18-4-2010
JOSÉ ANASTÁCIO DA CUNHA
(1744 - 1787)
Apesar da sua curta vida, José Anastácio da Cunha é das personalidades portuguesas mais importantes da segunda metade do Sec. XVIII. Foi poeta, matemático ilustre, de modo quase autodidacta, tendo aprendido francês, inglês, italiano e alguns rudimentos de grego antigo e de alemão. Foi mais uma vítima da Inquisição, a qual, à morte de D. José I, se levantou das cinzas, onde estava adormecida e disparou para todos os lados.
José Anastácio da Cunha nasceu em Lisboa a 11 de Maio de 1744, sendo filho de Lourenço Cunha e de Jacinta Inês. A família deveria ser de condição remediada. Seu pai era pintor e cenarista muito elogiado por Volkmar Machado. Querem alguns autores que fosse simplesmente pintor de paredes, o que não parece ter razão de ser, pois Volkmar Machado escrevia em 1811, não muito tarde em relação aos acontecimentos e deveria saber do que falava. As perspectivas económicas da família deverão ter piorado bastante com a morte do pai, quando José Anastácio tinha 16 anos, tal como ele refere no título de uma sua poesia.
Diz ainda Volkmar Machado que Lourenço da Cunha foi mestre de Matemática de seu filho, o que tem foros de veracidade, apesar de este dizer mais tarde que estudara aquela disciplina, “por sua conta e sem mestre”.
Possivelmente, as relações do pai permitiram-lhe que fosse estudar para a escola dos Néris, os Padres da Congregação do Oratório, fundada por S. Filipe de Néri. Disse ele na Inquisição, que ali lhe ensinaram Gramática, Retórica e Lógica, e estudou Física e Matemática, por curiosidade e sem mestre. Estudou também certamente Latim e Francês, o que não lhe interessava revelar aos Inquisidores. Como veremos mais tarde, manteve ele toda a sua curta vida, boas recordações dos padres oratorianos.
De família modesta e ainda órfão de pai, não tinha possibilidade de ir frequentar a Universidade de Coimbra. Por isso, aproveitou ele a oportunidade que lhe foi oferecida de integrar como Tenente o Regimento de Artilharia do Porto, aquartelado em Valença do Minho. No Regimento, existia uma Escola de Artilharia, onde se aprendiam noções de Matemática, em especial as necessárias às actividades da Arma. Foi nomeado oficialmente por Decreto do Conselho de Guerra de 25 de Junho de 1764, sendo provável que já se encontrasse em Valença nessa altura. Por motivos operacionais, foi deslocado mais tarde por algum tempo para Almeida, mas depois regressou a Valença.
O Regimento de Artilharia do Porto integrava-se na reorganização do Exército ordenada pelo Marquês de Pombal, que a confiara a um alemão, o conde Whilhelm Von Schaumburg-Lippe. Este contratou muitos militares no estrangeiros, de tal modo que estes representavam à volta de um terço dos militares do Regimento de Artilharia. Muitos destes eram de formação religiosa protestante e traziam consigo livros que figuravam na lista dos livros proibidos pela Inquisição.
Como seria de esperar, José Anastácio da Cunha procurou sobretudo a companhia deles, devorando os livros que eles lhe emprestavam. Aprendeu inglês e italiano, enquanto aprofundava os conhecimentos de física e matemática. Depois de aprender inglês, entusiasmou-se com a leitura da obra de Shakespeare. Ao mesmo tempo, compunha poemas.
O Brigadeiro James Ferrier, comandante da tropa em Valença, era especialmente amigo dele e pedia-lhe frequentemente para traduzir para português poemas franceses e ingleses. Toda esta literatura era proibida em Portugal pela Igreja e pela Inquisição. Porém, em 1768, o Marquês de Pombal decidiu retirar esse poder à Igreja e criou a Real Mesa Censória, que ficou encarregada de elencar os livros proibidos. As duas listas (da Igreja e do Estado) eram em geral coincidentes, mas nem sempre.
Convém lembrar que, à época, o Catolicismo era a Religião do Estado e a prática religiosa absolutamente obrigatória. Os párocos estabeleciam o “rol da desobriga” (durou em Portugal até meados do Sec. XX), que listava a confissão e comunhão pascal dos paroquianos; a ida à Missa era obrigatória nos domingos e dias santos.
De toda a Europa, os ventos sopravam novas ideias, baseadas na liberdade de pensamento e de expressão: era o século das Luzes, os Iluministas. Voltaire, Rousseau, Diderot eram autores procurados e lidos com entusiasmo, apesar das proibições.
A Igreja Católica, porém, estava contra. Liberdade de pensamento, sim, excepto no que respeita à Religião.
José Anastácio da Cunha absorvia as novas ideias com toda a facilidade. Certamente, tinha mais interesse na companhia dos oficiais estrangeiros lidos e cultivados, do que na dos portugueses, pouco mais que analfabetos. Não era porém do seu feitio fazer prosélitos. Não era propagandista. Seria até bastante tímido; e só quando bebia um copito a mais, é que se dedicava a recitar os seus poemas e a discutir novas convicções.
Era novo e naturalmente gostava da paródia. Quando morreu o cão do Capitão Richard Müller, ele com mais alguns foram simular um enterro católico do bicho, que caiu bastante mal no espírito dos crentes.
O seu feitio reservado e a convivência permanente com os oficiais estrangeiros tornavam-no antipático aos olhos dos militares portugueses, em especial dos não graduados. De facto, os que tinham tido educação literária, procuravam e copiavam os poemas que ele escrevia, ou traduzia do inglês e francês, chegando mesmo a decorá-los, como se viu mais tarde. Um dos mais diligentes destes era o Tenente João Baptista Vieira Godinho que juntou uma autêntica colecção dos poemas de José Anastácio, manuscrito ainda hoje existente na Biblioteca Municipal do Porto e designado com o seu nome.
A sua excepcional inteligência fazia com que fosse também muito conhecido e reconhecido por todos os do Regimento ou mesmo da vila de Valença.
Em 1812, o periódico “O Investigador Portuguez em Inglaterra”, publicou no seu vol. IV, pags. 31-32, sem indicação de data, nem de autor, nem de origem, a tradução de uma carta muito elogiosa para uma pessoa de Valença, fácil de identificar como sendo José Anastácio, chamando-lhe “génio” e “um prodígio deste século”. Até hoje, esse texto tem sido reproduzido nas biografias de Anastácio, sem que se tenha descoberto o original inglês. Encontrei-o eu e reproduzo-o a seguir [1]. Costuma-se atribuir a um viajante inglês em Portugal, mas o que o original diz é um “senhor inglês residente no Porto”. Refere os factos a Agosto de 1772. Dizem alguns que o remetente da carta será o Major Simon Frazer, do Regimento de Artilharia e amigo de José Anastácio, mas sem apresentarem provas.
Em Valença, começou ele a escrever: poemas, traduções, mas também textos sobre a artilharia, como Carta físico-matemática e Ensaio sobre as minas, este último a pedido de um capitão, talvez Simon Frazer. O Ensaio sobre as minas foi mostrado em Almeida por um camarada bem intencionado ao Conde Lippe que, inicialmente agastado por o autor discordar de autores consagrados, depois lhe deu razão e deixou ordens para que Anastácio fosse promovido e aumentado no soldo.
Ainda em Valença, apaixonou-se Anastácio por uma moça do campo, de Vila da Barca chamada Margarida e, depois de namorarem durante algum tempo, levou-a para sua casa, ficando a viver maritalmente. Esta situação causou escândalo na época, tanto mais que Anastácio chegou a mencionar o nome dela nos seus poemas. Possivelmente a moça era analfabeta e foi Anastácio que a ensinou a escrever, assim como lhe ensinou o alfabeto maçónico, que aparece numa carta dela junta ao processo da Inquisição.
LENTE DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
É muito provável que o nome de José Anastácio da Cunha fosse bastante conhecido nos meios castrenses. Não parece haver dúvidas que o Tenente General Francisco MacLean, comandante da escolta que em Agosto de 1772 acompanhou o Marquês de Pombal na sua ida a Coimbra, para a inauguração da nova Universidade, lhe fez referências muito elogiosas. Di-lo-ia o Marquês em carta do ano seguinte dirigida ao Reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos:
“é tão eminente na Ciência Matemática que, tendo-o eu destinado para ir à Alemanha aperfeiçoar-se com o Marechal General, que me tinha pedido dois ou três moços portugueses para os fazer completos, me requereu o Tenente General Francisco MacLean, que não o mandasse porque ele sabia mais que a maior parte dos Marechais do Exército de França, de Inglaterra e da Alemanha: E que é um daqueles homens raros, que nas Nações cultas costumam aparecer.”
Após esta carta, de 5 de Outubro de 1773, José Anastácio da Cunha é nomeado Lente da Universidade para ficar a reger a cadeira de Geometria, o que ele fará durante quatro anos lectivos.
José Anastácio da Cunha parte pois para Coimbra, onde fica a viver com sua mãe. Começa a dar aulas de Geometria. A cadeira era obrigatória para todos os cursos, incluindo Leis e Cânones, cujos alunos detestavam números. Pede dispensa do traje académico, preferindo dar aulas com o uniforme de Tenente de Bombeiros. Tal atitude caiu mal no meio académico.
Problema mais grave era o sistema de ensino em vigor. Os estudantes decoravam os textos mesmo sem os compreender e não queriam ter de resolver problemas. Era o ensino baseado na Sebenta, instituição que chegou até ao sec. XX (ainda no início dos anos 70 havia uma cadeira de Direito que muitos faziam, decorando literalmente as 96 páginas dactilografadas em formato A5, da sebenta!). José Anastácio da Cunha queria que eles compreendessem o que se lhes dizia e resolvessem depois problemas. Acabou por ser vencido e desistir da exigência.
Colega dele na Faculdade de Matemáticas era o P.e José Monteiro da Rocha, ex-Jesuíta. Já se escreveu que foi a rivalidade entre os dois que fez Anastácio ir parar à Inquisição e arruinar-lhe a vida. Parece que os factos não comprovam tal teoria. Embora rivais, as relações entre ambos seriam nessa altura correctas. Quando Anastácio da Cunha foi preso, tinha em seu poder livros emprestados por Monteiro da Rocha; tal não poderia acontecer se fossem tensas as relações entre eles.
NA INQUISIÇÃO
O Marquês de Pombal amansou a Inquisição. Mas, em vez de a suprimir, pô-la ao serviço da Coroa. Porém, terminada a distinção entre Cristãos Velhos e Cristãos Novos, acabou também a pesquisa da pureza de sangue e acabaram praticamente as perseguições por judaísmo.
O novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1 de Setembro de 1774 tornou-a um pouco mais humana, de tal modo que os Inquisidores ficaram mesmo receosos de porem aquela terrível máquina em movimento para perseguirem alguém. O novo Regimento omitia mesmo das culpas a pertença aos “pedreiros livres”, o que veio a ser acrescentado pelo Edital de 13 de Fevereiro de 1792.
A situação era de tal modo desencorajante para o pessoal da Inquisição que as pessoas não faziam denúncias à Mesa com receio de ficarem mal vistas politicamente. É o que afirmou o Padre Mestre Frei Filipe de Santiago Travassos, depondo no processo de Francisco Manuel do Nascimento, Filinto Elísio (Imagem 129, Pr. n.º 14048, da Inq. de Lisboa).
Compreende-se assim que, até então, não tivesse havido ainda nenhuma perseguição organizada por heresias em Valença do Minho, onde aliás, havia, segundo constava, uma loja maçónica que terá funcionado aproximadamente nos últimos três decénios do Sec. XVIII (Dicionário de Maçonaria). Houvera apenas um processo contra João José Baptista, Sargento de Artilharia em Valença, em 13/11/1769 - 09/02/1770 (Pr. n.º 9534, que não pude consultar).
Tudo isto mudou com a morte de D. José I em 24 de Fevereiro de 1777 e a subida ao trono de D. Maria I. Deu-se a “Viradeira”, tudo ficou ao contrário. Quem era perseguido deixou de o ser, os presos foram soltos, e a Inquisição adormecida… despertou.
A narração de odisseia de José Anastácio da Cunha costuma fazer-se a partir das denúncias feitas contra ele por presos da Inquisição do Regimento de Valença. Ora eu acho que se deve contar a história desde o início, isto é, a partir de quem denunciou esses mesmos presos; acho que a perspectiva muda um pouco. Aliás a acção da Inquisição abrangeu não apenas os militares de Valença como também vários estudantes universitários, embora estes fossem tratados com mais brandura. Além do resto, havia filhos de fidalgos metidos no caso, gente que a Inquisição tinha receio de beliscar.
Nos últimos anos do Marquês de Pombal, vivia-se em Coimbra um ambiente de alguma efervescência, com a discussão das ideias vindas de França e da Europa em geral, dos Iluminados e das Luzes. Eram muitos os fervorosos das novas ideologias, abominando o obscurantismo reinante no País. Emprestavam-se livros, copiavam-se livros, encomendavam-se livros do estrangeiro que se faziam entrar clandestinamente. Os livreiros aproveitavam para ganhar mais algum e comunicavam aos clientes interessados os livros proibidos que tinham para venda. Dos mais entusiastas pelas novas doutrinas, alguns estudantes naturais de Valença, salientando-se a “formação” recebida no contacto com os militares estrangeiros.
Seguirei aqui os artigos de Luis A. de Oliveira Ramos sobre o assunto, complementados pela consulta de alguns processos.
Deu-se a “Viradeira”, acenderam-se os ânimos. Constou a Joaquim Vicente Pereira de Araújo, estudante do 1.º ano do Curso Jurídico, natural de Valença, que o seu conterrâneo, Luís José Pereira Freire de Andrade, estudante do 4.º ano de Cânones o iria denunciar e a seus amigos à Inquisição. Antecipando-se, Pereira de Araújo apresentou à Inquisição através do Comissário do Santo Ofício em Braga, uma extensa denúncia contra:
- Henrique Leitão de Sousa, Cadete em Valença
- José Maria Teixeira, estudante do 5.º ano de Cânones, natural de Valença
- João Manuel de Abreu, Soldado em Valença
- Manuel do Espírito Santo Limpo, Cabo de Esquadra em Valença
- José de Sousa, Soldado em Valença
- José Barreto, Cadete em Valença
- João de Mattos, Soldado em Valença
A denúncia foi apresentada em 29 de Abril de 1777 e foi vista na Inquisição de Coimbra a 7 de Maio; está inserida no Pr. n. 8075, de Henrique Leitão de Sousa. Nota-se uma certa hesitação da Inquisição em prosseguir a investigação; as diligências para confirmar os factos denunciados, agora exigidas pelo novo Regimento, arrastaram-se até final do ano. Entre os acusados por Pereira de Araújo, figurava o estudante José Maria Teixeira, muito desbocado e provocador, que ficou conhecido em Coimbra como o “ateu de Valença”. Era, de facto, o estudante mais atrevido a declarar proposições heréticas. Foi o primeiro a ser preso, afinal, estava em Coimbra ali mesmo à mão. Para Valença foram expedidos mandados de prisão que trouxeram para os calabouços da Inquisição, em Coimbra em 7 de Janeiro de 1778:
José Barreto
Henrique Leitão de Sousa
José Madeira Monteiro
José Leandro Meliani da Cruz
José de Sousa
João Manuel de Abreu
Note-se que a Inquisição foi muito mais branda para com os estudantes da Universidade de Coimbra que se apresentaram a declarar as suas culpas (e foram muitos).Para eles não houve auto de fé. O próprio Joaquim Vicente Pereira de Araújo, que tinha suscitado todo o escarcéu, achou também prudente apresentar-se à Inquisição para confessar as suas faltas em 8 de Janeiro de 1778 – Pr. n.º 8091. Por lá passou também Luis José Pereira Freire de Andrade – Pr. n.º 8090. Este quadro [2] indica, quer os militares de Valença, quer os estudantes de Coimbra, naturais da mesma vila.
Entre os estudantes que se apresentaram, merece destaque Jerónimo Francisco Lobo, natural de Vidais, termo de Óbidos, que se apresentou em Coimbra (Pr. n.º 8088) e depois em Lisboa (Pr. n.º 6111, onde se transcreve a confissão de Coimbra); denuncia ele dezenas de colegas. Mais tarde, já regenerado, foi, em 17 de Março de 1807, nomeado Adjunto do Intendente Geral da Polícia, Lucas Seabra da Silva.
Acossados pelos Inquisidores, os militares de Valença lembraram-se também de entregar José Anastácio da Cunha o qual, com os seus poemas, as paródias, os copos, a vida em concubinato, estava mesmo a jeito. José Madeira Monteiro, José Leandro Melliani da Cruz e Henrique Leitão de Sousa pensaram agradar aos Inquisidores denunciando-o. O cirurgião francês Alessio Vacchi, preso alguns dias depois, denunciou-o também logo nos primeiros interrogatórios. Os inquisidores nem esperaram pela confirmação em Valença das denúncias feitas e expediram ordem de prisão, que teve lugar no dia 1 de Julho de 1778.
Parece que José Anastácio foi apanhado desprevenido. Para além de apreendidos todos os seus livros, foram juntas ao processo nove cartas e mais duas da sua Margarida, encontradas em sua casa. Esta tinha-o avisado do perigo, mas ele não deve ter ligado muito.
As testemunhas do processo repetem-se. No inquérito em Valença, foram ouvidos mais dois militares e dois eclesiásticos. Em Coimbra, depôs voluntariamente o estudante José Jacinto de Sousa e foi notificado para depor o opositor de Leis, Doutor José Joaquim Vaz Pinto. Apareceu por fim um fidalgo a acusar por sua iniciativa no mesmo depoimento José Anastácio da Cunha e Francisco Manuel do Nascimento (Filinto Elísio). Foi ele D. Rodrigo da Cunha Manuel Henriques de Melo e Castro (1751 - 1813), Fidalgo da Casa Real, 10.º Senhor do Morgadio da Roliça, que casou com Maria Isabel Bray, em 3-6-1774 de quem teve um filho. Estranhamente, o original do seu depoimento não aparece no processo, mas apenas uma reprodução parcial na cópia das provas das testemunhas da Justiça, a pags. 143 e 144 do processo; pode ter sido propositadamente extraviado. Existe, porém, uma cópia autenticada por notário do mesmo depoimento no processo n.º 14048, da Inquisição de Lisboa, de Francisco Manuel do Nascimento, nas imagens 71 a 85.
Apanhado nas malhas da Inquisição, José Anastácio da Cunha era suficientemente inteligente para saber o que tinha a fazer: fazer uma confissão completa, mostrando-se arrependido e não acusar ninguém que pudesse ser preso. Já se sabia que a Inquisição não iria prender camaradas de patentes elevadas, nem os militares nacionais de países protestantes.
Constata-se, porém, que José Anastácio apenas foi penitenciado não porque a Inquisição o visasse directamente, mas apenas porque tinha de dar sequência às denúncias que tinham sido feitas pelos outros presos. Afinal ele saíra há quatro anos de Valença e, em Coimbra, levara vida mais regrada, dedicada ao ensino e ao estudo, vivendo com sua mãe.
O processo de José Anastácio foi elaborado com grande velocidade. Ele ainda constituiu Procurador para a sua defesa, mas este limitou-se a pedir clemência em face da exaustiva confissão do Réu. O Promotor, a fls. 128 v. deu-se ao prazer sádico de pedir a morte na fogueira para o penitenciado, já que, segundo ele, o Réu não mostrava arrependimento.
Foi condenado a reclusão durante três anos na Casa das Necessidades da Congregação do Oratório, seguidos de quatro anos de degredo na cidade de Évora. A reclusão nos Oratorianos tornou a pena menos severa do que se fosse noutro lado, já que ele tinha lá amigos e era ali bem considerado. Entre os dez Inquisidores, houve uma voz discordante, a de Bernardo António dos Santos Carneiro, o qual foi de parecer que o Réu não fosse ao auto de fé, nem fosse humilhado com o hábito penitencial. Votou vencido.
A parte mais severa da sentença está no final: “e não tornará mais a entrar na Cidade de Coimbra e Vila de Valença”. Ainda que ele tivesse alguém que o defendesse na Universidade, eventualmente permitindo-lhe o regresso ao ensino, lá estava a Inquisição atenta para lho impedir.
Não posso concordar com os que dizem que a Inquisição foi benévola para com José Anastácio da Cunha. Fazer uma afirmação destas é fazer o jogo da própria Inquisição. Aliás, era isso o que dizia o Inquisidor-Geral, o Cardeal da Cunha (João Cosme da Cunha, 1715-1783), segundo um relato anónimo do auto-da-fé (C. Castelo Branco, Noites de insónia). A Inquisição tem de ser estudada com a convicção de que era uma instituição injusta e perversa. Atormentava-se, humilhava-se, degradava-se, matava-se o ser humano, em nome de uma religião, cujos textos defendem o amor do próximo e o perdão dos inimigos. A Inquisição tinha regras, mas a maior parte das vezes, destinavam-se a ser violadas para atingir os fins pretendidos.
Os inquisidores foram particularmente severos para com o grupo dos militares de Valença, a que juntaram o estudante José Maria Teixeira, contra o qual apareciam denúncias de todo o lado.
Como referi, foram mais brandos para com os estudantes e alguns nem os chamaram à Mesa, apesar de denunciados aqui e ali. Foi, por exemplo, o caso dos filhos de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1728-1780), Embaixador de Portugal em Madrid, Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812), Domingos de Sousa Coutinho (1760-1833) e José António de Menezes Sousa Coutinho (Principal Sousa) (?-1817), aliás, todos três, grandes amigos de José Anastácio.
Os processos contra os militares foram rapidamente concluídos e remetidos, como então era norma, ao Conselho Geral a Lisboa para confirmar as sentenças. Foi marcado o auto da fé para 11 de Outubro de 1778, na Sala Pública da Inquisição de Lisboa. O auto já não tinha a pompa (?) de antigamente, nem sermão.
Tem interesse a sentença do estudante José Maria Teixeira:
Será açoitado pelas ruas públicas desta cidade citra sanguinis effusionem ; e recluso por tempo de três anos na Casa da Congregação da Missão de São Vicente de Paulo do sítio de Rilhafoles onde, nos primeiros seis meses da reclusão, terá em alguns dias de cada semana as penitências pro gravioribus; depois do que será degredado por tempo de cinco anos para as galés de Sua Majestade; cumprirá as mais penas e penitências, que lhe forem impostas e instrução ordinária: e que esta sentença seja lida na Igreja Matriz de Valença e na do Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em satisfação do escândalo, que com seus erros causou.
Ainda veio ao processo requerer o perdão dos açoites, mas o pedido foi indeferido. Segundo julgo, os açoites tiveram lugar no dia 13 de Outubro pelo seguinte facto, constante do processo n.º 4062 da Inquisição de Lisboa, em que era potencial penitenciado um Dr. José Inácio:
Nos primeiros dias de Novembro de 1778, Fr. António da Conceição Sant’Anna, Religioso de S. Francisco, natural de Cantanhede e residente no Convento de S. Francisco desta cidade de Lisboa, participou por escrito à Santa Mesa da Inquisição que no dia 13 de Outubro anterior fora a casa de Francisco Dias Pereira, na Travessa da Verónica, para ver passar na rua um sujeito condenado pela Inquisição a ser açoitado pelas ruas da cidade. Encontrou nessa casa, em que residia, o Dr. José Inácio o qual disse a propósito da Inquisição, que José Anastácio era um homem muito douto, que neste Reino não sabiam estimar; e que tomara França ter um homem como ele; que só lá tinham estimação os homens sábios. E perguntando então a ama (mulher de Francisco) e a moça (a criada), pois, para que os prende o Santo Ofício, respondeu ele, porque sabem argumentar, e os outros, como são tolos, vão vivendo na fé do Carvoeiro.
Em 5-11-1778, o Promotor despachou no sentido de se fazerem as diligências de averiguação.
Foi chamado para depor o denunciante em 20 de Novembro de 1778 perante o Inquisidor António Veríssimo de Larre.
Perguntou-lhe o Inquisidor por que não havia insistido nas questões ao delato, para “conhecer melhor a sua pertinácia e fazer mais certo juízo da sua libertinagem”.
O Frade disse que, desde que esteve no Brasil, não regula bem da cabeça, tem perturbações e desconcertos do juízo, assim como perdas de memória. Não consegue melhorar. Por causa destas suas moléstias “se não opôs nem estranhou ao delato a liberdade com que falava”.
O processo terminou por aqui.
Os penitenciados não tinham sequer o aplauso popular, como se vê pelo soneto que sobre eles escreveu na altura António Lobo de Carvalho, o “Lobo da Madragoa”:
Aos filósofos de
caldo de unto e broa, que saíram da Inquisição em 1778.
Soneto LXVII
Que sectários nutrisse a antiga Roma,
Verdugos capitais da tenra Igreja;
Que enxugue Londres rios de cerveja,
Que venda o bacalhau, que a carne coma:
Que um sepulcro flamante ao seu Mafoma
Façam turcos, e mouros, vá que seja;
Tem Turquia algodão, que lhe sobeja,
Cera a Mourama, que isso não tem soma:
Mas que de Portugal livres-pedreiros,
Que à fé cristã abrissem o jazigo
No sórdido país dos sardinheiros
É caso raro: cheguem-se ao castigo,
Que a maior pena para os tais broeiros
Era obrigá-los a comerem trigo.
(Pag. 67 de António Lobo de Carvalho, "Poesias joviaes e satyricas", 1852.
DEPOIS DO PROCESSO
A reclusão de José Anastácio nos Oratorianos não deve ter sido muito dura. Afinal, tinha lá amigos. Deveria ter ao seu dispor a biblioteca e terá aprofundado os conhecimentos de Matemática. Terá revisto e aditado os textos que formaram mais tarde os Princípios Matemáticos e que há vários anos começara a escrever.
No final de 1780, veio à Inquisição requerer o perdão de um ano de reclusão e do degredo de quatro anos para a cidade de Évora. Foi o pedido deferido por despacho datado de 23 de Janeiro de 1781.
Nos respectivos processos, existem despachos com a mesma data, perdoando a João Manuel de Abreu o degredo de três anos para Viseu e a José Maria Teixeira o degredo de cinco anos para as galés.
Estava agora em liberdade o pobre José Anastácio da Cunha. Certamente com dificuldades financeiras, sem prestígio na sociedade lisboeta, pois os salões das damas já não estariam abertos para um penitenciado na Inquisição. Valeu-lhe a protecção do Intendente Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805) que em 1781 pôs a funcionar no Castelo de S. Jorge a Casa Pia, destinada a recolher mendigos e órfãos. José Anastácio foi ali nomeado Regente de estudos e substituto do curso de Matemática, com o salário anual de 150 000 réis. Note-se que este ordenado era a quarta parte daquilo que ganhava em Coimbra.
Principiou ele entretanto a imprimir os “Princípios Matemáticos”, que inicialmente saíram em cadernos e só acabaram de se imprimir em 1790, depois da morte de José Anastácio.
Em 1780, escreveu as Notícias Literárias de Portugal em francês, que vieram a ser publicadas em tradução portuguesa em 1966, por Joel Serrão, uma avaliação desiludida da cultura e literatura portuguesas.
Houve um início de colaboração com a Academia Real das Ciências, mas sem resultados. A Academia propôs um prémio para uma questão matemática para o ano de 1782. Pediu então a José Anastácio da Cunha algumas questões, que ele entregou. Mas foi premiada a questão proposta por José Monteiro da Rocha, o que acirrou o seu ânimo contra ele. Em 1782, novo prémio para 1785. Anastácio da Cunha não concorreu, mas Monteiro da Rocha propôs uma das questões de Anastácio de 1780, com um aditamento.
Recebia ele notícias de Coimbra através de seu amigo e discípulo João Manuel de Abreu, que ali se inscrevera no curso de Matemática, em que ficou bacharel a 16 de Julho de 1787. A ele escreveu uma célebre carta em 3 de Junho de 1785, destinada a atirar algumas farpas a José Monteiro da Rocha. A carta circulou por Coimbra em vários exemplares e Rocha respondeu no mesmo tom a 7 de Fevereiro de 1786. Nas missivas, misturam-se remoques pouco lisonjeiros com discussões matemáticas.
Supõe-se que, no final de 1785, já não trabalhava na Casa Pia.
Em 1786 adoeceu gravemente e veio a falecer em 1 de Janeiro de 1787. D. Domingos António de Sousa Coutinho, Marquês e Conde do Funchal, deixou-nos um relato comovido da sua agonia e morte, publicado no volume 43 (1896) de O Instituto.
Depois de morto, já toda a gente dizia bem dele. Em Fevereiro de 1789, foi concedida a sua mãe Jacinta Inês, uma pensão anual de 100 mil réis, pelos serviços prestados por seu filho na Universidade de Coimbra.
A OBRA
Nenhuma obra impressa de José Anastácio foi publicada em vida dele. Os Princípios Matemáticos acabaram de se imprimir em 1790. O seu discípulo João Manuel de Abreu fez publicar em Bordeus em 1811, uma tradução francesa de sua autoria, a que juntou um prefácio com interesse. Foi essa tradução que o fez algo conhecido na Europa. Em Novembro de 1812, o matemático J. Playfair publicou uma crítica ao livro na revista The Edinburgh Review, depois reproduzida em O Investigador Portuguez em Inglaterra de Fevereiro de 1813 (n.º 5). Anastásio Joaquim Rodrigues e João Manuel de Abreu saíram depois com artigos publicados em O Investigador Portuguez a defender a obra.
Em Setembro de 1874, Camilo Castelo Branco, publicou no n.º 9 das Noites de insónia, os versos de Francisco Dias Gomes – o Doutor Botija – contra José Anastácio (106 tercetos + 1 quadra final), apenas com o título de Sátira e no n. º 10, de Outubro do mesmo ano, a resposta de José Anastácio da Cunha, com o título: “Sátira feita a Francisco Dias, tendeiro, com loja de mercearia na rua das Arcas, chamado por alcunha o Doutor Botija, em resposta de outra, que fez a um sujeito, de quem não tinha o mínimo conhecimento, nem o menor escândalo” (107 tercetos + 1 quadra final).
Em 1930, Hernâni Cidade publicou a Obra Poética do Dr. José Anastácio da Cunha.
Em 2001 e 2006, respectivamente, saíram os dois volumes da Obra Literária de José Anastácio da Cunha na editora Campo das Letras, ao cuidado de Maria Luísa Malato Borralho e Cristina Alexandra de Marinho.
Na comemoração do Bicentenário da morte do matemático e poeta, foram realizados colóquios nas Universidades de Lisboa, Coimbra, Évora e do Minho.
SOBRE A OBRA POÉTICA
Sem ser um
poeta de primeira água, demasiado possuído pelos sentimentos imediatos para os
depurar na realização estética dos poemas, José Anastácio desempenhou, todavia,
um papel decisivo na história da poesia portuguesa, introduzindo nela uma
expressão inteiramente nova do amor, revitalizando-a com as vibrações de uma
alma inquieta, fremente, transbordante, cujo dinamismo se traduziu na desordem
impetuosa da linguagem. Abriu assim o caminho para uma estética de
espontaneidade, em que mais importa a
nudez flagrante da experiência individual, concreta, surpreendida em que a sua
transposição em termos universais e forma acabada. Orientação, portanto,
anticlássica.
Na poesia de José Anastácio, o grande bem da existência, a sua prova suprema é o amor – mas um amor total, união dos corpos e fusão completa das almas. O êxtase do “abraço” é lembrado em palavras ofegantes, no aturdimento da emoção recente; ou então o poeta, enquanto espera ansioso pela amada, antegoza o delírio de novo encontro; a despedida, a separação dos amantes, determina queixas violentas contra as «bárbaras estrelas» e protestos de união das almas para além da distância física («Juntos ou separados seremos um”); outras vezes, enfim, longe da mulher eleita, o poeta desabafa a dor de a saber doente, confia ao papel o terror de lúgubres presságios – numa incerteza torturante.
(Jacinto do Prado Coelho, Problemática da história literária)
… Contudo, o que o distingue é ter descoberto poesia na relação carnal entre o homem e a mulher, o ter procurado e encontrado a expressão inquieta do desejo, através de exclamações, interrogações, insistências, gradações intensivas. No tempo, isto significava a dissipação de todas as convenções do amor cortês – ao que não pode ser alheio o facto de a sua amada ser simples camponesa. Os momentos mais belos desta lírica nova são a redescoberta estonteante de como o princípio de individualização se eclipsa no abraço amoroso, a pergunta de se “tu não és eu?”; e, antes de Stendhal, a descrição do fenómeno psicológico que este designaria de “imagination renversée”: o gosto de imaginar todo o mal possível (a morte da amada, a tortura da doença, a decomposição do corpo), como forma negativa e final de um devaneio que se cansa. (pag. 654)
(Oscar Lopes e António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa, 5.ª Edição, Porto Editora, 1967)
Nas poesias daquele aluno da escola francesa (José Anastácio da Cunha) há um colorido de sentimento delicado, triste e meigo que não pertence á filosofia rançosa dos seus contemporâneos que toda se cifrava em louvores á sã virtude, e à parca frugalidade dos lavradores, ao passo que tais filósofos pediam talher na mesa dos fidalgos, e contentavam-se em aparecer no fim dos jantares para glosar os motes. Em José Anastácio vislumbraram-se uns clarões da poesia romântica, um ideal melancólico de que não conhecemos senão raros exemplos em algumas odes de Filinto Elísio - e uma nobre independência que o salvou da gafaria dos mendicantes.
As traduções do inglês denotam quanto lhe eram mestres na elevação do espírito os poetas britânicos, e na filosofia os mais famigerados da escola da Enciclopédia.
Conhecia de fundamento os principais idiomas, e verteu de Virgílio algumas éclogas em hexâmetros portugueses com admirável concisão, fidelidade e um sabor campesino de encantadora graça.
(Camilo Castelo Branco, Curso de Literatura Portuguesa, 2.º vol. , pags. 216)
E é nesta mescla do que o sentimento dá e a consciência recolhe nas vibrações da emoção que se encontra o que de melhor e de mais pessoal nos proporciona a poesia de José Anastácio da Cunha. No entanto, o seu amadorismo, a sua falta de nervo artístico, a insegurança da sua estilística, tudo lá está, igualmente, bem evidenciado, nas cacofonias, nos hiatos, nas durezas e precipitações da expressão. As subtilezas da forma e até mesmo as “valentias” do vocabulário ou as incisões do arranjo prosódico, não as conheceu José Anastácio da Cunha, que nisso fica muito aquém de Filinto Elísio ou de Bocage. Em compensação, deve-se-lhe o “verismo sentimental” – a expressão é de Fidelino de Figueiredo – que em boa hora trouxe para a poesia viciada até ao âmago pelo artificiosismo em que se comprazia desde o triunfo do neo-clacissismo arcádico. Ao arcaz e ao passador de Cupido, armamento do amor na lira arcádica, opõe-se, nos versos por vezes informes do lente de geometria, a cena aberta de um coração que se representa, pela primeira vez, nos anais da lírica portuguesa, o drama íntimo de uma consciência apaixonada que, para se exprimir em verso, não recorre nem a artifícios pastoris nem a alegorias ou trasladações mentais.
Oh! Mais, mais do que unidos. Tu fizeste,
Doce encanto, que eu fosse mais que teu.
Lembra, lembra-te quando me disseste:
“Meu bem, eu não sou tu?... Tu não és eu?”
(João Gaspar Simões, História da Poesia Portuguesa: das origens aos nossos dias, Lisboa, 1955-1959, 2.º vo., pag. 104-111)
Se a lição de poetas ingleses não lhe deu o ímpeto e o ardor meridionais, estimulou-o, todavia, a expandir-se em plenitude de força, bem pessoal — nos temas novos como na nova expressão. Pagou, é verdade, o seu tributo à moda arcádica, sem que à Arcádia pertencesse. Mas o que lhe caracteriza a poesia, considerando-a em conjunto, é não haver sido escrita senão porque foi vivida. O poeta e o homem fazem um. As emoções de uma sensibilidade amorosa propensa ao vicio da luxúria, segundo confessa perante o Santo Ofício; as angústias de inteligência inquietada pelas correntes heterodoxas do seu tempo – eis o que na sua voz se converte em ritmo poético.
Às vezes, é amplo e fácil o fluir melódico. Por exemplo, a poesia O Abraço. Fulgem nela conceitos novos, sem recurso à expressão estereotipada. As fundas alegrias do amor integralmente realizado, a embriaguez em que se apaga a própria noção da personalidade e se cria a alucinação visual da presença daquela que deixou, ao partir, impressa a imagem e o vulto na alma e na carne:
Não vês inda de gosto sufocado
Um no outro nossos peitos esculpidos?
Não sentes nossos rostos tão chegados,
E ainda mais os corações unidos?
(Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, Coimbra, 1959, 386, ss.)
The literary change, represented by the definite rupture with Portuguese literary traditions, can be taken as having a definite beginning with Antero de Quental and the Coimbra School, though it had necessarily been preceded by hints and attempts at such a change, going back as far as 1770 to the forgotten José Anastácio da Cunha (a greater poet than the over-rated and insupportable Bocage); José Anastácio, with his complex culture (he knew, besides the usual French, English and German and translated from Shakespeare, Otway and Gessner) represents the first white glimmer of dawn on the horizon of Portuguese literature, for he represents the first attempt to dissolve the hardened shape of traditionalist stupidity by the usual method of multiplied culture contacts.
(Fernando Pessoa, Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, Lisboa, Ática, 1973)
A literatura portuguesa sofreu duas perdas com as quais me não posso conformar e desespero por não poder deixar de o fazer. Uma dessas perdas é completamente irreparável – a das últimas poesias pessimistas de Antero de Quental, que ele próprio fez desaparecer, queimando-as. A outra delas é a das poesias e dos trabalhos científicos que nos faltam de José Anastácio da Cunha.
(Fernando Pessoa, Duas Perdas” in Colóquio/Letras, n.º 8, Julho, 1972)
Embora considerado como um génio matemático, era José Anastácio um vibrante e apaixonado poeta: bastava o seu profundo temperamento filosófico para o tornar eminente em qualquer manifestação do espírito, como observara Diderot. Os seus versos são de duas categorias : as traduções de Odes que exprimem a libertação da consciência segundo o negativismo do Século XVIII, que os seus amigos da guarnição de Valença recitavam de cor, e os idílios íntimos em que descrevia os seus amores com uma rapariga do povo em um naturalismo paradisíaco.
(Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa)
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THE GENTLEMAN’S MAGAZINE AND HISTORICAL CHRONICLE
Volume XLII, for the year MDCCLXXII
By Sylvanus Urban, Gent.
For November 1772
Page 519
An extraordinary genius in Portugal
Mr. Urban,
The following curious account of an extraordinary genius, now living at Valença, a town of Portugal, bordering on Galicia, a province of Spain, is extracted from a letter written by an English gentleman of undoubted veracity, residing at Porto, who dates his account from Valença in August last.
“I must not leave Valença without mentioning one of the most extraordinary geniuses I have heard of. He is a young fellow of about twenty-four, a Portuguese, and Lieutenant or artillery here; he is of a poor family, and, without any of the helps of education, is, by the strength of his own genius, and great application, become almost a prodigy.
He is so great a mathematician, that Col. Ferrier, who is himself very deep in that science, tells me, that this young man is very far beyond him. He is a master of all Sir Isaac Newton’s works, even of those very deep parts which are considered as difficult by the best mathematicians. He is, consequently, a complete algebraist, and a good astronomer, and has applied his knowledge in the mathematics to the particular knowledge required in his profession, which includes engineering, gunnery, and many other things unnecessary in the pure mathematics. But, what is yet more extraordinary, he has joined to a study which generally absorbs all the attention to those who so deeply pursue it, a perfect knowledge of history, languages, and polite literature, and is a very good poet. He is a critic in the dead languages, and intimately acquainted with the Italian, French, Spanish and English; and Col. Ferrier, who is himself a complete master of languages, and a competent judge, tells me, that this young man writes his own language with greater purity than most, if not any, of the celebrated authors of this country.
He has translated, not only some of Mr. Pope’s best works into elegant Portuguese, but also some of our celebrated comedies, where a very intimate knowledge of both languages is necessary to understand and preserve the wit and turn of expression, so that they may not lose their force and beauty. He has made into Portuguese some of the little catches of the admired Greek poet Anacreon, of which Col. Ferrier, who is himself a good Grecian, says, he thinks, if possible, the happy turn and ease of these little pieces are improved in this young man’s translation.
He does not seem to give much time to study, and, from a great bashfulness, will not converse, except with those with whom he is very intimate, even on the most common subjects. He is aukward in his person and address, and seems as little acquainted with the common modes of behavior, as he is intimately so with science and literature. With his friends, he will sometimes repeat some of the best works of our English poets, particularly Shakespeare; but it has so much effect on his sensibility, that he is wrought up to a pitch of extacy, and, in those moments, a glass or two of Port wine, of which he is very fond, will make him quite fuddled.
This extraordinary young man appears to a stranger little better than a simpleton. He laughs much, and, in his whole behavior, discovers none of the excellencies of which he is so richly possessed."
NB. Este original foi encontrado pesquisando em http://books.google.com com as palavras Valença Ferrier Italian
[2] Inquisição de Coimbra - Militares de Valença e estudantes naturais da mesma Vila
Processo | Microfilme | Nome | Profissão | Localidade | Naturalidade | Prisão ou Apresentação | Auto-da-fé | Saída |
9534 | Não | João José Baptista | Sargento | Valença | Lisboa | 13-11-1769 | NÃO | 9-2-1770 |
8084 | Não | José Maria Teixeira | Estudante 5.º ano Cân. | Coimbra | Valença | 20-12-1777 | 11-10-1778 | 11-10-1778 |
7265A | 7220 | José Barreto | Cadete | Valença | Valença | 7-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8075 | 7093 | Henrique Leitão de Sousa | Cadete | Valença | Penamacor | 7-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8079 | Não | José Madeira Monteiro | Soldado | Valença | Urros | 7-01-1778 | NÃO | 17-10-1778 |
8081 | Não | José Leandro Meliani da Cruz | Tenente | Valença | Lisboa | 7-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8085 | Não | José de Sousa | Soldado | Valença | S. Jorge de Cima | 7-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8076 | 7415 | João Manuel de Abreu | Soldado | Valença | Olivença | 7-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8090 | 7413 | Luis José Pereira Freire de Andrade | Estudante 4.º ano Cân. | Coimbra | Valença | 8-01-1778 | NÃO | |
8091 | 7042 | Joaquim Vicente Pereira de Araújo | Estudante 1.º ano C. Jur. | Coimbra | Valença | 19-01-1778 | NÃO | 4-06-1778 |
8077 | Não | Manuel do Espírito Stº Limpo | Cabo de Esquadra | Valença | Olivença | 28-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8078 | 7094 | Alessio Vacchi | Cirurgião-mor | Valença | Soliers | 28-01-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8087 | 205 | José Anastácio da Cunha | Tenente | Coimbra | Lisboa | 1-07-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |
8089 | Não | Miguel de Kinselach Crochan | Sargento-Mor | Valença | Bruxelas | 15-07-1778 | 11-10-1778 | 16-10-1778 |