20-11-2010

 

 

Francisco de Melo Franco (1757 - 1823)

por Teófilo Braga

 

 

Na página sobre o tema "A Inquisição nos tempos da Viradeira", fiz referência a dois estudantes brasileiros presos e condenados pela Inquisição de Coimbra, o médico Francisco de Melo Franco e o sacerdote e poeta, António Pereira de Sousa Caldas (o Caldinhas). Fiquei com pena de não ter desenvolvido mais a referência a estes personagens, mas faltou-me o assunto e a oportunidade. Encontrei agora a solução. Vou transcrever, actualizando a ortografia, um texto que Teófilo Braga lhes dedicou, na História da Literatura Portuguesa, no volume XX, denominado "Filinto Elysio e os dissidentes da Arcádia", Livraria Chardron, Porto, 1901, a pgs. 448 a 479.

Quem se interessar pelo assunto, poderá ainda consultar também a História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrução Pública Portuguesa, do mesmo Teófilo Braga, Tomo III (1700-1800), pgs. 675-697, que transcrevi aqui.

 

Sob o governo do Reitor Reformador Dom Francisco de Lemos fora perseguido e arrancado ao ensino da Universidade de Coimbra o insigne matemático José Anastácio da Cunha; mas, apesar de autoritário, o Bispo-Conde, como pombalista, não dava garantias de êxito do novo regime de intolerância religiosa e intelectual na Universidade, e foi substituído pelo Principal da sé patriarcal de Lisboa Francisco Xavier de Mendonça, em 25 de Outubro de 1779. Como se não bastasse o impulso da sua própria boçalidade, dirigiu-lhe o Visconde de Vila Nova da Cerveira um Aviso em data de 22 de Dezembro de 1779, fazendo-lhe sentir o cuidado que causa «o ver a mocidade que a ela (Universidade) se vai instruir, muitas vezes levada do inconsiderado amor de saber mais, se aplica à lição voluntária de Livros de errada doutrina, e perigosos para os ânimos incautos e ainda mal instruídos, e por esta causa se precipita em desatinos, que insensivelmente os levam a perigar nas coisas contrárias à nossa santa religião...» Além de recomendar toda a vigilância sobre os estudantes, mandava-lhe que admoestasse os lentes de todas as Faculdades para vigiarem sobre este mesmo assunto os seus alunos; em carta régia de 17 de Janeiro de 1780 insistia o ministro na necessidade de apartar os estudantes de tudo o que os pudesse prejudicar na religião. A par das disposições do ministro trabalhava a Inquisição de Coimbra, estendendo a rede e encarcerando os estudantes que liam livros franceses, e que por isso incorriam no crime de Enciclopedistas, Naturalistas, e especificadamente de lerem Rousseau! Entre esses estudantes, foram alguns que tinham o talento poético, e um, que escreveu um poema herói-comico, que correu anónimo, em que se descrevia o retrocesso da Universidade sob a reacção anti-pombalina, e em que o Principal Mendonça era marcado com o ferrete da sátira imortal. Escrito em 1782, em quinze dias, o poema caiu como uma bólide em Coimbra, no meio do hierático boçalismo doutoral. Não foi possível abafar o seu efeito; era como um gás deletério que se infiltrava, que dissolvia essa satisfação do pedantismo inconsciente. Donde viria a sátira? De entre alguns lentes pombalistas? De entre os estudantes críticos ou da boa-feição?

O poeta personifica a Estupidez em uma divindade, que se sente banida do norte da Europa, aonde as nações civilizadas repelem o seu culto pelo progresso das ciências, e convocando o conselho do Fanatismo, da Hipocrisia e da Superstição, deliberam e resolvem refugiar-se nas Espanhas. Chegados a Lisboa, hesitam se devem ficar na capital do luso reino, se irão para Madrid; começam a fazer as suas pesquisas, notam os roubos e assassinatos nas ruas, os exorcismos rendosos de frades capuchos, romarias, novenas, vias sacras, mas em conclusão, Lisboa não oferece estabilidade:

 

Nesta corte, anos há, se tem fundado

Uma coisa chamada Academia. . .

 

E então o Fanatismo opina, que se fixem em Coimbra, donde há poucos anos tinham sabido:

 

O meu voto é que vamos demandando

O mesmo assento, donde foi lançada

A mansa Estupidez injustamente;

Cobrar novos esforços é preciso,

Que por fim a vitória está segura.

 

Em Coimbra começa o alvoroço entre os estudantes e o corpo docente para receberem majestaticamente a Estupidez; os Conventos, que abarrotam a cidade, fornecem-se de presuntos e de vinho, e o Principal Mendonça,

 

Da Universidade o grande Chefe,

Um Claustro universal convoca logo.

 

Aí, na Sala dos Capelos faz o discurso inaugural o lente de prima de Teologia, sustentando que por direito divino e humano se devem restituir à Estupidez a sua dignidade e soberania de que fora esbulhada, e num transporte exclama, ainda lembrado do processo do lente José Anastácio da Cunha:

 

De que podem servir estes estudos

Que mais da moda se cultivam hoje?

A bárbara Geometria tão gabada,

Que mil proposições todas heréticas

Aqui faz ensinar publicamente.

Sabeis para que presta neste mundo ?

Diga-o a Inquisição, e mais não digo.

…………………………………………………………..

Historias Naturais, Foronomias,

Químicas, Anatomias, e outros nomes

Difíceis de reter, são as ciências

Que vieram trazer os Estrangeiros.

 

Quando chega a vez de José Monteiro da Rocha (Tirceo) falar, ele nota a contradição em que se acham, e pela referência à morte do Marquês de Pombal, vê-se que o poema fora elaborado em 1782:

 

Das vossas mesmas bocas retumbaram

Cânticos de louvor nestas paredes.

O triunfo cantastes na presença

Do zeloso Ministro respeitado.

Que diferente linguagem hoje escuto!

………………………………………………………………

Oh tu, sombra imortal, oh grão Ministro,

Da face do teu Deus, onde repousas. . .

Vem um instante aparecer agora. . .

Blasfémias ouvirás ..

 

Nos Colégios dos Borras e dos Manganchas (de S. Pedro e de São Paulo), trata-se dos preparativos da recepção, e o Reitor manda lavrar o Edital chamando os Lentes,  Doutores e estudantes para irem em préstito receber a Estupidez à chegada. O ultimo canto é a recepção da Deusa, e sua hospedagem no mosteiro dos Crúzios, os discursos de felicitação, a oferta do poema A Joaneida [1]e a vassalagem dos doutores, que são acolhidos com bênção pela frase:—« Continuai, como sois, a ser bons filhos.» O despeito causado pelo poema, que apenas circulava manuscrito em pequeno numero de exemplares, foi enorme, como se verifica pela quantidade de versos em réplica, que provocara. Transcrevemos alguns deles, ainda inéditos, por onde se avalia a intensidade da impressão:

 — Poema, donde vens?

«De perto venho.

— Quem te trouxe consigo?

«Não direi. —

Tens patrono na terra?

« Alguns tenho.

— Que nomes são os seus?

«Calar jurei.:

— Nasceste há muito tempo ?

«Há mais de um mês.

— Quem te gerou ?

«A mesma Estupidez.

 

Ao Epigrama acerbo, seguiam-se Sonetos virulentos, com incerto objectivo:

 

«Vendo em silencio estar suas façanhas,

A velha Estupidez ardendo em ira.

Da culta Europa vários povos gira,

Até que enfim aporta nas Espanhas.

 

Algumas horas, roem-lhe as entranhas

Ver que não acha quem os ares fira,

Cantando ao som da harmoniosa Lira

Suas grandes acções, artes e manhas.

 

Corre a Coimbra, e achando o que deseja,

Oferece a certo vate uma coroa.

Que de seus versos digno prémio seja.  

 

Eis que ele a trompa dissonante entoa,

A Deusa invoca, suas plantas beija,

Canta seus feitos, e com ele voa.

 

              -----------------------

 

Com efeito chegou a Estupidez ?

É certo, e mais que certo, e vem aqui

Parir um filho, que anda por aí

Tal como a mãe e como o pai que o fez.

 

E' insulto grosseiro e descortês;

Esconde-se, e aparece aqui e ali,

E quem quer que o vê dele se ri.

Mas ninguém o quer ver mais que uma vez.

 

É' monstro, na verdade, o tal rapaz

Que não sabe o que faz, nem o que diz;

Mas quer morder em todos por detrás.

 

Se a torpe Estupidez lograr-nos quis.

Foi desgraça parir; mas vá-se em paz,

Tal foi o parto como o seu nariz.

 

É também como expressão de surpresa que começa o Diálogo do bacharel António Isidoro:

 

Viu, amigo, um papel famigerado

Que se lê por ali muito em segredo,

Por sátira subtil acreditado?

 

Que papel ? — Um papel. . . mas tenho medo

De falar nestas coisas, por que alguém

Não suceda meter-me neste enredo.

 

Pois tal é o papel, coisas contém

Que é crime publicá-las ? Certamente

Obra não pode ser de homem de bem.  

 

..................................................................

 

Dizem que o tal papel é destinado

A castigar zombando o dano horrendo,

Que a velha Estupidez tem motivado.

 

Tenha mão, meu amigo, agora entendo

Do que me quer falar; já toda inteira

Li essa papelada, e me arrependo, etc.

 

No poema satírico O Zelo, oferecido aos amadores da Estupidez, descrevem-se os vários pasmatórios aonde se discutia o valor do poema e quem seria o seu autor:

 

Era a loja do Alves; lá se achava

Uma corja de mestres de guedelha.

 Que batendo nas mesas recitava ,

Acerca do Poema quanto a orelha

Pescar pode por casa dos fregueses,

Que o peito lhe abrem pelas mais das vezes.

 

O Silva sustentava, que a obra fora

Engendrada em cabeça de mais peso;

O Santos diz, que ouvira a uma senhora,

Oh, cáspitè! que o traz em ferros prezo.

Que sabia quem era, e não passava

Daqueles a que a malha fofa honrava.

 

O magro Bruxo erguendo a voz cansada

E dormente, dizendo que o fizera

Um sujeito assistente na Calçada.

O Martins praguejando, afirma que era

O Caldinhas, que em doce paz descansa

Nas regiões da astuta e sabia França.

 

Outro disse dali, que tinha sido

O pequeno Malhão, outro, que o velho;

Outro disse, que fora produzido

Por homens de saber e de conselho,

Que nas letras há muito floresciam.

Opinião que os mais todos seguiam. 

 

Na Resposta à Ode a Fileno, em que Fábio descreve a antiga Universidade e a moderna da reforma pombalina, também se apontam os autores do poema da Estupidez:

 

Eu, de um lente moderno

Que fabricou aqui a Estupidez,

Por gentil e por terno

Quisera perdoar-lhe desta vez.

…………………………………………………

À memória me vêm,

Fileno, pensamentos eficazes,

Que a Estupidez é mãe

De dois estupidantes, dois rapazes… [2]

 

Embora se não soubesse quem fora o autor do Poema, por um vago indício se notavam dois colaboradores, pelas diferenças de estilo. Em uma Sátira de António Isidoro da Silva, bacharel em Cânones, e que foi bedel dessa Faculdade, lê-se:

 

Mas é certo que encontro diferença

Nos estilos da obra, e que é forçoso

Que a supor dois Autores me convença.

Qualquer dos dois é pouco Venturoso;

Mas um mais infeliz, bem que ambos tenham

Negação para o verso numeroso.

Talvez que por disfarce eles se empenham

Em fazer versos maus, por que os leitores

Suspeitas de homens doutos nunca tenham...[3] 

 

Em outro lugar desta Sátira em diálogo, dá António Isidoro a entender que escreveram o poema homens conceituados:

 

Por certo, meu amigo, estou pasmado.

Do que lhe tenho ouvido; outro conceito

Do apontado papel tinha formado.

 

Dito me haviam, que ele fora feito

Por homens de instrução, de quem o gosto

Devera produzir mais belo efeito.

 

Eu não sei quem o fez. Isto suposto,

Falo mais livre, pois que a verdade

Não temera dizer-lha rosto a rosto:

 

Serão Mestres em outra Faculdade,

Mas, em ponto de versos certamente

Inculcam muito pouca habilidade.

 

Os preceitos ignoram totalmente

Prescritos aos Poemas, ou se esquecem,

Dos mesmos que aprenderam torpemente.

 

A Sátira provocou dois Sonetos virulentos contra o bacharel bedel, insultando-o como filhote (natural de Coimbra):

 

Que provas tens, praguejador maldito,

De que foram Autores os que apontas

Nesse fértil montão de vis afrontas,

Sem graça feito, e só por ódio escrito?

 

Dize mal do Poema, eu to permito,

Dos preceitos lhe pede exactas contas;

Mas, vãs suspeitas de cabeças tontas

Por certas espalhar é grão delito:

 

Se tivesses, acaso, tal certeza,

Deverás em teu peito i-la ocultando,

Que assim faz sempre quem a honra presa.

 

Mas estou sem reparo cogitando!

Como não entrará em ti vileza.

Se a honra em filhote é contrabando? 

 

AO MESMO AUTOR

 

Que fizeste, Isidoro? Estás perdido.

Foram-te ao foll' ? Quebraram-te o espinhaço? 

Mordeste; porém tu em breve espaço

Ficaste por desgraça remordido,

 

No Diálogo logo foste conhecido;

E vê de que serviu o teu cansaço;

Queres fazer versos de mestraço,

E ficas por Dom Félix conhecido.

 

De fazer versos deixa; porque juntas

Nos Sonetos Inês morta em garrote,

Cora grosseiro pincel, grosseiras tintas.

 

Embrulhado no sórdido capote,

A vida vai gastando, não consintas

Que te lancem no rosto o ser Filhote. [4]

 

As suspeitas esboçadas no Dialogo de António Isidoro foram postas em claro em um Soneto anónimo, que apontava como autores do Poema os Doutores Ricardo Raimundo Nogueira e António Ribeiro dos Santos, um legista, outro canonista, ambos do Colégio dos Militares:

 

Ricarte [5]de Normandia e Oliveiros, [6]

Do grande Rei de França ilustres Pares,

Não fizeram acções mais singulares.

Que do Poema os nobres Cavaleiros, [7] 

 

Aqueles, a exércitos inteiros

Destruíram, matando-lhes milhares;

Do Poema os valentes Militares

Obraram ainda mais que os primeiros.

 

Para aqueles não houve fino arnês,

Corpulento Gigante, armas de Marte,

Que a espada não cortasse de uma vez.

 

A língua destes teve melhor arte;

Porque, cantando a sua Estupidez

Feriu mais que Oliveiros e Ricarte.

 

Ricardo Raimundo Nogueira [8] teve a habilidade de afastar de si a imputação, com aquela solércia com que conseguiu passar como um grande homem, e entrar no Conselho da Regência do Reino de 7 de Agosto de 1810 até 15 de Agosto de 1820. José Agostinho de Macedo, que escrevera o seu Elogio histórico, ao refazer o Poema Os Burros chama-lhe chocho Mecenas. Também se lhe atribui o ter-se oposto em 1818 a que se levantasse em uma praça pública um monumento a Camões.

António Ribeiro dos Santos ficou sozinho sob o peso dessa imputação perigosa e de terríveis vinganças; fizeram-lhe vários Sonetos acrósticos:

 

AO AUTOR DA ESTUPIDEZ

 

A  vossa má conduta descoberta

N  o público está, sábio maldito!

T   u, pai da Estupidez e filho és dito,

O  mundo todo por teu castigo aperta. 

N  o Prelado poderoso tu acerta, i-

I    ndiferentes acções hás irritado,

O   Bezerra, Bustoque e mil hás censurado, í

 

 

R  azões não busques; tua crise é certa,

I   ulgavas que se não conheceria

B  em o Autor ? não viste que o diabo

E  ra quem tais coisas logo descobria!

I    nfame ! a tuas Sátiras põe cabo,

R  alhar de tudo não queiras, e sacia

O   furor da tua língua no meu r....

 

Não transcrevemos um Soneto acróstico em defesa, por estar imperfeitamente metrificado. Publicamos outro, que tem esta nota: «Supõe-se que a Estupidez foi feita por dois Colegiais das Ordens Militares, que têm querido anular o voto para casarem; e casando ambos, concebeu um e veio a parir a Estupidez, pois se supõe que um fez os dois primeiros cantos, que estão mais trabalhados, e outro os outros dois»:

 

Casemos ambos, já que não podemos

Casar com outrem; (então propusera

A Arrogância, de si vaidosa e fera,

A seu irmão Rancor, que diz) — Casemos!

 

Que a Dissimulação fazendo extremos

Ali medianeira interviera,

E que por paraninfos escolhera

O Orgulho, a Inveja, a Raiva, bem sabemos.  

 

Acende o Orgulho o facho nupcial;

A noiva conduzida pelos três,

Sobe do irmão ao tálamo fatal.

 

Preside ao parto, que o incesto fez,

A Calúnia infiel, fúria infernal,

E nasce o horrendo monstro Estupidez,

                                                 (Ib., p. 401)

 

António Ribeiro dos Santos estava fora de Coimbra, e ao Porto chegaram os ecos da malévola imputação, que conseguiram inquietá-lo. Transcrevemos dos seus Manuscritos algumas cartas, que esclarecem este capítulo de história literária e pedagógica:

«Meu amigo, — as noticias que me mandais, não são de contentamento; corre já por lá o Poema da Estupidez, e sou abocanhado por autor dele. Com efeito houve quem se atreveu a imputar-me essa obra: fundou-se em conjecturas, que outros colheram como certezas sem mais exame; o que serve de mostrar quanto é crédula a malignidade humana. Porto, etc.» [9]

Nesta outra carta diz donde nasceu a calúnia:

«Meu amigo — Já que me interrompeis o meu profundo silêncio e me inquiris sobre a origem que deu ocasião a me imputarem o Poema da Estupidez que tanto arruído fez em toda a parte, falarei uma vez por mim e a um amigo: Apareceu em Coimbra o Poema da Estupidez, filho suposto de quem nunca se conheceram ao certo os verdadeiros pais. Esta peça é hoje desprezada quanto então aplaudida; que esta é a sorte de todas as obras que não têm outro merecimento que o da Sátira. Ela, com efeito, não tinha outro, nem era notável se não pelas descrições pueris mas picantes com que espalhava o ridículo sobre algumas pessoas, e isto foi o que lhe deu um prodigioso concurso e voga; esqueciam os defeitos do estilo e da poesia à sombra da malignidade da obra; alguns ma imputaram por malignidade para me perderem, outros por beneficência para me exaltarem; estes últimos, que a admiraram de boa fé como ao Lutrin de Boileau, e a julgavam útil para a correcção dos costumes, entenderam que só eu era capaz de a ter feito. Assim um Poema, que eu não tinha feito e que nem tinha ainda visto até então, me atraía de todas as partes louvores e maldições. O Padre Luiz Roiz Villares, ex-jesuita, colegial do Colégio de São Pedro, foi o primeiro que se lembrou de me aquinhoar com esta obra… … sobre aparências frívolas e conjecturas miseráveis precipitou o seu juízo, e sem mais exame me deu por autor da que sobre este juízo vago e incerto do primeiro caluniador se fundaram e estenderam todas as invectivas dos segundos; fui abocanhado, perseguido, satirizado, e posso dizer com Sá de Miranda no seu soneto:

Dei que falar em mim ao longe e ao perto. [10]. 

 

Era conhecida uma grande malevolência do Principal Mendonça, Reitor Reformador da Universidade, contra o lente canonista Ribeiro dos Santos, tendo por pretexto o não se querer este dar por suspeito na questão da censura prévia das teses ou Conclusões magnas. Em uma das suas cartas íntimas escreve Ribeiro dos Santos acerca do Principal Mendonça, o herói do Poema da Estupidez:

«Este fidalgo é muito aferrado aos estudos e opiniões com que foi crido, e é muito sensível à adulação; sempre o governou quem teve a baixeza de o lisonjear, por mais grosseira e sórdida que fosse a adulação e lisonja; é por extremo teimoso, e reputa por altivez e atentado sacrílego a mais leve diferença de opinião que encontra nos outros. Ultimamente é parcial declarado do seu Colégio de São Paulo, e assenta que deve seguir o partido do Colégio em todas as ocasiões que se oferecerem.

«Havendo no Principal estas disposições, logo desde o princípio do seu governo me foi desafeiçoado, primeiramente, porque o puseram logo na persuasão de que as minhas opiniões eram diversas das suas; depois, considerava-me como criatura do seu antecessor (D. Francisco de Lemos) a quem ele aborrecia como declarado Pombalista; além disto eu era do Colégio das Ordens Militares e não de São Paulo, a que ele pertencia, e sabeis as intrigas dos Colégios. Demais, suposto que o tratasse sempre com o respeito e reverência devida ao seu lugar, nunca contudo me humilhei a lisonjeá-lo com abatimento e a fazer-lhe elogios aduladores e rasteiros.   Porque as pessoas que ele tinha ao seu lado, ambiciosas de o dominarem sem competidor, e conjuradas contra todos os que não seguiam o seu partido, fomentaram estas minhas ideias, e se aproveitaram de todas as ocasiões de me malquistarem com ele, representando-me como um homem soberbo que queria passar por superior aos demais homens.

«Estas eram as disposições do Principal-Reformador, quando desgraçadamente apareceu o chamado Poema da Estupidez. Parece impossível que houvesse pessoa que me conhecesse, a quem pudesse ocorrer baptizar-me por autor deste Poema. Eu, certamente, não presumo de Santo, nem de Poeta; mas cuido que nem me reputam tão maligno e insolente, que me atrevesse a escrever uma Sátira que desacredita os meus companheiros, o meu Prelado e a minha Nação; nem tão ignorante que, resolvendo-me a pegar na pena para compor tais desatinos, tivesse a loucura de publicar versos tão miseráveis. Contudo, houve quem aproveitasse a ocasião de me infamar; e apesar da suma improbabilidade para semelhante imputação, da opinião contrária de todos os homens sensatos e desapaixonados, e da gravidade do caso, consta que algumas pessoas das que mais figuram na Universidade tiveram a ousadia de dizerem ao Principal que eu era o autor do Poema, e de fazer circular a calúnia entre os seus parciais e apaniguados.

«O argumento de que principalmente se valeram foi, que falando-se no Poema em Colégio de S. Pedro, e aparecendo pelo seu  nome alguns indivíduos do de S. Paulo, havia alto silêncio a respeito dos Colégios Militares; logo, diziam eles, o autor pertencia a este Colégio; e como sabiam que eu tinha feito algum verso noutro tempo, concluíram que também agora havia escrito esta Sátira. Se esta casta de gente fosse capaz de proceder de boa-fé, e com desejo sincero de descobrir a verdade, conheceria à primeira vista: 1º que falando o Poema indistintamente em Colégios, compreendia também nesta generalidade o das Ordens Militares; 2.º que ainda quando a respeito deste se guardasse silêncio, podia isto proceder ou do acaso ou ainda da afeição que o autor da Obra tivesse àquele Colégio, sem daí se poder concluir, que ele pertencia àquela casa; 3.° que se o Autor fosse Colegial dos Militares por isso mesmo havia de tocar no seu Colégio para remover toda a suspeita e evitar que se falasse nele; 4.º ultimamente que, ainda quando contra a razão e verosimilhança se pudesse conjecturar que o autor pertencia aos Militares, não havia fundamento algum para se pôr o dedo em mim, sendo constante que eu era naturalmente sério e mui recatado em falar das pessoas da (Universidade?)

«Estas provas, e outras ainda piores inculcadas com arte, em ocasiões oportunas, e ora em tom persuasivo, ora em ar de compaixão, como quem se condoía de que eu aplicasse tão mal os meus talentos, produziram ao que julgo todo o efeito que os caluniadores pretendiam. O Principal estava costumado a crer cegamente quanto eles lhe diziam, e as provas mais fracas, a que talvez  acrescentaram factos absolutamente falsos, lhe pareceriam na sua boca argumentos de irresistível evidencia; e como tudo isto achava já um ânimo disposto e preocupado, assentou francamente que eu tinha sido o autor daquela obra; cresceu por conseguinte aquela sua aversão, desejou ter meios de se desagravar, e assentou em aproveitar toda a ocasião de me mortificar e oprimir. Ofereceu-se logo na Congregação de 7 de Janeiro. Os seus validos, que me tinham representado como homem altivo, insolente e desatento quando me deram por autor do Poema, lhe haviam dito que eu era um dos que pensavam suscitar na Faculdade de Cânones que o Presidente devia subscrever as teses antes da censura, só a fim de vexar e descompor os lentes de prima, e de censurar e desaprovar o que eles tinham autenticado com a sua firma; e que todo o meu sistema era singularizar-me dos outros, desprezar a sua literatura e o seu método e mostrar-me superior; cheio destas preocupações entrou o Principal na Congregação, e com tais disposições nem é de admirar que tudo o que eu dissesse, por mais comedido e ajustado que fosse, lhe parecesse cheio de acrimónia e altivez, nem que depois exagerasse as minhas acções na presença de S. Maj.,  figurando-as como factos insolentes, altivos e tumultuosos. Dei-vos conta de toda a história, e ficai sabendo cada vez mais o que são os homens.» [11]  

Transcrevemos ainda uma outra carta de Ribeiro dos Santos, em que alude à velha mania religiosa ou seita da Jacobéa, que o Principal Mendonça considerava. Em um dos manuscritos do Reino da Estupidez encontrámos a seguinte dedicatória:—O e C. À saudosíssima memória do Ex.mo e Rev.mo D. Fr. Gaspar da Encarnação e Moscoso, devoto Reformador da Universidade. Ano de 1785. Fora este augustiniano o iniciador da Jacobéa na Universidade.

«Meu amigo — Perguntais-me de onde vem tamanho ódio, que me tem o Principal Reformador, que assim solicitou ver-me fora de Coimbra? Dir-vos-ei. A Aristides no ostracismo, só por que era varão justo, desejava um que fosse desterrado; não sou eu tão louco, que me compare nem ainda mui de longe com este homem; mas, é certo que o que demoveu o coração do Principal para me fazer todo este mal, foi o conceito que lhe mereci de ser homem com quem se não podia contar para partidos. Eu não era colegial do seu Colégio, e nunca podia ser um Decretalista e Ultramontano, nem Jacobéo!» [12]

«Meu amigo — Cá me chegam as noticias de Coimbra, posto que vós mas recatais. Sei que os meus inimigos cantam vitória, e que não contentes de me terem longe espalham sobre a minha memoria sarcasmos e criticas violentas, mas tais que depressa caem no mesmo lodo de que saíram. Sabei contudo, que se houve Lentes e Opositores, que se alegraram com a minha retirada, houve estudantes que choraram saudosos de mim; e seriam necessárias muitas críticas e sátiras para me extinguirem o prazer que uma só destas lágrimas me tem dado.»  [13]

Como vimos pela referência do poemeto O Zelo, também se atribuía a composição da Estupidez ao Caldinhas. Se nos lembrarmos que no Auto de Fé que se celebrou na Sala do Santo Ofício de Coimbra em 26 de Agosto de 1781, figura com o numero 5 -— «António Pereira de Sousa Caldas, Estudante, natural do Rio de Janeiro, Herege, Naturalista, Deista e blasfemo:» vê-se que a malevolência da terra lhe imputava o poema, por que ele se achava a salvo em Paris. A imputação era boçal, pelo que se conhecesse da passividade da sua organização. Sousa Caldas tornou-se uma das glórias da poesia brasileira, e por isso competem-lhe algumas linhas biográficas. Nascido no Rio de Janeiro em 24 de Novembro de 1762, aos oito anos de idade veio para Lisboa confiado a uns parentes, por motivo da sua debilidade. Apesar da sua reconstituição, ficou-lhe essa índole melancólica, que explica as manifestações e o destino da sua vida. Aos dezasseis anos foi frequentar a Universidade de Coimbra, nesse mesmo ano em que José Anastácio da Cunha era arrastado ao cárcere inquisitorial, e a reforma pombalina sustentada por D. Francisco de Lemos era atacada pelo Principal Mendonça. Nesse vórtice de insânia, Sousa Caldas denunciado ao Santo Ofício como pedreiro-livre era abruptamente preso. Em um Soneto descreve a sua vida até essa terrível data:

 

Oito anos apenas eu contava,

Quando à fúria do mar, abandonando

A vida, em frágil lenho e demandando

Novo clima, da pátria me ausentava.

 

Desde então à tristeza começava

O tenro peito a ir acostumando;

E mais tirana sorte adivinhando

Em lágrimas o pai e a mãe deixava.

 

Entre ferros, pobreza, enfermidade,

Eu vejo, ó céus ! que dor ! que iníqua sorte !

O começo da mais risonha idade.

 

A velhice cruel (ó dura morte !)

Que faz temer tão triste mocidade,

Para poupar-me, descarrega o corte.

 

 

O poeta contava então dezanove anos, e em atenção à sua pouca idade, foi sentenciado a ir clausurado para os PP. catequistas de Rilhafoles, a arbítrio. Aí viveu com a serenidade do retiro que lhe era castigo, impressionando os próprios catequistas. Por princípios de 1782 recebeu a notícia da morte do pai; veio-lhe então uma doença nostálgica, e como único tratamento foi aconselhada uma viagem a França. Em Paris se achava quando apareceu o Poema da Estupidez; de regresso a Portugal foi completar o curso de leis a Coimbra, sendo-lhe oferecida a nomeação de Juiz de fora de Barcelos, que recusou, seguindo em piedosa viagem a Roma, onde recebeu  ordens de presbítero. O seu talento poético deu expressão ao sentimento religioso, cultivando o género sacro e traduzindo vários Salmos. Em 1801 foi ao Rio de Janeiro visitar sua mãe; era já então muito distinto como pregador; em 1807 acompanhou a Família real portuguesa, que fugia para o Brasil ante a Invasão napoleónica, e sendo-lhe oferecido o bispado do Rio de Janeiro recusou-o na sua simplicidade, terminando a vida em 2 de Março de 1814.

Entre os indiciados autores do poema da Estupidez apontavam-se os dois Malhões, ambos conhecidos como poetas, que frequentavam por este tempo a Universidade. O Malhão pequeno era o mais novo, António Gomes da Silveira Malhão; nascido em Óbidos por 1758, filho do bacharel Agostinho Gomes da Silveira e de D. Maria da Conceição Diniz; morreu em Dezembro de 1786, e seu irmão coligiu os seus versos, publicando onze Sonetos, sete Odes, uma Epistola, e catorze Sextinas. O Malhão velho era Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, nascido em 22 de Setembro de 1757, em Óbidos, e o primogénito de seis irmãos; era um poeta de humor aventuroso e um continuador das tradições escolares do Palito métrico. [15] Pela morte de sua mãe, e recusa de seguir o estado eclesiástico, viu-se abandonado pelo pai, vivendo em Coimbra como o sopista medieval, e conseguindo formar-se em Leis em 1789. Escrevera em 1788 a Mondegueida, poema estrambótico, em quatro cantos em quintilhas, sob o pseudónimo de António Castanha Netto Rua, e foi o herói da Malhoada, poema satírico de um poeta cáustico seu contemporâneo Anacleto da Silva Morais. Apesar de lhe atribuírem a Estupidez, prontamente se reconheceu, que a concebera cabeça de mais peso, e por isso não chegou a ser incomodado. Malhão, terminada a formatura, voltou para Óbidos, aí pôs banca de advogado, e casando em 26 de Novembro de 1792, continuou o seu nome no celebrado pregador Malhão. Faleceu por 1816.

Nas varias suspeitas acerca dos autores da Estupidez, predominava a ideia de dois colaboradores, como vimos pelo Dialogo de António Isidoro. No poema O Zelo, indicava-se «um sujeito assistente na Calçada.» Entre os estudantes que saíram no Auto de Fé de 1781, vem com o numero 13—«Francisco José de Almeida, Estudante matemático, filho de José Francisco, natural de Lisboa: Herege, Naturalista, dava casa de lupanar para divertimento dos Estudantes, seguia os mais erros dos seus sócios, lendo pelo Autor Rossó (Rousseau) e outros Hereges.-» Por que lhe não atribuiriam também o crime do poema herói-comico ? José Agostinho de Macedo, quando esteve por castigo em Coimbra, colheu essa tradição, que consignou no poema Os Burros (canto único, de 1813): 

 

Tu, que ao prosa Diniz ditaste o Hissope,

E a Estupidez ditaste a Almeida e Franco.

 

Nas anotações que ao poema de Macedo fez o seu amigo Ferreira da Costa, lê-se: numero 153: «Francisco José de Almeida, médico muito pequeno de corpo, muito verboso, e ainda que ininteligível nas expressões e até nos discursos escritos, os quais eram de uma linguagem obscura e particular. Foi membro da Junta de Saúde Pública. Era sócio da Academia, que lhe premiou um Tratado de Educação Física.» Por esta tradição mantinha-se a atribuição a dois autores, e Macedo, melhor informado (1813) já citava o nome de Franco, que no manuscrito do Reino da Estupidez, pertencente à Biblioteca de Évora, vem apontado como autor do poema. Na Lista dos presos que saíram no Auto de Fé da Inquisição de Coimbra em 26 de Agosto de 1781, aparece com o n." 9: «Francisco de Mello Franco, Estudante médico, natural de Paracatú, Bispado de Pernambuco; Herege, Naturalista, Dogmático; negava o Sacramento do Matrimónio.

Nascera este ilustre homem de ciência, em Paracatú (Minas Gerais) em 17 de Setembro de 1757, filho de João de Mello Franco e de D. Ana Caldeira, que de seu consórcio houveram onze filhos, contando entre eles nove meninas. Deixou a terra natal aos doze anos, indo frequentar no Rio de Janeiro em 1769 o Seminário de São Joaquim, vindo depois dos primeiros estudos para Portugal encetar o curso médico da Universidade de Coimbra. Matriculou-se em 1775 no primeiro ano matemático e no quarto ano filosófico. Na forte reacção de 1778 foi preso pela Inquisição de Coimbra, com outros estudantes, jazendo no cárcere quatro anos. Aí se lhe acordou a veia poética, compondo as Noites sem sono. Acusado de negar o sacramento do matrimónio, foi chamada uma senhora de Coimbra para testemunha, e como se recusasse a depor como os Inquisidores queriam, ficou como castigo reclusa por um ano no Santo Oficio. Mello Franco desposou essa nobre vítima. Foi-lhe permitido por Aviso régio de 29 de Agosto de 1782, que completasse o curso de Medicina. A indignação e o desdém pelo meio universitário inspiraram-lhe o poema da Estupidez, que escreveu em quinze dias, ajudado no trabalho das cópias manuscritas, que se lançaram na circulação clandestinamente, pelo seu patrício José Bonifácio de Andrade e Silva. [16] O poema não tem a perfeição artística, mas a verdade das descrições e dos tipos dá-lhe valor e ao mesmo tempo a importância de um impagável documento histórico. Ninguém suporia tal daquele modesto estudante de Medicina; mal imaginava o boçal Reitor-Reformador donde vinha a pedra que derrubava o colosso da reacção na Universidade.

Completado o curso médico, e não tendo Mello Franco recursos para transportar-se com sua família para o Brasil, demorou-se em Lisboa, entregando-se à clínica, em que se tornou eminente. Em 1789 publicou o Tratado de Educação Física, impresso por ordem da Academia das Ciências, em que serviu de secretário-geral na ausência do Dr. José Bonifácio de Andrade.

A obra intitulada Medicina teológica ou Súplica feita a todos os senhores Confessores e Directores sobre o modo de proceder com os seus penitentes, principalmente da lascívia, cólera e bebedice, apareceu em 1794, completamente aprovada pela Real Mesa da Comissão geral sobre e exame e Censura de Livros. A obra apareceu anónima, e apesar de examinada suscitou nos poderes públicos tais apreensões, que ela foi suprimida, e a própria Real Mesa dissolvida e extinta em decreto de 17 de Dezembro de 1794. Eram membros dessa Mesa, além de frades conceituados, o P.e António Pereira de Figueiredo, Pascoal José de Melo e João Guilherme Cristiano Muller. O Intendente geral de Policia Pina Manique, pôs em campo todos os seus recursos para descobrir quem era o autor da Medicina teológica, mas neste ponto falhou a sua feroz perspicácia. O autor era esse mesmo que escrevera o Reino da Estupidez; tinha o poder de agitar as almas; eis como Inocêncio descobriu o nome de Francisco Mello Franco: «Em uns papeis que a fortuna me deparou, escritos da mão do P.e Joaquim Dâmaso, congregado do Oratório. e bibliotecário que foi d'El-Rei D. João VI, achei esta noticia, com algumas outras, abonadas todas de verdadeiras pelo carácter honrado e fidedigno de quem as escreveu. Conta ele, que o próprio Mello Franco lhe declarara no Rio de Janeiro por sua aquela obra, mostrando-lhe por essa ocasião um exemplar dela, com algumas correcções e copiosíssimos argumentos, a qual se propunha reimprimir; sem dúvida o fizera, se a morte sobrevinda entretanto lhe não cortasse a execução deste e de outros projectos.» (Dic. Bibl., VI, 178.) Nas Contas para as Secretarias há um Ofício de Manique datado de 17 de Dezembro de 1794, ao Marquês Mordomo-mór, ministro do reino, no qual relata os seus esforços para descobrir quem seja o autor da Medicina teológica: agora tenho averiguado que este papel, que saiu impresso, denominado Medicina teológica, foi levado à imprensa por Caetano Bragace, o qual escreve e assiste em casa do Cônsul da América; e é de reflectir também, que este Caetano Bragace é aquele que eu prendi por sedicioso, e que fez o outro papel de que dei conta, e remeti o original, que lhe achei em sua casa, à rainha, que Deus guarde, que se intitulava — Dissertação sobre o estado passado e presente de Portugal — e carácter, que a seu arbítrio inventou, pouco favorável dos seus ministros, e do seu confessor; ao qual também achei o numero de quesitos da cópia inclusa, que passo às mãos de V. Ex.ª, das perguntas feitas pelo ministro residente da América, e as respostas dadas ao mesmo pape; tendo este igualmente ganhado a um francês chamado Vautier, para de comum acordo satisfazerem às respostas, que servia de guarda livros a Braz Francisco Lima, casado com a sobrinha do Marechal de Campo Bartolomeu da Costa, que dava as relações dos estados em que se achavam os arsenais e as forças do exército.

«Mostrando eu a letra do papel intitulado —Dissertações sobre o estado passado e presente de Portugal—- que obriguei indirectamente a restituir o ministro residente da América, quando fiz executar a diligencia, e prisões do dito veneziano Caetano Bragace e do francês Vautier, de que falo, ao impressor António Rodrigues Galhardo; declara sem duvida ser a letra própria do original do papel intitulado — Medicina Teológica — que está na Real Mesa da Comissão geral.

«Aqui tem V. Ex. combinados estes dois papeis perigosos, e que ameaçam tristes consequências, donde saem; e coadjuve V. Ex.ª o que eu tenho informado a V. Ex.ª nas Contas dadas, que acuso (5 e 6 de Nov., e 7 de Agosto de 1794) e que param na Secretaria de V. Ex.'^, e de outras que tendem ao mesmo fim, e se formará um juízo das tristes consequências que podem acontecer infelizmente; e nestes dois papeis sediciosos que aqui acuso —Medicina theologica, e Dissertações sobre o estado passado e presente de Portugal — com o mais de que tenho dado conta a V. Ex.ª como tenho dito, nas sobreditas Cartas, verá V. Ex.ª o quanto vão avançando os passos, para por uma parte atacarem a religião que temos a fortuna de professar, na parte mais essencial; e no outro papel o trono, e os ministros de estado!

«Confesso a V. Ex.ª que lembrando-me do que acontecia em Paris, e em toda a França, cinco anos antes do ano de 89, pelas tabernas, pelos cafés, pelas praças e pelas assembleias; a liberdade e indecência com que se falava nos mistérios mais sagrados da religião católica romana, e na sagrada pessoa do infeliz rei, e da rainha; e lendo as Memorias do Delfim, pai deste infeliz rei, do memorial que apresentou a seu pai Luis XV, já no ano de 1755, que foi estampado em 1777, digo a V. Ex.ª que julgo ser necessário e indispensável, que S. Maj. haja de mandar tomar algumas medidas, para que de uma vez se tire pela raiz este mal, que está contaminando o todo, e insensivelmente.

«Não mortifico mais a V. Ex.ª com as minhas reflexões e combinações, porque V. Ex.ª melhor do que eu, e com outras luzes, dará o peso e a força que merecem, a estas minhas reflexões e combinações na presença de Sua Maj., que eu satisfaço a minha comissão cheio de zelo que tenho do real serviço, e a real família; e estes mesmos motivos me obrigam a repetir a V. Ex.ª que em Lisboa ainda (me informam) se acha Brossonet, sócio de Robespierre, e igualmente me dizem que este terrível homem ficou algumas vezes na Casa do Espírito Santo de Lisboa, com o P.e Teodoro de Almeida; e outras com o Abade Corrêa, e me suscitam novas ideias que o dito francês com as suas mal intencionadas intenções queira por este lado entrar a ganhar o conceito de algumas pessoas do sexo frágil, com o fim de que seja este o meio de ele disseminar as suas erróneas e sediciosas doutrinas, e contaminar o todo; e não posso passar em silêncio, e de marcar a V. Ex. que o Pode correr, que pára na mão do impressor António Rodrigues Galhardo, que eu vi, do infame papel que saiu à luz aprovado pela Real Mesa da Comissão geral é rubricado só pelo Principal presidente e pelos dois Deputados António Pereira de Figueiredo, e João Guilherme Muller; qualquer destes dois suspeitos e conhecidos por muita gente por sediciosos e perigosos; e do último em outras diversas passagens tenho informado a V. Ex.ª já, que o seu espírito é republicano; e para prova disto leiam-se as Gazetas portuguesas, que em algumas passagens de algumas delas se conhecerá o referido, pelo que põe, e deixa passar, de quanto são bem tratados e contemplados os prisioneiros portugueses pelos franceses; e as cores vivas com que pinta as acções dos franceses; e a morte-cor com que refere na Gazeta as acções dos espanhóis e portugueses, em todo o sentido; que ainda a serem verdades, se deviam omitir; e não repito mais a V. Ex.ª quanto é pouco favorável ao serviço de S. Maj. que corra uma Gazeta nacional, pondo em temor aos vassalos, e dizer-lhes por outra parte o bem que são tratados pelos franceses, e malquistar o aliado no tratamento que faz à nação; etc.» É datado de 17 de Dezembro de 1794 este oficio dirigido ao Marquês Mordomo-mor pelo Intendente D. I. de P. Manique. Foi copiado por Inocêncio dos livros da Policia, que estavam no Governo civil de Lisboa, hoje depositados na Torre do Tombo.

Mello Franco é apontado como um dos fundadores da Academia de Geografia, em 1799, e foi eleito vice-presidente da Academia das Ciências, sendo por ele escrito o relatório de 1816. Como médico do paço, foi encarregado de ir a Leorne esperar a Arquiduquesa Leopoldina, consorciada com o príncipe D. Pedro, e de acompanhá-la para o Rio de Janeiro, em fins de 1817. O seu enorme prestígio fez com que o intrigassem na corte, persuadindo D. João VI que Mello Franco era um dos conjurados da Conspiração chamada de Gomes Freire; e que era partidário da emancipação do Brasil. Dom João VI acreditou o que lhe disseram, sobretudo quando lhe segredaram que ele como médico atestaria a demência do rei. Foi-lhe logo proibida a entrada no paço, e demitido de médico da real câmara. Os haveres que alcançara pela clínica, depositados na casa comercial de um amigo, perdeu-os em uma falência fraudulenta. Sobre estas pressões repentinas veio-lhe uma febre adinâmica, tendo por esse motivo de retirar-se para São Paulo. O isolamento agravava-lhe a doença, tendo de regressar ao Rio de Janeiro; porém ao passar por Ubatuba, desembarcou com grande agonia, que se tornou mortal, expirando em 22 de Julho de 1823. [17] Durante a sua vida fizeram-se cinco edições do Reino da Estupidez, mas sem nome de autor, nem explicativa histórica do assunto; é provável que não tivesse conhecimento de uma tal homenagem. O poema merece fixar-se na historia literária, como afirmação do poder da obra estética quando verdadeira, e oportuna.

 

 

NOTAS:

 

[1] Poema de José Corrêa de Mello e Brito d'Alvim Pinto, impresso em Coimbra em 1782. 1 vol. in-12.º

 

[2] Ms. apud Historia da Universidade de Coimbra,t. III, p. 688, e 695.

 

[3] Poesias varias, t. VIII, p. 389. Ms. (Mihi.)

 

[4] Ibid., p. 391 e 392.

 

[5] Ricardo Raimundo

 

[6] António Ribeiro

 

[7] Dos Militares (sc. Colégio)

  

[8] Natural do Porto, onde nasceu em 31 de Agosto de 1746; morreu em Lisboa em 7 de Maio de 1827. Traduziu as Pastorais de Gessner (1778) e a Poética de Aristóteles (1779); imprimiu em 1814, A Serra de Sintra, em 70 septinas ; na Colecção de Poesias inéditas, t. II, O Sonho, p. 63; Epicédio (p. 71); Canção (p. 163), segundo afirmação de Nolasco da Cunha. 

 

[9]  Mss., vol. 130, fl. 93. (Na Bibl. Nac. de Lisboa.)

 

[10]  Mss., vol. 131, fl. 140. 

 

[11]  Mss., vol. 130, fl. 27 a 31. (Bibli. nac. de Lisboa)

 

[12]  Mss., vol. 181, fl. 19.  

 

[13]  Ibid., fl. 19 v.

 

[14]  Revista trimensal, t. II, p. 126. (1841.) As suas Obras poéticas imprimiram-se em Paris, 1820-21.

 

[15]  Na Macarronea foram incorporados estes seus escritos: A vaidade ridícula; Sátira em louvor das Modas; Sábio em mês e meio; Economia escolástica

 

[16]  Usava o nome poético de Américo Elysio; era filintista. 

 

[17]  Revista trimensal, vol. V, p. 346.  

 

 

Bibliografia do Poemeto de Mello Franco

 

1810

Epicédio à morte do Dr. José Ferreira Leal. (Na Colecção de Poesias inéditas dos melhores Autores portugueses, t. II, p. 71.)

 

1819

O Reino da Estupidez. Poema herói-comico em quatro cantos. Paris, 1819. In-18.º (Sem nome de autor.)

 

1820

Reino da Estupidez. Poema. Hambourg. 1820. in-16.º de p. XI-62. (Sem nome de autor.)

 

1821

O Reino da Estupidez: poema.  Nova edição correcta. Paris. Oficina de A. Bobée. 1821. In-18.º, de X-62 pp.

 

1822

A Estupidez. Poema em três Cantos. Na Impressão de João Nunes Esteves. Ano 1822. Rua dos Correeiros, n.º 144. In-16.°, de VI-45 pp. Parece ter sido este título o primitivo, como se vê da Carta do Dr. António Ribeiro dos Santos, e das referências das Sátiras contemporâneas. Não traz o nome do autor.

 

 Aponta-se uma outra edição deste mesmo ano, e lugar.

 

1833

O Reino da Estupidez. Lisboa. Imprensa de João Nunes Esteves. In-16.º

 

1834

O Reino da Estupidez. (Formando parte do tomo VI do Parnaso lusitano: Os Satíricos, de pp. 139 a 197.) Paris, Aillaud, 1834. In-32.º -  (Sem nome de autor.)

 

1868

Reino da Estupidez. Poema por Francisco de Mello Franco. Barcelos, Tip. da Aurora do Cavado. 1868, In-8.° peq. de XII-52 pag. (É edição do Dr. Rodrigo Veloso.)