16-6-2001
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
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LINKS:
O
Ser Suspenso: sobre António Ramos Rosa e Maria do Rosário Pedreira
Rui Magalhães
Nota crítica de Maria João Cantinho sobre "O Canto do Vento nos Ciprestes"
Pode ver um dossier e uma entrevista da autora aqui
As raparigas amam muito. Riem atrás das mãos uma manhã inteira para esconder o vermelho dos beijos que alguém lhes roubou e um nome que vão deixar escapar entre as primeiras palavras que disserem. Vestem do avesso os
aventais de chita e fazem o leite sobrar do fervedor e o caldo ser mais salgado do que o mar. Mas
é bonito vê-las caminhar descalças ao longo do corredor, como se pedissem um par para dançar. As
raparigas amam tanto. Sentam-se em rodas de segredos uma tarde inteira e esquecem no tanque os colarinhos sujos das camisas, e os cueiros, e uma barra de sabão a |
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derreter-se como o seu coração.
Mas é bonito vê-las beijar a boca ao espelho no quarto das traseiras e também a outra boca no retrato que a seguir escondem amordaçado na algibeira, não lhes cobice alguém o que não tem. As raparigas amam
de mais. Deixam-se ficar sem dizer nada uma noite inteira, bordando no linho dos enxovais letras secretas ao calor do fogão. E picam os dedos
distraídos nas agulhas que usaram para descobrir o sexo de cada filho que terão num jogo que jogaram entre elas à tardinha. Mas é bonito
vê-las ao serão, quando o vento as chama atrevido da cozinha e dão um pulo seco na cadeira, e largam o
bordado e a lareira, e correm até à porta a colher beijos que lhes deixam risos nos lábios tão vermelhos como as mais doces cerejas deste verão.
(págs. 50-51)
“Nenhum nome depois", edição da Gótica, 74 pág., 11 €, Fevereiro de 2004. ISBN 972-792-101-9 |
3 de Março de 2004
A FICHA
Nenhum Nome Depois
Autor.
M. Rosário
Pedreira
Editora.
Gótica
Páginas.
76
Género.
Poesia
Preço.
e 11,00
Classificação.
****
Amando o amor num crescendo romanesco
ANA MARQUES GASTÃO
Muito
mais numerosas na história da poesia amorosa são as páginas de lamento - que
abordam o ser na perspectiva da separação - do que as de júbilo, embora o amor
triunfante possa ter tido, ao longo dos tempos, textos decisivos. Maria do
Rosário Pedreira seguiu esse caminho, desde o belíssimo A Casa e O Cheiro dos
Livros (1996) ao não menos conseguido O Canto do Vento nos Ciprestes
(2001). Acaba agora de publicar Nenhum Nome Depois (2004).
Não entrando em ruptura com o passado - o que pode constituir um risco -,
exprime-se, neste livro, uma forma de afectividade desmesurada perante a
impossibilidade de fruição do amor como «sensação de tudo», na acepção hegeliana.
É da antecipação da morte, a do sentimento como possibilidade ontológica, que
fala o sujeito poético, na consciência de uma perda, da ausência, do abandono,
da memória do que outrora foi desejado e hoje se configura como obstáculo. Não
se trata apenas da edificação de acontecimentos psicológicos no plano das
palavras, mas de uma tentativa de assumir a descontinuidade do fulgor e de viver
a linguagem como experiência amorosa e poética fundamentais.
O livro de Maria do Rosário Pedreira constitui-se com um quarteto, dividido em
Os Nomes Inúteis, Os Nomes Interditos, Os Nomes de Família
e Nenhum Nome Depois. Um nome ou uma voz podem expressar-se em diferentes
tempos e espaços, mas nesta obra dir-se-iam a causa de uma (im)permanência, a da
sua significação, a de uma queda que não é contorno ou substância, mas função de
uma existência do sujeito poético abalado pela catástrofe. Mais do que tudo
ama-se o amor num crescendo romanesco.
Os nomes são marcas arbitrárias com as quais nos fazemos entender perante os
outros; pontos de referência no fluir do pensamento. Em geral, podem ser
compreendidos como signos ou em função das ideias que designam.
Assim, na paisagem deste livro, vamos encontrando a inutilidade de um nome:
inútil nomear o que não permanece e se esvai: «Ninguém esquece um corpo que
teve/nos braços um segundo - um nome sim.» Virá depois o nome interdito: o
nosso, o de um destino baço, e aquele que não é reconhecível: «(...) limito-me a
adivinhar um nome para o que não sinto e/recuso-me a acreditar que seja o teu».
Surgirá ainda o nome de família, de que somos herdeiros, e o do pai morto, ou da
mãe viva.
O último capítulo, Nenhum Nome Depois, atravessa o livro no registo da
ausência, do temor da morte («Quis-te/ainda quando a morte era já uma/
transparência, lente invisível para o/escândalo»), na junção dos desamparos. É
solitário o amor, porque incomunicável e amar dir-se-ia uma dinâmica
desconcertante, vertigem de identidade e de palavras. Daí a importância do que é
ou não nomeável.
Menos contido do que as obras anteriores, este conjunto de poemas persiste em
revelar a autora como um nome relevante da sua geração. A escrita de Maria do
Rosário Pedreira aproxima-nos, na sua atenção ao mínimo, concreticidade tão
feminina, de uma fragilidade emergente perante a instabilidade do Eu. Nessa
revolução súbita com a qual o sujeito poético se confronta, vai reconstruindo o
mundo. A ideia de amor é, para Agamben, «viver na intimidade de um ser estranho,
longínquo e mesmo imperceptível, de tal forma que o seu nome o contenha
inteiramente.» O amor, neste livro, revela-se como desejo e mal. Até que a
voragem do vento o apague no cansaço da dor.
Todos Os
Nomes do Amor
PÚBLICO, Sábado, 03
de Abril de 2004
Fernando Pinto do Amaral
É quase sempre difícil e arriscado escrever poesia de amor. Sendo o género mais praticado desde a adolescência - e por isso presente na produção juvenil de muitos poetas - , o lirismo amoroso costuma implicar alguns perigos tanto ao nível de uma certa monotonia temática (encontros e desencontros, desejos impossíveis ou concretizados, etc.) como no campo da própria linguagem, geralmente algo codificada e por vezes sujeita aos habituais lugares-comuns eróticos e sentimentais.
É por causa destes riscos que se torna mais grato saudar a publicação do último livro de poemas de Maria do Rosário Pedreira (n. 1959), que escapa bem a tais armadilhas e se dá a ler como uma bela colectânea de textos em que o amor ultrapassa a dimensão mais óbvia, servindo quase sempre de ponto de partida para um conhecimento do enigma que o move, nesse infinito labirinto de relações humanas a que só o amor pode conferir alguma hipótese de sentido.
Revelada em 1996 com "A Casa e o Cheiro dos Livros" e prosseguida em 2001 com "O Canto do Vento nos Ciprestes", a poesia de Maria do Rosário Pedreira tem-se distinguido por um tom profundamente intimista, feito de palavras para repetir em voz baixa, segredadas em confidências cujos destinatários se pressentem a cada instante, através de pequenos sinais dispersos pelo tempo e pelo espaço das memórias que um dia lhes deram plena substância, e cujo fulgor persiste sempre, como uma cicatriz que ainda pode doer quando lhe tocamos: "Entre nós há uma ferida que já não / sangra, mas não sara - um amor / que perdura e está perdido" (p. 33).
Envolvendo sempre, em maior ou menor grau, uma ideia do amor como ferida sem cura, este livro oferece-nos quatro possíveis declinações para essa dor, agrupadas segundo os nomes que as originaram: começaria por destacar a sequência "Os Nomes de Família", facilmente distinguível das restantes, na medida em que remete para lembranças bebidas no núcleo familiar e condensadas em poemas situados em cenários de infância ou sobretudo adolescência, evocações da mãe, dos avós e de outras figuras tutelares às quais os textos se dirigem como se assim procurassem saldar uma dívida antiga, recuperando os elos que ligam gerações portadoras do mesmo nome: "porque há sempre perdão para / quem tem o nosso sangue, o nosso nome" (p. 55). Desta atitude é também exemplo um poema endereçado à memória de um pai com quem só é possível falar durante os sonhos: "Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante /o sono - a ausência não te apaga como a bruma /sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos /meus sonhos um território suspenso de toda a dor, / [...] //Aí nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo/que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te/chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com/lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum/ruído que envenene as palavras: pai, pai" (p. 41).
Mas este livro não vive apenas dos apelos do sangue, inscritos à superfície do seu DNA. O amor que aqui predomina e mais nos interpela provém da força da paixão, dos efeitos luminosos e por vezes devastadores dessa energia que tudo consome, do fogo que em nós arde quando amamos alguém e corresponde a um "incêndio capaz de devorar o coração do mundo" (p. 13). Se nos aproximarmos para averiguar de que género de incêndio se trata, verificaremos que a primeira e a última parte deste conjunto dizem respeito a sentimentos cuja densidade se concentra em ambientes de alguma solidão - "São tantos os anos sem ti nos vincos/da minha saia" (p. 19) - em que o "eu" se apercebe de um fogo que não chegou a arder, num clima de desencanto ou frustração marcado por uma galeria de "nomes inúteis" ou de seres sem nome: "Não, prefiro não saber como te chamas" (p. 15).
Esta mesma atmosfera pode ainda projectar-se num espaço interior quase póstumo, em que a consciência amorosa subsiste, acima de tudo, como um incómodo fantasma ou serena recordação - "Já só consigo saber de ti pelos/jornais" (p. 64). É o que sucede ao longo do último ciclo - "Nenhum Nome Depois" - , quando o incêndio já ardeu e foi deixando em seu lugar uma paisagem calcinada de brasas ainda quentes ou de cinzas pouco a pouco mais frias, sob a acção do tempo que tende a apagar os nomes de quem amámos: "Deixei cair o tempo sobre o teu nome,/como se deita o mármore sobre a terra e/a água se derrama sobre as brasas [...] //e vi/o sangue calar-se finalmente sobre a ferida,/[...]/E a casa está hoje mais fria do que//nunca: deixei passar o tempo sobre o teu/nome e não há lareira, não há lar, não há/filhos que se pudessem perder de mim, nem/velas para encher de memória este silêncio" (p.70).
Guardei propositadamente para o fim a sequência talvez mais intensa de todo este livro, sintomaticamente intitulada "Os Nomes Interditos". O que aí está em jogo equivale a uma espécie de emoção-limite, por vezes próxima dessa certeza absoluta capaz de iluminar o caminho de quem se entrega ao abismo do amor, assumindo-o sem alternativa - "ambos descobríramos que o/destino nunca se engana no nosso nome" (p. 35) - e absorvendo essa experiência a dois até à última gota, como se pudesse desvanecer-se no minuto seguinte: "Eu sabia que adormecer//era deixar de sentir, e não queria perder os/teus gestos no meu corpo um segundo que fosse" (p. 28). Perante isto, acrescentaria apenas que a dimensão do ciúme se torna em certos momentos quase insuportável, pairando sobre uma relação amorosa que se sabe condenada à mentira e mesmo assim prefere continuar, entretecida numa sombra ou no secreto reverso desse terceiro nome que nunca chegará a ser dito:
"Os seus vestidos pretos fechados/no armário lançam uma sombra/funesta nos meus dias. A sua voz/eterna na fita do telefone é outro/espinho cravado no meu silêncio./Roubei-lhe, sem saber, todas as//palavras que te disse - porque,/num beijo meu, são ainda os seus/lábios que procuras, é dela o corpo/que abraças quando me abraças.//Se adormecer ao teu lado mais/esta noite, sei que os seus olhos/hão-de pousar gelados nas minhas/pálpebras [...]//[...] e, entretanto,/basta que me mintas, sim, mente,/mas nunca me digas o seu nome" (pp. 30/31).
mAGAZINE artes
n.º 16, Março de 2004
NENHUM NOME DEPOIS
A poesia imensa de Maria do Rosário Pedreira
R.L.
Maria do Rosário Pedreira volta à edição com “Nenhum Nome Depois”. Regressam os versos e os poemas impregnados de uma dor que é também lugar de confluência do belo e da palavra iluminada.
Tendo publicado vai para três anos o seu anterior e fulgurante livro de poemas a que chamou “O Canto do Vento nos Ciprestes”, livro bem recebido pela crítica, Maria do Rosário Pedreira, escritora, poetisa e editora, reincide agora com a edição deste “Nenhum Nome Depois”, em edição da Gótica. Malgrado seja ainda algo reduzida a sua “obra poética” (que se resume a quatro títulos até ao momento), acode-nos de imediato a certeza de reencontrarmos aqui uma voz poética pessoalíssima e de enorme ímpeto emocional. É na verdade de uma magnífica enunciação dos afectos, do viver e do morrer, do silenciar e do gritar, do sorrir e do chorar, do amar e do perder, que estes poemas nos falam. Tudo porque, dizer, lembrar, nomear, é bem melhor do que proibir, guardar, esconder, sobretudo porque “a vida nunca foi só Inverno/nunca foi só bruma e desamparo”.
Há nos poemas de MRP uma narratividade implícita, um desfiar de memórias e afectos que faz com que o poema se institua como uma muito breve ficção, íntima, aberta em sentimentos, confessional, pulsando emoções, mas nunca frívola, banal ou melodramática:”
Mãe, agora que guardaste na arca
as blusas pretas e os teus olhos
voltaram a ser azuis; que os meus
irmãos dormem no seu quarto um
sono de poderem ser felizes, que
já conseguimos dizer uma à outra
o nome dele no meio de um sorriso
porque a morte, afinal, é uma coisa
tão longe – deixa-me perguntar-te
porque não há retratos do meu pai
comigo ao colo, como os dos meus
irmãos que ele trazia sempre junto
ao peito e tu depois dividiste pela
casa para ele poder saber que ainda
te lembravas; ou então debruçado
no meu berço – que tu escondeste
no sótão ainda eu era pequena e te
sentavas a embalar vazio quando ele
não entendia porque estavas tão
triste. Mãe, eram tão azuis os olhos
do meu pai no dia em que levou os
meus irmãos à escola e tinham tanto
medo do que pudesse acontecer-lhes;
são tão azuis também os olhos deles
debaixo do seu sono, e os meus tão
negros de dúvidas – porque foste
sempre tu que me levaste sozinha
para as coisas difíceis da minha vida,
que o meu pai nem nunca quis saber
que coisas eram. Mãe, estão hoje tão
azuis os teus olhos com essas roupas
claras, e eu ainda tenho o nome do
meu pai entre as minhas lágrimas, mas
agora, que os meus irmãos descansam
no seu quarto, que já todos podemos
dizer o nome dele sem nos cortar os
lábios, diz-me a verdade: esse homem
que chorámos era mesmo meu pai? (págs. 42-43)
A casa (ou as casas), neste como nos seus livros anteriores, volta a ser um local de regresso, epicentro de um descobrir da vida para sempre perdido na dor imensa da irreversibilidade do tempo.
Que guardarão para mim as casas que
deixei? O pó sobre o meu nome? (pág. 39)
pergunta a autora antecipando um rememorar de lugares, cheiros, objectos, conversas perdidas entre as sombras. Encontraremos nesse regresso ao lugar da “felicidade” perdida escolhos e traços de uma tragicidade latente, por vezes lancinante e incómoda como no poema que assim começa:
Mãe, os meninos andam distraídos junto
ao rio e tu não queres saber de os perder.
Sentaste-te a pensar nesse homem que
apareceu e a desfolhar os malmequeres
da tua bata nova – e não viste que te
largaram a mão nem para onde fugiram
com a pressa do vento. Mãe, os meninos
………………………………………………………………..” (pág. 44)
É também uma escrita que prescinde do hermetismo (mal de que sofre muita poesia contemporânea),
(e)levando a cristalinidade dos afectos a níveis altíssimos:
Agora há uma dor que pousa nas palavras.
Não as digas – um nome basta para
dividir o coração. Se me esqueceste entre
um livro e outro, finge que não sei; despede-te
de mim como uma lâmpada antiga, deixa que
a tua sombra seja a minha única paisagem. (pág. 26)
Como se observa, MRP escreve a favor do leitor, nunca contra ele, nunca contra as palavras.
Poemas de saudades e poemas de adeus, de um acertar contas com o tempo. São poemas de lembrar, de olhar para trás e lembrar os nomes, os “inúteis”, os “interditos”, os de “família”, e também os outros, os outros nomes que não existem “depois de ti”. Assim se lêem, põe entre uma dor pressentida, poemas tão belos e desmesurados como este:
Onde quer que o encontres
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,
para sempre, o meu nome. (pág. 52)
Ou assim:
Lê, estes são os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; ……………………… (pág. 66)
O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES
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Nostalgia e amores perfeitos
Um
terceiro livro de belos poemas de amor, a confirmar a grande
qualidade de uma autora discreta
Começa
este livro com um poema - «A Criação do Mundo» - inaugurando-se
com um acto demiúrgico a invocar o Génesis: «Olhou as mãos em
concha e viu arredondar-se/ um sonho dentro delas - um mundo/ que
ninguém podia adivinhar, pois dele/ fariam também parte os magos e
os profetas.// Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como
sementes,/ para que então servissem unicamente de sombras/ e
prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim/ que inventou
a luz e separou um dia do seguinte./...» (pág. 9). Trata-se porém
de uma criação à medida da efemeridade humana, da pouca resistência
das coisas: «...sentiu que o seu/ mundo era tão frágil que, se
desviasse os olhos, tudo acabaria/ por regressar ao pó, às trevas
e ao verbo. Só por isso criou alguém/ que também o visse e lhe
dissesse todos os dias como era belo» (pág. 10).
Encontra-se
aqui uma espécie de programa para orientar a leitura dos restantes
versos, mudando-se o poema em mapa da «primeira geografia dos
caminhos» abertos a cada novo título. O mundo é ainda mais
pequeno que as mãos em concha - inscreve-se entre as folhas do
livro, vai-se construindo poema a poema - e depois ultrapassa-os
enchendo o vasto da imaginação possível a cada um. Tem por
habitantes um «eu» sempre só que se dirige a um «tu» sempre
ausente ou na eminência de chegar: «O meu mundo tem estado à tua
espera; mas/ não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa/ nem
retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei/ que um poema se
escreveria entre nós dois; mas/...» (pág. 13). Mas. A adversativa
insistente e reiterada a puxar para o real, para o racional, para o
argumento oposto à conjectura do desejo. Porque são muito
concretas as situações descritas - bem à semelhança do livro
anterior da autora, A Casa e o Cheiro dos Livros (Quetzal, 1996) -
ligadas ao mundo pelos gestos e pelas coisas do quotidiano, que a
incerteza e inquietação próprias da expectativa vão colorir de
nostalgia e sombra.
E
diz: «Se terminar este poema, partirás. Depois da/ mordedura vã
do meu silêncio e das pedras/ que te atirei ao coração, a poesia
é a última/ coincidência que nos une. Enquanto escrevo/...» e
adiante: «Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,/ que
apenas escreva até ao fim mais esta página/...» Ironicamente, a
responsabilidade da permanência do encontro é transferida para o
acto de escrita, para as palavras do verso, para o momento do «verbo»
que lhe dá, em simultâneo, a dimensão perversa da separação própria
do dilema amoroso: «em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;/
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á/ a última coincidência
que nos une» (pág. 27). Por sua vez, também a escrita se vem a
revelar como demasiado estreita: «O meu amor não cabe num poema -
há coisas assim,/ que não se rendem à geometria deste
mundo;/...// O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil/ a
agitação dos dedos na intimidade do texto -/...// O meu amor anda
por dentro do silêncio a formular loucuras/ com a nudez do teu nome
- é um fantasma que estrebucha/ no dédalo das veias e sangra
quando o encerram em metáforas/...» (pág. 18). De espaço possível
à existência do amor, alternativa e prolongamento à «memória
das coisas por vir», unem-se nos versos passado e futuro, tentando
escamotear um presente de morte: «Devo por isso afastar-me de ti -
não/ por ter medo de morrer (que é de já não/ o ter que tenho
medo), mas porque a chuva/ que devora as esquinas é a única canção/
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio» (pág. 32).
Um
belíssimo livro de versos a confirmar a maturidade da poesia de
Maria do Rosário Pedreira.
HELENA
BARBAS
no
EXPRESSO, Cartaz, de 28-4-2001
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29 de Dezembro de 2001 |
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA (N. 1959) estreou-se no domínio da poesia em 1996, com o notável “A casa e o cheiro dos livros”, um começo invulgar que levou a que o volume se esgotasse (para quando a reedição?). Também autora de livros infantis de sucesso e editora de gosto impecável, regressa agora à poesia com “O Canto do Vento nos Ciprestes”, que não desmerece a estreia e confirma a sua relevância entre os novos poetas. Se o livro anterior a revelava como uma espécie de Cesário dos interiores (das casas), neste acentua-se a faceta do que não podemos realmente chamar ultra-romantismo mas que empresta aos sentimentos uma notória grandiloquência, mesmo se – esse é o grande paradoxo desta poesia – é uma grandiloquência sussurrada. Numa palavra, não é apenas um livro sobre o amor: é um livro sobre morrer de amor.
Escritos numa sequência que é, do ponto de vista estrutural (que não imagético) cinematográfica, estes poemas, quase todos de um certo fôlego, dão voz à mulher antes, depois ou para além do amor, mas nunca no momento amoroso propriamente dito. O que existe é sempre a espera, a ausência, o temor, a solidão, a memória, o abandono.
O meu mundo tem estado à tua espera; mas
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei
que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.
Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira –
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
antes de saber como seria. Não me perguntes
porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos – Deus tem as mãos grandes”. (pág. 13)
É um livro extremamente pudico e extremamente doloroso, feito de vestígios e de uma fragilidade extrema, que no entanto nunca se entrega ao nosso voyeurismo. O que vale acima de tudo nesta poesia é o ser íntima sem ser confessional.
Não é de qualquer amor que se fala, mas de um amor concreto (“este amor”), de um amor único que nada tem a ver com os outros amores, meramente carnais. A intensidade desse sentimento, sobretudo aliado à decepção e à quase perda de sentido da vida, lembra por vezes o imaginário das “Cartas Portuguesas”, mas tal como nesse clássico sentimental, há uma certa dignidade que não descamba no melodrama nem na lamechice, com duas ou três excepções menores. Quase todos os poemas são construídos com base numa fluida acumulação de “topoi” amorosos, recorrentes: do corpo (coração, dedos), da natureza (noites, verão, aves, mar) e das casas (quartos, cama, livros, retratos). Muitas das situações são também clássicas, como as várias albas, poemas em que os amantes de despedem de manhã, outras não são biograficamente reais mas apenas dramatizações que provam como, mesmo levado a extremos, o amor sobreviveria. É nesse contexto que surge a morte, de tal modo presente que a autora já confessou que alguns leitores confundiram os poemas com elegias; na verdade, se em meia-dúzia de poemas há a presença da doença e da morte reais de um terceiro, na verdade, a morte aparece quase sempre não exactamente como uma metáfora mas como uma exasperação do sentimento amoroso; é mesmo esse o grande tema do livro, sendo que a certa altura se afirma
“quando morrer de amor
não tinha ainda perdido o efémero estatuto de metáfora”. (pág. 42).
Mas “morrer de amor” metaforicamente ou não, é um extremo que não caracteriza bem o sentimento amoroso; ele vive sobretudo na (ou da) instabilidade, na precaridade, na insegurança. Como não é o amor consumado e feliz que Maria do Rosário Pedreira aborda, estes poemas estão pejados de desolação, medo, ameaças, pressentimentos. Há um poema com este verso: “Eu não sabia que todas as noites do mundo eram efémeras” (pág. 24), enquanto o poema seguinte, que começa “Se partires, não me abraces” termina com “”Se me abraçares, não partas”. É a “doença do amor” que agrega todos estes sentimentos difusos; esta é, aliás, uma poesia dos sentimentos, da fragilidade tanto do sujeito como do mundo (como no conhecido poema de Sophia de Mello Breyner). É também uma poesia de ternura: o erotismo aqui não tem autonomia, e se a expressão “fazer amor” é recorrente é porque em si mesma transporta um sentido de complemento face ao sentimento amoroso. A ternura aqui é como o lenço de seda atado de um poema de Herberto, em que é a própria seda que desata o laço. O modo como a ternura se expressa é através de uma dedicação sincera mas também ritualizada, aqui e além, na tradição sacramental do “Cântico dos Cânticos”. É uma atenção minuciosa, incondicional, ao ser amado, sem calculismos nem cinismo, o que torna este livro uma raridade.
“(.......................................................…) Se
hoje vieres por esse livro que deixaste (e cuja
lombada acariciei todos os dias que durou a tua
ausência como uma nesga de sol acaricia um
rosto no Inverno), encontrarás a sopa a fumegar
na mesa, e a camisa engomada no cabide, e os
lençois da cama imaculados, e um corpo pronto
para qualquer aventura – e ainda o cão deitado
à porta, à tua espera, como na véspera de partires.
Porque os anos não contam para quem assim ama. (Pág. 67)
Alguns acharão isto submissão, sem perceber que os gestos são símbolos de gestos maiores (na verdade, este poema lembra o tão diferente “Caso do Vestido” de Drummond de Andrade). Em resposta a esse amor o sujeito poético tem apenas despojos, os lugares, “uma colcha amarrotada”. E tem, claro, o poema: se por um lado o amor não se deixa exprimir nem aprisionar no poema, este é um refúgio e também uma reconstrução do mundo: “não estarias aqui se eu não escrevesse”. O livro acumula poderosas imagens de tristeza: “uma escarpa pronta a desabar”, “os degraus só se podem descer”, “o verão desarruma os sentimentos”, “há coisas que uma mala nunca leva”.
O vento que canta nos ciprestes (árvore fúnebre) é como o espírito que sopra onde quer e onde nós queremos.
“Quero falar-te deste amor, como de um vento
amordaçado na camisa; uma febre de verão
que o mercúrio não acha; um telhado esmagado
pela ideia da chuva. (…) (Pág. 14)
E para quem tenha dúvidas, vale a pena remeter para dois poemas longos demais para citar aqui: o lancinante poema da página 56 sobre morrer e escrever e o extraordinário poema final, “Anima Mundi” (pág. 71). O “medo da tragédia” de que a a autora fala, é apenas o medo de se dizer o que à partida se sabe ser trágico, e por isso enorme. A “mais pequena história do mundo” que este livro se propõe contar é, afinal, a maior história do mundo.
Pedro Mexia
Sobre o mais recente dos seus livros de poesia – O Canto do Vento nos Ciprestes – Maria do Rosário Pedreira (n. 1959), manifestou o desejo de que ele fosse lido como um minirromance (cfr. entrevista concedida a Ana Marques Gastão, Diário de Notícias, 2-5-2001). Percebe-se porquê. Nestes poemas, o recorte elegíaco fixa o plot com nitidez:
“Na tua boca cantou subitamente uma voz.
E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,
o rio que outrora bordava o campo emudeceu (…)
São assim as mais pequenas histórias do mundo.” (pág. 15)
E a trama narrativa sai reforçada com a exactidão denotativa:
“Dei-te o meu corpo como quem estende
um mapa antes da viagem […]
Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
nas minhas mãos – tristes geografias,
labirintos de razões improváveis, tão curtas
linhas que a minha vida não teve tempo
senão para pressentir-se. Por isso guardo
dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
muros e regressos – nem sequer feridas
ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,
as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.” (pág. 30)
Com efeito, nenhuma espécie de maneirismo perturba estes versos exemplares:
“Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite –
[……………………………………………..] e pudesse
eu deixar de escrever nesta manhã, o dia treme na linha,
dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse eu morrer,
mas ouço-te a respirar no meu poema.” (pág. 56)
Por outro lado, o desassombro com que Maria do Rosário Pedreira põe em cena a voz do EU não deve confundir-se com psicologismo:
“Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi
verdade – […]
Se alguém me perguntar, nada desmentirei, nem negarei
que os frutos todos que me deram a provar na tua ausência
me pareceram demasiado azedos ao pé dos que explodiam
em sumo nos teus lábios; […]
Trata-se de focalização omnisciente – isto é, representação narrativa do fio da intriga - , registo que a autora domina com segurança, mesmo quando, como acontece no poema final, apenas sobram estilhaços da história:
“Atropelam-se os rios em demanda do mar; vergam-se
as costas ao chicote das ondas. Os espinheiros
que crescem sobre as dunas iniciam as aves
nas punições do mundo. Quem se encosta
ao ombro descarnado da falésia vê o fantasma
da morte acenar-lhe do abismo; e o mesmo sol
que ofende os muros em ruínas e açoita os pontões
humilha os deuses e desafia os homens. Por isso,
[…] iludindo a arquitectura da luz, espreitou
impunemente no decote do mundo e lhe arrancou a alma.” (pág. 71).
À laia de conclusão, não me parece excessivo afirmar que O Canto do Vento nos Ciprestes é um livro singular no contexto da poesia portuguesa mais recente.
de O Som & o Sentido, de Eduardo Pitta – LER n.º 52, Outono de 2001.