20-2-2013
HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA - 1536 - 1821
de Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva
(A Esfera dos Livros, 2013)
Foi publicado há pouco este livro que, naturalmente, desperta muito interesse porque pretende fazer a história da Inquisição Portuguesa desde o seu início até à extinção nas Cortes Gerais em 1821. Tarefa ingente, dada a quantidade de documentos existentes, sobressaindo o enorme volume de processos que felizmente chegou até nós.
Na introdução, encontro duas contradições importantes:
1 - por um lado diz-se “intentou-se compor uma história centrada no Tribunal, e não nas suas vítimas”. Apesar deste propósito, fazem-se no livro citações de muitos processos, embora de um modo desequilibrado. É sabido que cerca de 80 % da actividade da Inquisição respeitava a réus cristãos novos e apenas 20 % a outros tipos de prevaricação (cristãos velhos hereges, os acusados por sodomia e outros actos sexuais considerados desviantes, bruxaria e superstição, os padres solicitantes, os bígamos, os idólatras). Ora os processos citados pelos autores são sobretudo do segundo grupo. São abundantes as citações de processos de bruxaria e superstição, o que é natural, por ser o tema da tese do Prof. José Pedro Paiva. Possivelmente, a prevalência dada aos documentos sobre o Tribunal e não sobre os réus fez descuidar um tanto o estudo dos processos citados, pois aparecem umas poucas de inexactidões, que descrevo em Anexo.
2 - Na mesma introdução diz-se “…(a Inquisição foi) … uma instituição que bem mereceu a imagem negativa de arma terrivelmente violenta e iníqua… (…) A Inquisição é sem dúvida um símbolo dos excessos de desumanidade a que se pode chegar em nome da religião e do que se considera a verdade”. Esta crítica não se repete ao longo do livro e é contrariada por toda uma atitude apologética da Inquisição no texto todo. Seja-me permitido fazer uma longa citação:
Pag. 243:
"Apesar das alterações nos procedimentos, esta nova fase (após 1681) foi caracterizada pelo definitivo enraizamento institucional do Santo Ofício. Como se fosse resposta ao desafio da interrupção mais longa que a Inquisição conheceu, a época barroca enquistou definitivamente a presença do Tribunal na sociedade. Era o resultado de século e meio de zelante vigilância da vida religiosa e cultural, não desprovida de impacto noutros âmbitos que iam dos equilíbrios internos à estrutura do corpo eclesiástico até às escolhas políticas tanto no reino, como no império da esfera económica ate à ordem social. Por outro lado, o respeito e a obediência, se não mesmo a consensual aceitação da autoridade do Santo Ofício, alimentavam-se da gradual afirmação do catolicismo pós-tridentino, com os seus valores, práticas devocionais, religiosidade, moral e emoções. Fé e poder entrelaçavam-se. Passados os difíceis anos da Restauração, superada a fase controversa da suspensão, que tinha implicado nova pressão diplomática em Roma, a Coroa estava ao lado da Inquisição, estimulando e até inspirando o modelo de harmonia e organização promovido pelo Tribunal e por outras instituições, como a Mesa da Consciência e Ordens, a qual, durante o século XVII, se tornara a instância detentora da última palavra sobre o delicado mecanismo dos benefícios eclesiásticos que eram do padroado da Coroa e das comendas das ordens militares.
A ortodoxia que o Santo Oficio tutelava já não visava somente um estado de plena e sincera adesão aos preceitos da fé e respeito pela disciplina da Igreja, mas também um ideal de perfeição social, o qual era partilhado pela maioria dos portugueses, por convicção ou mera conveniência. Merece ser sublinhado o ponto de que este fenómeno se consumou em todo o seu esplendor e difusão exatamente na época durante a qual o tradicional inimigo da Inquisição - os cristãos-novos, uma ameaça no interior da sociedade à pureza religiosa do reino — começava a sofrer uma perseguição menos intensa e inconstante, apesar de ainda consistente e cruenta ate meados do século XVIII.
No universo simbólico do Portugal barroco, a afiliação ou proximidade ao Tribunal era sinal de distinção e uma via de promoção e poder pessoal e familiar. Pelo contrário, quem infringia os seus ditames, não só por incorrer no crime de heresia, mas também por lhe ser descoberta uma mácula de origem judaica num dos quatro costados, por remota que fosse, era objeto de infâmia e exclusão que, de igual modo, atingia os seus descendentes. Cada vez era mais notório que a condição de cristão-novo podia não implicar uma crença real no judaísmo, mas tão só, e não era pouco, o estigma social que derivava de descender de quem a tivera. Por isso, na história da Inquisição, não foram raros os processos contra os que se fingiam comissários ou familiares, por vezes para ganhar dinheiro ilicitamente, mas também para terem maior prestígio social, sobretudo no império. "“
O facto de a Inquisição se ocupar sobretudo em perseguir os cristãos novos permite-nos concluir que a Inquisição não existiria se não fossem os cristãos novos. Os outros “crimes” poderiam sempre ser julgados pelos tribunais eclesiásticos. E realmente a Inquisição entrou em decadência até à sua extinção completa quando em 1773 foi abolida pelo Marquês de Pombal a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos. Por isso, o estudo da Inquisição deverá ser dirigido especialmente à relação da Inquisição com os cristãos novos, o que não acontece neste livro.
Outro problema que tenho é a utilização de conceitos que não são definidos. Um destes e da maior importância, é “judaizante”: que é que se quer dizer com isso? Para a Inquisição judaizante era aquele que, tendo sido baptizado, em vez de crer na fé católica, cria na Lei de Moisés dos seus antepassados judeus. Mas o pensamento é livre por natureza, apesar de um Bispo de Coimbra dizer que o pensamento é livre excepto no que toca à religião. De vez em quando, aparece nos processos um Inquisidor mais atrevido que diz que se presume que os cristãos novos crêem todos na Lei de Moisés. Mas a Inquisição tinha regras processuais, até porque relaxava os condenados à justiça secular e esta exigia que a heresia estivesse provada por palavras ou acções. Daí a necessidade de testemunhos que os provassem ou de os réus confessarem.
Outro problema era saber quais os actos que significavam crença na Lei de Moisés, isto é, as cerimónias judaicas. Havia então a tendência de considerar como tais toda e qualquer tradição judaica o que de facto não era correcto. Por exemplo, o modo de vestir os mortos e o sepultá-los em terra virgem parece nada ter a ver com religião.
Falam os autores da “prática do culto judaico no espaço doméstico” e na “prática de um judaísmo clandestino e altamente ritualizado, cujos sinais os inquisidores aprenderam a reconhecer e denunciar como indício de crenças secretas, fixando-as de forma esquemática”. Tudo isto não é provado e a leitura dos processos permite-nos concluir que o que foi ritualizado não foi o judaísmo mas as fórmulas utilizadas nas denúncias e nas confissões dos processos. Isto constata-se sobretudo nas sentenças, peças que até os autores chamam “estereotipadas” e que estão fora do processo, pois destinavam-se a ser lidas no auto da fé. A decisão sobre o destino do réu está no último Assento, ou da Mesa da Inquisição ou do Conselho Geral. Não raro, as sentenças contêm factos não provados, as tais cerimónias judaicas estandardizadas.
Uma permanente questão é saber qual o móbil da Inquisição. Têm razão os autores quando dizem que não podia ser o confisco dos bens dos réus. De facto, este era insuficiente para as despesas e muitos dos réus nada ou muito pouco possuíam. Dizem os autores (pág. 171): “… os cristãos novos estavam a obter ganhos que ameaçavam o estatuto social e individual dos cristãos-velhos, bem como a imagem da sociedade no seu todo, que se pretendia um modelo de pureza e incorrupção na fé católica inigualável em toda a Europa”. Esta ideia da defesa da fé católica é repetida sucessivamente ao longo do livro: a Inquisição como defesa da fé católica, o Tribunal da fé. Ora eu pergunto como é que os réus cristãos-novos, ao fim de vários anos de prisão, de sofrimentos e maus tratos sem fim, humilhados, doentes, podiam acreditar numa fé em nome da qual tinham sido tão maltratados!
Ainda acredito que na realidade, até finais do séc. XVI, a Inquisição tivesse sido destinada a castigar os hereges. Mas os cristãos novos não eram suicidas. Os que queriam de facto praticar a religião de seus antepassados fugiram para o estrangeiro aos milhares. Os que ficaram pautaram o seu comportamento exterior pelo dos cristãos-velhos, baptizaram os filhos, que foram aprender o catecismo, confessar-se e comungar na idade da discrição (aos 7 anos). Muitos casaram com cristãos velhos fazendo casamentos mistos que, infelizmente para eles, não os protegeram.
Isto não quer dizer que, no seu íntimo, não duvidassem da fé católica ou não guardassem algum afecto pela lei religiosa dos seus antepassados. Mas não o manifestavam exteriormente.
Os autores não concordam com isto:
(pag. 366) “… em boa parte devido ao papel activo que as mulheres teriam tido na preservação e divulgação doméstica de hábitos e crenças judaicos”.
(pag. 164) – “Aliada à ideia de que bastantes continuariam a judaizar e até a corromper a honra das famílias cristãs-velhas com quem se enlaçavam. “ Que é judaizar?
Dizem que a maior parte dos cristãos novos que fugiam para o estrangeiro se tornavam judeus, mas isso não prova a prática em Portugal de cerimónias judaicas. Além disso, muitos chegavam aos países de destino em condições económicas desastrosas e tinham de recorrer à ajuda da comunidade judaica, tendo naturalmente de aderir a ela, nomeadamente circundando-se.
Um forte argumento contra a ideia de cerimónias judaicas nas casas dos cristãos novos é que muitos dos que disso foram acusados tinham proventos acima da média, viviam com comodidade e tinham por isso empregados, criados e escravos que os denunciariam se suspeitassem de alguma coisa. Não as podiam fazer de nenhum modo.
Do estudo de muitas dezenas de processos, nas páginas deste site, concluí que, a partir do início do séc. XVII, as denúncias e confissões dos cristãos novos são todas falsas, os processos são todos fraudulentos. Eram um modo de escapar ao cadafalso, nada tinham de verdade. Não significa isto que fossem católicos fervorosos, ou que não tivessem preferência pela Lei de Moisés (que não conheciam) em comparação com os dogmas católicos. Mas as provas que foram usadas para os condenar e as confissões que fizeram para salvarem a vida eram todas falsas.
Admito, porém, uma excepção: os jejuns judaicos no cárcere. Isto é, reconheço que a pessoa que fazia jejuns judaicos na prisão mostrava com isso estar ainda presa à fé dos seus antepassados. E, de facto, a Inquisição dava a maior importância aos jejuns judaicos, pondo em marcha um processo muito pesado de os provar com dois familiares a vigiar em permanência o preso nas casas de vigia. Em geral, os vigias acrescentavam que os presos não faziam nenhum acto de cristãos, como seria benzerem-se ao levantar ou rezar às Ave-Marias ou colocar as mãos postas para rezar. Quem jejuava ao modo judaico no cárcere, tinha muita dificuldade em escapar ao cadafalso. Veja-se o caso dos relaxados denunciados por Francisco de Sá Mesquita; embora não se comprovassem as denúncias que ele fizera, foram condenados pelos jejuns judaicos praticados no cárcere.
O que afirmo é provado pelos processos de perjúrio contra os que faziam denúncias nitidamente inventadas que, se fossem aceites, deixariam mal a própria Inquisição. É o caso de Manuel Pinto Losa (n.º 10564) que no entanto, foi acusado demasiado tarde, porque já haviam sido relaxados alguns dos que ele acusava, como referiu um dos deputados no Assento da Mesa. Foi também clamoroso o processo de Francisco de Sá Mesquita que denunciou muitas dezenas de pessoas da área de Beja e foi relaxado como falsário.
Também provam a fraude das confissões, as revogações feitas por alguns réus, às vezes já na ida para o cadafalso: é o caso de António Pinheiro da Costa (Pr. n.º 10102) e de António Tavares de Costa (Pr. n.º 9112). Fernando de Morales Penso (Pr. n.º 6307), já embarcado, partindo para o desterro no Brasil, escreveu uma carta a um Jesuíta seu amigo, desdizendo tudo o que confessara no processo. O Padre foi levar a carta à Inquisição que foi junta ao processo.
Mas basta ler com atenção os processos para ver que as confissões são apenas meios de salvar a vida, sem correspondência com a realidade.
Diz-se comummente que os processos da Inquisição são formalmente correctos e os autores repetem essa ideia: (pag. 198) “… o processo inquisitorial era rigoroso, não arbitrário, muito vigiado pelo Conselho Geral e, também por isso, temido pelos réus. Iniciava-se com recolha de provas testemunhais, por norma, abundantes…”. Esta ideia não é correcta. Com toda a evidência, o processo da Inquisição era orientado para que o réu se comportasse como os Inquisidores queriam, sob pena de ser condenado. O réu tinha de ser humilde, arrependido, tinha de confessar e denunciar para escapar à morte.
Na defesa, a contestação por negação para nada servia, nunca encontrei um processo em que aproveitasse ao réu, por mais válida que fosse. A alegação por contraditas era levada em consideração num caso ou noutro, mas, ainda que diminuído o crédito de uma testemunha, havia outras que eram tidas em conta contra o réu. Aliás no livro diz-se quase o mesmo: “Esta (a defesa) raramente tinha sucesso” (Pag. 199).
Quanto a o processo ser vigiado pelo Conselho Geral, muitas vezes este era mais cruel do que o Assento da Mesa, por exemplo no processo n.º 8273-1, de Margarida Correia, relaxada pelo Conselho Geral, pena que fora pedida por um único elemento da Mesa.
Simplificando, direi que em relação aos cristãos novos, a Inquisição era uma instituição perversa que basicamente lhes desejava fazer mal. As perversidades começavam no Regimento e juntavam-se-lhes depois algumas da iniciativa dos Inquisidores. Aqui elenco algumas, a título exemplificativo:
Perversões
do Regimento de 1640:
- II, IV, IV – primazia das denúncias de parentes mais chegados
- II, IX, III – mentir ao réu em relação a culpas cometidas no cárcere
- II, IX, I – ocultação da pessoa do denunciante, do tempo e do lugar da culpa
- VI, V, VI - nomear curador dos menores o Alcaide dos cárceres
dos Inquisidores:
- a existência de casas de vigia nos cárceres;
- a colocação nos cárceres de presos que pudessem ser voluntariosos para denunciar à mesa o que se havia passado e dito nos cárceres;
- nunca ligar nenhuma à contestação do processo por negação, por mais válida que fosse
- parar o processo, deixando o preso a “apodrecer” na prisão
- aplicar aos réus castigos físicos, fora do tormento, por exemplo açoites
- já depois de findo o processo, no período do cárcere, solicitar aos presos mais confissões
- aplicar aos condenados penas não previstas nos Assentos, por ex. degredos no interior do País;
- no caso do Conselho Geral, decidir sem fundamento – enquanto a Mesa em geral seguia uma certa lógica, por vezes, as decisões do Conselho Geral decidiam de modo diferente sem fundamentar.
- relaxar réus que tinham endoidecido nos cárceres
Costuma dizer-se que a Inquisição Portuguesa não foi das mais cruéis porque não matou muitos dos réus. De facto, não deve ter ultrapassado 3 000 o número dos relaxados, já tendo em atenção que António Joaquim Moreira não tinha cópia de todos os autos da fé. Mas não deve ser esquecido o sofrimento dos reconciliados, as humilhações, o serem espoliados de seus bens. E aí os números são muito elevados, várias dezenas de milhares.
Foi pena que os autores do livro não tivessem investigado e descrito as razões do ódio da população portuguesa aos cristãos novos. Chamam-lhe “obsessão anti-judaica”, por que não hão-de falar simplesmente em anti-semitismo? Um eufemismo, sem dúvida. Uma das razões principais seria a doutrina de ódio que a população ouvia dos púlpitos, mas é preciso também ter em conta a tendência da comunidade cristã nova para procurar o sucesso económico nos negócios e nas profissões, pondo os filhos a estudar na Universidade, o que provocava invejas entre os cristãos velhos.
Teria sido bom que os autores se tivessem disposto a discutir o conteúdo de alguns dos livros que atacaram a Inquisição, nomeadamente as “Notícias Recônditas”, comparando o texto com os processos a que se referem. Teriam concluído pela verdade do que ali é denunciado.
Chegado aqui, qual era então o móbil da Inquisição? A resposta é: nenhum, apenas existir e subsistir. Está provado (e os autores deste livro não o negam) que a Inquisição era uma estância de poder, muito poder dos Inquisidores e da máquina que eles dirigiam, com relevo para os comissários e familiares. Já dizia Salazar que uma característica e pretensão do poder é durar e ele sabia de que falava. A Inquisição queria subsistir no tempo e para isso tinha de ter uma ocupação, fazer algo que agradasse à sociedade do seu tempo. Essa tarefa era perseguir os cristãos novos, humilhá-los, amarfanhá-los. Não tem que ver com a religião, esta não era mais do que um pretexto. Se não houvesse cristãos novos, não haveria Inquisição, como já referi.
Seria bom também ter em conta a máxima de que o poder corrompe, o que poderia explicar comportamentos duvidosos das figuras cimeiras da máquina inquisitorial.
Se a Igreja Católica adopta o ponto de vista de que a Inquisição foi uma entidade que a integrou, então o que tem a fazer é demarcar-se rapidamente para redimir essa mancha do passado.
A Inquisição seria extremamente ridícula se não fosse trágica. Por exemplo, Pedro Serrão de Castro (Pr. n.º 9797), não pode deixar de ser considerado um mártir da fé católica levado ao cadafalso pelos Inquisidores.
Apresentação do livro em 11-3-2013, por D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, aqui.
O texto desta página refere-se unicamente à 1.ª edição do livro.
INCORRECÇÕES E INCOMPLETUDES
Pág. 377 - António de Morais e Silva (Pr. n.º 8094, da Inq. de Coimbra e 2015, da Inq. de Lisboa) – A referência no livro está incorrecta. Falta mencionar o processo n.º 2015, que já tinha passado desapercebido a António Baião, possivelmente por estar apenas em nome de António de Morais. António de Morais e Silva foi ouvido na Inquisição de Coimbra em 1779, em 28 de Maio, 12 e 18 de Junho, 6 e 7 de Julho. Entretanto, tinha terminado o curso jurídico, fugiu para Lisboa e depois para Roma e para Inglaterra, a tempo de evitar a prisão inevitável. Não esperou pelo ano seguinte, como diz o texto. Em 1785 quis voltar ao Reino e apresentou-se na Inquisição numa peça que é um prodígio na arte de representar. Quem refere as suas andanças correctamente é José de Sousa Monteiro no Boletim de 2.ª classe da Academia de 1902, onde refere o 2.º processo, em Lisboa, embora sem dizer o número. Há um livro no Brasil que conta bem a história: Alexandre Mansur Barata, Maçonaria, sociabilidade ilustrada & independência do Brasil, 1790-1822, Juiz de Fora/São Paulo: Editora UFJF/Annablume/FAPESP, 2006.
Pág. 545 - P.e Pedro Lupina Freire (Pr. n.º 4411) – Basta ler o processo do Padre Lupina Freire, para dar conta à evidência de que ele era um "pateta alegre" e nunca poderia ser o autor das “Notícias recônditas”. Para além disso, há a carta de Francisco de Azevedo, de 2-12-1673, onde ele diz: Pedro Lupina, de quem contávamos tirar algumas notícias, sobre ser quimérico, confuso, e tudo fala por oráculos, achamos ter tratos diferentes dos que nele esperávamos; inútil foi mandar cá este homem, se é que o mandaram, porque eu nada lhe creio». De notar também que a maior parte dos processos citados são da Inquisição de Évora, e ele não os poderia conhecer.
Pág. 147 - Baltazar Estaço (Pr. n.º 2384) é definido como “autor de obras expurgadas”. B. Estaço apenas publicou um livro de poemas (de algum mérito), “Sonetos, canções, églogas e outras rimas, compostas per Baltazar Estaço, Conego na Sê de Viseu, natural da Cidade de Evora edirigidas ao Illustrissimo Reverendissimo senhor Dom João de Bragança Bispo de Viseu,- Coimbra, 1604” quando era protegido por aquele Bispo e não consta que a obra tenha sido expurgada. António Baião dedica-lhe 40 páginas, o que teria permitido uma citação mais precisa e completa.
Pág. 195 – Ao contrário do que diz o texto, Manuel de Morais (Pr. n.º 4847 e 4847-1), quando foi condenado pela Inquisição, já não era jesuíta há muito tempo: desde Dezembro de 1634, quando se rendera aos Holandeses. Foi para a Holanda antes de Abril de 1635 e aí casou por duas vezes e teve três filhos. Ainda em meados de 1635, foi expulso da Companhia de Jesus. Foi relaxado em estátua como ausente no auto da fé de 6-4-1642 e depois reconciliado no auto da fé de 15-12-1647 (Proc. n.ºs 4847 e 4847-1). Ver Traição de Ronaldo Vainfas, 2008, Companhia das Letras – S. Paulo e os processos dele transcritos na Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro volume LXX, parte I, Rio de Janeiro 1907 – impresso em 1908 no Rio de Janeiro – Imprensa Nacional, que está online. Apesar de tudo, há sinais de que o P.e António Vieira lhe dedicou alguma amizade em 1647, pois o seu arquivo inclui um texto do ex-padre dessa data.
Pág. 78 - Lopo de Almeida (Pr. n.º 2183) – Em vez de dizer apenas que Lopo de Almeida foi apanhado (pela Inquisição) seria muito mais correcto dizer que ele foi expressamente denunciado no relatório da missão enviada pelo Cardeal D. Henrique a Paris em Novembro de 1549, no testemunho de Fr. João Pinheiro.
Pág. 187 - D. Rodrigo da Câmara, Conde de Vila Franca (Pr. n.º 3259) não foi libertado em 1658. Apenas saiu do cárcere da Inquisição e foi preso para o Convento do Cabo de São Vicente. Com a saúde arruinada, acabou por falecer ali em 30 de Abril de 1662. –
Pág. 148 – Vicente Nogueira (Pr. n.º 4241) – Não há elementos no processo da Inquisição que confirmem a suspensão da pena em 1637, que ele de facto, poderá ter obtido em Roma. Acho que seria mais importante referir a sua fuga do barco que o levava para a Ilha do Príncipe na escala na Paraíba em 1633 de onde veio de novo para a Europa, achando-se em Madrid em 1635, de onde seguiu depois para Roma.
Pág. 375 – José Anastácio da Cunha (Pr. n.º 8087, de Coimbra) – Dizer que a punição de José Anastácio da Cunha foi o ponto mais emblemático da campainha de 1778 contra deístas e libertinos é incorrecto e muito injusto. Eu pergunto: se ele levava uma vida tão desregrada como diz o livro, quando é que estudou Matemática, atingindo um nível universitário como autodidacta? quando é que escreveu os poemas que admiramos?
José Anastácio da Cunha era professor em Coimbra desde 1773. Vivia com sua mãe e não levava vida libertina. Depois, foi vítima da velha lógica da Inquisição: quando os seus antigos camaradas de armas foram presos em 7-1-1778, tiveram de fazer denúncias para se libertarem e alguns acusaram-no nessa altura. Fazem o favor de notar que José Anastácio da Cunha não estava no primeiro grupo de denunciados. Na Inquisição, o que tem importância é quem denuncia primeiro, quem abre a cadeia denúncias-confissões; esse é que é importante, não há presos emblemáticos.
Preso em 1 de Julho de 1778, não tinha outra solução senão confessar o que os Inquisidores queriam que confessasse. E se há coisa que pouco ou nenhum crédito merece são as confissões na Inquisição. Note-se ainda que José Anastácio da Cunha em Valença não andava com amantes e prostitutas: tinha uma companheira que lhe era muito dedicada. O processo teve um desfecho muito duro, pela pena principal de não poder voltar a Coimbra, sendo assim expulso do ensino.
Pág. 273 – A notificação de mãos atadas – Liv. II, Tit. XV, n.º V – era feita sexta-feira para o auto da fé de domingo, por isso, dois dias antes e não três, como é referido.
Pág. 295 –“Os relaxados diminuíram nitidamente, sendo a maior parte executados em Lisboa”. A razão pode ser a informação de João Lúcio de Azevedo na História dos Cristãos Novos Portugueses (pag. 336): “Desde o reinado anterior (D. Pedro II) se tinha adoptado a prática de transferir para Lisboa os réus que haviam de ser justiçados.”
Pág. 300 – Nos séc. XVII e XVIII, já não havia galés, embora os Assentos continuassem a falar em “Degredo de X. anos (ou para sempre) para as galés, para servir a remo, sem soldo”. Ficavam na cadeia pública, onde eram ocupados em trabalhos forçados.
TEXTOS DE REFERÊNCIA
Páginas sobre a Inquisição neste site
Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1613
Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/1/19/p56
Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1640
Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/7/20/p267
José Pedro Paiva, Bruxaria e superstição num país sem "caça às bruxas" (1600-1774), 2.ª edição, Editorial Notícias, Lisboa, 2002
António José Saraiva, The Marrano Factory, The Portuguese Inquisition and Its New Christians (1536–1765), traduzido, revisto e aumentado por H.P. Salomon and I.S.D. Sassoon, Brill, Leiden, Boston, Köln, 2001
João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Porto, 1921
Online: http://www.archive.org/
António Baião, Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa, 3.ª ed., Lisboa, Seara Nova, 1972-1973, 3 vols.
Mário Brandão, D. Lopo de Almeida e a Universidade, Universidade de Coimbra, 1990.
Anselmo Braamcamp Freire, O Conde de Vila Franca e a Inquisição, Imprensa Nacional, 1899