2-1-2013
GOULART NOGUEIRA (n. 1924)
TEXTOS e POEMAS (por ordem cronológica)
CONTRA O BARCO VAZIO
Temos veias de lua, olhos toldados,
Bebemos sonho e dispersão, aos goles,
Entramos para a noite embriagados,
E as nossas mãos fazem carícias moles.
Cá dentro
escorre música de dança,
Mas as notas
são vermes, dentro em nós,
Qualquer apelo nos corroi, nos cansa,
E qualquer som nos enrouquece a voz.
Vem, tu, grito solar, corpo desnudo,
O ímpeto da fé, que nos aterra!
Tens pés de terramoto e geras tudo,
Ó Ares, Afrodite, Astarte
— guerra!
(Távola Redonda,
fasc. 18)
reproduzido
em:
João Gaspar Simões, História da Poesia Portuguesa do Século Vinte
Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1959
Págs. 808 e 809
A QUINTA NOITE
Ao Fernando de Paços
Água negra sem margens, negra e alta,
Alonga-se, agiganta-se, e é o mundo,
Para dentro da órbita minúscula
Que limita o olhar antiquíssimo
Da humidade na rua após a chuva.
E é lá dentro, na esfera de silêncio,
Como na esfera fria de bruxedo,
Que os gestos deste mundo se desvendam
E harmonizam e são determinados.
Ali, não há firmeza nem mudança,
Nem tempo, nem há som, lembrança ou fuga.
Ali, é pesadelo sem temores,
Aglutinante mar de morte e noite,
Prolonga-se o mercúrio em chão de fumo
Dos fins do mundo para o outro mundo...
Como prensa esmagante de granito,
Como placas de gelo pelo espaço,
Deste lado edifícios como asas
Estrangulam a rua, com os vultos.
Numa gota sensível, mas de ferro,
A criança desperta, rodeada
De aurora boreal, de ausência e pólo.
É toda ela uma campina extensa
Com estrias à espera da semente.
E, então, de súbito, abrem-se as janelas,
Chega um golpe de música de império,
Uma harpa, uma pauta, um terramoto.
E de fora, e de fora da janela,
Mais acordes, mais golpes a percorrem,
Alterando-lhe a fonte dos seus olhos,
Deferindo-lhe as luzes das pupilas,
Transformando-as num feixe azul de raios
Numa onda impalpável, gigantesca,
Um odor perturbante, uma quentura,
Que rasga as veias tensas da criança,
Que faz jorrar a alturas desmedidas
Um rio devorante, enxofre e sangue.
Na janela da casa sem terreno,
De fora da janela angustiante,
Do precipício sem matéria alguma,
Vem de todos os lados, invadindo,
Um coro, um canto bélico indomável,
Que seduz, que ensurdece, que ressoa
E que chama a criança, a arrasta.
Ela ergue-se, pura, rebrilhante
E sobe ao parapeito da janela
Onde fica, no impulso, como um arco
Ao despedir a seta, como um voo.
Atira-se no espaço, gloriosa.
Mas vassouras revoltam o oceano
Mas bastões fazem vir, de novo, a lama,
E moedas perturbam a água límpida,
E os espelhos deformam as imagens,
E uma nuvem de bichos se atropela
Que saltam, rindo, aos objectos todos
E com um bafo, apenas, as apagam.
A pauta, a lira, a harpa e uma aranha;
O feixe azul de raios - gavião;
O rio de enxofre e sangue é uma serpente.
E todos formam., lá em cima, um círculo,
Suspensos, rindo, sobre a angústia, o vácuo,
O silêncio sem fim, a repugnância,
Onde a criança paira e asfixia.
É já com olhos fracos e toldados
Que ela divisa, ao menos, um fantasma.
Ou um gole de ar puro, uma saída
Da caverna, uma trompa ou um
Um latido de cães pela floresta,
Um regato de flores, uma cama,
Um pedaço d corda balouçante...
Com os dedos de ferro, com os dentes,
Raivosamente rouba a corda, agarra-a,
E baloiça entre o ritmo das estrelas,
E despenham-se e vogam os cabelos
Da criança, do esbelto adolescente,
Formando uma planície de água
Sem margens, alta, mar de noite e morte.
Como um comutador ou alquimia,
Dum salto o adolescente se dispara
Do vácuo para a rua inda molhada.
Acende-se no fundo dessa rua
Um fato branco ou fato azul ou corpo,
Um gosto a sal. O pirilampo sobe
E cresce a luz mais deslumbrante e perto
Enquanto a noite é mais profunda e muda.
Como um rastilho sobe a luz, morena,
Completa, golpeada pelo sangue,
Com os rins recordando as ondas largas,
Com o peito no jeito dos navios.
E anuncia, nas mãos longas e fortes,
Nos olhos negros, fundos como pregos,
Fomes que se devoram num combate,
Corrosão e fogueira e transparência.
O adolescente chora. E a narina
Vibrátil, nacarada lhe estremece,
O lábio geme, os olhos se ajoelham,
E, vagaroso, inevitável, segue,
Com lágrimas, e o rosto de alegria,
Ao encontro da luz mais forte e perto.
Atrás dele se escoam os ruídos,
As luzes, o encanto… Há lixo e muros:
Naquela esquina, o homem gordo espreita.
Ao jovem hirto, o fato azul estende
Um cabelo perfeito e rectilíneo,
Seguro entre dois dedos, atingido.
Esse cabelo puxa o céu nocturno
E desvenda uma praia. É claro dia.
No cabelo caminha o jovem, pálido,
Enquanto os dedos fortes o procuram.
Os olhos de ambos se misturam. Ei-los
Musicados, enfim, no mesmo vórtice.
O homem gordo que os espreita segue-os.
Mas eles puxam alçapões, manhãs,
E fogem ambos, por ali, num cântico.
Na outra esquina, e de chapéu, de novo
O homem gordo espera o mesmo jovem.
O jovem bebe o álcool do seu pulso
E encontra-se logo no outro lado.
Mas descobre também, de cada canto,
Outro homem gordo e outro e outro ainda.
Começa a andar depressa, ressoando
Pelas pedras de ónix que o aureolam.
O homem gordo corre, espapaçado,
Resfolega e lá vai, penosamente.
O suor o aureola e o suja e o morde,
Ao homem abatido na calçada.
E corre e geme, e cala-se, e mergulha
A cabeça no ventre mole e grande.
O jovem se retesa e se contorce
De nojo, ao vê-lo e pára, a espera dele,
Vomitando-lhe em cima das narinas.
O gordo resfolega, e dos seus ombros
Emergem, só, cabelos espetados.
Corre, de novo, mudo, atrás do jovem,
Envolto em luz de enxofre e luz de ónix.
Nos ouvidos do jovem, um pedido,
Uma voz torturada do homem gordo
Que não ousa falar, insiste e clama:
“Não me persigas mais! Não me
persigas!”
Que lamentavelmente o gordo corre!
E não é já um homem gordo, apenas.
Atrás dele, colado mesmo a ele,
Apagando-lhe, às vezes, os contornos,
Evaporando-o, corre um anjo em fogo.
Tem cornos de cometa e de açucena,
Paralítica a boca do granito,
Tem as asas de estrondo e baionetas.
É uma túnica alvíssima, de golpes,
É uma legião de sol virgem, terrível;
No frio cais, no escuro, à beira de água
E de óleo a contemplar silêncio e medo,
Abate-se, num raio, sobre o jovem
E calca-o sob os pés e o dilacera
E o esboroa, gritando: “Oh! Abandona-me!”
Num fulgor subitâneo, o jovem olha
E vê que são um só, que são o mesmo,
O fato azul e o homem gordo, o anjo,
Nojento, o gordo roja-se, em rodilha:
“Não me persigas! Não!” No mesmo instante,
Um sorriso moreno chama: ”Vem”.
E tudo aquilo é uma torre altíssima
Onde giram os astros e os séculos.
O jovem, numa límpida esperança,
Num desespero que é a Primavera,
Atira-se, com ira, contra a torre,
E é um cristal quebrado que se muda
Em perfume.
Uma esfinge o toma e queima
Num altar, e ele sobe, sempre, sobe
Às fauces infindáveis e sangrentas
Dum lobo insaciável e esmagante,
Como um ídolo, um claustro e o terror.
E este fumo e perfume tolda ao lobo
Os contornos que agora se descobre
Serem os dum cordeiro degolado,
Melhor: dum homem vivo que devoram
(Porque ele o quer,) com alegria e espanto,
Pavidamente, com amor, com ânsia.
O perfume, contido, também jorra
Entre as garras da esfinge, para as sombras.
Torna as flores nocturnas, venenosas,
Enche o tempo de inverno e cogumelos
Mortíferos. E estende, estende, estende
Uma placa de lama, pus e vermes.
Depois, cinzento e nenhum som, cinzento
E uma imobilidade. Quase o nada.
Com que palavra o Verbo se revela?
Com que agulha se fere os pés da esfinge
Para eles queimarem o perfume?
Assim, nas ruas nuas e molhadas
Reflecte-se o mercúrio.
Que vertigem!
(Excerto do poema: “AS ÁGUAS RETALHADAS”)
Na revista “GRAAL”, o poema tem ilustrações de Manuel Cargaleiro.
(Da Revista "GRAAL" - Junho-Julho de 1956 - pág. 114-117)
“GRAAL” E A OLHADELA DE “PENTACÓRNIO”
O Sr. José Augusto França parece que é fértil em inexactidões: quer a transcrever quadros genealógicos da arte abstracta, quer a fabricar obra surrealista, quer a definir ou interpretar fenómenos, quer muito simplesmente a citar factos. De repente, fica eufórico, pletórico ou lá o que é. Calcule-se o estrago por esse país fora! O Sr. França, elegante como um prestidigitador, dá o seu chá com torradas; está a “inteligenzia” portugaise: professores universitários, críticos presencistas, existencialistas de Marcel, de Heidegger e de Jaspers, pintores pressurosos de surre para ab, poetas de mística e gravidade inglesas, está tudo, tudo. De repente, o sr. França lembra-se de que fez recentemente uma incursão sobre Paris; naquele chá bóiam vapores der Europa. O Sr. França inquieta-se. Ao lado, uma voz monótona, lamentosa, desligada do nexo das conversações, repete pela milésima vez que “alguma coisa está podre no reino da Dinamarca”. O Sr. França lembra-se: “Oh! mas esta nação não existe no tempo! Lá fora, os intelectuais andam com outros desesperos! Eu não estou à la page. Que desespero! Que desespero! Estou desesperado! Estou muitíssimo desesperado! perado! perado!” Enterra um chapéu de coco até a um tornozelo e entra para a rua, em dia de Páscoa. Perde a cabeça. Quem entra para a rua é um chapéu de coco distribuindo flores disfarçadas de bombas e clancórnios disfarçados de mitologia. O chapéu de coco olha para um facto: “A “Aguia” findou em 1932”, e tresvaria, berrando: “A “Aguia” findou em 1926!”. O chapéu de coco inventaria os córnios e nota que os colaboradores do corpo da revista foram 26, dos quais pelo menos 17 estão em Portugal e outro está morto; e então marinha pelos prédios da Rua do Carmo, num dramatismo europeu: “A maior parte dos que foram, ou são, colaboradores do corpo desta revista conseguiram encontrar-se hoje a viver no estrangeiro”. Depois, senta-se comodamente na Galeria de Marco, tira-se a si próprio, cumprimentando-se pela iniciativa, e anuncia às bancadas: “Comprem esta inquietação europeia! Exponham aqui desesperos europeus!”. Levanta um bocadinho a aba, e de lá de dentro sai uma dentadura sarcástica que pronuncia dodecafonicamente: “A “Graal”? Pf! Vive, sim, mas... coitada, nem ela sabe. A extrema direita é que a sustenta, pois senão ela veria que não tem raízes, público, existência, que é uma coisa desligada da realidade, que é um simples sedimento literário”. E, orgulhoso, mostra a própria copa: Olhem para isto! Isto é que é um seio! Um só, mas que opulento, que alimentício, e com que raízes ligadas à madre!”. Sai, abanando-se.
(Da Revista "GRAAL" - Dezembro de 1956 - Julho de 1957 - pág. 406)
Saída para a paisagem
Fartei-me da noite. Fartei-me do sono.
Ai! quatro paredes, sempre, sempre iguais!
Cá dentro, só ler-me. Deixo ao abandono
Alfarrábios, muros, que hoje, quero mais.
Distende-se agora sangue em minhas veias,
Seta nas paredes, fogo no casal.
Abre em concertina, com as pregas cheias
De música, arfando, sobre o natural.
Tomba o rio da pauta. Descem aves tontas
Para os galhos verdes. Descem em festões,
E endoidecem! Galhos? Afinal de contas
Eram esqueletos, forcas e canhões.
QUADRANTE - Revista da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, n.º 1 - Julho de 1958, pág. 26
SALMO
“De profundis clamavi ad Te, Domine” (David)
Do fundo da Tua inexistência,
Clamo por mim, Senhor!
Que sou eu? O que são estes poemas? Isto, apenas:
Uma pergunta, um réptil em
busca de vôo,
Uma fome comendo, uma actividade.
Tudo é uma experiência! De repente,
Quando à mesa da noite ajusto, solitário,
A geometria,
A montanha aonde Tu e eu subimos
Secretamente, para nos encontrarmos
(E nunca foi possível
!),
Ah! de repente,
Um tropel entra desde o chão até ao cérebro
E arrasta-me, derrubando todas as palavras certas;
Todos os gestos hieráticos, as meditações alquímicas,
As relações-tradições mágicas.
E o mercúrio e a prata e a água nocturna
E Hermes e o número seis
Vão derrubados pela
possessão de Dionisos.
Uma cabeça monstruosa dança
E as voltas do cérebro e os cabelos
São vermes sibilantes
Ardendo,
As fúrias projectam-se para todos os lados,
Sou uma torrente velocíssima, tragando o mundo,
Ascendendo pelo espaço, com tamanho fragor, carros de guerra com asas,
Que o silêncio, afinal,
É aquilo.
Regresso.
Baixinho, interrogo: Como hei-de parar?
Como aniquilarei este vórtice, circunferência irreprimível,
Como destruirei o pensamento?
O pensamento? a alma, o corpo, a vida,
Esta fome comendo, insaciável.
Sou uma consciência, a consciência,
Mexo-me, assimilo, quero crescer, aumento,
Quero ter, quero ser, quero o ser, quero-Te,
Quero-me,
Sou uma força, uma actividade e não paro em nada,
Nem mesmo no que eu amo e guardo;
Avanço para além. Sou isto.
Os meus poemas são isto. Poesia?
Literatura?
Também. Ou às vezes.
Utensílios, sobretudo; detectores, primeiro; mapas;
Movimentos meus,
Dentes, entranhas, ácidos com que devoro,
Olhos onde se reflectem imagens,
Dedos cariciosos, falos indomáveis,
Penetrantes e genesíacos. Isto os meus poemas.
Números de arquitectura, de cosmologia.
Retortas e telescópios, flores carnívoras,
Fagocitose e dilúvio.
Os meus poemas não são mais do
que um modo de eu matar,
De eu absorver, de eu possuir, um modo entre outros.
Não quero mais aos meus poemas ou aos poemas
Do que um belo corpo amado, a degolação das vitimas,
A um sobressalto de medo, a noite muda, a uma prece,
A um raciocínio, a uma descoberta... Avanço.
De rastos, voando, enrodilhado, em seta,
Tumultuoso, rigoroso, límpido, claro, sulfúreo,
Prolixo, conciso, puro, luxurioso, heróico,
Barroco, abstracto, avanço e ultrapasso e interrogo:
Como hei-de parar?
Dos ouvidos adensa-se-me o terreno aflitivo.
Sem vida nem luz nem som. Tenho o horror do vácuo,
Uma vertigem me toca. O não ser? Quase grito
E o suicídio silva-me, sem se deter. E eu tombo
No chão, exausto de pancada, suando.
Sou uma fome comendo, uma
actividade.
Do fundo da Tua inexistência,
Clamo por mim, Senhor!
(Jornal "COMBATE" n.º 1, de 10-2-1962)
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Germania an ihre Kinder
1.
Heinrich von Kleist
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POEMA
Ouçam! Escutem! Pela
noite,
(Jornal "COMBATE" n.º 2, de 26-2-1962)
Mais que tradução (muito livre), este "Poema" é uma adaptação ainda mais livre do poema de Heinrich von Kleist (1777-1811), pois "aproveita" apenas as quadras do coro n.ºs 1, 2, 3, 5 e 7 (assinaladas). A indignação do poeta é contra os Franceses, mas na tradução, o inimigo é um invasor não identificado.
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UMA GERAÇÃO NOVA
A minha solidão era um rio fluindo num globo cristalino, um círculo que arrastava estrelas nos chifres de Capricórnio. Mas, sob a milagrosa marrada, alastrou tudo em Via-Láctea, e pela estrada de S. Tiago sobre a nova peregrinação: ao túmulo do Santo, a ara do altar, a pedra filosofal, a taça oculta. Em 1948 (Dezembro — Solstício do Inverno), publiquei “Atlântida”, o meu primeiro livro de poesias. Continuei isolado e aqueles grupos e revistas por onde passei não souberam em plenitude comungar comigo a mesma viagem. Em 1956, eu e o Décio Pignatari dávamos a Portugal as primeiras notícias e a primeira teorização do Concretismo em língua portuguesa. O que dali surgiu, após mais contribuições publicadas em “Tempo Presente”, é pobre “experimentalismo” que em si mesmo se esgota. Mas outros marcos de caminho começam a trazer a Luz. O caminho é a Estrada de S. Tiago, redescoberta e renascimento da Atlântida. É o mesmo que o novo caminho para uma nova India, que a viagem para o Reino do Padre João, que o rumo dos Argonautas ao Velo de Oiro, que a reabertura do Paraíso Terrestre, que a escalada pelos degraus da escada de Jacob, que a ascensão à Montanha, o regresso a Jerusalém, a posse do dragão, a alquimia. Os ignorantes dirão: “Trata-se de um grupo de místicos ou de esteticistas e nefelibatas ou de supersticiosos ligados a espiritismos e magias”. Pois nada temos a ver com essas coisas. Detestamo-las até, excepto o misticismo que respeitamos como outra via. O que para nós conta é a Tradição profunda e a actualidade. Amamos o nosso tempo, é este que queremos, não para o aceitar, passivamente, mas para o assumir, em toda a sua riqueza de possibilidades, e para o transformar. Na vastidão do seu significado, procuramos o Império. Especular, reflectir, imaginar - eis a nossa tarefa. Por isso, realizamos obra de espelho, reflectimos as figuras, erguemos imagens. O mundo que criamos, nós poetas, criadores, é, por mais fantasioso de aparência, sempre rigoroso de exemplaridade. Como regra temos: “Ora, ora, ora, labora et invenies”. Procuramos no interior, interiorizamos o mundo, ali dentro nos intensificamos ate ao mais longínquo, remoto e de origem, aplicamo-nos à tarefa indomável e, por fim, o momento chega, a iluminação faz-se: é o encontro, o amor, a comunicação arrebatadora. De acordo com esta atitude, os nossos “puzzle” e organismos são vestígios do Desaparecido que levam a Aparição ou barcos demandando o |
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porto. E quer as palavras e os poemas sejam objectos, ou sinais, ou sons para a música, ou sombras de vulto, ou passes mágicos - sempre e sempre os temos como alquimia. O ouro Espiritual atinge-se. Desde há muito que não surgia uma verdadeira Geração de Poetas e o significado da palavra alarga-se, no entendimento inicial. Os que surgem, agora, actuais e actuantes, empenhados no Pensamento e na Acção, Tradicionais e Modernos, Reflexivos e Dinâmicos, inteligentes, sensíveis e voluntários, cultos e imaginosos, podem considerar-se verdadeiramente vanguardistas e genesíacos, uma nova e totalizante geração.
(COMMEDIA n.º 1, 1966)
PRIMEIRO ENSINAMENTO
Todas as palavras, todos os sons,
Todos os meios são bons.
Escolha-se o sítio exacto
E uma vírgula faz-se um gato.
Descobrindo-se a mão torta,
Abre-se uma nova porta.
Por entre os muros torcidos,
Crescem palmares floridos.
Nos círculos infernais,
Vencemos os animais.
E, com dois chucos cruzados,
Rodamos os quatro lados,
Deslizamos e subimos,
Fazemos pautas dos limos.
E, pelos dentes quebrados,
Saem silvos desgrenhados
Que se alisam
— e eram feras!
—
Na harmonia das esferas,
Todas as expressões, todos os ditos!
Todos os actos são aflitos.
Cada movimento nosso,
Cada músculo e cada osso,
Cada bafo e cada olhar,
Cada célula a mudar,
Cada som ou gosto ou cheiro
E
a busca do Céu inteiro.
Todas as linhas e construções,
Todas as palpitações,
Todos os modos das pessoas,
Todas as linguagens são boas
Para encontrar o cimo e o fundo,
Se as move o coração do mundo.
O
Cristo vitima, ó encruzilhada,
O
Imperador, roda quadrada,
Contigo, inimigo que me aguilhoas,
Todas as coisas são boas,
E, do meu fojo, saio a terreiro,
Gemendo e buscando o Sol inteiro,
Tentanto sons, palavras, gestos,
Dias benéficos e molestos,
Usando formas perfeitas, pedaços,
Corpos de cânone, dentaduras, braços,
Correctas e belas estruturas, caos,
Pois nenhuns processos são de todo maus.
O
Cristo, coluna que o mundo sustentas,
Fome embriagadora que nos alimentas,
Se a came e o sangue, alma e Divindade,
Tu que és o Caminho, a Vida, a Verdade.
Penetra nos gestos e Sons.
Contigo, os meios são de todo bons.
Escolha-se o sítio exacto
E teremos uma águia dum rato.
DEVORAMENTO DA ESTÉTICA
Pensam que estou convosco.
Dizeis que estou convosco.
E assim julgam meus versos:
“Este é lindo!”. “Esse é tosco…”.
Ignoram convulsões
Onde me chispo e enrosco
A dar um corpo aos versos,
Fulgor ao vidro fosco,
Labareda com dentes,
Doirado trigo mosco.
Quero o centro do Sol.
Pensam que estou convosco...
(COMMEDIA n.º 1, 1966)
Sobre este número de "COMMEDIA", ver textos de José Blanc de Portugal, aqui, aqui e aqui.
SALAZAR
● PARA UM RETRATO DE FUTURO ●
por GOULART NOGUEIRA
Eu podia limitar-me a escrever um elogio fúnebre: Salazar foi um génio de tamanha estatura, com qualidades tais que permitiriam desenhar assim uma face de medalha. Mas prefiro outra imagem, ao mesmo tempo mais espectral e mais viva, mais de corpo inteiro e múltipla, mais de alma comunicada e mais justiceira, prefiro uma imagem que brote da ligação ainda gravemente resultante entre o Homem e a Pátria, entre o Governante e a Nação. Longe de mim embarcar no desfile grotesco e nojento dos burros que dão coices no leão moribundo, dos cobardes que insultam o morto que glorificaram. Mas entendo que Salazar e Portugal estiveram empenhados de tal modo num empreendimento comum, que Salazar é de tal maneira responsável pela figura pátria de hoje e pelos destinos de amanhã, que não podemos alhear-nos de reflectir um pouco sobre as qualidades e defeitos, sobre os benefícios e os erros de um Governante que marcou e poderá marcar ainda uma atitude, um procedimento, uma ideia.
Eu nunca fui salazarista; e, geralmente, por razões contrárias às dos oposicionistas gritantes e constituídos; em nome dos meus princípios fascistas e da consequente observação dos factos.
Salazar propôs, em determinada
ocasião, uma frase-lema, onde se consubstancia ou se denuncia toda uma visão e
um norteamento. Essa frase indicou: “viver habitualmente”; quando Mussolini
apontara: “viver perigosamente”. Ora isto de querer que se viva habitualmente,
que seja esse o procedimento e o ideal torna-se rico de implicações. Salazar
desejava que fôssemos homens comuns, com as virtudes dos homens comuns, com
a simplicidade da mediania, com a sensatez do quotidiano e a sensatez previdente
da formiga, com o sossego burguês da família e do quase intemporal decorrer numa
existência campesina. O país, as gentes, a alma fiariam, guardariam rebanhos,
aplicar-se-iam em gabinetes burocráticos, numa felicidade sem sobressaltos nem
ambições, trabalhando, comendo e rezando, numa vida provincial e provinciana.
Salazar foi um conservador, essencialmente, e honra lhe seja quanto a defesa
corajosa, implacável, do que existe de valioso na conservação, na tradição que
se comunica e flui, íntegra sempre. Mas a vida e o espirito são mais do que
conservação e do que pascigo quotidiano. Descobrir e colonizar foram aventura e
invenção, alma ardorosa e inquieta, pesquisa lucilante e entusiástica; condução
à excepcionalidade, ao heroísmo, à quebra de simples segurança. Não devemos
reduzir-nos a viver no hoje ou para o hoje, para amanhãs feitos de hojes, para
um espirito menor que quase adormece na vida de animal doméstico. Realmente,
onde acaba o hábito, se não no automatismo? Trata-se, então, de um materialismo
prático? Não, decerto, mas também de uma certa incrustação materialista, nimbada
por um espiritualismo ingénuo. Havia em Salazar um fundo providencialista bem
arreigado: Deus velará, Deus disporá e resguardará, Nossa Senhora de Fátima
assiste-nos. Esta espécie de “fia-te na Virgem e não corras”, este ir a passo,
esta privação de criar o reino de Deus à ponta de espada, esta privação de
rasgos de entusiasmo e de campanhas povoadoras, lançava-nos em um alheamento que
resultou no apego à burocracia, ao governo que está (em vez de às ideias que
iluminam, aquecem e alimentam).
O dia-a-dia, o quotidiano, o habitualmente desembocaram numa recusa de “preparar
o futuro” (como insistia e avisava Alfredo Pimenta), numa crença de que as
instituições de pequeno quotidiano, a sensatez popular, a moderação dos
governantes da ocasião afiançavam continuidades para além de quaisquer
golpezitos de transição; com a Providência divina sempre velando. Por isso, o
espirito vivo, flamejante, faminto, alimentício, criador, o espirito múltiplo e
uno, o espirito gerador e comandante, o espirito esvaiu-se, mirrou-se,
anquilosou. Não vimos a educação da juventude, a conformação doutrinária, mental
da sua personalidade, s compreensão da sua natureza dedicada, exigente,
totalitária, arrebatada e generosa. Não vimos a pléiade de militantes, de
cabouqueiros e bandeirantes iluminados, de fiéis intransigentes e vigilantes.
Não vimos a protecção e a honraria dos intelectuais e artistas, a consideração
de que são fundamentais no exercício nacional e nos princípios de um Estado
autêntico, ideal e real. Assistimos a tristes consequências de uma detestável
mentalidade burocrática, tecnicista, mediana e medíocre, prudente e acocorada,
barriguda e de olho vivo, egoísta e cobardola, indiferentista e céptica,
provinciana no conservadorismo e no vanguardismo, na pseudo-tradição e no mito
do progressismo, nas frases feitas sobre Colónias, Império, Ultramar e no
pé-leve sobre uma Europa utilitária e de fancaria modernaça.
E, no entanto, este Homem que nos quis reduzir, num grau e numa continuidade excepcionais, a gente comum, este Homem que foi excepcionalmente, genialmente, uma incarnação das virtudes e mentalidade do homem comum, este conservador impenitente, este provinciano aldeão potencializado de mestre universitário, de insuperável diplomata, de chefe de um Estado e de um Povo, este sensato do “produzir e poupar”, num círculo de geira e pé-de-meia, este admirável admirador do quotidiano e do habitual, foi uma personalidade de excepção, foi um dos grandes na História do mundo, foi um governante sincero, honesto e de extrema devotação, foi Alguém que amou inteiramente a Pátria e o Povo, foi um inamovível opositor às mentiras democráticas e aos mitos marxistas, foi um discordante leal, um opositor generoso, uma inteligência e uma voz imperturbadas pelo tumulto do pós-guerra. Salazar acreditou na integridade da Pátria e nunca enveredou pelo mínimo acomodamento ou deslise, em canais escorregadios de autonomias crescentes ou “actualizações” parvas e lisonjeadoras. Com todos os seus erros e defeitos, ele é, no mundo destes últimos 25 anos, e perante a ridícula e pressurosa vaga de quem quer ficar “à la page”, um vulto gigantesco e digno, uma vontade que adquire sons e movimentos heróicos, uma acusação terrível a todas as demissões. E eu que não sou salazarista, que nunca o fui, quase que me senti salazarista quando tantos dos seus turiferários e apaniguados no “habitualmente”, se esgueiraram pela esquerda baixa, ladrando, cuspindo ou negando o leão caído.
Textos Sigma
Tipografia Casa Portuguesa, Lisboa, 1970