27-9-2000
Fernando
Assis Pacheco
1937
- 1995
POEMAS:
Do livro "Respiração Assistida" - 2003
"Juntei-me um dia à flor da mocidade"
"Pus-vos a mão um dia sem saber "
"Este ministro é um mentiroso"
Do livro "Variações em Sousa" - 2004
Embora
química a tua
é
realmente uma paz
para
duas longas horas,
paz
sentada, na varanda,
folheando
jornais,
lendo
só os títulos
(o novo papa recebe),
uma
paz assim fresca,
sem
grandes gestos
escusados,
diria
uma
paz no duche,
ou
depois à mesa
comendo
a sopa leve,
o
bife grelhado
com
pouco sal,
paz
da papaia doce,
gotas
de limão,
paz
de um copo de água,
uma
brisa ténue
arrepiando
quase nada
os
pêlos das pernas,
encrespando-os
quase nada
e
isto é o repouso,
a
mansidão tranquila,
o
descanso, a quietude,
a
serenidade, o feltro,
a
pele bem curtida
tocada
do avesso,
a
aldeia pequena,
a
caruma, o cheiro
dos
medronhos maduros,
rolas
que então
vinham
beber aos poços,
assobios
de melros
pela
manhã, escondidos
nos
juncais, furtivas
carreiras
de coelhos,
milho
na eira ao sol,
pão
cozendo no forno,
fumo
vago e alegre,
paz
do fumo, paz
terna,
por duas horas,
por
um homem
que
se entrega duas horas,
que
se entrega,
que
se entrega na varanda
ao
librium, que se entrega.
Catalabanza,
Quilolo e volta
Quero
voar como os anjos
quero lavar os dentes com
triflúor
quero o Belinho sem o
Oliveira
quero cornear o duque de
Kent
quero 250 de Platão bem
passados
quero
a destreza do okapi
quero ir ao Douro às
vindimas
quero
pagar com letrasset
quero vestir de linho (e do
Veiga)
quero ser primeiro no
Mundial
quero pudim francês com
caramelo
quero ler um cabinda em
verso
branco
quero uma sequóia para o
quarto
quero
voar de Spitfire
quero esmurrar o Marcel
Cerdan
quero
a Maja Desnuda
quero-te
de bicicleta
quero-te
outra vez de bicicleta sobre as folhas
quero-te ouvir chegar de
bicicleta
quero o som macio que
fazia na mata a tua
bicicleta.
Meu
Deus como eu sou paraliterário
à
quinta-feira véspera do jornal
nadando
em papel como num aquário
ejectando
a minha bolha pontual
de
prosa tirada do receituário
onde
aprendi o cozido nacional
do
boçal fingido o lapidário
-
fora algum deslize gramatical-
receio
que me chamem extraordinário
quando
esta é uma prática trivial
roçando
mesmo o parasitário
meu
Deus dá-me a tua ajuda semanal
A
Musa Irregular, 1996
Ela
era muito bonita e benza-a Deus
muito
puta que era sempre à espera
dos
pagantes à janela do rés-do-chão
mas
eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho
o quê? quinze anos
tenho
o quê uns olhos com que a vejo
que
se debruçava mostrando os peitos
que
a amei como se ama unicamente
uma
vez um colo branco e até as jóias
que
ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu
bato o passeio à hora certa e amo-a
de
cabelo solto e tudo não parece
senão
o céu afinal um pechisbeque
ainda
agora as minhas narinas fremem
turva-se
o coração desmantelado
amando-a
amei-a tanto e sem vergonha
oh
pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos
queixos a admiração que eu fazia
entre
a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como
então puxo as abas da farpela
lentamente
caminho para ela
a
chuva cai miúda
e
benza-a Deus que bonita e que puta
e
que desvelos a gente
gastava
em frente do amor
Passaram
anos e anos
sobre
esta roda da vida,
farinha
que foi moída,
vai-se
a ver, são desenganos
Atou-me
a sorte este nó,
cobriu-me
com estes panos.
Ao
peso dos meus enganos
sai
a farinha da mó.
Na
palma da mão estendida
leio
um caminho de pó
lembranças
do homem só
São
as andanças da vida
Foram
dias, foram anos,
foi
uma sorte moída,
vida
que tenho vivida,
(vai-se
a ver são desenganos)
Foram
dias, foram anos,
for
a sorte apodrecida.
Dentro
da roda da vida
sinto
roer os fusanos
Lembranças
da minha vida
perdem-se
em nuvens de pó.
Bem
me chamam Pedro Só,
(nome
de roda partida)
Música de Manuel Jorge Veloso, canta Manuel Freire
Filme Pedro Só, de Alfredo Tropa, 1970
Louvor do Bairro dos
Olivais
Não tive nunca nada a ver com as
guitarras estudantes; eu vivia
num lento bairro da periferia
onde a chuva apagava os passos das
pessoas de regresso a suas casas
fazia compras na mercearia
e algum livro mais forte que então lia
já era para mim como um par d'asas
amigos vinham ver-me que eu servia
de ponche ou Madeira malvasia
para soltar as línguas livremente
um que bramava um outro que dormia
eu abria a janela e só dizia
ao menos estas ruas têm gente
A Musa Irregular
Do livro “RESPIRAÇÃO ASSISTIDA” - 2003
Juntei-me um dia à flor da mocidade partindo para Angola no Niassa a defender eu já não sei se a raça se as roças de café da cristandade
a minha geração tinha a idade das grandes ilusões sempre fatais que não chegam aos anos principais por defeito da própria ingenuidade
a guerra era uma coisa mais a Norte de onde ela voltaria havendo sorte à mesma e ancestral tranquilidade
azar de uns quantos se pagaram porte esses a que atirou a dura morte diz-se que estão na terra da verdade
Lisboa 28-IV-94 |
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Pus-vos a mão um dia sem saber que tão robusta e certa artilharia iria pelos anos fora ser sinal também de lêveda alegria
amigos meus colhões quanto prazer veio até mim em vossa companhia a hora que tiver já de morrer morra feliz por tanta cortesia
adeus irmãos é tempo de ceder à dura lei que manda arrefecer o fogo leviano em que eu ardia
camaradas leais do bem foder o brio a fleuma cumpre agradecer sem vós teria sido uma agonia
Lisboa 29-XI-94, 23-XII-94 |
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Este ministro é um mentiroso que agonia quando ele discursa e se fosse só isso: bale sem jeito às meias horas seguidas – e não pára!
bem-aventurados os duros de ouvido a quem o céu abrirá as portas desliguem p.f. o microfone ou então tirem o país da ficha
Lisboa 6-V-95 |
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A senhora tia alisa a toalha põe sobre ela talheres muito antigos herdados dos avós que a terra come
quantos anos passados deste dia ainda estaremos como agora juntos na cozinha de Sangalhos entre o fumo da lenha seca e o cheiro misturado das carnes e das hortaliças que acabam de ferver no fogo esperto
minha mãe diz um dito qualquer seca a vista embaciada eu venho do pátio certamente cantando
o tio – as urinas presas no laço da bexiga – conta uma história da guerra de 14 do vizinho morto como ele Manuel sorte infeliz
ao tempo que isto foi
Lisboa 3/4 XI-94
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Alombo contigo há uma porção de anos e vou-te dizer és um chato não tens ponta de paciência para a vida nem para ti próprio
já te ouvi discursos a mandar vir já te carreguei às costas bêbedo como um Baco de aldeia mijando as ceroulas és um adolescente retardado faltou-te sempre a quadra do bom senso
vez por outra um livrinho de versos vez por outra nada qualquer um do teu tempo está bastante melhor do que tu deputado administrador de empresa ministro da maioria puta (alguns chegaram a isso)
só tu meu inocente brincas com a neta açulas o cão pedindo à família que te ature o tipo um dia destes morde-te que é para aprenderes
mas aqui entre amigos vou-te dizer também uma coisa importante não cedas à tentação de mudar fica nesta pele que é tua
como é que tu escrevias merdalhem-se uns aos outros
o país mete dó
guarda o último tesão para mandares meia dúzia de canalhas à tabua
Lisboa 5/6/9-VII-95
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Fernando Assis Pacheco, Respiração Assistida, posfácio de Manuel Gusmão, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003 ISBN 972-37-0847-7
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Do livro “VARIAÇÕES EM SOUSA” - 2004
SEGUNDO BALCÃO DOS BOMBEIROS
Nesse tempo eu já lera as Brontë mas como era um adolescente retardado passava a noite em atrozes dilemas que mais vale: amar, ser doutrem amado?
ainda não descobrira o simples disto nem o essencial disto que é tão claro se tudo no amor vem do imprevisto deitar regras ao jogo pode sair caro
por isso eu amo e sou ou não benquisto depende do instante bem ou mal azado amor tem alegria, tem enfaro o happy end é coisa dos cinemas
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A UM DEUS SURDO
Ó quem me dera ter outra vez vint’anos navegar no ignoto sem portulanos o peito feito para os da vida enganos era sensacional ó hermanos
quem dera o brandy com castelo o dedo ao arrepio do pêlo o romanticismo do desvelo e tudo isto fingindo um grande anelo
quem dera agora uma vez mais o rápido de Irún no cais a solicitude quente dos pais ai eu tirando de ouvido muitos ais
ó quem dera e outra vez viera e dera a ruminante paciência que há na espera o mistério lento da Primavera o emblema desenhado pela namorada: uma hera |
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AS PUTAS DA AVENIDA
Eu vi gelar as putas da Avenida ao griso de Janeiro e tive pena do que elas chamam em jargão a vida com um requebro triste de açucena
vi-as às duas e às três falando como se fala antes de entrar em cena o gesto já compondo à voz de mando do director fatal que lhes ordena
essa pose de flor recém-cortada que para as mais batidas não é nada senão fingirem lírios da Lorena
mas a todas o griso ia aturdindo e eu que do trabalho tinha vindo calçando as luvas senti tanta pena
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O CU DA MARUXA
Um cu que se desvela em Agosto em Ourense redondo para olhar um cu magnificente um cu como um bisonte o teu cu Maruxa adivinhado num restaurante
eu rimo tanto cu que trago na memória o teu fará por certo mais história é um cu para a glória é nena impante
rodando na cadeira el’ deixa-nos suspensos quase presos Maruxa pelos beiços
lembra-me nédio raxo assim forte de febra lêveda e alva nas Burgas cozinhando se de soslaio agora se requebra
é como canta Maruxa! igual que um pássaro ao qual neste mesón péssoro vénia
teu ouriflâmio cu me faz insónia |
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Fernando Assis Pacheco, “Variações em Sousa”, colecção de poesia “Inimigo Rumor”, Angelus Novus, Coimbra e Edições Cotovia, Lisboa, 2004, ISBN 972-795-063-9 |
Outra página sobre Fernando Assis Pacheco neste site, aqui
No plaino abandonado um poeta cercado – a memória da guerra colonial na poesia de Fernando Assis Pacheco, ensaio de Margarida Calafate Ribeiro
ler
aqui
"UM TAL
FERNANDO ASSIS PACHECO"
Sábado, 21 de Fevereiro de
2004
Fernando Pinto do Amaral
Título
- Respiração Assistida
Autor -
Fernando Assis Pacheco
Posfácio - Manuel Gusmão
Editora -
Assírio & Alvim
88 págs., ¤ 12,00
Uma das mais persistentes confusões quando se fala de poesia tem nascido do equívoco com que por vezes alguns leitores identificam uma suposta "linguagem poética", superiorizando-a perante o que seria a linguagem comum - como se a poesia pudesse sempre definir-se através de uma sobrecarga retórica e metafórica em relação à restante linguagem, cavando assim uma distância que inapelavelmente as separasse.
Vem isto a propósito de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), autor revelado em 1963 com "Cuidar dos Vivos", livro que nesse momento histórico se enquadrava numa poesia de intervenção política, comprometida num testemunho de luta contra a guerra colonial. Publicando ao longo do tempo colectâneas de circulação muito restrita - quase clandestinamente divulgadas entre amigos, em edições de autor -, o poeta veio a reunir a sua obra apenas em 1991 ("A Musa Irregular", Ed. Hiena), num volume que manifestava o desejo de fugir a qualquer dicção grandiloquente - "Peçam a grandiloquência a outros" (p.166) -, oferecendo-nos, em vez disso, uma linguagem coloquial muitas vezes irónica, mordaz, satírica, mas ao mesmo tempo comovida com o pequeno espectáculo do mundo e descrente das virtualidades da própria poesia: "e depois isto dos versos / passados anos já não passam de enganos" (id., p.194).
É dentro deste registo desvalorizador do papel tradicionalmente atribuído ao género literário "poesia" que podemos ler agora um notável conjunto de 35 poemas inéditos ou dispersos à data da morte do autor - textos escritos num tom muito pessoal, que propositadamente disfarça a pulsão lírica graças a formas muito eficazes de camuflagem irónica, sabotando e subvertendo os "clichés" associados ao lirismo. Como sintetiza Manuel Gusmão num lúcido posfácio, trata-se de "uma poética da deflação do 'pathos' lírico. A expressão julgo que permite, por um lado, não apagar a sua inequívoca dimensão lírica e, por outro lado, dar conta dos processos de 'decapagem' a que ela é submetida, assim como das modulações irónica, satírica ou de 'escárnio e mal-dizer' igualmente manifestas" (p.66).
Para alguns leitores mais apressados, talvez o que sobressaia seja precisamente esta componente escarninha, satírica ou abertamente "fescenina" (a palavra é de Manuel Gusmão), patente quer nos "Desversos" que jogam por vezes num terreno político, quer em alguns textos mais desbragados, que retomam a alegre celebração do prazer sexual - veja-se um soneto dedicado aos testículos: "Pus-vos a mão um dia sem saber / que tão robusta e certa artilharia / iria pelos anos fora ser / sinal também de lêveda alegria // amigos meus colhões quanto prazer / veio até mim em vossa companhia / a hora em que tiver já de morrer / morra feliz por tanta cortesia" (p.19).
Uma das maiores qualidades da escrita de Fernando Assis Pacheco provém, no entanto, do modo muito subtil de articular uma apurada crítica social e, ao mesmo tempo, uma análise distanciada do "eu" ou daquilo em que o "eu" se tornou - pouco a pouco transformado num "tu" a quem o poema se dirige sem contemplações: "Alombo contigo há uma porção de anos / e vou-te dizer és um chato / não tens ponta de paciência / para a vida nem para ti próprio // [...] // vez por outra um livrinho / de versos vez por outra nada / qualquer um do teu tempo / está bastante melhor do que tu / deputado administrador de empresa / ministro da maioria / puta (alguns chegaram a isso)" (p.43).
Estes efeitos de auto-ironia tornam-se particularmente evidentes quando o poeta se afasta ainda mais de si mesmo e se observa na terceira pessoa, falando sobre "um tal Fernando Assis Pacheco" como se se tratasse de um duplo ou de uma personagem vagamente familiar: "Vivo com ele há anos suficientes / para poder dizer que o reconheceria / num dia de Novembro no meio da bruma / é como uma pessoa de família // [...] / não invento nada vi-o crescer comigo // chorava então desabaladamente / e eu com ele sentindo-nos perdidos / o cobertor puxado sobre a cabeça / seria trágico se não fosse ridículo // [...] / não lhe perguntem se foi feliz" (p.45).
O amargo pedido deste último verso denota já uma inflexão de perspectiva, no sentido de um balanço existencial de tons elegíacos, recuperando um pouco de tudo o que foi importante numa vida humana, na vida desse "tal Fernando Assis Pacheco". É graças a esse movimento de regresso que vemos desfilar os pais, as filhas, a família ou os amigos - por vezes explicitamente nomeados -, compondo um mosaico de imagens e episódios de um passado acontecido algures entre Coimbra e Lisboa, entre a Galiza e a ria de Aveiro: um passado legível como memória já longínqua ("ao tempo que isto foi", p.41), mas apto a iluminar o presente com a sua luz talvez um pouco baça. A esse respeito, chamo a atenção para uma belíssima "Elegia" dedicada aos desaparecidos tempos de Coimbra: "com 40 mil habitantes no melhor dos casos / a cidade tinha um ar modesto e a puxar para o triste / sempre os mesmos cães magros sempre a mesma gente lenta / o mesmo nevoeiro subindo em espiral do rio // nesse tempo ainda os meus pais eram da família / que depois perdi em anos consecutivos / e eu julgava-os imortais como deuses de luz clara / brilhando à mesa sobre a grande toalha de linho // nem tão-pouco pretendo aborrecer agora os meus filhos / com histórias dessa que enterrada está Coimbra / nós vamos no oco da onda ébrios de sal mordente / o que vem dar à praia é espuma fria e olvido" (p.24).
Para lá deste lirismo nostálgico, aliás já cultivado em muita da anterior obra de Assis Pacheco, o que se torna novo nesta fase - sobretudo agora, com os poemas reunidos num livro - consiste numa penetrante e obsessiva presença da morte, embora uma morte cujo peso trágico acabe por surgir quase sempre subvertido por uma retórica deceptiva e por um fino sentido de humor. Mas com humor ou sem ele, a morte existe e infiltra-se nesta poesia, que mostra conhecê-la ou antecipá-la, declinando-a quer como futura ausência do sujeito - veja-se o poema em que faz o inventário da sua herança (pp. 27 / 28) -, quer através dos seus sinais concretos e terrivelmente sensíveis ao nível do corpo, no momento em que uma ou mais doenças ameaçam e avançam sobre alguém numa cama de hospital, "entre os frascos do soro" (p.51) e a solidão última de um homem que, tal como Ruy Belo, sabia estar a despedir-se da terra da alegria:
"Triste de mim mais triste que a tristeza / triste como a mão que segura o copo / como a luz do farol esgaçando a névoa / triste como o cão manco / deixado na serra pelos caçadores // [...] // a tarde triste os anos tristes / a grande costura da tristeza / do esterno ao baixo ventre // triste e já sem nenhum reparo / a fazer à metafísica / senão que é um défice / porventura / do córtex cerebral" (pp. 21 / 22).
UM COMBOIO PODE ESCONDER OUTRO
PUBLICO, sábado, 13 de Março de 2004
Eduardo Prado Coelho
Não consigo ler os poemas do Fernando Assis Pacheco sem o ver à minha frente. Venham os críticos separar o sujeito de enunciação do sujeito do enunciado - que importa, o Fernando ali está, na sala de redacção do "JL", exuberante, sempre exuberante, mas ao mesmo tempo discreto, cauteloso nas sugestões, modesto nas opiniões. Ele, que tanto gostava das frases feitas com que a gente vai encontrando andaimes para o nosso discurso, comentaria que a sua maneira de ser (sem ser) intelectual era avançar "como quem não quer a coisa". E no entanto poucos como ele tinham lido tanta poesia e eram capazes de falar sobre poetas e poemas horas e horas seguidas - poetas brasileiros, espanhóis, franceses, ingleses, italianos, eu sei lá, uma erudição entusiástica, que nada tinha de universitário ou profissional, mas vinha directamente desse modo de viver com versos que ajuda a dizer a difícil realidade que é a vida.
Eu não senti o desaparecimento do Fernando, porque ele morre em 95, quando eu estava em Paris e as notícias chegavam filtradas pela distância. Para mim, eu tinha partido e ele estava aqui, e, quando voltei para aqui, era ele que tinha partido. Por isso nem sei bem a última vez que o vi. Cruzámo-nos em algumas deambulações de escritores, desde a Galiza, onde fomos fazer já nem sei bem o quê, e ele era uma lição viva de vinhos, ementas, tascas, locais de amável boémia nocturna, conversas sem fim. Mas recordo-me sobretudo de uma manhã de sol em Bordéus, numa dessas estadias que Sylviane Sambor organizava com tanta competência e entusiasmo, e recordo-me sobretudo daquelas sempre espantosas camisas de todas as cores, com ramagens e paisagens havainas, com que o Fernando nos aparecia, como se fosse um turista americano a descobrir as praias do Algarve.
O Fernando tinha uma amizade silenciosa e retraída, naquela espécie de pudor desaforado com que viveu tudo na vida. Por um lado, tinha muito medo de cair em sentimentalismos e toda a poesia é feita para secar o excesso de emoção, sem nunca eliminar o puro instante de uma graça improvável. Por outro lado, avançava numa visceralidade sexual, que não respeitava protocolos ou subtilezas, que era numa pujança desmedida, a pura nudez da carne. Corria um risco, que era o de se folclorizar a si mesmo, e ser acolhido com um riso mais ou menos alarve, de quem se compraz no palavrão fácil. Daí os equívocos que podem resultar dos poemas que alguns classificarão erradamente como "eróticos". Como escreve Manuel Gusmão, "a minha dificuldade , confesso, é com o qualificativo 'erótico' aplicado aqui. (...) o que me desagrada não é apenas o facto de o adjectivo 'erótico' ter uma valor comercial seguro, é que se trata aqui de algo de mais bruto, mecânico e 'simples', não de um jogo da sugestão ou da alusão licenciosas, mas sim do linguajar obsceno, solto e lúdico a que o soneto é obrigado, de uma variação do rebaixamento carnavalesco (Bakhtine). Talvez se possa retomar a noção de tradição fescenina, a palavra ainda vem nos dicionários". Mais do que isso. Aparece como título no último romance de Ruben Fonseca. Talvez o Manuel Gusmão ainda se lembre ("ao tempo que isso foi", como diria o Fernando) de quando éramos assistentes na Faculdade de Letras e nos distinguíamos a nós próprios entre os "millerianos" e os "bataillianos". Sem sombra de dúvida, o Fernando Assis Pacheco era um "milleriano" puro.
O livro há meses publicado intitula-se "Respiração Assistida" (Assírio e Alvim) e reúne, num trabalho muito criterioso de Abel Barros Baptista, textos dispersos de Fernando Assis Pacheco. O próprio título do livro foi uma escolha (feliz, aliás) de Abel Barros Baptista. Alguns dos poemas eram inéditos e estavam numa pasta em que o Fernando reunia a produção para o livro que pretendia publicar depois da saída de "Musa Irrequieta".
Adoptando a ordem cronológica, o primeiro texto é de 91 e é em dois versos a enunciação do "santo e senha" que domina a vida do poeta: "Desengaçar a alegria / do chato amável mundo". E aqui encontramos já alguns traços característicos: a palavra inesperada ligada a uma experiência rural ("desengaçar": "soltar bagos de uva do engaço", e ainda, por extensão, "comer com sofreguidão"). E depois o mundo parece qualificado por um termo de calão, que não pertence à esfera do vocabulário poético ("chato"). Mas esta palavra que é corriqueiramente negativa aparece corrigida por outra moderadamente positiva, "amável". Contraponto entre duas expressões matizadas, sorriso leve, criação de uma espaço propício à alegria.
Os poemas reunidos neste livro andam entre a evocação da memória familiar, alguns episódios da guerra colonial, a experiência da doença, o desaparecimento dos amigos, a passagem do tempo, o pressentimento da velhice e da morte dentro dela. Com sucede muitas vezes com este tipo de personalidades eufóricas, o Fernando escondia no riso e na paródia uma profunda melancolia: "um comboio pode esconder outro". Nas dobras do poema, há uma dor agudíssima. Como se diz num dos mais belos poemas deste livro, intitulado "Mas agora que vai descer a noite na minha vida", "Triste de mim mais triste que a tristeza / triste como a mão que segura o copo / como a luz do farol esgaçando a névoa / triste como o cão manco / deixado na serra pelos caçadores //...// triste como uma puta alentejana / num bar de Ourense / que me viu à cerveja e lesta / me chamou compadre / vozes que a gente colecciona // a tarde triste os anos tristes". Sublinhe-se uma das mais pungentes imagens deste livro: "triste como o cão manco / deixado na serra pelos caçadores". Há muitos cães à deriva na poesia do Fernando Assis Pacheco. Mas sobretudo há imagens que se metem pelos olhos dentro. O que faz que, se o Fernando se aproxima da "Poesia 61" (já de si bastante heterogénea) pelo sentido oficinal, anda mais perto da poesia de Joaquim Manuel Magalhães ou de João Miguel Fernandes Jorge pela capacidade de visualizar e criar imagens ou cenas de uma extrema pregnância. Mas é sobretudo uma voz singular, que criou um espaço próprio na poesia contemporânea, entre O'Neill, Tamen ou Nemésio por um lado, e Manuel António Pina ou mesmo Fernando Pinto do Amaral por outro. Há uma variante indicada pelo organizador que é bem significativa de certas oscilações: num poema de 95, o Fernando escreve "nem Deus teve o topete de travar", numa expressão que recorre à linguagem coloquial . Na variante encontramos: "nem Deus teve coragem de travar". Entre o "topete" e a "coragem", o Fernando Assis Pacheco escolherá sempre o "topete": a palavra permite aplanar as realidades metafísicas, deixá-las sobreviver na linha de água (respiração apenas, e que de tão ténue precisa de ser assistida) e fincar os pés na pura física do mundo: "morrer é mais do que suficiente".
n.º 1653 3 de Julho de 2004
A C T U A L
Fernando Assis Pacheco, uma publicação póstuma
Joaquim Manuel Magalhães
Não consigo chamar Respiração Assistida a este volume de poesias (Assírio & Alvim, Lisboa, 2003) porque não foi o autor que lhe chamou assim. Isso foi o título que deu a um poema, que nem sequer saberemos nunca se viria a incluir juntamente com estes poemas ou teria organizado de outra maneira. Trata-se de uma hipótese de título somente. Eu é que sou sempre muito desconfiado de professores que metem decisões suas em seara alheia. No que talvez nem tenha razão. O próprio Assis Pacheco autoriza na sua prática este processo logo no seu primeiro livro, cujo título, Cuidar dos Vivos, é pedido ao título de um poema que o integra. Mas uma coisa é um autor tomar uma decisão dessas, outra coisa é alguém fazê-lo por ele postumamente. Não suponho que seja boa política editorial, parece uma maneira oitocentista. Algo de mais descritivo operaria melhor, suponho. De qualquer forma, o livro já deve ficar para sempre com este título e a mim ninguém tirará a vontade de não lhe chamar assim. Será sempre um conjunto de poemas sem ordem verdadeiramente fixada, o autor não saberemos como o viria a fazer; sem título, o autor nunca lho atribuiu. É um dos casos de interferências exteriores de que a literatura está cheia. Arranjei um estratagema para o ler: fotocopiei-o, meti-o numa capa e ele vai tomando os caminhos informes que eram maioritariamente os seus. Foi um belo conjunto de poemas que o Fernando escreveu, sem ser um livro que o Fernando dispôs, com a meticulosidade com que sempre planeava a sua obra, sempre a fingir que não lhe ligava nenhuma, que não tinha importância de maior, grande mentira de pessoa que gostava mais de falar dos e com os outros do que se pusessem a falar-lhe de si. Mas, dentro dele, a importância do que fazia com bastante fulgor se lhe assegurava.
É bom sabermos a sua insistência em chamar “mestre” a Nicanor Parra. Não que essa designação o colocasse a si mesmo como discípulo do poeta chileno. Mas por mostrar obviamente os caminhos sem fato de luzes que fazia que a sua poesia tomasse. Como referência para os leitores da obra de Assis Pacheco, Parra inclui-se com ele no número dos poetas, bem raros para os quais a importância da poesia não depende do seu empolamento, mas numa distância do estentório por parte do autor, que não quer tornar-se um tribuno de si mesmo, por muito que saiba quanto é ele que está envolvido naquelas palavras que, depois, para ver o que acontece, parece dependurar como um trapo à distância como se de coisa mal cheirosa se tratasse. Sempre como se o valor da poesia estivesse noutro lugar que no da poesia ela mesma; ou como se a presença do seu autor só ganhasse autenticidade se este se distanciasse para silêncios supostamente indiferentes. Paremos para ouvir também Assis Pacheco enquanto ouvimos Parra:
TUDO
É POESIA
menos a poesia
ou este outro esclarecedor poema:
A
POESIA
MORRERÁ
SE NÃO
A OFENDERMOS
temos
que
possuí-la
e humilhá-la em público
depois se verá
o que se faz
Mesmo neste livro atravessado de mais nostalgia ainda do que todos os seus livros (onde o que ganha sentido desta palavra assume liderança de escrita múltiplas vezes), um poema como “Bah!” é significativo deste excurso comparativo.
De todos os modos, porém, neste volume, onde a mágoa final se desenha (e ter conseguido falar dela com tão elaborada simplicidade linguística é um feito de coragem psíquica digno de ser retido), ela é usada ainda como um dos temas de quotidiano, de coloquialidade, de diálogo íntimo consigo mesmo que se tornou marca distintiva dos fortíssimos versos que sempre escreveu. Embora talvez seja conveniente recordar que neste livro ocorrem alguns poemas anteriores a um susto mais imediato da morte – os que precedem 93 – em que esta, ou similar significação, já ganha um fundo tematizador, como acontece com o poema “, R, 1992”.
Esta inicial indica um dos nomes centrais a que o livro a fazer pretendia enviar: Rosário, a sua mulher; e nela, sempre envolvidos, os seis filhos de ambos. É poderosa a presença da família (e de alguns amigos que o poeta deixa tomar quase parte dela). É neste campo de familiaridade, de uso coloquial dentro da família, que naturalmente ocorrem vocábulos que podem parecer a alguns como palavrão e que mais não eram senão o modo naturalíssimo e sem qualquer malícia como naquela casa, por exemplo, se tratava um homem no feminino, uma criança por uma alcunha disparatada e terna, um cão como gente dada a apetites. Era o amor aquilo que se sentia circular, o grito seguido de perdão, a ternura dada numa passagem rápida mas marcante; essa casa cheia de gente amena até em qualquer sofrimento, de confusos aparecimentos e desaparecimentos de crianças, umas mais caladas, outras mais ternas, outras mais inquiridoras. No centro, a inquieta alegria dos pais, por momentos a nostalgia que pelo Fernando passava e depois a música do jazz, dos ritmos tropicais, um envolvimento humano da figura de um poeta que era um caos felicíssimo de presenciar. Neste domínio comum se deve ler o primeiro dos nove sonetos: ainda que “Aretino” venha mencionado nesse soneto, creio que vem como eco literário que dava jeito numa rima, pois as palavras usadas para referir a sexualidade que corre entre marido e mulher Tem todo o carácter da comum linguagem do amor entre seres para quem elas não tinham outro peso senão o do habitual. Nem sequer são palavras mal soantes ou grosseiras, são o que pode entre muita gente florir na voz do amor. Nada de inusitado ou até de libertino encontro nesse soneto, um dos grandes poemas do amor comum heterossexual e marital que a poesia do sec. XX nos deu. Mesma na “vascular emergência transportado // com terror de sirenes por dois homens”, esse selo de morte em que medita, “não pensa noutra coisa: o seu enterro”, o homem escreve no meio da presença amada com a doçura e a rudeza do prazer numa sequência em que se sabe unido à sua mulher, “camaradas leais do bem foder”.
Creio que a leitura que melhor compreendeu a peculiar qualidade da poesia de Fernando Assis Pacheco a fez José Carlos de Vasconcelos num texto introdutório a Retratos Falados de F.A.P., ASA, Porto, 2001: “Assis: A Arte do Jornalismo”. De facto, se informar, interpretar e opinar são características desse género que o jornalismo é, esta tripla situação não pode, para que o jornalista seja completo. fechar-se no informativo de uma notícia – hoje em dia mais especificamente tarefa da rapidez das televisões – deve inscrever-se numa consciência do seu jornal e manifestar o propósito, que nunca deveria ser manipulador, de tentar a inteligência e a decisão dos leitores. A tudo isto deve juntar-se uma característica de estilo clara, concisa, de registo coloquial na selecção do léxico, o qual nunca deverá cair em qualquer incorrecção, não apenas sintáctica, mas também, pois a sintaxe envolve profundamente o sentido, ética. Parece que estou a falar da poesia do Fernando. E estou. E foi isso que Vasconcelos compreendeu ao dizer: “ A sua poesia tem um ritmo, um tom narrativo e/ou coloquial, uma sábia utilização de adjectivos e advérbios, uma luminosa e dificílima simplicidade, comuns à escrita da (sua) “profissão dominante” (o jornalismo), como lhe chamou numa plaquete de 1982. Parece-me isto visível desde sempre. Isto é, e paradoxalmente, desde antes ainda de o Assis militar nessa “profissão dominante”. O que significa ter sido, primeiro, a sua escrita poética a influenciar a jornalística e, depois, a escrita jornalística a influenciar a poética”.
A influência a partir do poético deve-se, para lá do génio pessoal, à sua predilecção por ( e conhecimento de) a geração inglesa de Auden, Spender ou Isherwood, todos seguidores de actividades de repórter ao mesmo tempo que de escritor e todos profundamente ligados à intenção de uma escrita modernista tal como a defendeu Pound entre o movimento imagista e vorticista. A influência a partir do jornalismo sente-se na rapidez com que define situações, na atenção fixada ao pormenor humano, ao distanciamento com que descreve – mesmo que imerso no pior pesadelo – a situação que antevê como proximamente sua, nesse outro enorme poema seu que é “Respiração Assistida”. Um dos momentos cimeiros dessa situação é constituído pela série Desversos, continuada neste volume com quatro poemas mais.
Sempre encontrei no Fernando um inesquecível homem de saber. Também neste esboço final de livro o vamos encontrar, dentro do diálogo com a morte e com a família que tão intensamente era a sua limalha de ferro e de amor, dialogando com os processos de poetas amados, como Jaime Gil de Biedma. “Último Tesão” e “Um Tal Fernando Assis Pacheco” não desistem de enfrentar “Contra Jaime Gil de Biedma” e “Después de la Muerte de Jaime Gil de Biedma”. Ainda que no Fernando, ao contrário do espanhol, o pathos não fosse um artifício, mas o desafio mais radical com que podemos confrontar-nos na solidão de nós próprios.
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Ano XV, 3.ª Série, 30 Outubro 2004
Mestre de Obras
Torcato Sepúlveda
Lirismo Real
Variações em Sousa traz-nos o lirismo tímido de Fernando Assis Pacheco.
E uma Coimbra fragmentada: “Que teixugos perdi na minha infância (…)”
Fernando Assis Pacheco (1937 – 1965) é um dos raros grandes poetas portugueses do século XX. Associado à poesia anticolonial, ao fescenismo, ao realismo escarninho descendente dos cancioneiros, o seu lirismo tem sido esquecido. A Cotovia reeditou Variações em Sousa, que retirou da antologia Musa Irregular. Seria bom que essa antologia voltasse aos escaparates, sendo-lhe associado o título póstumo Respiração Assistida (ed. Assírio & Alvim).
Contentemo-nos som a real realidade. Variações em Sousa – junção de dias plaquetes, Variações em Sousa (1984) e A Bela do Bairro e Outros Poemas (1986) – testemunha esse lirismo tantas vezes escondido por detrás da descrição irónica da realidade. Variações em Sousa? Os versos de Pacheco invocam outro poeta coimbrão, António de Sousa (1898 – 1981). Invocam só, pois a fantástica Coimbra de Sousa já não é a de Pacheco: “Não tive nada a ver com as / guitarras estudantes (…)” Escreve Gustavo Rubim, num posfácio certeiro: “(…) revela-se muito fragmentária a memória coimbrã espalhada pelas Variações e é menos uma memória específica do que a dispersão da memória a verdadeira matéria do livro.”
A Bela do Bairro tanto poderia viver nos Olivais em Coimbra, como nos Olivais em Lisboa: “Ela era muito bonita e benza-a Deus / muito puta que era sempre à espera/ dos pagantes à janela do rés-do-chão (…)” O lirismo envergonhado continua no soneto As Putas da Avenida: “Eu vi gelar as putas da Avenida / ao griso de Janeiro e tive pena(…)” Avenida da Liberdade, em Lisboa. A viagem literária há-de desembocar no mais violento arranque da ficção portuguesa, Trabalhos e Paixões de Benito Prada (ed. Asa).