22-11-2005

 

Página Principal               

 

VIDA

 DR. GREGORIO DE MATTOS GUERRA

 

 PELO LICENCEADO

 MANUEL PEREIRA REBELLO

 

 RIO DE JANEIRO

 TYPOGRAPHIA NACIONAL

1881

 

Extraído das Obras poéticas de Gregorio do Mattos Guerra

 

A vida de Gregorio de Mattos Guerra que ora sae a luz foi escripta, ao que parece, na Bahia, por meiados do XVIII seculo, pelo licenceado Manuel Pereira Rebello, para preceder as obras ineditas do poeta por elle colligidas.

Esta vida, que na opinião de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, « é um tecido de anecdotas comicas e chistosas que farão de certo apparecer um dia no tablado com muito bom exito o nosso poeta “ conservava-se até agora inedita.

A cópia de que me servi para a sua publicação pertence ao sñr. dr. João Antonio Alves de Carvalho e é escripta pelo punho do distincto bibliophilo Manuel Ferreira Lagos. O conego Januario da Cunha Barbosa, Varnhagen, Manuel José Maria da Costa e Silva e Innocencio Francisco da Silva tambem possuiam cópias d’ella, si porventura o visconde de Porto Seguro não tinha o próprio original; todos elles se valeram d’esta curiosa biographia do famoso satyrico bahiense para nos darem os traços, posto que resumidos, da sua vida, diremos melhor peregrinação pelo mundo.

 

V. C. *

*Nota: A. do Valle Cabral, que editou o livro donde foi extraída esta separata: Obras poéticas de Gregorio de Mattos Guerra precedidas da vida do poeta pelo licenceado Manuel Pereira Rebello, tomo I, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1882.

 

 

VIDA

 DR. GREGORIO DE MATTOS GUERRA

  

Abreviarei a vida de um poeta pouco cuidadoso de estende-la nos espaços da eternidade, que lhe franqueou as portas, escrevendo costumes do doutor Gregorio de Mattos Guerra, mestre de toda a poesia lyrica por especial decreto da natureza, cujo enthusiastico furor poderá só retratar-se dignamente, porque de fórma menos viva desconfia a equidade tão excellente materia.

Cousas direi menos decorosas ao sujeito da minha empreza; e por seguir os dictames da verdade historica, quero perder os louros de piedoso advogado contra exemplares famosos, que commentando ou redimindo as obras de benemeritos talentos, affectam justificar-lhe as vidas no resumo d’ellas, de modo que pareça impeccavel aquelle de quem o céu confiou os erarios da sua influência. E si a geral opinião reprovar esta maxima por desabrida, o mesmo sujeito que descrevo me apologisa, cujas doutrinas persuadem sempre a verdade nua.

Nasceu na Bahia de Todos os Sanctos, capital cidade do Estado do Brazil, ao Cruzeiro de S. Francisco, da parte do norte, em casas cuja figurada cornija de medalhas imperiaes ainda hoje as distingue caprichosamente nobres. Os paes que o deram à luz em 7 de Abril de 1623 foram Pedro Gonçalves de Mattos, fidalgo da serie dos Escudeiros em Ponte de Lima, natural dos Arcos de Valdevez; e Maria da Guerra, matrona geralmente conhecida de respeito em toda a cidade, cujas prendas intellectuaes amassaram uma trindade capaz de resplandecer no coração da mesma Roma. A 15 do dicto mez recebeu a graça baptismal com nome de João, na cathedral que depois o venerando prelado d. Pedro da Silva e Sampaio, pela sua occurrencia e milagroso auspicio de S. Gregorio Magno collocado em Nossa Senhora da Ajuda, lhe mudou em Gregorio, mysterioso agouro de que seria Gregorio doutamente grande o tenro afilhado: mas dirigida aquella mudança de algum modo a favorecer a distincção de seus paes.

Eram estes de tal maneira ricos que possuiam com outras fazendas um soberbo cannavial na Patatyba fabricado com perto de cento e trinta escravos de serviço, que repartia a safra por dous engenhos, cujo rendimento suppria largamente os gastos de um liberal tractamento e caridade com os pobres; mas nada d’isto basta para que um poeta sendo grande se escuse de morrer nos braços da maior miseria.

Foi o doutor Gregorio de Mattos o ultimo filho de tres varões que nasceram d’este matrimonio, dotados pela natureza com os maiores thesouros; mas a fortuna sempre opposta aos morgados da natureza veiu a consumir-lhe aquelles nomes, que ambiciosa a fama pedia; e não sem apparencias de virtude, increpando o desalinho e pouca estimação, e achaques que sempre toma de anniquilar os benemeritos, e desgraça repetidas vezes chorada de uma mãe, que com agudeza natural dizia: “Deu-me Deus tres filhos como tres sovélas sem cabo.” Farei particular menção dos dous primeiros no segundo tomo, para que o ultimo se não queixe do desaire que a minha penna poderia occasionar-lhe, que é menos honra ser um accidentalmente grande, que o ter vinculada sua grandeza na especie generativa.

Gregorio, que d’este triumvirato sapiente é o nosso particular assumpto, criou-se com a boa estimação que inculcavam os seus haveres e as suas honras. Soube mais que seus brazileiros contemporaneos fatalmente agudos com o temperamento do clima, sendo lastima carecerem de mestres para toda a Faculdade; porque Athenas perdêra de uma vez aquella suberba, com que se reproduz em desprezo do mundo.

Passou a Coimbra, onde não teremos por novidade que aprendesse, ou que admirasse quem tanto de casa levava as potencias dispostas. Direi somente que assombrou na poesia: porque Belchior da Cunha Brochado, depois desembargador da Relação d’este Estado, escreveu a certo cavalheiro da corte em um período succinto o maior elogio do seu enthusiasmo: “Anda aqui (dizia elle) um estudante brazileiro tão refinado na satyra, que com suas imagens e seus tropos parece que baila Momo ás cançonetas de Apollo.»** Não devia de haver-lhe visto as valentias amorosas para enviar outra cedula aos apaixonados de João Baptista Marini pelo postilhão de Italia: mas como o maior d’esta materia se destina a perpetuo silencio pela impunidade dos termos que a modestia portugueza não permitte, triumphem os italianos embora, que lá deve de haver necessidade d’aquillo mesmo que cá se despreza.

 

(**) Bonito, mas improvável… Quando Gregorio de Mattos se formou em Coimbra em Cânones (1661), tinha Belchior José da Cunha Brochado apenas… 4 anos.

 

Doutorou-se na Faculdade de Leis, e passando á côrte a praticar os termos da judicatura com um dos melhores lettrados d’ella, lhe conciliou grandes creditos o caso seguinte:

Defendia este lettrado um pleito a certo titular, tão volumoso que o conduziam mariólas quando era preciso. Era a causa civel sôbre a possessão de uns morgados, e expirava contra aquelle cavalheiro, que somente queria empatar-lhe a execução; e nesse empenho nenhuma esperança lhe dava o seu advogado com os melhores da côrte. Mas por animar o affligido pleiteante resolveu manda-lo ao doutor Gregorio de Mattos, dizendo que só d’aquella viveza confiava o remedio palliativo a Sua Excellencia dado que o houvesse. Conduzido aquelle volumoso labyrintho para casa do nosso praticante, com os maiores encarecimentos lhe supplicou o fidalgo que puzesse os olhos naquelle instrumento de sua perdição, examinando-lhe os menores incidentes para embargos, cuja extensão dirigia a concertar-se com a parte vencedora por meio de algum respeito.

Era meio dia, foi-se o fidalgo, e não lhe soffrendo descanso o seu alvoroço antes de vesperas, partiu a examinar si se desvelava ou não com os autos o novo lettrado; mas achando-o na janella que palitava sobre o jantar, grandemente afligido rompeu em queixas do pouco cuidado que lhe dava cousa de tanta importância. “ Socegue V. Ex,ª (lhe disse o bom Gregorio), que os autos estão vistos, e nelles o remédio que desejamos muito avantajado. Neste termo de autuação temos embargos de nullidade a todo o processo, porque no anno aqui mencionado antes e depois corria um decreto de Felippe IV que condemnava nullos aquelles processos começados em papel que  não tivesse os sellos das armas de Castella ; e como alcançou o decreto este, de que tractamos, e lhe falta o sello, segue-se que está nullo.” Com esta destreza se trocaram as fortunas dos pleiteantes, e o novato se acreditou por aguia de melhor vista.

E’ tradição constante que serviu na corte o logar de Juiz do Crime; e que também serviu o de Orphãos se mostra de uma douta sentença sua proferida em 2 de novembro de 1671, que traz Pegas no tomo 7.º das Orden., Liv. I. tit. 87. § 24. Chegou a merecer a attenção do senhor rei d. Pedro II, então principe regente da monarchia, pelo bom e particular conceito que fez da sua grande litteratura e rectisssimo proceder, e d’aqui se foi engolphando em merecimentos. Com promessa de logar na Supplicação o mandava sua alteza ao Rio de Janeiro devassar dos crimes de Salvador Corrêa de Sá e Benavides, mercê que fatalmente rejeitou. Uns dizem que por temer as violências de tão poderoso quão resoluto réu, quando no firme propósito de observar justiça; outros que com algum atrevimento indecoroso capitulara com o Soberano a mercê antecipada do serviço, dando a entender que se fiava pouco em promessas ainda que Reaes.

Isto é o que se conta, e sempre ouvi dizer a pessoas de melhor noticia; mas como se faz merecedor do engano (diz Camões) quem acredita mais o que lhe dizem, que o que vê, affirmarei que o Doutor Gregório de Mattos cahiu da graça do Soberano á persuasão de alguem prejudicado em suas satyras, sem que atrevida ou temerosamente recusasse mercês. Thomaz Pinto Brandão, em um resumo que faz da sua mesma vida, diz que viera ao Brazil na companhia d’elle, que se retirava descontente de lhe negarem aquillo mesmo com que rogavam a outros. e isto por ser poeta e jurista famoso:

 

Procurei ir-me chegando

A um bacharel mazombo,

Que estava para a Bahia

Despachado, e desgostoso

De lhe não darem aquillo

Com que rogavam a outros,

Pelo crime de poeta,

Sôbre jurista, famoso,

 

D’aqui infiro que invejas indignas occasionaram que o doutor Gregório de Mattos se retirasse desgostoso para a pátria d’aquellas injustiças, que de ordinário padecem na côrte os beneméritos. E com elle mesmo provarei o que digo, que é auctor sem suspeita, escrevendo umas decimas a d. João de Alencastre:

 

Mas inda que desterrado

Me tem o fado e a sorte

Por um juiz má morte, etc.

 

Esta queda do conceito de el-rei devia occasionar-lhe certo semivalido, contra quem indignado soltou o meu poeta os diques á sua musa, mostrando desde Lisboa ao mundo a mais venenosa satyra que podéra excogitar o mesmo Apollo. Sempre que leio este ramalhete de víboras me recordo do miserável Bupalo, que desesperado de honra se enforcou por haver sido assumpto de outra menos viva talvez do que esta: cujo heroe devia de amar menos a honra, do que a vida.  Foi tal esta obra, que o mesmo Soberano a decorou, fazendo glorioso apreço das suas figuradas consonâncias.

Despachado e desgostoso, que são termos encontrados, diz Thomas Pinto que viera para a pátria o doutor Gregório de Mattos: e veiu desgostoso por lhe negar el-rei o adiantamento que merecia, mas despachado porque sendo provido na dignidade de thesoureiro-mór da Sé da Bahia, d. Gaspar Barata de Mendonça, primeiro arcebispo d’esta, lhe commetteu o cargo de vigário geral, que acceitou, e com estes empregos se embarcou para a pátria, desenganado de poder lograr o fructo das suas virtuosas letras em uma corte que o reconheceu agudo, para teme-lo ousado. O desembargador Christóvão de Burgos de Contreiras, natural da Bahia, que depois o foi na Relação de Lisboa, lhe facilitou a passagem na sua conducta, e em Julho de 1681 entrou a exercer de ordens menores aquelles cargos que trouxera, trajando porém o habito secular todo aquelle tempo que lhe ficava livre das obrigações ecclesiasticas: capricho que principiou a arrufa-lo com os governadores do arcebispado: porém os erros do habito eram nelle menores que os de costume naquelles, cuja parcialidade se augmentára por horas em contraposição da luz: e o padecente que conhecia o seu damno com vista clara, queria reparar a inimizade de todos com a sua. Elle o pinta magistralmente nestes versos:

 

Querem-me aqui todos mal,

Mas eu quero mal a todos,

Elles e eu por varios modos

Nos pagamos tal e qual:

E querendo eu mal a quantos

Me têm odio tão vehemente,

O meu odio é mais valente,

Pois sou só, e elles são tantos.

Algum amigo que tenho,

Si é que tenho algum amigo,

Me aconselha que o que digo

O cale com todo o empenho, etc..

 

Era o doutor Gregório de Mattos acérrimo inimigo de toda a hypocrisia, virtude que, se podéra, devia moderar, attendendo ao costume dos presentes séculos, em que o mais retirado anacoreta se enfastia da verdade crua.  Mas segundo os dictames da sua natural impertinência, habitava os extremos da verdade com escandalosa virtude, como si nunca houveram de acabar-se as singelezas da primeira edade; e bem que se communicava com os doudos, daquela prodigiosa chuva nunca se resolveu a molhar a cabeça, como admiravelmente o diz na obra em que redargue a doutrina ou maxima de bem viver, que seguem muitos políticos, de involver-se na confusão dos homens perdidos e nescios, a qual o leitor veja, por me fazer mercê, e d’esta contumácia lhe nasciam os quebradouros d’ella. Nem havia lisonja que desmentisse as durezas d’aquelle engano, o que se prova com esta decima:

 

A nossa Sé da Bahia,

Com ser um mappa de festas,

E’ um presepe de bestas,

Si não fôr estrebaria:

Varias bestas cada dia

Vejo que o sino congrega:

Caveira mula gallega,

Deão burrinha bastarda,

Pereira mula de albarda,

Que tudo da Sé carrega.

 

Pareceu a certo cónego que não ia incluído nesta decima, onde o seu nome se não mostrava, e promptamente lhe veiu agradecer com palavras humildes; mas o bravo lhe respondeu: “ Não, senhor padre, lá vai nas bestas”. É verdade que naquelle tempo eram poucos ou nenhuns os formados que vestiam Murça, e tanto que para aceitarem aquelles logares capitulavam conveniências os beneméritos, pelo contrario do que agora passa.

Com esta singular opinião passou o doutor Gregório de Mattos de uma corte de sábios, que o representavam grande, a uma colónia de presumidos, que o aborreciam critico, experimentando por peior condição d’esta troca desegual o entregar-se nos braços da própria pátria, onde o mais purificado  sempre tem o desar de o haverem visto menino. E como aquelle que olhou para o sol, que qualquer sombra depois lhe parece abysmo, a elle, com a vista próxima de Lisboa, se representavam infernos as confusões da Bahia.

O genio satyrico e orgulho intrepido, não ha duvida que de justiça providencial se devia ao desgoverno d’estas conquistas, onde cada um tracta de fazer a sua conveniência, gema quem gemer, e se notou que de algum modo moderaram os viciosos seus depravados costumes: de que veiu a dizer o grande padre Antonio Vieira que maior fructo faziam as satyras de Mattos que as missões de Vieira; mas bem podéra deixar de dizer muitas cousas, sem inteira informação, do que ao depois como christão se arrependeu, dizendo ao vigário de Muribeca em Pernambuco, António Gomes Baracho, que lhe doía na alma o que dissera de fr. Basílio.

Com este genio pois e com esta valentia se fez Gregorio de Mattos aborrecido de uns e temido de outros. Estes lhe fingiam amizade, pelo que já sentiam: sendo o primeiro golpe da commum vingança fazerem-lhe despir a Murça capitular com desprezo, por sentença do arcebispo d. fr. João da Madre de Deus, successor d’aquelle em cujo tempo a vestira; si não é que elle de motu próprio abandonou o beneficio por se não accomodar ás pensões da sua residencia.

Poucos dias antes pretendeu este prelado com piedosas mostras persuadir ao poeta que tomasse ordens sacras, para conservar-lhe os cargos; mas elle respondeu com inteira resolução que não podia votar a Deus aquilo que era impossível cumprir pela fragilidade de sua natureza; e que a troco de não mentir a quem devia inteira verdade, perderia todos os thesouros e dignidades do mundo: que o ser mau secular não era tão culpável e escandaloso, como ser mau sacerdote. E esta resposta esperava sem duvida o arcebispo, conhecida a inteireza de Gregório de Mattos. Sendo certo que si o quizera conservar nos cargos não eram as ordens condição necessária, valentia foi sem duvida offender a um homem que para despicar-se não respeitava carácter, nem potestade, trajando por espada a mesma foice de Saturno amolada nas esquinas da eternidade.

D’esta segunda declinação da fortuna, que com os bens patrimoniaes muito antes havia vacillado, nasceu o precipicio terceiro, que se encadeam os males, casando com Maria de Povos, viúva honestíssima quanto formosa; mas tão pobre que seu mesmo tio Vicente da Costa Cordeiro, lastimado do seu abatimento, entendeu despersuadi-lo.  Mas vendo ser impossivel, fez da sua fazenda um donativo, para que a sua sobrinha não fosse totalmente destituida. Era o gosto do Gregorio de Mattos, e não se trocava pelos maiores interesses, que nunca o dinheiro foi capaz de lhe apaixonar o animo. Vendeu já necessitado por tres mil cruzados uma sorte de terras, e recebendo em um sacco aquelle dinheiro, o mandou vasar no canto da casa, d’onde se distribuia para os gastos sem regra, nem vigilancia.

Posto na obrigação de sustentar encargos de matrimónio, e aberto as portas o escriptorio da advocacia, poucos eram os defendidos, porque a inteireza do seu animo patrocinava somente a mesma razão em matérias cíveis, sendo inimigo voraz d’aquelles advogados, que por junctarem cabedal enredam as partes no labyrintho de incertas opiniões. Si algumas vezes defendeu contra o que entendia, eram as causas crimes, onde a summa justiça se reputa por summa iniquidade. Ninguém se acorda que lhe rejeitassem embargos, e toda a matéria d’elles se corporisava em quatro palavras d’aquelle espírito lacónico, que sem offender gigantes formas conseguia a diminuição plausível das matérias, logrando na curta esphera de qualquer laconismo alma substancial, visível graça, e intelligencia commum, como ninguém.  Por exemplo contarei com brevidade alguns casos.

Pleiteava Pedro o cabedal que havia dado com sua filha em dote a Paulo, o qual depois de adornar a defuncta esposa com palma e capella, publicava que havia fallecido intacta. Defendia por parte do auctor o nosso jurista, e provada legalmente razoou o feito com esta vulgaridade:

 

Gaita de folles não quis tanger,

Olhe o diabo o que foi fazer.

 

Banhou-se em aguas de flor o patrono adverso accusando de ridicularia indecente este razoado na extensa formalidade do seu: mas um e outro Senado confirmando aquella sentença, veiu a conhecer o que realmente passava; e foi que o doutor Mattos fallando pouco para merecer o menos, dizia muito para conseguir o mais.

Outro laconismo se nos envolve na historia de um religioso, para cuja intelligencia já dissemos o grande aborrecimento que tinha a todo o fingido. Venerava os religiosos verdadeiros tanto quanto abominava os que com este sancto titulo apenas merecem o nome de frades. Elle o diz com graça nestes versos:

 

Se virdes um dom abbade

sobre o pulpito cioso,

Não lhe chameis religioso,

Chamae-lhe embora de frade.

 

Um d’estes frades pois se valeu do doutor Mattos, pedindo embargos para seu sobrinho, sentenciado á morte natural por haver furtado a naveta da sua sacristia. Mas elle absolutamente o desenganou que não estava em hora de o servir. Instava o religioso por saber ao menos a razão da difficuldade, e comtudo não poderei eu doirar a pílula da resposta. “E’ (dizia elle) que neste instante se foi d’aqui Maria de S. Bento muito agastada, e fez aquella cruz na minha porta em juramento de não entrar mais por ella.” “Ila-hei buscar (tornou o religioso), si nisso está o valer-me V. Mercê.” E logo foi representar á mulata quanta necessidade tinha de leva-la a quebrar o seu juramento. Caprichosa era ella, mas em tal caso caritativa accompanhou o triste pretendente, e posta já na presença d’esse singular e exquisito génio, ouviu que lhe dizia assim: “Não eras tu, ridícula, quem fez aquella cruz de aqui não tornar? Bem se vê que morrias por esta introducção. Ora vae, que agora te mando eu.” Foi-se a mulata exhalando veneno pelos olhos; e á vista dos autos fez elle a seguinte trova por embargos:

 

A naveta, de que se trata,

Era de latão, e não de prata.

 

A’ vista dos autos digo, porque o processo nelles estava em termos de lhe valerem, como valeram, ganhando sempre applausos pela attenção com que examinava os menores incidentes.

Com a folhinha do anno livrou a outro condemnado, contra quem as testemunhas com verdade haviam jurado de vista sobre um furto de noite escura, a peditório de seu amigo João dos Reis, mordomo então da Misericórdia.

Um homem de baixa esphera, que por aquella iniquidade a que no Brazil chamam fortuna, subiu a desconhecer seu amo, comprando a vara de Juiz Ordinário na villa de Igaraçu em Pernambuco, fez um auto criminal contra este, por lhe haver chamado por Vós, como antes de o ver Juiz costumava. Defendia o nosso jurista ao réu, e confessando  a culpa, mostrou que o não era, começando as razões com este argumento:

 

Si tractam a Deus por tu,

E chamam a El-Rei por vós,

Como chamaremos nós

Ao Juiz de Igaraçú?

Tu e vós e vós e tu.

 

Estas e outras obras do mais agigantado peso no seu officio canonizaram o doutor Gregorio de Mattos pelo melhor jurista ; de sorte que no dia de sua morte disse o Ouvidor de Pernambuco, que lhe não era affeiçoado: “Já morreu quem entendia o direito.” Mas si o dinheiro é inimigo declarado da virtude, mal poderia Gregorio de Mattos adquiri-lo, defendendo o justo, e aconselhando o verdadeiro, arrebatado maiormente pelo furor das Musas cuja condição totalmente se encontra com os labyrinthos do Bardo e Bartolo. Conta-se que muitas vezes aconteceu entrarem-lhe as partes com dinheiro consideravel, e os amigos com assumptos menos dignos, e que elle despresava aquellas, por attender a estes, passando lastimosas necessidades.

Era a esposa um pouco impaciente, talvez pelo pouco pão que via em casa, e tal pelo distrahimento de seu marido, cujas desenvolturas claro se patenteam d’estas obras: como veremos pelas rubricas de cada uma, posto que nem a todas se deva dar inteiro credito; e enfadada de uma e outra desesperação sahiu de casa, e entrou pela de seu tio, que depois de a reprehender asperamente, veiu rogar ao poeta com razões de amigo que a fosse buscar, ou consentisse ao menos que elle lh’a trouxesse: e foi-lhe respondido que de nenhum modo admittiria sua mulher em casa sem vir atada em cordas por um capitão do matto, como escrava fugitiva.  Assim se fez pelo mais decoroso modo, e elle a recebeu, paga a tomadia do regimento; protestando chamar Gonçalos áquelles filhos que nascessem de tal matrimónio; porque a sua casa se pudesse dizer de Gonçalo, com mulher tão resoluta.

Acossado da pobreza, e sem esperança alguma de remedio em uma terra, onde somente o tem para triumphar da fortuna quem por estradas de iniquidade caminha, se entregou o poeta a todo o furor da sua Musa, ferindo a uma e outra parte como raio com edifícios altos a matéria mais debilitada. E não achando a resistência, que talvez desesperado pretendia (negação fatal em tempos bellicosos), elegeu peregrinar pelas casas dos amigos, e sahiu ao reconcavo povoado de pessoas pela multidão florentissima de engenhos d’assucar, preciosa droga, que perdendo com o valor  a estimação, levou consigo a dos  Magnates Brazilienses.

Por este Paraiso de deleites estragava a cithara de Apollo suas harmoniosas consonâncias com assumptos menos dignos de tão relevante estrondo. Lascivas mulatas e torpes negras se ufanizaram dos tropos e figuras de tão delicada poesia. Mas que muito, si quando naufraga o baixel quaesquer bárbaros galeam a mais preciosa mercadoria! Não quero persuadir que a desesperação lhe occasionou desenvolturas; mas direi que do genio, que já tinha, tirou a mascara para manuzear obscenas e petulantes obras em tanta quantidade, que das que tenho em meu poder tão indignas do prelo, como merecedoras da melhor estimação, se póde constituir um grande volume.

Mas a prodiga diffusão de mal applicados conceituosos dispendios nascia das enchentes prodigiosas d’aquella Musa, que sem esperança de que seus descuidos correriam na futura estimação, barateava versos á conjuncção dos acasos, facilitando linguagem ao genio dos sujeitos. Da mesma sorte que o celebrado pintor Raphael de Urbino, que disfarçado em sua criminosa peregrinação pintava aos oleiros louça, e taboletas de mezão aos estalajadeiros, sem prevenir que em sua posteridade seriam resgatados por alto preço aquelles borrões milagrosos da sua malograda idéa.

Assistia-lhe nestas desenvolturas com outros do mesmo género aquelle celebrado trovador de chistes, a quem uma titular lisonja proporcionou Thalia por ama sêcca, que se prezava muito de ministrar-lhe assumptos, apezar dos melhores amigos, que d’estas companhias lhe prognosticavam sempre a fatal ruina.

Governava então d. João de Alencastre, secreto estimador das valentias d’esta Musa, que a toda a diligencia lhe enthesourava as obras desparcidas, fazendo-as copiar por elegantes lettras; quando de uma nau de guerra desembarcou o filho de certa personagem da côrte com animo vingativo contra o poeta, por dizer-se que havia satyrisado toda a honra de seu pae: e bem que disfarçava sua maligna intenção, toda a intenção maligna percebeu d. João dos mesmos disfarces d’ella. Era este cavalheiro generosamente compadecido, e excogitando meios de livrar uma vida em que a natureza depositara tão singulares prendas, achou traços de segurar-lhe o perigo nos fingimentos de rigoroso justiceiro.

Ordenou aos officiaes de milicia que saindo fora da cidade a toda a cautela lhe trouxessem preso o dr. Gregorio de Mattos .Mas não pôde effeituar a diligencia, porque suspeitoso d’ella o vigário da Madre de Deus, Manuel Rodrigues, homem virtuoso que o hospedava, soube consumir naquella ilha as mesmas presumpções de ser achado. Mas o governador impaciente com esta tyranna piedade, que lhe frustava os meios da sua piedosa tyrannia, communicou a intenção ao secretario d’Estado Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque, pessoa de bom entendimento, e como tal estimador do poeta, e accordaram que o mesmo secretario fingisse que o chamava para dar-lhe importantes avisos, que não poderiam ser menos de pessoaes; e com carta de sua lettra se enviou portador interessado nas melhoras do perseguido.

Conhecida a lettra pelo dr. Gregorio de Mattos, e confiado na muita honra de Gonçalo Ravasco, promptamente veiu a falar-lhe no logar determinado, que era a casa de Antonio de Moura Rolim, tambem amigo, para que se veja que quando os amigos grandes se junctam empenhados a favorecer um desditado poeta, será para o prenderem e desterrarem por modo de fineza. Sempre tenho que d’estas tres amizades, a primeira arrastou com sagacidade as duas por temer em seu govêrno os atrevidos cortes d’esta penna.

Alli pois o prenderam sem poder dar um desafôgo ao discursivo; e mettido na casa que chamam Leoneira, na mesma portada do Palacio, mandou que alli não deixassem chegar pessoa de qualidade nenhuma: e por mãos de um confidente criado lhe remettia para sustentar-se os manjares de sua meza particular: e d’esta particular prisão o trasladaram depois á cadêa, mal seguros de seu perigo.

Trabalhou o infeliz Gregorio por justificar-se, lisongeando a um tempo aquelle magistrado, cujas entranhas dominava pias; mas D. João o desenganou,  intimando-lhe que por sua conhecida culpa e necessario remédio havia de embarcar-se para Angola em uma nau, que promptamente carregava a tropa de cavallos de El-Rei para Benguella. Era o dr. Gregório de Mattos consummado solfista, e modulando as melhores lettras d’aquelle tempo, em que a a solfa portugueza se avantajava a todas as de Europa, tangia graciosamente. A proposito do que me pareceu escrever aqui esta decima, que por isso lhe fez Gonçalo Soares da Franca, nobre engenho da Bahia:

 

Com tanto primor cantais,

Com tanta graça tangeis,

Que as potencias suspendeis,

E os sentidos elevais:

De ambas sortes admirais

Suspendido o bravo Eolo,

Mas eu vos digo sem dolo,

Que de mui pouco se admira

Pois tocais de Orpheu a lyra,

E a pluma tendes de Apollo.

 

Com estas prendas fazia apreço particular de uma viola, que por suas curiosas mãos fizera de cabaço, frequentado divertimento de seus trabalhos, e nunca sem ella foi visto nas funcções a que seus amigos o convidavam, recreando-se muito com a brandura suave de suas vozes. Por esta viola, que havia deixado na Madre de Deus, fazia extremos taes, receiando que sem ella o embarcassem, que o vigario Manuel Rodrigues, a quem feriam na alma suas desgraças, promptamente lh’a mandou com um liberal donativo para as cordas d’ella.

D. João, chegada a hora de embarcar, o mandou vir á sua presença, e tractando-o com humanidade de principe lhe pediu que evitasse as occasiões de sua perdição ultima; porque era lastima que uma pessoa, a quem o céu enriquecêra de talento para melhor fama, comprasse o seu discredito com o discredito irremediavel de tantos. Decorosamente o fez embarcar, não se olvidando de recommenda-lo ao governador de Angola Pedro Jacques de Magalhães, a quem com a causa d’aquelle degredo insinuava os perigos que em qualquer parte corria sua pessoa.

Chovendo maldições e praguejando satyras peregrinou os mares aquelle que por instantes naufragava nas tempestades da terra. Dizia elle que com razão sobrada podia articular o non possidebis ossa mea de Scipião; e fallou com rigoroso acêrto: porque se houveram patrias no mundo que desterraram seus benemeritos filhos, não consistiu talvez essa desgraça tanto na malicia d’ellas, como no destino d’estes. Porém a Bahia dos muitos habitos de desprezar seus naturaes fez natureza para aborrece-los e persegui-los. A melhor pintura d’esta verdade se póde ver nas vozes que sôbre ella declama o mesmo poeta, onde sem hyperbole de Musas resplandece a propriedade tal, que eu com ser extrangeiro acreditava a poesia como juramento dos Sanctos Evangelhos.

As personagens de quem o poeta justamente se queixa em suas satyras são comparadas a uma herva natural de Guiné, chamada aquelle terreno Nhesiquè, e transplantada deste com o nome de Melão de S. Caetano, por virem as primeiras a um sitio d’este nome; a qual de sorte se apoderou do Brazil em toda parte. que não há logar sem ella, nem planta que prevaleça com sua inutil visinhança. As casas de religião enriquecidas e illustradas pelos curiosos e liberaes mazombos, e sempre nellas laborando petulantes opposições a parcialidade dos Reinóes admittidos alli por com miseração. Ingratos hóspedes! Mas si algum tivesse desejos de padecer martyrio, fallar nesta materia queixoso causaria ao menos um degredo similhante ao do doutor Gregorio de Mattos.

Não poderá negar-me a razão, que choro, quem sabe que no ano de 1740 mandou o provincial de S. Francisco conduzir do Porto uma chusma do pobretões, em desprezo dos pacientissimos naturaes da terra, para adorno da sua religião, e nunca o demonio acertou com esta destreza para combater o animo de Job. Chegam finalmente a aborrecer os mesmos filhos sem maior causa que haverem nascido no Brazil, onde receberam cabedal, e inundando por toda a parte em que os brazileiros os honram e estimam, em nenhuma d’ellas querem soffrer que haja honra nem estimacão nos brazileiros.

Fazendo porém verdadeira distincção nos nossos naturaes que são comprehendidos nesta miseria, culparei sómente os das fecundissimas provincias da Beira e Minho (salvando os nobres), e é de reparar que sendo estes os que com maior necessidade se lançam a buscar dinheiro, são estes mesmos aquelles cuja soberba é tão formidavel a quem os remedeia. Vejamos esta queixa allegorisada pela nossa aguia sôbre o gato de um meirinho:

 

Não posso comer ratinhos,

Porque cuido, e não me engano,

Que de meu amo são todos

Ou parentes, ou paisanos:

Porque os ratinhos do Douro

São grandissimos velhacos;

Em Portugal são ratinhos,

E cá no Brazil são gatos.

 

Mas deixando esta materia por irremediavel, e não por temer as unhas d’estes gatos, irei seguindo o meu infeliz poeta em sua fatal navegação.

Chegado ao reino de Angola, miseravel paradeiro de infelizes, a quem com a propriedade costumada chamou armazem de pena e dor, e exercendo na cidade de Luanda o officio de advogado, aconteceu que amotinada a infantaria da guarnição d’aquella praça, e posta em armas fora da cidade, entrou uma chusma de soldados pela casa de Gregorio de Mattos, forçando-o a que os fosse aconselhar sôbre as capitulações que tinham com o governador seu general; e posto com effeito entre os amotinados no campo, clamou que o levassem á casa para trazer certa cousa que lhe esquecêra, sem a qual não podia obrar á medida de suas satisfações. Entenderam os soldados que seria livro de direito, e não duvidaram de romper segunda vez o perigo de entrar na praça; mas aquelle que imaginavam instrumento de solido conselho, outra cousa não era mais que a sonora cabaça do poeta, do que se infere o como chasqueou este Democrito das alterações da fortuna.

Muito pago ficou o governador d’esta galantaria geralmente celebrada. Serviu-se d’elle para adjuncto na condemnação dos cabeças d’aquelle motim, que foram arcabuzados pelos ouvidos; e desempenhando a recommendação de d. João de Alencastre deu-lhe liberdade para embarcar-se a Pernambuco. Posto naquella capitania, governada então por Caetano de Mello de Castro, com o semblante perturbado pela indecencia do habito demandou a presença d’este fidalgo, que lastimando de ver o miseravel estado a que chegára um homem tão mimoso da natureza, lhe fez donativo de uma bolsa bem provida, e com palavras um pouco severas lhe mandou que naquella capitania cuidasse muito em cortar os bicos á penna, si o quizesse ter por amigo. Não sei si era zelo publico, si particular temor. Gregorio de Mattos o prometteu fazer assim, e em algumas occasiões mostrou quão violentado estava com aquelle preceito: seja uma d’ellas o caso que refiro.

Picadas de ciumes se encontraram duas mulatas meretrizes juncto á porta do poeta, e renovando suas paixões de uma e outra parte se descompunharn em vozes petulantes. Passaram de lingua a braços, e atracadas tenazmente cahiram por terra em ridicula visão, a tempo que avisado da grita sahiu a vê-las o poeta, e dando naquele espectaculo deshonesto começou a gritar: ai que de El-Rei contra o senhor Caetano de Mello! Perguntaram—lhe os circumstantes que queixa tinha do governador: « Que maior queixa (respondeu) que a de prohibir-me fazer versos quando se me offerecem similhantes assumptos? » Notavel argumento do respeito d’este fidalgo, si Gregorio de Mattos não tomára depois algumas licenças de satyrisar.

Os nobres de Pernambuco contendiam ambiciosas demonstrações de urbanidade com elle, venerando em sua pessoa prendas de que já os havia a fama informado por escriptos. De uma em outra fazenda passava Gregorio de Mattos uma regalada vida, e sem offender a nobreza d’este paiz, me presuado a crer que o adoravam á maneira que os antigos idolatras com politica religião faziam sacrificios ao gorgulho para não destruir-lhe as sementeiras, e á peste para perdoar-lhe as vidas. Mas sempre é digno de louvor quem sabe lisongear o damno porque o teme. Na Bahia perdeu muitos amigos pelo meio de os ganhar; e em Pernambuco os ganhava pelo meio de perde-los. Referirei dous casos, que sirvam de exemplo a este ultimo reparo.

Certa pessoa muito principal em Pernambuco, de quem o poeta era hospede, ouvia d’elle os encarecimentos com que relatava a desgraça em que nascêra, e sua desterrada peregrinação com todos os acontecimentos tristes, e como attribuia seus infortunios á rigorosa força de estrella ; e mal persuadido d’esta rhetorica triste lhe respondeu atalhando nesta fórma : « Sñr. doutor, nós mesmos somos os auctores da nossa fortuna, e cada um colhe o que semêa.» - “Não ha duvida (respondeu o poeta), mas é desgraçado aquelle contra quem se conjurou a malicia, que das mesmas virtudes lhe fazem dilictos: verbi gratia, alli vem aquelle boi (e mostrou um da fazenda do mesmo sujeito); elle tem um só corno, como estamos vendo, mas si eu lhe chamar boi de um corno, Deus me livre da indignação de seu dono.» E sendo esta materia por toque ou remoque muito melindrosa em Pernambuco, disfarçou este homem o proposito, sendo certo que foi o maior amigo que teve naquella terra o doutor Gregorio de Mattos.

O vigario da Muribeca Antonio Gomes Baracho, atravessado com o seu coadjutor, não lhe podia soffrer as presumpções de solfista. Ordenou ao seu trombeta que tocasse desesperadamente em ouvindo cantar como sempre o coadjutor. Mas este que percebeu a burla, tambem se armou de um caracol marinho, com que apupava a trombeta de seu inimigo. O vigario, a quem o grande odio descompunha o entendimento, se foi querelar do caso perante o vigario geral, com quem privava. Recebida a queréla, e seguro o coadjutor, chegou o caso á noticia de Gregorio de Mattos, e posto a caminho sobre a besta de um farinheiro entrou com seis leguas de jornada por casa do criminoso, a quem pediu procuração para defender-lhe a causa, asseverando que o não trouxera alli outro algum negocio, e que de graça o queria servir. Ia o padre a agradecer-lhe tanta fineza mas o doutor lhe atalhou, dizendo : « Não, sñr. padre, não m’o agradeça, que o meu interesse é saber d’este juiz qual é a lei que condemna a quem toca um buzio. » Avisado o vigario do excesso que fizera aquelle homem, a quem conhecia douto e respeitava poeta, logo o foi buscar á casa do mesmo coadjutor, concedendo a este pazes, e ficando em particular amizade com elle.

Honravam-no todos seriamente; mas arrebatado de seu fresco e esparcido genio fugia dos homens circumspectos, e se inclinava (como na Bahia) a musicos e folgazões. E sendo naturalmente aceiado e gentil, descompunha a sua auctoridade vivendo entre estes ao philosopho: de sorte que invejava aos barbaros gentios do Brazil a liberdade de andarem nus pelo arvoredo, lastimando-se d’aquellas pensões a que nos obriga a policia. Como outros costumam adornar seus escriptorios de odoríferos pomos, que regalam a vista e olfacto, adornava elle o seu de bananas que chamam do Maranhão, que mais servem ao sustento que ao gosto: e isto em demasiada quantidade, que provocando riso a quem as via, dava em razão :- adornemo-nos de proveito, que em quanto as tenho, riu-me da fome.

Uma rigorosa febre lhe attenuou os dias, de sorte que desenganados os piedosos pernambucanos de remir-lhe a vida, chamaram o vigario do Corpo Sancto Francisco da Fonseca Rego, pessoa que suppunham de mais auctoridade, para que o dispuzesse a morrer como catholico. Mas como este parocho era na opinião do poeta mal recebido, sem poder disfarçar nesta hora o genio livre, soltou algumas palavras, que puzeram as chimeras do vulgo em suspeitas, de que nasceu um rumor menos decoroso á sua consciencia; o qual chegando aos ouvidos do illustrissimo prelado d fr. Francisco de Lima, logo desde uma legua de caminho se arrojou como bom pastor a tomar em seus hombros a ovelha que suppunha desgarrada ; e não foi assim, porque não só o achou disposto a morrer como verdadeiro christão, mas em signal de que lhe servira o entendimento no maior conflicto, viu em uma folha de papel escripto com caracteres tremulos o grande soneto que offerecemos:

 

      Pequei, senhor : mas não, porque hei peccado,

Da vossa alta piedade me despido:

Antes quanto mais tenho delinquido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

 

      Si basta a vos irar tanto peccado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa, que vos ha offendido,

Vos tem para o perdão lisongeado.

 

      Si uma ovelha perdida, ja cobrada,

Gloria tal e prazer tão repentino

Vos deu, como affirmais na Sacra Historia:

 

      Eu sou, senhor, ovelha desgarrada;

Cobrae-a; e não queirais, Pastor Divino,

Perder na vossa ovelha a vossa gloria.

 

Assistiu-lhe o piedoso bispo até o ultimo valle, e logo seu corpo foi levado por homens principaes ao Hospicio de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos Francezes, o dia em que chegavam as novas da restauração do famoso Palmar a Pernambuco, que havia de ser o sexto da victoria, pois tanto gasta um caminheiro apressado de um logar a outro. Mas é em vão busca-lo em Pitta, auctor moderno que d’isto tracta como si não tractára. E mais me escandalisa que passasse em sua mesma patria por um poeta de tal nome seu contemporaneo, com quem devia gastar parte d’aquelles elogios. Morreu finalmente no anno de 1696 com edade de setenta e tres annos.

Este é o mais abreviado resumo que posso dar da vida do meu suspirado, quão dilectissimo poeta lyrico; e oxalá podéra eu publicar os prodigiosos fundamentos do meu amor, derramando entre as gentes o manancial thesouro de suas graças! Singular foi a estrella que dominou em seu engenho; porque a toda a circumfererencia das luzes apolineas brilhou com egualdade senhoril; e não menos prodigioso aquelle não sei que de sua guarda, porque offendendo ás claras muitas pessoas, de quem o menor movimento seria sem duvida uma tyranna morte, sempre se atreveu, e nunca de seu motu proprio cautelou perigos ; morrendo intacto de tão prolongados mezes.

Muitos eram os feridos do seu ferro que consultaram o remedio no mesmo instrumento da chaga, beijando a Achilles a lança que os traspassára. Raro testemunho d’esta fatalidade foi a resposta que deu a um queixoso certo governador severamente resoluto: “Não faça V. Mercê caso (disse) porque isto também passa por mim, sem que por mim passe a mínima tenção de o castigar.”

Testemunho d’esta fatalidade são as duas quartas de um soneto, que se fez em sua morte; o qual não escrevo por inteiro em razão de que si os seus princípios professam a verdade pura, os fins todavia contém temerária petulância:

 

Morreste emfim, Gregorio esclarecido,

Que sabendo tirar por varios modos

A fama, a honra, o credito de todos,

D’esses mesmos te viste applaudido.

 

Entendo que outro tal não tem nascido

Entre os Romanos, Gregos, Persas, Godos,

Que comtigo mereça ter apodos

Nos applausos, que assim has adquirido.

 

 

Muitas vezes quiz elle refrear o genio, que conhecia prejudialmente peccaminoso, fazendo os actos de christão que em seu logar veremos, mas debalde o intentava, porque o seu furor intrepido imperava dominante na massa sanguinária contra os desacertos d’aquella edade, castigados por Deus com tão horrorosa peste e tão repetidas fomes: como também veremos pelo decurso d’estas obras. E não é de admirar que disparadas do throno da divina justiça aquellas duas lanças de sua via, seguisse a terceira com tão exquisito genero de guerra em um homem, que de sua mãe unicamente tomou este apellido entre outros partos: ella o deu appelidando-se -  da Guerra -, e elle o foi sem aquella preposição da, por ser a mesma guerra, e não o instrumento d’ella. Isto parece que prophetizou certo inimigo seu, respondendo-lhe a urna satyra com outra na seguinte forma:

 

Porém si em nada és guerreiro,

Para que te chamas guerra,

E a fazes a toda a terra

Com a lingua, que é mor damno,  etc.

 

Deixou o dr. Gregorio de Mattos um filho de sua mulher Maria dos Povos , chamado Gonçalo de Mattos, cujo amor publica em várias obras este livro, que em seus logares se verão sem enfadosas citas.

 

…………… o quente da cama

Com Gonçalo, e com sua ama,

Dizendo estava comei-me, etc.

Por vida do meu Gonçalo,

Custodia formosa e linda, etc.

Madrasta do Gonçalinho,

Que é lindo enteado a fé, etc.

Sim, por vida de Gonçalo, etc.

Mas por vida de Gonçalo, etc.

 

D’este moço, que com sua mãe ficou em summa pobreza e desamparo, correm noticias muito geraes que totalmente degenerára d’aquella massa scientifica de seus estupendos progenitores. Bem pudera eu duvida-lo em uma terra, onde sempre se hão de tomar os echos da fama pelo contrario; pois nunca vi nela abonar um sujeito que hão mereça ser desterrado por mau, nem vituperar outro que ao contrario desmereça elogios de bom.

Mas para cumprir com os relativos d’esta historia consultei dous sujeitos que se criaram com Gonçalo de Mattos, ambos de instincto capaz para uma informação, e entre elles achei a contradicção, que póde servir exemplo a quem se informa: um afirma com juramento que era poeta natural, o outro jurando nega que tal fosse, dizendo que elle nem o Padre Nosso era capaz de repetir. A este seguem muitos, e nenhum àquelle: mas o primeiro chamado Christovão Rodrigues diz que em sua adolescencia lhe dera o seguinte mote:

 

Com que, porque, para que

 

Defendia-se o Gonçalo temeroso de uma maldição condicional de sua mãe, em respeito da qual não queria pegar na penna para fazer versos, posto que no animo lhe pulsavam as Musas (tal foi o escarmento que deixaram ellas naquelles cadaveres da paciência lastimosa). Mas como a condição do preceito tinha sua clausula, em que fundar-se uma heresia graciosa, respondeu importunando: “Pegae vós na penna, porque a maldição de minha mãe parece que não me prohibe fazer versos, mas sim pegar na penna para elles.”

Repetiu-me então esta decima, que tanto elle como a resposta, si são verdadeiras, vem a ser uns relâmpagos da esphera do fogo:

 

GLOSA

 

Disse Clori que me amava

Para o intento que tem,

O qual não disse a ninguem,

Nem o porque declarava:

Eu então lhe perguntava

Com que genero de fé!

Suspensa a dama se vê;

Como nada respondeu,

Não pude saber o seu

Com que, porque, para que.

 

 

Persuado a crer o caso pelas suas circunstancias, e muito mais quando vejo aqui umas relíquias mais separadas d’aquelle humor, ou ramas menos fortes do enxerto do doutor Pedro de Mattos seu tio, onde não há resposta sem equivoco sem substancia do género mais nobre.

Foi o doutor Gregório de Mattos de boa estatura, sêcco de corpo, membros delicados, poucos cabellos e crespos, testa espaçosa, sobrancelhas arqueadas, olhos garços, nariz aguilenho, bocca pequena e engraçada, barba sem demasia, e no tracto cortezão.  Trajava commummente seu collete de pelles de âmbar, volta de fina renda, e era finalmente um composto de perfeições como poeta portuguez, que são Esopos os de outras nações. Tinha phantasia natural no passeio, e quando algumas vezes por recreação sulcava os quietos mares da Bahia a remo compassado, com tão bizarra confiança interpunha os óculos, examinando as janellas da sua cidade, que muitos curiosos iam de propósito a vê-lo,

Fiz tirar d’elle a presente cópia, por um antigo pintor, que foi seu familiar, e conferindo-a com as memorias que d’elle têm algumas pessoas antigas, tenho-a por mui conforme a seu original. Naquelle tempo era pouco versado o uso das cabelleiras, e elle a trajava: mas pareceu-me copia-lo sem ella, porque os homens de talento devem patentear-nos as officinas capitães que o produzem para informação dos judiciosos.