresa Pereira um texto muito próximo do encantatório, a raiar o que se imagina poderá ser essa linguagem dos pássaros que o herói procura: «...dizia palavras que ela não entendia e que não lhe interessavam, ele poderia estudar todas as línguas mas nunca conheceria a linguagem dos pássaros, essa não está nos livros, ou talvez nos de Iris Murdock e Rupert Brooke, é uma linguagem, mas é também um outro plano da consciência, um pouco como caminhar sobre as águas...» (pág. 91).
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N. º 54 - Primavera 2002
OS MUNDOS PARALELOS Ficção
Jorge P. Pires
Uma mulher, sozinha, numa casa perdida a meio de uma floresta. Um espaço retirado, ermo, embora relativamente perto da fronteira. Uma fronteira qualquer. Memórias de alguém na casa. Com essa mulher, em tempos idos. Gestos ritmados, para ajudar a cimentar o quotidiano: fazer o pão, comer o queijo, o vinho tinto. Uma noite de chuva, um carro, quatro homens que batem à porta. Assaltantes, foragidos, e ela, inocente, que abre a porta e convida-os para entrar, se precisam de telefonar. E eles entram e ficam. Dias, depois semanas com George, Madsen, Johnny e Byrne. Inventam novos rituais, vêem televisão, lêem romances de John Dickson Carr, ouvem música de Brahms – sempre a mesma música. Por vezes ela afasta-se para ir tomar banho no lago. Por vezes um deles tenta quebrar o silêncio, amenizar a estadia. Por vezes as paixões tomam a dianteira – e é só então que a traição se revela em todo o seu esplendor inexorável, nesse ambiente em que “Estavam muito longe uns dos outros, como se vagueassem no nevoeiro, sem se poderem tocar. Sentiam a presença dos mortos no fundo do jardim, à entrada do bosque; mesmo as folhas amarelas e vermelhas que continuavam a cair e dançavam com o vento, não conseguiam dissimular as marcas dos túmulos”.
É este o quadro em que decorre A dança dos Fantasmas de Ana Teresa Pereira (Relógio de Água), um dos dois livros publicados recentemente pela escritora madeirense que se estreou em 1989 com Matar a Imagem, e ao longo dos anos 90 construiu uma sólida obra, na qual se destaca a sequência de cinco volumes iniciada com A Casa dos Penhascos (1991-1992), ou os mais recentes As Rosas Mortas (1998), O Rosto de Deus (1999) e Se eu Morrer Antes de Acordar (2000). Sobre ela, que tem vindo a ser apelidada de nossa “rainha do gótico”, recorde-se ainda a existência de um pequeno ensaio de Rui Magalhães – O Labirinto do Medo : Ana Teresa Pereira (Angelus Novus, 1999).
A Dança dos Fantasmas integra dois textos. O primeiro, que dá o nome ao volume, é a história acima descrita de Jenny, George, Madsen, Johnny e Byrne, com um título que faz referência a “um movimento iniciado pelos índios das planícies no final do século XIX. Era uma cerimónia religiosa, em que os índios dançavam e cantavam até perder a consciência e recebiam visões. O objectivo era ressuscitar os antepassados” para que tudo voltasse a ser como dantes, o homem branco se fosse embora e o búfalo voltasse a correr nas pradarias. O segundo texto, O Vale dos Malditos, é um outro conto de amor e sangue, desta vez passado no velho oeste americano, e como que aproveitando o mote dado pelo anterior. O texto poderia ser um clássico popular da extinta colecção “Seis Balas” (e na verdade havia sido publicado há dois anos pela Black Sun, envolto numa capa atenta a todos os pormenores gráficos desse imaginário “de cordel”) – contempla praticamente todos os ingredientes do “western”, a começar pela linguagem e a adjectivação, ou pela clássica cena do linchamento interrompido. E no entanto, num como noutro caso, o leitor descobrirá que nada é exactamente o que parece – apesar de tudo lhe ter já sido apresentado claramente desde o início, embora sob uma forma da qual só mais tarde compreenderá o sentido inteiro.
O outro livro de Ana Teresa Pereira em 2001, e publicado praticamente em simultâneo com o anterior, é A Linguagem dos Pássaros, uma variação trágica (e, como é comum na autora, recheada de referências cinematográficas), em torno do tema do segredo oculto que espalha o mal sobre o mundo após ter sido revelado. Também neste caso – o de uma narrativa mais telúrica, orientada pelas oposições entre o sagrado e o satânico, o revelado e o oculto, etc. – Ana Teresa Pereira domina com mestria a economia do “suspense”, arte em que de facto não parece ter rival conhecido, e lança algumas piscadelas de olho a Enid Blyton e a Júlio Verne.
Muito simplesmente contos de...
JOÃO CÉU E SILVA
A FICHA
CONTOS DE...
Autor.
Ana Teresa
Pereira
Editora.
Relógio
d'Água
Páginas.
374
Género.
Contos
Preço.
e 17,80
Classificação.
¢¢¢¢
«Sempre tinham dormido juntos. Em quartos de hotel, em cabanas perto do mar, em
comboios que atravessavam noites sem fim.» Começa assim o conto As Estátuas,
um dos nove que compõem a primeira parte deste volume intitulado muito
simplesmente Contos de Ana Teresa Pereira.
Está tudo dito, pensam o autor, a editora e vai confirmar o leitor. Porque este
é curioso e quer saber o que vai por ali em mais de 300 páginas. Se cada uma
demorasse um ano a ler, teriam de ser várias vidas para o conseguir terminar ou
obrigados a distribuir a tarefa por um grupo alargado. Mas, como cada página se
lê rapidamente - sôfregas - basta um dia dedicado a elas.
Um pouco antes, escreve-se: «Fechou os olhos e, lentamente, deixou que a água a
bebesse». É o fim do conto As Rosas, outro da mesma série iniciante
destes textos recolhidos em algumas obras da escritora, publicadas (entre 1991 e
2000) e dois avulsos.
Leia-se ainda «A cabina telefónica tinha a estranheza das coisas que não estão
no local certo, que não obedecem a uma ordem qualquer sem a qual a vida se torna
impossível, quase desesperada», um trecho do meio do conto d'As Beladonas.
Estes três pedaços estão completos sob o título Fairy Tales e ocupam
menos de um quarto do papel impresso. Mas são um aperitivo servido antes de um
prato mais forte, à disposição logo de seguida: outros seis contos que preenchem
mais folhas - Num Lugar Solitário até ultrapassa as 100 páginas - que
mantêm um ritmo adivinhado pelos mistérios desta autora tão assombrada por
filmes ainda muito a preto e branco de Alfred Hitchcock.
E, depois, andam por ali os mundos edificados pela loucura de uma sempre
presente Iris Murdoch. Ana Teresa Pereira regressa periodicamente a esta
senhora, como se tratasse de uma jangada que atravessa o mar entre si e o mundo
e último porto de uma viagem de circum-navegação que a vida lhe exige a cada
letra teclada.
Mas, regressando a Hitchcock, a páginas 282 a escritora fala de alguns filmes do
realizador. E obriga o leitor a relembrar Rebecca, porque ela existe ao
longo de muitas mulheres destes Contos de...; transgride com o leitor com
o Bogart porque os seus homens não são baixos como ele; pactua quando os mostra
belos e altos como Cary Grant; espicaça quando define Ingrid Bergman; divaga
quando salta para veludo azul dos cortinados; ou no momento em que recusa
entender Blue Velvet só porque é obsessivo e tem um filho e uma mãe que
só servem no final. Mas, voltando ainda a Hitchcock, há o cenário de
Notorious que está presente em tantos parágrafos da longa lista de escritos
que Ana T. P. teima em nos referenciar biograficamente.
Ainda bem que o faz porque o mundo não é tão claro como outros colegas de
escrita seus nos fazem crer. Mesmo que o homem Tom que perpassa em muitas
páginas não seja mais que um tom de escrita!
EXPRESSO n.º 1681, 14 de Janeiro de 2005
ACTUAL
As lágrimas das coisas
Íris Murdoch é pretexto para uma bela história de amor
Helena Barbas
Ana Teresa Pereira, Se nos encontrarmos de novo
Relógio de Água, 2004, 154 págs. € 11
Neste novo romance, Ana Teresa Pereira dá largas à sua paixão por Íris Murdoch. A história passa-se em Inglaterra, começa na neve de um Inverno, e as personagens são inglesas – de nacionalidade, modo de vida e idiossincrasias. Mas desenreda-se muito à maneira da escritora portuguesa, numa linguagem encantatória e envolvente.
Murdoch e a sua obra desdobram-se em muitos “leitmotives” sobre os quais o texto se vai construindo. Outros são logo dados no primeiro capítulo: “Talvez seja possível amar uma mulher por causa de um livro, de um poema sublinhado, de um filme a preto e branco, de uma casa, do olhar de um homem quando fala dela, da forma como o seu cão a espera. Da reprodução de um Mondrian na parede da sala.” São palavras atribuíveis ao herói, Byrne, um filósofo de Oxford a escrever um livro sobre Íris, que vai sendo seduzido pelos rastos deixados pela sua senhoria ausente – a aristocrata arruinada e pintora Ashley. Os títulos dos livros de Murdoch equivalem-se às frases deles retiradas, metáforas que se transformam em pistas e caracterizações: “Gabriel era uma das muitas personagens de Íris que se identificavam com tudo, que tinham consciência das “lágrimas das coisas”, e por esse motivo sentiam uma dor quase insuportável. “ Aqui a dor é surda. Nasceu das mortes e separações impostas pela vida. Insinua-se através dos objectos, das associações implícitas entre estes e os momentos de felicidade que testemunharam: uma reprodução de Mondrian na parede, uma toalha de quadrados vermelhos na mesa da cozinha. Por esta via tornam-se paradoxais.: são memória de sofrimentos enquanto marcos da ausência, mas a sua existência basta para que se possam reproduzir outros (os mesmos) momentos de felicidade – novos encontros que são sempre reencontros. Byrne é amado por Rose, Ed ama Ashley que amou e foi amada por Tom. O encontro entre Ashley e Byrne vem contaminado pelo passado de ambos, dando-lhe uma continuidade confirmada por afinidades electivas. As personagens decalcam-se umas nas outras, re-colando-se sobre os mesmos espaços, diante dos mesmos objectos. Estes tornam-se adereços de um cenário em que o drama amoroso pode ser reencenado com a mesma intensidade por actores diferentes. A narrativa tece-se assim da acumulação de repetições, até do mesmo acontecimento de várias perspectivas. Elementos que contribuem para o fabrico não de um puzzle, mais de um mosaico bizantino.
Contra Todas as Evidências a Alegria*
PÚBLICO Sábado, 29 de Janeiro de 2005
João Bonifácio
Se Nos Encontrarmos de Novo
Autor: Ana Teresa Pereira
Editor: Relógio d'Água
154 págs.,
"A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro." Há, pelo menos, duas boas razões para abrir este texto com uma referência directa a Barthes. A palavra "esfrego" talvez não pareça a mais apropriada a um livro cujo tesouro mais perene (e quase secreto) reside numa delicadeza e enlevo do dizer raras - mas a ideia, essa, não podia ser mais apropriada. Porque do princípio ao fim de "Se Nos Encontrarmos de Novo" Ana Teresa Pereira cria um pequeno mundo em que a linguagem almeja ao tacto, à sensação do tacto, um mundo em que apenas se entra pela pele. E porque, aqui, a linguagem, mais que servir a linearidade dos factos até que a ordem do tecer instale a trama da narrativa, procura uma espécie de sensacionismo, ou, para usar uma palavra cara a Ashley, impressionismo. E, se este texto se inicia com uma citação, é também por aquela que pode constituir uma das maiores razões para a adesão ou afastamento do leitor em relação a este universo: o recorrente recurso a citações e referências à pintura, ao cinema, à literatura. Mais um pormenor: "Se Nos Encontrarmos de Novo" não é (apenas) um livro sobre o amor, não é (apenas) um livro sobre a morte - é, contra todas as evidências em contrário, uma novela sobre a ressurreição.
Escreve-se "impressionismo" - e há, aqui, um duplo sentido na palavra, correspondendo à ligação entre a linguagem e a pele: "impressionismo", porque todo o mundo das personagens Ashley e Byrne (espelhos da mútua errância) orbita em torno do mundo da arte, "impressionismo" porque Ashley era pintora e, o livro encarregar-se-á de o demonstrar, todo o seu trabalho na pintura passa pelo tratar da luz. E "impressionismo", porque o fio e a meada (que existem) não se desvelam enquanto sequência de factos em que o posterior implica e determina o subsequente. Não, do aqui se trata é de "impressões", marcas na pele que uma palavra, um livro, um sorriso, um momento podem deixar: "Pode-se amar uma mulher por causa de um livro, de um poema sublinhado, de um filme a preto e branco, de uma casa, de um olhar de um homem quando fala dela, da forma como o seu cão a espera. Da reprodução de um Mondrian na parede da sala."
"Pode-se amar uma mulher por causa de". A frase vai ser repetida vezes sem conta. Como esta: "E ele tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês e tem cinquenta e dois anos." E as frases, estas e outras, vão voltar, como uma imagem esquecida na memória e revista obsessivamente à procura da oração perfeita, da proposição original. (Como Ashley e Byrne, Byrne que queria ser santo e abandonou tudo, Ashley que queria pintar, e não sabemos ao certo o que abandonou, como Ashley e Byrne que procuraram qualquer coisa e apenas a encontraram na morte, quando se encontraram de novo - "with a smile" -, como Ashley e Byrne que parecem procurar uma pureza original, impossível.) É este o método: impressões, momentos, efabulações de cada uma das personagens que aqui se concretizam, ali se alteram.
Byrne é irlandês e tem cinquenta e dois anos. Volta a Londres (depois de quê?, Retalhos, o que temos são retalhos e os retalhos vão-se unindo e o que temos no fim é uma trama indecisa e se calhar esse inacabamento diz-nos mais sobre ele do que um relatório obsessivo de minúcias, se calhar Byrne e Ashley são esse inacabamento) para escrever um livro sobre Iris Murdoch. Ed encontra-lhe um quarto numa casa. O que Byrne adivinha em Ashley pela forma como Ed fala dela só ele poderá saber. Byrne é irlandês e tem cinquenta e dois anos e Ed tem a mesma idade, conhecem-se desde os tempos em que Byrne deixou tudo para se tornar santo, haviam estudado juntos, e há uma pequena tensão entre eles à conta de uma paixoneta da filha de Ed, Rose, pelo amigo do pai. (Rose vai tornar-se amante de Ed. Tudo aqui é, apenas aparentemente, da ordem do mundano.) Ashley, a dona da casa, não está quando Byrne se instala. Ashley não tem por hábito estar.
Isto seria o suficiente para não haver acção, mas a acção, aqui, é a possibilidade que cada uma destas personagens tem de lidar com os seus demónios (os bons e os maus), de preencher os espaços da memória com as suas ficções pessoais.
E tudo, aqui, é esse jogo de autoficção. Compreendamo-nos: um romance é sempre uma ficção, mas estas personagens ficcionam-se, não por acontecimentos (quase nada acontece, quase tudo já aconteceu, Ana Teresa Pereira escreve apenas nos interstícios do desejo, no espaço ínfimo que separa a carne do pensar a carne, escreve acerca do ponto em que a carne se torna uma outra coisa, a carne aqui é uma desculpa), mas por inquisição - a si, aos outros. Símbolos e símbolos e símbolos: uma fotografia, uma reprodução de um quadro de Mondrian na parede da sala, tudo é motivo de "construção", efabulização - do outro, de si. "Pode-se amar uma mulher por". Pode.
Um capítulo acompanha Byrne, o seguinte acompanha Ashley. Cada capítulo roda em torno de um acontecimento mínimo, avança um pouco, explica isto, esconde aquilo. Símbolos e símbolos e símbolos e cada novo símbolo complementa o anterior. E as menções a quadros e versos, aqui, são uma trincheira: porque não é fácil a um leitor comum (imaginem um leitor comum, não nos peçam essa tarefa, seria penosa) entender que uma frase como "I always contradict myself" retirada de um filme como "Cruel Vitória" (e para isso era preciso que o leitor adivinhasse de onde vem a frase) não é uma citação gratuita, mas sim uma forma de avançar a narrativa no sentido em que Ana Teresa Pereira entende narrativa: um deambular em torno do deambular deste homem e desta mulher.
Cada capítulo desvela o anterior, corrige-o. Vamos sabendo que Ashley tem 35 anos. Que o rosto e a voz que Byrne tem são de Tom; que Tom, o tio de Ashley, deixou obra incompleta, um livro que nunca chegou a acabar e Ashley. Ashley é a obra incompleta de Tom.
E depois há a página 72, a terrível página 72.
E Byrne toma Ashley nos braços e pode-se amar uma mulher por tudo. Byrne e Ashley dizem um ao outro: "Eu amo-te." Barthes: "Eu amo-te: a figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas à proferição repetida do grito de amor." Talvez não se ame uma mulher ou um homem, mas o amor neles. Talvez Ashley ame um amor anterior (o de um certo homem à página 72, o do marido que perdeu, o da filha que perdeu) no amor de Byrne. Mas isto são apenas impressões de um leitor comum.
Toda a linguagem é um conjunto de marcas, dizia Derrida, mas talvez não só a linguagem. Talvez: "Talvez eu seja a escuridão na qual tu tinhas de mergulhar para renasceres", diz Ashley a Byrne - e Ashley está a morrer e Byrne sabe-o. Talvez se tenham amado para poderem morrer, talvez, mas só talvez, "Se Nos Encontrarmos de Novo" não seja uma história de amor ou de morte, talvez seja e lenta fragmentação da luz no momento da ressurreição.
"Contra todas as evidências em contrário..."
*dois versos de Manuel Gusmão: "Contra todas as evidências em contrário/ a alegria"
PÚBLICO, Mil Folhas, 10 de Setembro de 2005
O que morrerá comigo quando eu morrer
EDUARDO DO PRADO COELHO
Todos os escritores se inscrevem no território que eles próprios vão criando ao se inscreverem. Como Faulkner ou Juan Rulfo, em casos mais extremos. Mas muitas vezes isso é meramente secundário, não passa de obra para obra de um mesmo autor, não ganha espessura. É apenas uma questão de moldura. Noutros casos, não é assim: Ana Teresa Pereira é um exemplo privilegiado desta segunda hipótese.
Partiu de um esquema vagamente policial para enveredar por uma ficção fantástica em que a paixão e a destruição andam de mãos dadas. As personagens atravessam os livros, com os mesmos nomes ou outros. As referências literárias ou fílmicas, aliás insistentes, andam quase sempre em torno das mesmas personagens. O mais importante, aquilo que constitui a força mais exuberante e fecunda, encontramos em Iris Murdoch. Mas temos, por exemplo, Julio Cortázar. Jorge de Sena ou Dylan Thomas e William Irish. Como temos realizadores de cinema: Nicholas Ray, por exemplo; ou argumentistas, como Tonino Guerra. Ou actores: Katherine Hepburn ou Gabriel Byrne.
O que é interessante é que estas figuras acabam por ganhar todas o mesmo estatuto: são seres mágicos que se localizam neste território. Gabriel Byrne é uma personagem real ou apenas o actor de cinema? Tonino Guerra é o escritor ou uma amizade sonhada por Ana Teresa Pereira? Fica-nos a dúvida. Todos caminham por entre nuvens, vêm até nós, desprendem-se de nós. Quando Ana Teresa Pereira pergunta: “O que morrerá comigo quando eu morrer?”, introduz um elemento novo: “Que significa morrer comigo?” e ao mesmo tempo diz-nos que todo este território morrerá com ela, mortos e vivos, inventados ou captados no tecido concreto do quotidiano dos factos. Morre Henry James mas também Gabriel Byrne. É o momento da descoincidência: “Há um momento em que o rosto coincide com o que somos, e esse momento é agora”, escreve Ana Teresa Pereira. Momento mágico. Mas quando a morte se aproxima “chegou o momento de afundares os livros e renunciar à tua magia”.
O livro agora publicado por Ana Teresa Pereira intitula-se “O Sentido da Neve” e reúne um conjunto de crónicas que suponho que foram escritas para o PÚBLICO. Estas crónicas têm muito de autobiográfico e muito de brevíssimas hipóteses de ficção. Falam de livros, de filmes, de cidades e de rostos. O que a própria Ana Teresa explica: “Tu és feita da matéria dos livros.” Apetece-me dizer que é um livro muito belo, em que nenhuma das múltiplas referências (nem mesmo o pesado tema do envelhecimento) prejudica o sentido da dança, a leveza das nuvens, à ambivalência da neve, esse frio que queima.
Estas crónicas têm assim um lado coreográfico que nos transposta e exalta. Sentimos a felicidade de as ler. Elas possuem um tema que uma delas explicita. Como escreve Borges: “A não ser que exista uma memória do universo, em cada morte desaparece uma coisa ou um número infinito de coisas.” Esta infinitude singular é, sem dúvida, um dos sentimentos deste livro. O gosto pelas enumerações vai nesse sentido. As enumerações não têm fim, e essa dimensão do inacabado é nelas essencial. Mas ao mesmo tempo uma enumeração é a celebração das coisas naquilo que têm de único: uma cidade, uma casa, um animal, uma comida, um rosto (“este é um filme que não se pode contar, porque não se pode contar um rosto”).
E assim podemos ler: “O meu primeiro gato; o meu pai chegando a casa com um pacote de livros debaixo do braço; o canto dos pássaros às cinco da manhã; todos os meus gatos (e foram muitos); o meu cão Charlie a olhar para o mar; a minha cadela Jimmy a correr para mim; o Paul do Mar, uma linha de terra entre as montanhas e o oceano o teu rosto quando vinhas ao meu encontro na primeira manhã (e parecias dez anos mais novo do que na noite anterior, entre aquelas pessoas tão cinzentas); os teus olhos quando estás feliz; o teu sono cheio de monstros; a tua dor de estar vivo; Gloria Grahame na porta do apartamento vendo Bogart ir embora: ‘I lived a few weeks while you loved me.’ Ida Lupino roçando um sino de vento, a folhagem de uma planta, um ramo seco de árvore; Sterlong Hayden dizendo ‘don’t go away’ e a voz de Joan Crawford no escuro: ‘I haven’t moved’; o rosto de James Stewart quando diz a Kim Novak ‘and then I’ll be free of the past’ (...). Iris Murdoch a passear no nevoeiro de Londres com Elias Canetti; William Irish, sozinho num quarto de hotel, a escrever ‘O que viram os meus olhos ; um anjo de Rilke (belo e terrível) num castelo perdido; um anjo de Rilke sentado à minha mesa, fazendo bolinhas com as migalhas de pão(...); o rosto de Byrne na penumbra do apartamento; a neve caindo nos meus livros.”
Estas enumerações são combinações de números e Ana Teresa explica esta fórmula: “Se alguém me perguntasse o que me faz feliz, eu diria: os números. A neve e o gelo e os números. Os números negativos, o facto de que sentimos a falta, o desejo de algo; as fracções, a consciência dos espaços entre as pessoas; e a história continua, a mente humana vai além da razão e cria os números irracionais, e eles são infinitos, e depois os números imaginários, que a nossa consciência não pode apreender, como uma paisagem aberta, como um horizonte para o qual avançamos e que continua a retroceder.”
Mas um outro tema se cruza com esta questão das cifras - o do segredo. Todas as pessoas transportam um segredo: “O homem do autocarro, o caixeiro por detrás do balcão, todos têm o seu segredo. E alguns há cujo segredo não é inocente. Mas têm de usar a máscara até morrerem. Eu chamo-lhes: os Insuspeitos.” O que faz o encantamento deste livro têm que ver com esta paixão pelo segredo. Invisível, impalpável, diáfana.
Há um terceiro tema que gostaria de sublinhar: é o do anjo que desdobra o céu. Baseada num fresco de Andrei Rublev, “um anjo desdobra o céu, é só um fragmento, não posso ver o anjo (os anjos?). Do outro lado.” E mais adiante: “E havia a história dos anjos que desdobravam os céus no principio do mundo.”
“O Sentido da Neve” é um livro que se lê e relê com redobrado prazer. Porque nele os anjos continuam a desdobrar os réus. A leitura é isto mesmo.