Maria do Rosário Pedreira

(1959 - )

 

  Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa, em 1959. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade Clássica de Lisboa (1981). Possui ainda o curso de Língua e Cultura  do  Instituto Italiano de Cultura em Portugal, tendo sido bolseira  do governo italiano e frequentado um curso de verão na Universidade de Perugia. Frequentou durante quatro anos o Goethe Institut, foi professora do Ensino Básico, fez algumas traduções, proferiu conferências, etc.

Trabalhou como coordenadora dos serviços editoriais da Editora Gradiva. Foi directora de publicações da Sociedade Portugal-Frankfurt 97 e editora dos catálogos dos pavilhões oficiais temáticos da Expo-98, tal como redactora das publicações inerentes aos Festivais dos 100 Dias e Mergulho no Futuro, promovidos durante a Expo-98. É editora da "Temas e Debates" (grupo Bertelsmann) desde 1998.

   
 

Como escritora, tem já publicados vários trabalhos de ficção, poesia, ensaio, crónicas e literatura juvenil, procurando neste último género a transmissão de valores humanos e culturais. O seu romance Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu está construído em torno de uma identidade perdida, onde solidão e feminino são as peças fundamentais. Também o seu livro de poesia A Casa e o Cheiro dos Livros institui a casa como o lugar feminino que acumula esperas, o cheiro dos livros, os restos do amor, os gatos que aí se resguardam da chuva. Para a Autora – já distinguida com alguns prémios literários – , a casa pode ser considerada como um mundo onde se encerra tudo aquilo que vai perdurando, mesmo que sob a forma da memória, nostalgicamente.

                           (Instituto Camões)

No início de Setembro de 2005, abandonou a Temas e Debates, cuja direcção editorial assegurou até essa data, para ser editora da QuidNovi.

No início de 2010, assumiu funções no Grupo editorial Leya, onde, segundo foi anunciado, irá editar novos autores portugueses.

 

                 Outra página neste site sobre a autora aqui

 

   

 

Obra

Poesia

Água das Pedras, (sob o pseudónimo de Maria Helena Salgado), Setúbal: Folha d'Hera, 1989.

A Casa e o Cheiro dos Livros, Lisboa : Quetzal, 1996.

O Canto do Vento nos Ciprestes, Lisboa: Gótica, 2001.

A Casa e o Cheiro dos Livros, 2.ª edição, Lisboa : Gótica, 2002.

O Canto do Vento nos Ciprestes, 2.ª edição, Lisboa: Gótica, 2002.

Nenhum nome depois, Lisboa: Gótica, 2004.

 

Prosa

Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu ( romance), Lisboa: Gradiva, 1993.

Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu (reedição), Lisboa: Quasi, 2002.

Literatura Juvenil

A Ilha do Paraíso. Lisboa: Verbo, 2000.

De parceria com Maria Teresa Maia González, 20 títulos publicados, da colecção juvenil "O Clube das Chaves" , Verbo, (1990-1998).

Da colecção "Detective Maravilhas" (série juvenil), Lisboa: ed. Verbo.

- Vol. I - Detective Maravilhas Dá Conta do Recado, Abril 1997.

- Vol. II - Detective Maravilhas entre Culpados e Inocentes, Junho 1997.

- Vol. III - Detective Maravilhas Luta contra a Mentira, Outubro 1997.

- Vol. IV - Detective Maravilhas com a Consciência Limpa, Maio 1998.

- Vol. V - Detective Maravilhas num Drama Familiar, Outubro, 1998.

- Vol. VI - Detective Maravilhas com o Credo na Boca, Março 1999.

- Vol. VII - Detective Maravilhas com o Coração aos Saltos, Julho 1999.

- Vol. VIII - Detective Maravilhas Rumo à Vitória, Outubro, 1999.

- Vol. IX - Detective Maravilhas Descobre as Diferenças, Março 2000.

 

                       

 

14-2-2009

valter hugo mãe

Declaração de Amor a Maria do Rosário Pedreira, no dia de S. Valentim de 2009

 

Ler aqui

 

 

 

21-9-2012

Poesia reunida, Quetzal, ISBN 978-989-722-047-0, 257 pgs.

 

 

 REUNIÃO

Agora, já se pode dizer: a minha Poesia Reunida está pronta e à venda desde sexta-feira (o que permite, de resto, um post egocêntrico e algo preguiçoso). Agradeço-a antes de mais à editora Lúcia Pinho e Melo, da Quetzal, que acolheu o projecto com entusiasmo e profissionalismo, mas agradeço-a também a todos os que, nestes últimos anos, me têm escrito e abordado, perguntando onde podem encontrar os meus livros (se calhar, se não fossem estes últimos, não me tinha mexido). O livro está lindo (é, pelo menos, a minha opinião) e inclui um prefácio de Pedro Mexia, os três livros esgotados e um livro novo que dá pelo nome de «A Ideia do Fim». Aqui fica então dada a notícia a todos os interessados (que me desculpem os que não gostam de poesia).

(Apresentação da autora no blog http://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt )

 

 

 

 

 

 

 

 

Canto em memória de um amor


Ana Marques Gastão          


"O Canto do Vento nos Ciprestes" é o novo livro de Maria do Rosário Pedreira. Poemas sobre o depois do amor.

Quis escrever neste Canto do Vento nos Ciprestes uma espécie de prelúdio, amor e morte?
Quis escrever uma história de amor. No outro dia, ouvi uma frase de Yannis Ritsos que define o livro: "Nada substitui o amor, senão a memória do amor." Não trato aqui de amor e morte, mas do amor e da memória do amor. Falo da morte, mas como metáfora extrema da perda. Às vezes, é preciso morrer para se voltar a viver uma história.

O livro constrói-se como uma composição musical?
Quis escrever um livro lógico. Poderá lá estar o prelúdio e a morte, mas a verdadeira história de amor vivida é o capítulo que falta. Fala-se da expectativa, do  pressentimento de que as coisas já não estão bem, do desespero, da vontade de morrer, porque se pressente que se vai perder o Outro, da perda e da memória. Não se escreve sobre o que se vive de bom. É um livro mais obscuro do que luminoso; uma história de uma relação amorosa não necessariamente feliz, mas sublime, e que provavelmente só acontece uma vez na vida.

Mas este não é um livro obscuro, apesar da nostalgia...
Talvez porque em vez do amor exista a memória, que o exalta. Mas há um lado do desejo, do pressentimento e da saudade.

O livro abre-se com A Criação do  Mundo - no sentido de uma cosmogonia - e encerra com Anima Mundi, poema aberto ao fantasma da morte...
Achei, na minha arrumação dos textos, que a criação do mundo tinha um motivo. A certa altura, no poema, diz-se que Deus criou o Homem para não estar sozinho. Este texto existe como um prelúdio da necessidade do Outro. Não vivemos sozinhos e esse será o sentido da vida. O poema final, que escrevi em homenagem a um fotógrafo, está presente porque já se disse tudo depois da história de amor. As palavras acabaram, não é possível falar mais, só há imagens, memórias, retratos. Não será o que fica de todas as histórias de amor?

Mas, no seu livro, vão-se, entretanto, desenhando pormenores de uma vida com amor dentro...
São pequenos momentos que tornam o amor eterno, apesar de não existir um bloco independente que fale só do que se está a viver no quotidiano. Mas esses episódios mínimos fazem as coisas grandes. Gosto dos pormenores. Posso amar ou embirrar por causa deles. Não gosto da Florbela Espanca por ter encontrado, na adolescência, um verso em que ela começava por dizer que era a moça mais bonita do povoado. Então não a quis ler mais.

Fala de um amor maior do que as palavras. Não são elas um lugar de encontro nesta relação?
Quando o amor é sublime, não há palavras onde ele possa caber, mas, se calhar, a escrita liga o Eu e o Tu. Apesar de as palavras serem insuficientes no amor, são uma das suas causas. Mas essas dir-se-iam coisas que nos escapam a nós autores.

uma premonição da morte?: "O espelho avisa-me sobre a morte"; "sei que te perderei"...
Ferlinguetti diz que há sempre alguma coisa que anuncia; existe sempre um pormenor que nos avisa de que aquele é o princípio do fim. E isso faz entrar o Eu em pânico, que já sabe, muito antes de o amor morrer, da sua morte. Há, de facto, uma premonição. Quando o Eu pensa que andará o Tu a fazer quando ali não está é porque tem medo de o perder. Esse lado acaba por provocar mais rapidamente o fim.

Este seu livro acentua uma tendência narrativa, anunciada já em A Casa e o Cheiro dos Livros. Pode-se considerá-lo um curtíssimo romance epistolar?
Epistolar não sei, minirromance gostava que fosse. Desejaria que o lessem do princípio para o fim. É costume folhearem-se os livros de poesia, mas em O Canto do Vento nos Ciprestes há um fio narrativo que se perde se não o seguirmos. A arrumação dos textos tem a ver com uma história.

O livro é dialógico e, por isso, talvez seja epistolar. O romance entre Heloísa e Abelardo passou pela correspondência...
Talvez possa ser entendido como uma longa carta de amor. Até é uma ideia interessante. Mas gostaria que ele fosse, sobretudo, visto como uma história amorosa com princípio, meio e fim.

Há aqui uma dupla afirmação: a do amor como canto; e a do amor como desordem...
Não encontro tanto o amor que embala, vejo-o mais como desordem no sentido do Eu e canto no sentido do Tu. O facto de o Eu (mais envolvido que o Tu) construir a sua morte, isso sim, poderá ser perturbador. É uma espécie de desistência antes do fim.

Com a sua morte, Werther pára o tempo. São átomos de eternidade que fazem o amor?
A morte pode ser redentora, porque salva o que é límpido. O mau esquece, o bom não. Eterniza-se o amor, mesmo que ele morra no livro, pelo qual passam por outras histórias, cinzas que evocam esta chama. A morte limpa, aqui, a memória da dor, resta o belo.

É possível arrumar a dor?
Nesta história, a dor fica arrumada. Não sei se estamos a falar de mim, mas a minha escrita é sempre uma terapia. Quando escrevo arrumo uma série de dores.

Surge o amor como "compensação da morte, seu correlativo essencial" (Schopenhauer)?
Só acredito no amor se alguém for capaz de morrer pelo Outro. Não sei se são faces da mesma moeda ou se se trata de uma compensação. A morte aqui até compensa em relação ao amor. Amor e morte estão ligados.

"Tenho alma de ficcionista, os poemas têm uma história"

O amor é isso que diz: querer ir no lugar de quem parte?
O amor sublime sim, é dizer: "Se a morte te vier buscar, prefiro ir eu." A morte neste livro dir-se-ia uma metáfora da perda. O choque de uma morte real é brutal, mas num amor como este, quando essa pessoa desaparece, o desgosto pode ser igual. Fotografias há, lembranças também, mas a voz não regressa.

Isolda diz: "Perdemos o mundo e o mundo perde-nos a nós." É isso o amor, neste livro?
A morte do Eu é o desespero de querer evitar assistir à morte do Outro. Poderá até ser uma reacção típica de um comportamento adolescente, de defesa. Embora o Eu faça o seu próprio luto, volta sempre a falar e, nesse sentido, não perde o mundo.

Do ponto de vista formal, há uma preocupação de fluidez...
São mecanismos inconscientes. Talvez a fluidez tenha a ver com a história que este livro é.

A fluidez também auxilia o teor romântico do livro...
Não gosto de falar de influências. Sou, no entanto, uma leitora assídua de Yeats, chamado o último dos românticos; gosto de Robert Frost, que cultiva a simplicidade. Aprecio poetas que se fazem entender. Tenho, por outro lado, alma de ficcionista. Os poemas não são só imagens, têm história.

Esta não é uma poesia exclamativa, apesar da intensidade.
Exclamativa não, mas exaltada. Talvez o lado sombrio corte essa possibilidade. Mesmo os poemas mais alegres são descritivos. Não vou dizer que haja um autodomínio, mas há uma elaboração. Tudo vem do impulso - eu sofri cada um destes poemas -, mas existe um trabalho posterior.

Bataille falava do amor como um movimento convulsivo. Transforma-o, neste livro, mesmo na perda, nalguma serenidade...
O que é exaltante dá uma grande serenidade. As relações mais tempestuosas oferecem-nos momentos de uma grande paz interior. Completamo-nos por meio da pessoa que amamos.

E que nunca possuímos?
Não gosto da palavra possuir. Nem acho que precisemos disso.

No sentido de nos pertencer...
Nesta história, a pertença é aquilo que de menos se fala. Mas na maioria das histórias de amor, há um caminho nos dois sentidos. Aqui, havia alguém que queria dar e quem não queria receber.

Lacan dizia que "desejar é dar o que não se tem a alguém que não o quer". A frase aplica-se ao seu livro?
A frase poderia ser a definição do meu livro. O Eu prefere morrer a ficar sem a pessoa que ama. O poema que abre o livro explica-o: o Outro é fundamental. No fundo, queremos todos ser amados.

 

Diário de Notícias, 2-5-2001             

               

 
 

 

   

 

O amor como incompletude



"O Canto do Vento nos Ciprestes", de Maria do Rosário Pedreira, exibe um sujeito afundado na sua própria dor amorosa, arrastada por um clarão cortante, nocturno. Uma publicação da Gótica


O "segredo" de O Canto do Vento nos Ciprestes, de Maria do Rosário Pedreira, é o obstáculo. O obstáculo, inerente a qualquer amor, está sempre presente nesta espécie de romance poético, com incidências que poder-se-iam considerar epistolares. O simbolismo da perda, da morte de uma paixão surge aqui como condenação tornada evidente pela exigência da escrita: "[...] o dia treme na linha/dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse eu morrer,/mas ouço-te a respirar no meu poema".

O realismo do verbo nestes poemas de tendência narrativa, descritiva, destas histórias que se sucedem ininterruptamente numa harmoniosa circularidade, reside no canto. Porque amar é cantar, o amor reside no canto, quem canta merece o amor, mesmo que ele possa vir a morrer.

Maria do Rosário Pedreira ousa penetrar na vertigem de uma paixão que conserva em si o sentimento, mesmo já sem o Outro, após ter passado pelo pressentimento da perda. Não é o amor uma frutuosa incompletude? O desejo dir-se-ia, por outro lado, uma nostalgia - do que fomos e do que ainda misteriosamente somos...

E a poetisa sente a morte chegar, e quer ir no lugar do amado. O poema traz, desse modo, em si o fundamento da comunidade, a da conservação do Tu no Eu, a realidade que não se adapta à ausência e se ajusta ao irredutível: "Não te demores - o sol anda a deitar-se sem pudor/em todos os telhados, e a luz esmorece, e o luto/da noite alonga a espera."

Estranhas paisagens que conduzem o leitor à "enfermidade da morte", revelada aqui como metáfora de uma extrema perda. O discurso poético, torrencial, sem ser retórico; sentimental, mas vigiado, exibe um sujeito afundado na sua própria dor arrastada por um clarão cortante, nocturno.

A catástrofe do amor invade este livro abissal. Roland Barthes fala mesmo em "pânicos", em algo que não continua, em situações sem regresso: "Projectei-me no Outro com uma força tal que, com a sua falta, já não posso deter-me, recuperar-me: estou perdido para sempre."

Esse luto atravessa também este Canto do Vento nos Ciprestes, com uma desmesurada fadiga na sua totalidade impossível, na diferença esboçada entre dois destinos. Na sua leve densidade, o livro da também autora de A Casa e o Cheiro dos Livros não se reduz a fáceis registos psicológicos. Fala do amor como espera, como nostalgia, revelando-nos que a paixão escapa-se da possibilidade.

Separados e unidos - não obstante o paradoxo -, assim, eternamente, estão este Eu e este Tu com a morte entre eles, porque o amor não suprime a morte, e a autora escreve-o. Todo o episódio amoroso neste livro reveste-se, assim, de um significado, conduzindo o leitor a uma história trágica, ordenada no seu caos. Persiste, no entanto, a sensação de que a plenitude existe e que a memória não deixará jamais de a fazer regressar, porque o sentimento é afirmado enquanto valor: "Nunca te esqueci - é este um amor maior/que atravessa a vida e resiste à cicatriz do tempo."

Não há aqui lugar para um tempo do amor, o discurso é sempre o da sua memória. Não ficam nestas páginas o deslumbramento, a exaltação, a projecção de um futuro pleno. O Canto do Vento nos Ciprestes atravessa, sim, uma espécie de longo túnel premonitório no qual viajam a ameaça da morte e o tremor que modifica o "idílio", porque tudo se dilacera: "[...] Por isso, vou para casa/e aguardo os sonhos, pontuais como a noite."

Maria do Rosário Pedreira faz do "em ti" ponto de partida e chegada. "Amor, que a amado algum amar perdoa", escreve Dante, reconhecendo que esta é uma luta de morte. A poetisa sabe, por outro lado, que o amor dir-se-ia também angústia da perda.


Ana Marques Gastão          

 

Diário de Notícias, 9-6-2001  

 

 

       

 

    DNa

 

           

                20 de Abril de 2002

 

 

 

        Sem ti

                                     Depois de “O Canto do Vento nos Ciprestes”, a Gótica reedita a obra de estreia de Maria do Rosário Pedreira, um belíssimo livro que se encontrava esgotado: “A Casa e o Cheiro dos Livros”. É uma poesia da casa, do abandono e da ternura.

 TEXTO DE PEDRO MEXIA

Podemos definir a poesia de Maria do Rosário Pedreira (n. 1959) como uma poesia de ternura. Nos dois livros publicados, “O Canto do Vento nos Ciprestes” (2001) e o anterior “A Casa e o Cheiro dos Livros” (1996), agora reeditado, estamos perante uma poética do sussurro, do lamento e, no segundo livro, da elegia. Já aqui me ocupei da obra mais recente, detenhamo-nos agora sobre o livro de estreia. “A Casa e o Cheiro dos Livros” é, no essencial, um livro de interiores; de interiores das casas, como o próprio título sugere, mas também do interior de cada um no processo amoroso. Com mais propriedade, é apenas o “eu” que fala, e só dele temos notícias, até porque o “outro” partiu, está de partida, há-de partir mais tarde ou mais cedo. É da transitoriedade do amor (ou da relação amorosa) que este livro nos fala, e essa transitoriedade é apresentada na perspectiva “antiquada” ( e “antiquadamente feminina)de quem vê nessa transitoriedade um retrocesso. Para quem ama, o carácter efémero do amor não é um avanço civilizacional, mas, pura e simplesmente, uma tragédia. É claro que na poesia de temática amorosa já temos há séculos o modelo da “alba”, isto é, do poema que retrata a difícil separação dos amantes quando o dia desponta. Mas seria erróneo definir os poemas deste livro como albas; se essa dor existe, ela corresponde não à separação provisória mutuamente dolorosa, mas à ruptura sentida como trágica apenas por uma das partes, a mulher. “A Casa e o Cheiro dos Livros” é tudo menos um livro feminista.

Nestes poemas, abundam os sinais do fim, que ao mesmo tempo são marcas de lembrança: a cama desfeita, retratos, livros interrompidos a meio, perfumes. O cheiro dos livros é o cheiro do amado nos livros e em todos os objectos que ficaram para trás como testemunhas. Aquilo que faz bem também faz mal, segundo a lógica de que o que magoa mais na infelicidade é a lembrança dos tempos felizes. E a infelicidade insinua-se nestas páginas, dando a entender que estamos perante uma visão do mundo de cariz romântico, isto é, que concentra no amor toda a sublimação e a justificação da existência (Cesare Pavese tem magníficas páginas sobre o assunto).

É certo que o romantismo nunca deixou de marcar a poesia portuguesa, e que depois de uma geração anti-lírica os novos confessionalismos trouxeram de novo à tona o sofrimento amoroso. Mas é curioso que esse mote existe sobretudo nos poetas masculinos, enquanto as mulheres foram sempre mostrando alguma resistência a esse discurso que o feminismo marcou como sendo de cariz machista, na medida em que idealizava e por isso adulterava e aprisionava as mulheres. Se pensarmos nas autoras mais recentes, percebemos como esse lirismo amoroso, mesmo se não escapa a laivos românticos, aparece muito sabotado, como acontece com Ana Luísa Amaral e Adília Lopes. Nesse sentido, o discurso poético de Maria do Rosário Pedreira pode parecer bizarro ou, pelo menos, deslocado. Não me parece que exista nenhum elemento programático nessa “recuperação” romântica, mas que se trata apenas da expressão mais fiel da personalidade da autora.

Este tipo de visão amorosa  tem a sua expressão máxima num entendimento solene e ritualista das palavras e das coisas. Nenhum espaço para a ironia (a não ser talvez alguma ironia negra) nem para a trivialidade, nenhum gesto ou objecto que não seja investido de uma carga ritual, até pela sua incessante aparição ou recorrência. Recordam-se momentos de partilha, de atenções e mimos, momentos que se esfumaram. A cama e a casa são os espaços que se tornam simbólicos do passado feliz e do futuro crescentemente improvável. Os lençóis novos, por exemplo, exprimem tanto um virar de página como um último contacto obsessivo com a proximidade de outrora. Mas há também um espelho partido que prenuncia fatídicos sete anos de azar e um gato que ao mesmo tempo que espera  ainda o homem a quem se habituou, sugere também uma indiferença lânguida. Porque a verdade é que ela ainda aguarda que ele regresse, espera ainda, embora noutros poemas cronologicamente anteriores lhe peça que não parta ou declare o medo de que ele não volte. Noutro poema, porém, posterior já à perda da esperança, ela entoa um “se voltares” que já não é esperança mas uma litania de desespero. A passagem do tempo, boicotada na sua linearidade pela arrumação dos poemas, tem a sua concretização nos pertences dele ou que se tornaram como que dele (“a tua cadeira”), no cheiro dele na casa, no silêncio, e na leitura, que aparece como uma espécie de propedêutica do amor, manchada para sempre pelo fim desse mesmo amor (mas também uma possível fonte de consolo):

 

“Eu volto

 

à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo

os livros, escondo as cartas, viro os retratos

para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós,

sei que não voltas, e ouço dizer que as aves

partem sempre assim, subitamente.” (pág. 69).

 

E mais à frente:

 

“Volto à casa e demoro-me nos quartos frios do silêncio.

Esconderam os retratos dentro dos livros. E os livros

nas gavetas. E fizeram as camas para sempre de lavado” (pág. 72).

 

Mas também existe um mundo exterior à casa nestes poemas, o mundo do verão, da praia e das sereias, de ondas e marés, dos ventos perigosos e depois das aves que partem. É como que o frágil mas sublime mundo de Sophia transtornado pela paixão e pelo abandono. O verão é ao mesmo tempo o esplendor e a precariedade, aquilo que no amor é natural ou, por outra, aquilo que nele é natureza. Vale a pena acrescentar que MRP consegue nalguns poemas delinear um depurado e delicado erotismo, feito de olhares, sombras e cheiros, e de uma nomeação intensamente lírica dos gestos e do corpo humano (veja-se esta formulação: “Tenho um decote pousado no vestido”). Num esforço de auto-convencimento diz a si mesma que a este corpo se seguirão outros, o que, podendo ser verdade, não paga a memória desse corpo que, como se diz a dado passo, ninguém conheceu nem conhecerá tão bem (é curioso como o poema que começa “Não voltei a esse corpo” lembra o poema de Yeats onde este diz à amada que ninguém a amou nem amará nunca como ele).

O lirismo deste livro exprime-se de uma maneira relativamente convencional em termos de sintaxe, dicção, etc., preocupado como está sobretudo em evocar atmosferas e paixões. Estas recordações precisas mas ao mesmo tempo lacunares procuram um “lugar mais sereno para a memória” que, no entanto, não recusa o “pathos” e, portanto, o tom patético. Esse “pathos” exprime-se de tal modo que um poema se chama, apropriadamente, “Fado”, enquanto outros lembram um dos mais comoventes poemas de Drummond de Andrade (não exactamente um poeta romântico”, o “Caso do Vestido”. Há também símbolos e metáforas, alguns de tonalidade bíblica: a última ceia, a figueira, o filho pródigo que partiu mas talvez regresse. A mulher é mãe, é irmã, é amante sofredora a cada momento, com medo que ele adormeça, que parta, que não volte. E no entanto ela espera (“embora secretamente”), enquanto deseja que a mulher que se segue proteja o homem que ela perdeu. É esta desesperada ternura por um amor passado e por um sofrimento que talvez passe, embora não passe nunca, que faz o encanto deste livro:

 

Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram

Para o sul à sua procura, deixando um lugar vago

à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,

o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória

das suas biografias incompletas. Os amigos

 

desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol

e os amantes que chegam ao fim da tarde

jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas

que os amigos confiaram até setembro, quando regressam

 

trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.

Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes

deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,

uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os

amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa. (pág. 19)

           

 

                                                             

O outro lado do mundo

Liège
Por MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
PÚBLICO  Sábado, 13 de Outubro de 2001

Liège é uma cidade de província num país (a Bélgica que me perdoe) já de si provinciano. E, depois de a ter visto de relance, fiquei com a sensação de que ninguém vai a Liège se não tiver mesmo de lá ir. E eu tinha.

Era em Liège que decorria a Bienal Internacional de Poesia - subordinada ao tema "Os Tambores da Paz" - e a minha viagem não estava, pois, relacionada com turismo, mas com trabalho. Os poemas que levava na mala não eram, diga-se de passagem, muito pacíficos (em nenhum sentido), mas, ao fim de um ano de "stress", lá ia eu a Liège ingenuamente à procura de uma certa paz, se não para o mundo, pelo menos para mim. Claro que em Liège há um rio - que divide a parte mais interessante da cidade da menos interessante - e que um rio, para quem viveu sempre em Lisboa, é essencial para nele pousarmos os olhos e nos sentirmos mais descontraídos; o problema era a Bienal ocorrer do lado errado do rio...

Temi, pois, o pior quando saí da Gare des Guillemins e a minha primeira impressão da cidade não augurou nada de bom, com a chuva a tamborilar nas calçadas cinzentas ao ritmo oposto dos tão esperados Tambores da Paz. Contudo, depressa descobri que levava comigo uma vantagem pacificadora: a companhia do poeta José Tolentino Mendonça (que é capaz de devolver a calma a qualquer um e, além disso, tem um sentido de humor contagiante) e a do representante do Instituto Camões em Bruxelas, João Nuno Alçada, que é uma autêntica abelha-mestra nos bastidores destes eventos, produzindo incansavelmente o melhor mel para os "seus" autores.

Tudo isso compensou largamente os discursos repetitivos que a Bienal proporcionou e que raramente escaparam aos recentes atentados ao World Trade Center e ao lugar-comum dos poetas perseguidos por ditadores. E, porque a poesia estava a ser esquecida, valeu-nos a prestação de um flamengo que, entre outras coisas, contou que Homero cantava para reis bárbaros, Virgílio escrevia na época dos mais sanguinários césares e Auden, quando lhe perguntaram o que fizera contra o fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, respondeu apenas: "Montei guarda às fronteiras da língua." A leitura de um texto por um poeta da Eritreia (que cantava e se meneava enquanto lia na sua língua e a quem o José Tolentino passou a chamar, olhando para mim cumplicemente, "o 'teu' eritreu") foi também, ao fim de um longo dia, um pouco da paz que eu fora buscar a Liège. Mas não toda.

Já no dia seguinte, à espera de descermos para o jantar, o José Tolentino e eu olhámos o rio de Liège dos enormes vidros do Palácio de Congressos e ali estivemos a dizer, um ao outro, poemas de Cesariny. Isso sim, era a paz que eu procurara. Ou quase toda.

Porque, quando fomos ao outro lado da cidade, a catedral de São Tiago reconciliou-me com o mundo; uma exposição de Raoul Dufy acabou por me reconciliar com Liège; e a visita a uma livraria, como não podia deixar de ser, foi a cereja no bolo: ficámos horas a fio perdidos nessa paz de papel, com o José Tolentino a convencer-me a ler e publicar Christian Bobin (dizendo que todas as mulheres que conhece adoram) e eu a dar-lhe razões para comprar os livros de Jacques Roubaud. Quando saímos, senti-me estranhamente calma, refeita, pronta para mais um ano de 'stress'. A livraria - nada é por acaso - chamava-se Pax.