22-12-2012

 

 

Florentino Goulart Nogueira (n. 1924)

                                 Faleceu em 14-3-2015               

Um poeta de Campia

 

 

Florentino Goulart Nogueira nasceu em Belém do Pará em 22 de Dezembro de 1924 (e não em 1927, como é referido na Antologia de Jorge de Sena e em muitos locais da Internet), filho de pai português (Joaquim Lopes Nogueira)  e de mãe brasileira (Teodorica da Natividade Goulart). Ainda está vivo, muito diminuído, num Lar de Idosos em Pedras Negras - Santa Comba Dão.

Por volta dos seis anos, veio para Portugal, viver com os avós paternos em Campia – Vouzela. Recebeu a visita de seu pai algumas vezes, mas este acabou por falecer no Brasil.  

Após o Liceu, foi estudar para Lisboa, onde frequentou os cursos de Histórico-Filosóficas e de Direito, que não concluiu.

Na escrita, dedicou-se sobretudo à poesia, ao teatro e à tradução. A sua obra está dispersa por pequenos volumes de poesia e sobretudo, pela sua colaboração em revistas e jornais, alguns dos quais dirigiu: revista Graal, semanário Agora, revista Política, jornal Diário do Norte, revista Tempo Presente. Mas colaborações suas aparecem em inúmeras publicações.

Utilizou muitos pseudónimos: João de Albuquerque, Lopo de Albuquerque, Renato de Valnegro, Denis Manuel, Manuel Vieira, Manuel S. Vieira, Fausto Madeira, António Last e também simplesmente Florentino.

De 1966 a 1969 foi responsável (“mestre geral”) pela Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra (OTUC), criada pelos estudantes de direita, em alternativa ao teatro de esquerda do TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra) e do CITAC (Centro de Iniciação Teatral e Académica de Coimbra).

Jorge de Sena seleccionou poemas dele para as Líricas Portuguesas e disse da sua poesia: "um amoralismo subterrâneo e dramático deu-lhe, todavia, sob a versificação brilhante, uma perturbadora vibração”.

Politicamente, foi sempre militante da extrema direita, mesmo em oposição velada à situação salazarista, apesar da veneração por Salazar. Mas Goulart Nogueira e os seus confrades tinham perfeita consciência da provisoriedade do salazarismo  (afinal Salazar não era eterno, era mortal) e queriam que o regime se definisse de outra maneira.

Eduardo Lourenço, no excelente artigo abaixo referido, chama-o “ideólogo lírico” e “poeta-cruzado”, e trata-o com bastante consideração.

A barafunda do post-25 de Abril levou-o para a cadeia, onde esteve bastante doente. Preso após o 28 de Setembro, só foi libertado sem julgamento no final de 1975.

 

A ligação sentimental de Goulart Nogueira a Campia passa sobretudo pela afeição a uma tia, irmã de seu pai, Hilda Augusta Nogueira Lopes (1903-2000), que foi quem o ajudou a criar em Portugal. A ela dedicou esta poesia, publicada no jornal “Notícias de Vouzela”, de 16-2-1992, com a Nota que também se transcreve:

 

O Bichinho Carpinteiro

Com muito carinho e reconhecimento, à minha tia Hilda que me acabou de criar

 

Abençoada minha tia Hilda

Que oitenta e oito anos faz agora!

A minha voz perante si se humilda

E o brilho meu ao pé do seu descora.

 

Que prodígio, meu Deus, anda, desanda,

Passinho velho e lépido e constante,

Formiga, abelha, fala, mexe, manda,

E sobe e desce e não descansa um instante

 

E vigia e ouve tudo e é um lufa-lufa;

Corrica, corre, corre, azanga*, voa.

E sai e entra e reza e estende e bufa

E aia e geme e arranja e come e é proa.

 

Ai! terrífica tia! Não perdoa!

Com tais quezílias, é mazinha e é boa.

A minha tia que me dá boroa.

 

À escola me levava ao colo. E mimos

Me fez quando eu, inda pequeno estava

Órfão de Mãe, e escuso, e sem arrimos,

Fechado em mim, com noite adentro cava.

 

Rapariga-mulher… Me lembro, lembro.

No lábio superior um buço havia.

E ia à lareira, de Janeiro a D’zembro,

Passar ao lume as pernas à tosquia.

 

Casou. Dois filhos. O menino, um anjo,

Meu afilhado, lá morreu, o infante.

Ficou a filha que me dá um arranjo,

Que ao colo eu trouxe, terno, radiante.

 

O tempo corre. Nem por ele damos.

Uns vão, uns vêm. O afecto é o mesmo.

A tia é grande e já botou seus ramos:

Tem quatro netos, por ‘í fora, a esmo.

 

Guarda e refina o medo que atravanca

Mulher’s da nossa gente onde congregam.

A sete chaves fecha e trincos, tranca;

E o quarto e o chão. Cem mil ladrões não chegam!

 

 

*Verbo usado em Campia no sentido de transpor, como em "azangar a poldra".

 

A tia Hilda é o motor da casa.

Se ela nos morre, nada bule e esperta.

O coração destas paredes vasa

E pára. A aérea é muda, surda, incerta.

 

Vazio. As salas, sótãos, corredores,

A cozinha, o lagar, alpendres, loja

A oficina, currais, a eira, as flores,

Tudo do ânimo se esvai, despoja.

 

E nus, sozinhos, frios, desolados,

Telhados, muros, ‘scorrem, vão mingando

E se deixam cair, já estão usados,

São de outras eras, nem se sabe quando…

 

Ah! Que tristura! Que não tem remendo!

Nem falemos! A Casa do Bernardo,

A Deus, Virgem, Sant’Ana a encomendo!

Talvez, mercê!, lhe dêem um resguardo.

 

Mas hoje é hoje. E o aniversário é festa.

Oitenta e oito bem contados! Viva!

Nem sei o nome que melhor lhe assesta,

Se amor-perfeito ou se uma sempre-viva.

 

Há pouco ainda descobri, surpreso,

Que saio à tia: infatigáveis aios,

Num anda e anda e à coca. Nesse vezo,

Despeço da cabeça luzes, raios.

 

A tia tem a auréola escondida,

Nem dá por ela. Dorme sempre em paz.

Toca este mundo. Só vê terra e lida.

E cada dia, o mesmo dia faz.

 

Deus a abençoe, tia! E, agora, a tia

Deite-me a bênção! Sempre, até à morte

De um de nós dois. E a Virgem Mãe Maria

Nos junte um dia na celeste corte!

 

 

 

Em 13 de Setembro de 1991, para o 88.º aniversário

da minha tia em 16 de Setembro de 1991.

 

Goulart Nogueira

 

NOTA

Goulart Nogueira é um nome que enriquece as letras e, de um modo geral, a cultura nacional. É um Poeta Maior, mas, na linha de Fernando Pessoa, a sua poesia não é fácil. Na arquitectura harmónica das suas palavras escondem-se sombras que perturbam a visão superficial da maioria das pessoas. Parece que elas substituem a matemática na sua função essencial de fazer pensar.

Não nado, mas criado em Campia, bati-lhe à porta pedindo que honrasse o “Notícias de Vouzela” com uma poesia mais inteligível ao vulgo. Não foi fácil a cedência, mas a amizade que há muitos anos nos liga acabou por vencer a sua relutância. Aí fica pois a poesia que ele dedicou à sua tia Hilda, simpática velhinha que vive em Campia. E aí fica também um serviço  -  julgo eu  -  que desinteressadamente presto ao jornal da minha terra.

Mário R. Cruzeiro

 

 

Livros publicados:

 

Atlântida - Florentino. Porto: Imprensa Portuguesa, 1948.

 

Barco vazio em rio de sombra, Denis Manuel, 1951.

 

Conto infantil: O magriço; il. António Botelho. Lisboa: Verbo, 1962.

 

História breve do teatro, Lisboa, Verbo,1962 – só existe o 1.º vol.

 

Salazar: para um retrato de futuro, Textos Sigma, 1970

 

 

Traduções:

 

Tirésias / Guillaume Apollinaire; trad. de Florentino Goulart Nogueira e Lopo de Albuquerque; il. de Joäo Rodrigues. Lisboa: Contraponto, 1962.

 

O príncipe de Homburgo / Heinrich von Kleist; trad. Florentino Goulart Nogueira. Lisboa - 1962

 

 

 

Do livro:   Denis Manuel, Barco Vazio em rio de Sombra

 

 

PROMESSA

 

                    Para o Carlos Gayoso de Penha Garcia

 

 

A noite incensa, perfuma tudo,

Envolve o lótus da minha face,

Nos meus cabelos plange veludo,

Põe-me azevinho no lábio mudo,

 

- Como se a Morte se anunciasse.

 

Tocando harpa, suave e esguia,

A noite virgem beija-me o lado,

Fulge-me os ombros e mos esfria,

Sussurra, lírica, uma elegia,

 

- Como se eu fosse transfigurado.

 

Manto de peixes e de oceano,

A noite é vela subindo mastros,

A conduzir-me, navio humano,

Sem astrolábio, sem portulano,

 

- Como se o peito me abrisse em astros.

 

Onda longínqua, montanha em fumo,

A noite chega num passo langue.

Do selo nobre faz um resumo,

Lúcida névoa na qual me sumo,

Como se fora gota de sangue.

 

A noite chega, belo perigo,

Oval e negra, perfeito enlace -,

A trespassar-me do corpo amigo,

 

- Como se visse o Amor comigo,

Como se a Morte se anunciasse.

 

 

 

INICIO

 

Anjos longos cantaram como abismo.
(A noite veio).
Meus dedos estremecem, num lirismo,
Como lírios de lua no teu seio.

 

Asas longas quebraram minha paz.
(Veio o perfume).
E os meus olhos transformam-se em lilás...
E em meus olhos a noite se resume...

 

O teu rosto é sereia que fulgura...

(Veio o perigo).

Meu coração desmaia de ternura,

E do leme certeiro me desligo.

 

O som dum búzio fala do oceano.
(E a onda chega).
Vou naufragando, como astral engano,
Em tua alma nebulosa e grega.

 

O mistério e a harmonia se conjugam.
(Nasce a beleza).
Em negro espelho, noivam e madrugam
Anjos anunciando a correnteza.


E, então, as asas batem nos rochedos…
(E brota um rio).
Transmudo-me num barco de bruxedos:
Na concha do teu rosto é que eu me guio!

 

Crescem músicas lentas e encantadas…
(A noite veio)
Um rouxinol namora umas espadas
Donde a elegia flui, num gorjeio...

 

Os anjos longos cantam, como abismo.
(Chegou a noite).
Meus dedos se envenenam de lirismo…
Meus lábios se magoam, como açoite…

 

A lua é galgo branco a perseguir-me.
(Chegou o amor).
Sou gaivota de brisa, doce e firme,
Pousada em tuas mãos para o que fôr...


Nada mais, senão tu... Fazes-me a vida.
(Chegou a morte).
Chegou a noite nua e dolorida.

Desliza o rio da vida, como um corte.

 

 

A MORTE, CUME DO AMOR

Para o ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

 

Lobos de cinza e de lã,
Carinhos sujos de lama,
Com olhos de luto e chama,
Com luzes de ante-manhã,

 

Lobos de sangue e de mágoas,
Carnívoros e lunares,
Com vinganças e pesares,
Lamento velho das águas,

 

Lobos que buscais pureza

E o repouso de quem dorme

Em sonho infantil, enorme,

Ó lobos de carne presa!

 

Lobos, sim, línguas vermelhas,

Buscando onde as neves moram

- Não procureis as ovelhas,

Que as ovelhas devoram.

 

 

RENÚNCIA DE AVENTURAS

Para o AMANDIO CÉSAR

 

Galera negra,

Cisne de sono,

- Pelas canseiras

Eu me abandono.

 

Sombra de torre,

Flecha caída,

-- Desiludido,

Pouso na vida.

 

Música de órgão,

Búzio de altura

- Melancolia

Sou e amargura.

 

Relógio lento,
Flor navegante,.

- Ninguém me sente…

Moro distante.

 

Tristonho e mudo,
Árvore nua,
 - Sou como a chuva
Que cai na rua.

 

Lua de treva,
Num rio me escôo;
Nuvem de pedra,
Nem tento vôo.

 

Escorro em lama,
Sem desatino;
Sou fatalismo;
No me destino .

 

Fluo na vida
E ao abandono ...
Galera negra.
Cisne de sono.

 

 

 

SOBRE E NÃO DENTRO

Tudo o que é negro, hoje, é a vida de hoje.

 

Devagar me estendi num lírio negro.

E, na melancolia do meu corpo,

Tombou o firmamento corno um pego.

 

(E os contornos do céu no meu olhar
Como o silêncio à noite sobre um porto

Onde os navios estão sem navegar…)

 

Devagar me estendi no frio de um charco.

Nenúfar o meu corpo, eu o estendi

Como um barco…

 

Desenrolei as velas corno corças

Tendo no peito o golpe dum rubi,

Inocentes e belas, mas sem forças.

 

Ali,
Devagar . . . devagar . . . como ajeitando
As moitas para nelas ir morrer,
Devagar . . . e num gesto muito brando,
Fui estendendo o corpo, quando
Quis nascer.


Mas sem corpo e esmagando como sono,

o céu foi, limos a tolher-me os lances
De rastos continuo como em trono,
A esperar o Senhor dos meus romances


Devagar, em renúncia de aventuras,
Transformei para taça o cavaleiro.
Dardo um rubro sangue uvas escuras
Esmagadas num beijo feiticeiro.

 

Porque o beijo que dou é a espectativa…
Devagar . . . devagar… sem pedir nada,
Estendo me no luto desta vida,
Até que a Vida seja, enfim, chegada.

 

 

A VISÃO


 

Ele (no escuro ando perdido)

Tem uma túnica de linho
Para ensinar-nos o sentido,

Que é nos Seus lábios o caminho.

 

Mas Ele fere quando acena,
Todo de espinhos me recama.
Porque os Seus lábios de açucena,
Ai!, também são lábios de chama...

 

 

 

Do livro: Líricas portuguesas de Jorge de Sena, Vol. 2.º,  pags. 333 a 339

 

 

GANIMEDES

 

Cordeiro de alvorada em seu cabelo,

Adormecido, nítido, encostado
À testa de montanha lisa e gelo.

 

O gelo se desfaz, de manso, em neve

No mar do rosto, com corais na face,

Corais na boca entreaberta e leve,

 

E tomba, em gotículas de orvalho,
Nos ombros torneados e brilhantes,
Qual folha nova a despontar do galho.

 

*
Nos olhos, e esperando um prado extenso,

Duas gazelas líquidas e azuis
Fingem o acenar branco dum lenço.

 

Um lenço, pelo corpo a desfolhar-se

Em rosas-chá, em mármore e em quentura,

No púbis, nuvem de oiro, vai dobrar-se.

 

Aquela juventude ainda é pura.

 

*
Quem tem a manhã na fronte
E relâmpagos na mão imperial,
Quem tem na boca límpida uma fonte
E dois robles no porte de imortal,
Com sua imagem de águia à terra desce
E rouba o pastor grácil que adolesce.

*
Pastor humano, hoje é pastor divino.

Loiro

Loiro e belo rapaz maravilhoso,

Esbelto como um hino,
Tão pleno como um arco impetuoso,
Em suas mãos de Via-Láctea
Serve aos deuses a vida e o alimento

- Licor de ‘luz e de rubis doirados.
E as suas mãos de Via-Láctea
São o’ perfume e o vento
Do seu corpo de valados.

*
Paisagem branda ao sol nascente,
Um olhar dele o representa.
Ë sempre belo e adolescente:
Aos próprios deuses alimenta.

 

E porque tem, como a cereja,
Formas alegres e completas,
Tal como Zeus lhe quer e o beija,
Amam-no todos os Poetas.

 

 (In Távola Redonda, n.° 10)

 

 

De «EROS E PSIQUE»

 

Onde a névoa em crepúsculo termina,
Uma casa dormia. A moça entrou.
Sentiu-se protegida. E a neblina
No pressago lajedo agonizou.

 

Psique, como ao ruflar de asas, ondeante,
Em uma enchente morna se expandiu.
Beijada, ela não viu ninguém adiante,
E, tremula, ao redor ninguém mais viu.

 

Uma voz murmurava, em seus ouvidos,
Ternuras desmaiantes. Um segundo,
Psique tocou nos vultos escondidos.
A noite, límpida, bebia o mundo.

 

E a jovem ergueu luz de flanco a flanco
E descobriu a posse desejada:
Desnudo adolescente, rijo e branco,
Sonhava o azul castor da madrugada.

 

Asas gigantes o escoltavam, graves.
Psique, anémona, então se conheceu,
Beijou-lhe o corpo longo como as naves,
Ele acordou. E desapareceu.

 

 (In Távola Redonda, n.° 12)

 

 

POSSE

 

Mato o que te prender, sem mim, à vida.
Sou a luz que te entrega e rouba a cor,
Exército, violências, investida,
Amar-te é destruir-te, meu amor.

 

Tua língua se estorce em minha
E .o meu corpo raivoso esmaga o
Numa esfera de sombra, imensa e
Giramos, na loucura que nos deu.

 

Enrodilhados, somos um chicote
Silvando, pela noite, e a voar.
Um silêncio espectante. Um holofote,
Súbito, irrompe, descobrindo o mar.

 

Um instante: No espasmo, nós tocamos
A Morte, os astros, a unidade. Eleitos,
Vemos a face à Vida e ali ficamos
Suspensos, intangíveis e perfeitos.

 

Conheço que o teu corpo é, nesta luta,
Nossa realidade encarcerada.
E a voz do mar se esconde e espreita e escuta
Na gruta da tua carne e do teu nada.

 

Teu corpo é o Absoluto estilhaçado.
E, para o libertar e recompor,
Preciso de incluí-lo, renovado.
Amar-te e destruir-te, meu amor.

 

(In Távola Redonda, n.° 18).

 

 

Do livro: Atlântida, Florentino. Porto, Imprensa Portuguesa, 1948

 

DESALENTO

 

Nas galés e no exílio desta vida,
Sofro, porque estou só como ninguém.
E, já que nada ao meu desterro vem,
Faço, para mim próprio, uma guarida.

 

Uma guarida altiva... Recolhida
Na minha dor, minh’alma fica bem.
Eu chegaria além com este aquém,
Sem a revolta vã desta ferida.

 

Ou tudo ou nada. Eu, dúplice alegria,

Que tive infância triste e adolescência

Triste como hoje é triste a juventude,

 

Não podendo alcançar quanto queria,

Renuncio a este modo de existência,

Reconheço, afinal, que nada pude.

 

 

AVENTURA

 

“Noite calada. Na grande cozinha aldeã e solitária,

puro e alheado do mundo, olho os restos da fogueira e

tão fixo que me envolvo com o ambiente das histórias

encantadas. Nos olhos felinos, a recordação do pretérito

gravado em minha carne chama-me. Até às origens

regresso, entrando nos olhos do meu irmão gato."

 


Sortilégios ou brasas ou fuligens.
Mais: um homem-criança. Nos joelhos
Repousa-lhe um carvão. E escaravelhos
São os olhos do bicho, verdes, virgens..

 

O farrusco é um gato. Andam vertigens

Pelos sonhos do homem, como espelhos
Duma era de bruma e sem vermelhos,

Doutra vida distante nas origens.

 

Dorme o fogo. Homem longe. Tudo escuro.

São de vidro, alma funda, brilho duro,

São dragões da caverna e são ferrolhos,

 

Relampejam: os olhos. Frios assomem

Lá de longe, da origem, para o homem

Que ama o gato. Perdeu-se-lhe nos olhos.

 

 

O HOMEM REDIMINDO O MUNDO

 

Trago as mãos cansadinhas de trabalho…

Contorci-as, de noite, no rochedo!

Castiguei-as, de dia, sobre o malho!

Torci-as de esperança e ódio e medo!

 

(Ponho o meu ser em tudo, e em tudo falho!

Com o meu desejo o meu braço excedo!).

Minhas mãos a sangrar! Inda batalho!

Eu pressinto a ameaça…, mas não cedo!

 

Trago as mãos a cair… Dedos chorando…

Sou tal e qual como um veleiro pando,

À tempestade a abrir-se e a combater!

 

Trago as mãos a afogar-se… Vã tristeza?

Ó instante que sou entre a incerteza!

Trago as mãos consagradas para viver!

 

 

DESPEDIDA

 

 

Aqui vos deixo, pois, meu testamento.

Amei. Sofri, Fui homem. Quis ser mais.

Vós todos que me ledes e passais!

Sabei que esta existência é sofrimento.

 

E viver é forçado isolamento,

Desejar cem mil bens hoje irreais…

Cantores! E os que ris! E os que chorais!

Vinde ouvir a Verdade entregue ao vento!

 

Os entes são a dor. Mundo é prisão,

Apelo, anseio, cruz, separação,

Feito para merecer felicidade.

 

E eu não suporto agora tais cadeias!

Ninguém me entende o coração e as veias…

Eu me diluo… Adeus!

                                            Eis a Verdade.

 

 

 

VELHA AMA

 

“Chuva!

Símbolo da Morte…”

   (De “O Canto Escuro da Minha Casa”)

 

 

Tenho uma velha muito velha e amiga

Que lembra as noites e que lembra o linho.

Só nela eu acho o maternal carinho

Onde a minh’alma se recolhe e abriga.

 

Já não tem cor a sua voz, de antiga,

Mas eu escuto-a, leve tal arminho…

Comigo parte o seu quinhão mesquinho

Do que esmolou a multidão mendiga.

 

Por minha ama se nutriu. Meu sono

Velou, constante. Encheu meu abandono

Da sua presença. Mal nasci, chorou.

 

Chorou-me a sina toda igual à dela.

A chuva desce… Minha ama é ela,

Penetra a terra e eu com ela vou.

 

 

 

SOMBRA

 

No cimo dum rochedo hostil e obscuro,

Eu náufrago há que tempos, muitos anos,

Espero algum navio nos oceanos

Descobrir, lento e longe, quase obscuro.

 

Quando passa, afinal, o que procuro,

Lento e longe esvaindo…, quase ufanos

Os maus braços levanto, em surto abano-os,

A chamá-lo, esse vulto de futuro!

 

Mas ele passa ao largo, lento e longe,

Solitário e tristonho tal um monge,

Na distância esfumando os traços frios.

 

Madrugada. Nem sol e nem tormentas.

Ao rochedo, só águas vêm, lentas,

Que roçaram as quilhas dos navios.

 

 

De: http://museu.rtp.pt/app/uploads/dbEmissoraNacional/Lote%2040/00030183.pdf

 

Da vitória derrotada

 

Como posso eu olhar para a paisagem,

Se este tempo cobarde a desfigura?

Ah! Se eu fora de pedra, e esta aragem

Não pusesse em meus olhos a loucura!

 

E se eles bem nos teus, bem cílio a cílio,

Te inventassem com flores de desvelo!

Como posso eu amar-te num idílio,

Se no meu coração há pesadelo?

 

Os moluscos, os mitos, os miasmas,

Distorcem-nos, baralham-nos! Delírio

Em que se tornam vis nossos fantasmas.

 

E o teu vulto se queima, como um círio,

E este tempo nos beija, num lameiro,

E a paisagem talvez grito, primeiro!

 

Contra o barco vazio

 

Sobre os charcos de bolor

Todo eu me cravo, em facas,

E sobre as bóias das nuvens

Golpeio como ressacas.

E estendo fisgas nos nervos

A golpear as mãos fracas,

Sobre os charcos de bolor

Caio, como o sol, em facas.

 

Corto ao corpo amarelado

Verdes artérias de visco.

Mas sou punhal disfarçado

Fugindo às ordens do fisco.

Faísco nas catacumbas

Enquanto sei que me arrisco

A morrer asfixiado

Por entre gazes de visco.

 

Mas sob as patas do charco,

Para mais dentro que a lama,

Quebram rostos de criança

Na água de vidro e de escama.

Como “iceberg” de fogo

Um coração que não ama

Está vermelho e adormecido

Congelado, sob a lama.

 

Meus lábios de sol o beijam.

E em cachoeira de estrelas

As águas mordem bolores

Que tentam apodrece-las.

Às nuvens, o coração

Vai, falcão, liquefazê-las.

Meus lábios retalham charcos

Tal uma espada de estrelas.

 

E aos pássaros papa-figos

O falcão há-de sangrá-los,

Há-de fazer dos bolores

Água como a voz dos galos

E que não esteja esquecida,

Mas trote como os cavalos!

Aos mantos frios de veneno,

Coração!, hás-de sangrá-los!

 

Poemas lidos pelo Autor em 15-9-1960 aos microfones da Emissora Nacional no programa Horizonte, de Domingos Mascarenhas, com a colaboração de Amândio César e Fernando Guedes.

 

 

Na sua juventude, Goulart Nogueira  escreveu letras para canções. A mais conhecida é a deste fado na voz de Beatriz da Conceição:

 

Madrugada sem sono

Letra: Goulart Nogueira

Música: Raúl Ferrão

 

Na solidão a esperar-te,
Meu amor fora da lei
Mordi meus lábios sem beijos
Tive ciúmes, chorei.

Despedi-me do teu corpo 
E por orgulho fugi,
Andei dum corpo a outro corpo, 
Só p’ra me esquecer de ti.

Embriaguei-me, cantei 
E busquei estrelas na lama,
Naufraguei meu coração 
Nas ondas loucas da cama.

Ai abraços frios de raiva, 
Ai beijos de nojo e fome,
Ai nomes que murmurei 
Com a febre do teu nome.

De madrugada sem sono, 
Sem luz, nem amor, nem lei
Mordi os brancos lençóis, 
Tive saudades, chorei.

 

ADENDA - 10-7-2013 - Foi lançado um CD de Gisela João, com uma excelente interpretação do poema na música de João Black (Fado Menor do Porto).

 

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BIBLIOGRAFIA online

 

 

Pequenas biografias mais ou menos exactas

 

Thule, La cultura de la otra Europa – Un estudio de introducción, pag. 256

Online: http://pt.scribd.com/doc/57137580/Thule-La-Cultura-de-La-Otra-Europa

 

Metapedia:

Online: http://pt.metapedia.org/wiki/Goulart_Nogueira

 

 

Política

 

Direita radical em Portugal (Extractos de textos de Goulart Nogueira na revista Tempo Presente)

Online: http://www.direitasradicais.ics.ul.pt/?p=1529

 

Permanência do fascismo, in «Agora», n.º 329, 04.11.1967, págs. 3/12

http://fascismoemrede.blogspot.pt/2005/02/permanncia-do-fascismo.html

 

Eduardo Lourenço, Fascismo e cultura no antigo regime –Análise Social, 1982

Online: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223461393L4vFD6wb2Cr97LU2.pdf

 

Riccardo Marchi, A direita radical na Universidade de Coimbra (1945-1974). Anál. Social, jul. 2008, no.188, p.551-576

Online: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1222271272R1bQF7gl1Gj47WR9.pdf

 

Beja Santos, As direitas radicais portuguesas no fim do Estado Novo

Online: http://movimento.vidasalternativas.eu/index.php/temas-beja-santos/306-as-direitas-radicais-portuguesas-no-fim-do-estado-novo.html

 

António José de Brito, O exemplo de Caetano Beirão,  (in O Diabo, de 15 de Outubro de 1991)

Online: http://www.causanacional.net/index.php?itemid=357

 

Luis Aguiar Santos, Um teste aos conceitos de nomocracia e teleocracia: o jornal Política perante a «primavera marcelista» (1969-1970), in Análise Social, 1998

Online: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1221844796W3jWZ5jq3Km89WC1.pdf

 

 

Poesias

 

Jacob

http://fascismoemrede.blogspot.pt/2009/08/na-hora-de-antonio-jose-rodrigues-de.html

 

Tradução do poema de Brasillach "Mon Pays me fait mal"

http://manliusj.blogspot.pt/2007/05/lembrando-brasillach-e-goulart-nogueira.html

 

Tradução de canto XLV “Contra a Usura”, de Ezra Pound, in Tempo Presente n.º 2, Junho de 1959

Online: http://www.causanacional.net/index.php?itemid=33

 

Na revista Colóquio, da Gulbenkian:

Goulart Nogueira, "O caçador de borboletas; Clave de dó na escala e chave do D na escola; O poema (versão I); A pitonisa" / Goulart Nogueira. In: Revista Colóquio/Letras. Poesia, n.º 125/126, Jul. 1992, p. 90-95.

Online: http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?author&author=NOGUEIRA,%20GOULART

 

Dedicadas a Rodrigo Emílio de Alarcão Ribeiro de Melo (18-2-1944 – 28-3-2004)

http://nonas-nonas.blogspot.pt/2007/12/no-aniversrio-de-goulart-nogueira.html

 

Sátiras a Marcelo Caetano:

http://nonas-nonas.blogspot.com/2008/07/marcelrica-poema-de-tomaz-de-figueiredo.html

 

http://nonas-nonas.blogspot.com/2008/07/s-at-o-algarve-poema-de-goulart.html