14-3-2006

 

Diogo Pires ou Didacus Pyrrhus Lusitanus

(1517 - 1599)

 

 

Diogo Pires (1517 – 1599), como muitos outros judeus, fugiu de Portugal na primeira metade do sec. XVI. A expulsão dos judeus que recusaram o baptismo em 1498 e o massacre  que teve lugar em Lisboa em 1506, não prenunciavam nada de bom, tal como veio a demonstrar-se com a criação da Inquisição em 1536.

Ao contrário de muitos judeus portugueses com formação universitária que partiram para o estrangeiro, Diogo Pires não era médico, embora deva ter estudado medicina. Era sim um humanista e foi um poeta excelente em língua latina.

Nasceu em Évora em 5 de Abril de 1517. Deverá ter sido baptizado, mas isso não lhe ofereceu suficiente segurança para ficar em Portugal. Foi estudar para Salamanca em 1535, terá passado por Sevilha, Toledo e Paris, mas em 1536 aparece já em Liège. Matriculou-se em Lovaina no início de 1536, o que lhe permitiu conviver com os literatos do seu tempo. Esteve vários anos na Flandres, onde encontrou Girolamo Falletti, que mais tarde incluiu poemas dele nos seus livros. Composições suas aparecem em diversos livros impressos na Flandres.

Diogo Pires era parente de João Rodrigues, de Castelo Branco, o célebre Amatus Lusitanus (1511-1568), médico ilustre que, na sua curta vida, publicou os relatos da sua vida de médico errante pela Europa, nomeadamente as sete centúrias, isto é, os sete livros em que descreve em cada um 100 curas que fez.

12-11-2009 - O Prof. António Andrade, investigando os documentos dos arquivos da cidade de Antuérpia, concluiu que Diogo Pires era primo direito de Amato Lusitano, por ser filho de Henrique Pires, irmão da mãe deste - ver artigo citado dos Cadernos de cultura da UBI n.º XXIII, Novembro de 2009.

Por volta de 1540, Diogo Pires chega a Itália, e instala-se por uns tempos em Ferrara. Em 1547, aparece como interviente em diálogos sobre a literatura inglesa, portuguesa e hispânica no livro Dialogi duo de poetis nostrorum temporum, de Lilio Gregorio Giraldi (ver original aqui e tradução na bibliografia), autor que naquele livro por ele demonstra muita consideração:

 

"Pyrrbe – inquam – tu recte de tuis es locutus, sed, caeterorum pace dixerim, tu mihi unus super omnes, quos recensuisti, in poetica pollere videris, sive heroicum canas sive elegum, sive lyricum moduleris: nam hendecasyllabis non minus eleganter quam argute ludis, ut tui libelli partim editi, partim propediem edendi palam ostendent; sed tu cum Lusitaniam tanto poetices honore illustres, eo illa in te magis ingrata, quod te tam diu exulem ac profugum diversas orbis partes peragrare permittit. Quanta maiora et meliora faceres, si otiosam pacatamque ageres vitam". "Recte tu quidem et vere de Didaco – inquit Riccius –, sed permittamus…

 

“Pires, bem falaste dos teus compatriotas, mas com licença dos restantes, tu pareces-me superior em mérito poético a quantos recordaste, quer no canto heróico,  quer nas modulações da elegia ou do verso lírico. E no jogo espirituoso dos hendecassílabos brincas com não menos elegância do que finura, como os teus opúsculos, em parte publicados, em parte prestes a verem a luz, hão-de mostrar a toda a gente. E, entretanto, não obstante honrares Portugal com o brilho da tua poesia, a pátria revela ingratidão tanto maior para contigo, quanto é certo que consente que há tantos anos peregrines, exilado e fugitivo, por diversas partes da terra. Quantas obras não comporias tu, maiores e melhores, se pudesses levar vida sossegada e sem cuidados!” (*)

 

 

(*) Tradução de A.C.Ramalho, 1984.

 

No início de 1549 vai para Ancona. Em Maio e Junho de 1552, desloca-se a Roma, onde reinava então o Papa Júlio III, relativamente tolerante para com os judeus. Ali encontra D. Miguel da Silva, então ainda muito prestigiado.

Desde finais de 1552 até 1556, não há muitas notícias do paradeiro de Diogo Pires. Mas a recente tese de doutoramento do Prof. Andrade refere documentos que o dão em Londres por alturas do casamento da Rainha Maria Tudor , filha de Henrique VIII, com Filipe, filho de Carlos V, que foi coroado em 1556, como Filipe II, Rei de Espanha. O casamento foi celebrado em 25 de Julho de 1556.

Entretanto, a relativa bonança de que gozavam os judeus em Itália, terminou com a eleição do Cardeal Caraffa como Papa Paulo IV em 23 de Maio de 1555 e que lhes promoveu uma perseguição cerrada. Os judeus portugueses de Ancona foram dos que mais sofreram. O Prof. Andrade conclui que o pai de Diogo Pires,  Henrique Pires ou Isaac Cohen foi queimado nos autos-de-fé que ocorreram entre 7 e 12 de Junho de 1556.

Em fins de 1556 ou princípios de 1557, Diogo Pires saiu de Itália para Ragusa, hoje Dubrovnik. Era na altura uma pequena república independente, que fazia a ponte entre a Europa e o Império Turco, onde se integrava a actual Bósnia. Ali ficou até à morte, em 1599,  de tal modo que é praticamente considerado na Croácia como um poeta nacional.

Para não fazer confusões, convém distinguir o poeta Diogo Pires, de que aqui falamos,  do falso messias Diogo Pires, com o nome judeu Solomon Molcho ou Salomão Molco, que foi queimado em Mântua em 1532.

Também não se deverá confundir com o Pires, referido pelo poeta Pedro Sanches no poema Epístola a Inácio de Morais (em latim): esse é o médico e poeta Luis Pires, também natural de Évora.

Dada a vida errante e as várias personalidades que encarnou (português, poeta, judeu, viajante e exilado), Diogo Pires utilizou e foi conhecido por uma série de nomes:

 

PORTUGUÊS

Diogo Pires

Flávio Jacob

Diogo Pyrrho

Pyrrho Lusitano

Isaías Cohen

 

 

 

LATIM

Didacus Pyrrhus

Didacus Pyrrhus Lusitanus

Flavius Iacobus Eborensis

 

CROATA

Didak Pir

Didak Pir Portugalca

Jakov Flavije Eboranin

Didak Izaija Cohen

Didak Isaiah Cohen

Isaia Koen

Isaiah Koen

 

HEBREU

 

Isaac Cohen

Yeshayah Cohen

 

ITALIANO

Didaco Pirro

Didaco Pyrrho

Didaco Pirro Lusitano

Iacopo Flavio Eborense

Flavio Giacomo Pirro

   

OUTRAS LÍNGUAS

Isaija Koen

Diego Pirro

Diego Pirez

Yakov Flavius

 

Durante muito tempo, foi quase ignorado em Portugal, se exceptuarmos a curta referência da Bibliotheca Lusitana (que considera pessoas diferentes Diogo Pires e Flávio Jacobo) e o manuscrito de D. Frei Fortunato de São Boaventura, citado na bibliografia. Os Padres António dos Reis e Manuel Monteiro apenas referem o seu nome a págs. 33 (nota 26) do 1.º volume do Corpus illustrium poetarum lusitanorum, qui latine scripserunt, publicado em 1745-1748, porque o confundiram com Luis Pires, que é quem é mencionado, como se disse acima,  na Epistola ad Ignatium de Moraes, de Pedro Sanches. Mas a poesia de Diogo Pires está ausente dos oito volumes da obra.

O poeta começou a merecer mais atenção a partir dos anos 1960, nomeadamente com a investigação e a docência do Prof. Américo da Costa Ramalho. Dedicaram-se especialmente ao estudo do poeta o Prof. Carlos Ascenso André, de Coimbra, e agora o Prof. António M. Lopes Andrade, de Aveiro.

As nossas bibliotecas também não têm os seus livros (só na B. da Ajuda encontrei o Cato Minor, de 1596 - mas há outro na de Évora). Já as bibliotecas italianas têm muitos exemplares (pesquisar aqui  Pirro, Didaco). Mas todos os estudiosos do poeta tiveram que se deslocar a Dubrovnik.

Há ainda um manuscrito em Dubrovnik, em grande parte ainda inédito, pois só uma parte foi publicada em 1811 por Urbano Appendini (ver Bibliografia). Foram esses os poemas traduzidos pelo Prof. Carlos Ascenso André na sua Antologia Poética (1983).

Uma constante da vida de Diogo Pires foi a amizade com João Rodrigues, de Castelo Branco, o Amatus Lusitanus. Estiveram por várias vezes juntos em Itália e depois, cerca de ano e meio, em Ragusa (1557-1558). João Rodrigues foi obrigado a partir para Salónica, já que lhe estavam a pôr dificuldades para exercer a medicina em Ragusa. Em Salónica, foi colhido pela peste em 1568. Transcrevem-se a seguir um belo poema de Diogo Pires, escrito bastante cedo na vida de ambos, já que o poeta estava de partida para Lovaina, e depois o dorido epitáfio que compôs para o seu parente e amigo.

O Amatus Lusitanus, por sua vez, refere Diogo Pires como perito nas virtudes curativas dos pêssegos em In Dioscoridis Anazarbei de medica materia libros quinque, Ludguni (Lyon): apud viduam Balthazari Arnoleti, 1558  (ver original latim aqui, págs. 204-205), e na 3.ª centúria, cura n.º 38, onde atribui ao poeta conhecimentos de medicina: “… quiae, etsi  medicum non agam, Galenum tamen sua lingua conscriptum, hoc est, Graeca, perlegi, …” (ver aqui, págs. 405 e a págs. 87 da tradução indicada na bibliografia).

Mais tarde, quando estavam juntos em Ragusa, João Rodrigues teve de curar o próprio Diogo Pires e aproveitou para descrever a doença, a cura e exarar um louvor ao primo e amigo (ver original aqui, págs. 196-197):

 

Curatio trigesima, in qua agitur de dolore in iecinore

  

Didacus Pyrruhs, uir Graece et latine peritissimus, et magni nominis poeta, cum in suburbio Ragusi ageret, (recens enim ex Bizantio uenerat ubi pestis grassabatur), ob esum forte pomorum crudorum et cibariorum malorum, bilis uitellina in eius stomacho genita est, quae ad iecur descendens magnum dolorem inferebat, unde febris orta est, et sinistrae manus stupor insignis…………

………………………………………….

 

………….., melius habere coepit, tandem pharmaco leniente ebibito, intra quatriduum sanatus est, magna artis medicae laude, ut qui tam facillimis, a tam graui morbo, et a quo uix Bisantij euaserat, liberatus est.

(Sexta centúria)

 

Trigésima cura, em que se trata uma dor no fígado

 

Didacus Pyrrhus, varão com altos conhecimentos de Grego e Latim, e poeta de grande renome, quando se encontrava nos arredores de Ragusa (regressara recentemente de Bizâncio onde grassava a peste), tendo comido por acaso maçãs verdes e alimentos deteriorados, gerou-se-lhe uma bílis amarela no seu estômago, que provocava grandes dores na parte inferior do fígado, de que resultou febre, e uma paralisia acentuada da mão esquerda.......

………………………………………….

 

... começou a melhorar, e finalmente, depois de beber um remédio calmante, ficou curado em quatro dias, com grande prestígio para o saber médico, já que se tinha conseguido libertar tão facilmente de tão grave doença , com a qual tivera grande dificuldade em fugir de Bizâncio.

 

 

A quê ou a quem dedicou Diogo Pires as suas poesias? Naturalmente aos amigos, à beleza das mulheres, aos grandes do seu tempo, em especial de Ragusa (onde viveu exactamente metade da sua vida), como era habitual naquela época. Mas uma grande parte da sua poesia canta a saudade de Portugal e a tristeza do exílio forçado. Tem inveja de André de Resende (Lúcio), porque este pôde fazer a sua carreira de escritor e poeta em Portugal; transcreve-se a seguir um poema que lhe dedicou.

Morreu solteiro, mas nem por isso deixou de cantar a beleza feminina. Aquilino Ribeiro chamou-o “judeu errante e pinga-amor” no título do pequeno ensaio que lhe dedicou (Portugueses das Sete Partidas, 1969, págs. 193-222). Foi injusto em fazer pouco do poeta, ele tinha toda a razão para ser sentimental. Felizmente, o texto de Aquilino não é tão pejorativo como o título faz crer.

 

OBRA:

 

Euripides Andromache : Euripidis Andromache Didaci Pyrrhi Lusitani de remediis adversus fortunae impetus e tragoedia petendis carmen elegiacum / Euripides. - Louanij : ex off. Rutgeri Rescij, 1537

 

Didaci Pyrrhi Lusitani carminum liber unus.- Ferrariae: apud Franciscum Rubrium, 1545

 

Ad Paulum. - Ferrariae : apud Valentem Panizzam, 1563

 

De illustribus familiis quae hodie Rhacusae exstant anno MDXXCII kal. Ian. ... Didacus Pyrrhus. - [1582].

 

Encomiastes Carmine Elegiaco ad Rndvm D. Thomam Natalem Rhacusanum, Art. & Medic. Doctorem praestantissimum, necnon canonicum Cracouien dignissimum,  5 poemas dedicados a Tomo Budislauić, Cracouiae, In officina Lazari, 1583. 

 

Flauii Iacobi Eborensis Cato minor siue Dysticha moralia ad Ludimagistros Olyssipponenses. Accessere noua epigrammata, & alia nonnulla eodem auctore. Opus pium, et erudiendis pueris ad prime necessarium - Venetiis : sub signum Leonis, 1592 (Venetiis : sub signum Leonis, 1592).

 

Flauii Iacobi Eborensis Cato minor, siue dysticha moralia ad Ludimagistros Olysipponenses. Accessere epigrammata & alia nonnulla eodem auctore. - Venetiis : apud Felicem Valgrisium, 1596.

 

Selecta illustrium Ragusinorum poemata: pars altera, Urbani Appendini, Ragusii : Typis Martecchinianis, 1811

 

Poema a Gemma Frisio, inserido a final da Cosmographia Petri Apiani

Online: http://resolver.sub.uni-goettingen.de/purl?PPN518694917, pags. 137.

 

Manuscrito D.a.29 do Instituto Histórico da Academia Criata de Artes e Ciências – Dubrovnik – 1.ª parte (87 fólios) – Didaci Pyrrhi Lusitani Elegiarum libri tres ad Dominicu, Slatariccium Patauinae scholae rectorem et equitem splendidissimum. Acessit lyricorum libellus eodem auctire. 2.ª parte (22 págs.) – Diuus Blasius Rhacusanus Didaco Pyrrho Lusitano Auctore.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

 

1984 –Ramalho, Américo da Costa - Didacus Pyrrhus Lusitanus, poeta e humanista, Faculdade de Letras – Coimbra , separata de Humanitas, n.º 35-36, 17 págs.

 

1985 - Ramalho, Américo da Costa – Latim Renascentista em Portugal: antologia, prefácio, versão do latim e notas de Américo da Costa Ramalho, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, INIC, 242 págs.

 

1988 - Ramalho, Américo da Costa – Para a história do humanismo em Portugal, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, INIC, 1.º vol., 213 págs.

 

Amato Lusitano – Terceira centúria de curas médicas, prefácio e tradução de Firmino Crespo e José Lopes Dias, Lisboa, Instituto Português de Oncologia, 1956

 

1983 - André, Carlos Ascenso – Diogo Pires, antologia poética, Universidade de Coimbra, 128 págs.

 

1988 - André, Carlos Ascenso – "Diogo Pires, um símbolo na diáspora lusitana": Actas do I Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. Poitiers,  pp.49-63

 

1989 - André, Carlos Ascenso – "Diogo Pires e a lembrança de Erasmo": Humanitas 41-42 (1989-1990) 81-98

 

1990 - André, Carlos Ascenso - Mal de ausência: o canto do exílio na lírica novilatina portuguesa do século XVI, Tese de doutoramento, Faculdade de Letras, Coimbra, 673 págs.

 

1992 a - André, Carlos Ascenso – Um judeu no desterro: Diogo Pires e a memória de Portugal, Coimbra, INIC, 197 págs. ISBN 972-667-299-6

 

1992 b - André, Carlos Ascenso - Mal de ausência: o canto do exílio na lírica do humanismo português, Livraria Minerva, Coimbra, ISBN 972-9316-42-2

 

1999 - André, Carlos Ascenso – "Uma voz emblemática no século XVI: Diogo Pires, judeu errante e português degredado": I Colóquio Internacional O Património Judaico Português — The Portuguese Jewish Heritage, Actas. Lisboa, Associação Portuguesa de Estudos Judaicos, pp. 39-55.

 

2004 - André, Carlos Ascenso – “Um judeu português nos caminhos do mundo”: Humanismo para o nosso tempo. Homenagem a Luís de Sousa Rebelo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

 

António Manuel Lopes Andrade, O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do século XVI, Tese de Doutoramento, Universidade de Aveiro, 2005, texto policopiado, 554 pags.

Online: http://ria.ua.pt/bitstream/10773/4950/1/197048.pdf

 

António Manuel Lopes Andrade, "A fábula na obra poética de Diogo Pires", in Ágora. Estudos Clássicos em Debate n.º 9 (2007), pags. 99-118, Departamento de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro, ISSN 0874-5498.

Online: http://www2.dlc.ua.pt/classicos/fabuladiogo.pdf

 

António Manuel Lopes Andrade, As tribulações de Mestre João Rodrigues de Castelo Branco (Amato Lusitano) à chegada a Antuérpia, em 1534, em representação do mercador Henrique Pires, seu tio materno, in Cadernos de Cultura "Medicina na Beira Interior - da pré-história ao século XXI", Universidade da Beira Interior, n.º XXIII, Novembro de 2009, pags. 7-15.

Online: http://www.historiadamedicina.ubi.pt/cadernos_medicina/vol23.pdf

 

António Manuel Lopes Andrade, "Ciência, Negócio e Religião: Amato Lusitano em Antuérpia", in Revisitar os saberes - Referências clássicas na cultura Portuguesa do Renascimento à época moderna, Lisboa , Centro de Estudos Clássicos, 2010, ISBN 978-972-9376-19-1, pags. 9-49

 

Carvalho, Jorge Pessoa Santos – De Évora a Ragusa: a peregrinação sem regresso de Didacus Pyrrhus Lusitanus, separata de O Instituto, 140-141, Coimbra, 1984, págs. 79-100

Online: https://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/IndiceInstituto.htm

 

E. Sánchez Salor - Pires y Góis y el humanismo nacionalista lusitano, in Damião de Góis na Europa do Renascimento,Actas do Congresso Internacional,organizado pela Faculdade de Filosofia da U.C.P., Braga, 2003, ISBN 972-697-170-5, págs. 401-417.

 

G.H. Tucker, Didacus Phrrhus Lusitanus (1517-1599), poet of exile, in Humanistica Lovaniensia, vol. XLI, 1992, pags. 175-198.

 

Darko Novaković, Didacus Pyrrhus as lusor amorum: unpublished love-elegies from the manuscript D. a. 29 in the Historical Institute of Croatian Academy of Arts and Sciences in Dubrovnik – Darko Novakovic, in Euphrosyne, nova série n.º XXVI, 1998, págs. 399-408.

 

Lilio Gregorio Giraldi - Due dialoghi sui poeti dei nostri tempi, a cura di Claudia Pandolfi; presentazione di Walter Moretti. - Ferrara: Corbo, 1999. 305 p.

 

Frei Fortunato de S. Boaventura (1778-1884), Literatos Portugueses na Itália ou Colecção de subsídios para se escrever a História Literária de Portugal, que dispunha e ordenava Frei Fortunato Monge Cisterciente, manuscrito transcrito por António de Portugal Faria (1868-1937) no 4.º tomo de Portugal e Itália, impresso em 1905 na Tipografia de Raphael Giusti, Leorne - ensaio dedicado a Diogo Pires - págs. 141-153.

 

Sylvie Deswarte, Il “perfetto cortegiano”, D. Miguel da Silva, Bulzoni Editore, Roma, 1989. ISBN 88-7119-027-0, Traduzione di Benedetta Sforza

 

 

Ad Ioannem Rodericum Medicum, Louanium petiturus

 

Quos patimur cassus et quos, Roderice labores

      quaeue pericla uides

dum sequimur toto fugientes orbe puellas

      a Ioue progenitas.

En ego uidi qui dudum uotis petii omnibus undas

      Tormidis aureolas.

Rursus in ire fretum, rursus candentia cogor

      pandere uela Noto :

uela Noto et totiens iactatam credere uitam

      fluctibus Hesperiis.

Heu patrias unquam dabiturne reuisere sedes

      dulciaque ora meae

Pyrmillae? uiuente mihi qua uiuere dulce est,

      dulce cadente mori!

An mea (dii uestram) peregrinis ossa sepulcris

      condet acerba dies?

antiquis procul a laribus? procul ore meorum?

      Quae mea culpa nefas

commeruit tantum? Sed quae dea cetera caeco

      temperat arbitrio,

uiderit ista! Mihi certum est prius omnis forti

      pectore dura pati,

quam dulce Aonidum studium, quam clara sororum

      carmina deserere.

Hic amor est, haec cura meam premit única mentem.

      Cetera nulla puto.

Interea longum ueteris, Roderice, sodalis

      uiue uleque memor!

Otia grata teras: nam quae fert commoda secum

      improbus iste labor?

Cum tamen in terris nimium paulumue moratus

      nos breuis urna manet.

 

 

 

Ao Médico João Rodrigues, estando o autor de partida para Lovaina

 

      Que infelicidade e que trabalhos ou que perigos sofremos, ó Rodrigues, bem vês, enquanto seguimos fugitivas pelo orbe inteiro as moças, filhas de Júpiter. Sim, eu vi, eu que outrora busquei com todos os meus anseios as águas alouradas do Tormes.

      De novo sou forçado a ir para o mar, de novo a dar ao Noto as velas branquejantes. As velas a Noto e a confiar às ondas hespérias uma vida tantas vezes açoitada pelas tempestades.

      Oh, algum dia me será concedido rever os lugares pátrios e as doces feições da minha Pyrmila? vivendo onde me é doce viver, e, ao extinguir-me, doce morrer!

      Acaso um céu cruel (deuses, por piedade!) guardará meus ossos em sepulcro estrangeiro? longe dos antigos lares? longe da face dos meus? Que culpa minha mereceu impiedade tamanha? Mas a deusa que tudo governa com cego arbítrio, lá veja! Por mim, decidi antes sofrer com peito forte todas estas contrariedades, que abandonar o doce estudo das Aónides, os claros cantos das irmãs.

      Este é o meu amor, este é o cuidado que só ocupa o meu espírito. O mais considero-o nada.

      Entretanto, vivas tu por muitos anos com saúde, ó Rodrigues, lembrado de teu velho companheiro! Goza agradáveis ócios! Que vantagens traz consigo esse trabalho insano? Demoremo-nos na terra muito ou pouco, um urna breve nos aguardará.

 

 

 

 

 

Tradução de A.C. Ramalho, 1985, p. 207.

 

 

 

 

 

Amati Lusitani Medici physici praestantissimi Epitaphium

 

(Obiit fere sexagenarius pestilentia Thessalonicae anno 1568)

 

Qui toties fugientem animam sistebat in aegro

      corpore, Lethaeis aut reuocabat aquis.

Gratis obi id populis et magnis regibus aeque,

      his iacet; hanc moriens pressit Amatus humum.

Lusitana domus, Macedum telluri sepulcrum.

      Quam procul a patrio conditur ille solo!

At cum summa dies, fatali et appetit hora,

      ad Styga et ad Manes undique prona uia est.

 

Epitáfio de Amato Lusitano, Médico incomparável

 

(Morreu de peste, quase sexagenário, em Salónica, no ano de 1568)

 

 

      Aquele que tantas vezes retinha a vida fugitiva num corpo doente ou voltava a chamá-la das águas do Letes,

      querido, por isso, igualmente dos povos e dos grandes reis, aqui jaz; esta foi a terra que Amato pisou, ao morrer.

      Portugal, o berço, na terra dos Macedónios o sepulcro. Como se encontra longe do solo pátrio a sepultura!

      Mas quando o dia supremo e a hora fatal se aproximam, em toda a parte há um caminho em declive para a Estige e para os Manes.

 

 

 

Tradução de Américo da Costa Ramalho, 1985, págs. 217

 

 

 

Ad Lucium Lusitanum Poetam

 

Luci, tu Libyci Martis adorea

clarum Virginium dicis et ímpios

motus Siriphii strataque Punicis

      Tartessi uada classibus.

 

Nec non et Latio carmine publicos

ludos, laetitiamque, et celebrem refers

lucem, qua ueteris tradita postuma

      Lusi sceptra Sebastio.

 

Utrimque ingenii uis micat alitis;

nec tu pectus iners aut rudis artium,

quas praeclara docent scripta Panaetti.

      Permessi uada limpidis

 

immisces Durii fontibus, et noua

cingis fronde comas. O decus, o iubar

o splendor patriae gentis, et unicum

      uatis praesidium tui!

 

Me desiderium matris et aspera

pressus sorte parens in lacrimis dies,

noctes in lacrimis ducere perpetes

      crudelis serie iubent,

 

Alcidae domini moenia qua Padus

lambit populifer gurgite uítreo,

mox septemgemino nobilis ostio

aucturus Superum mare.

 

Hic suspiria nos ducimus, hic focis

expulsi patrii flemus, et ut Deus

tandem supplicibus parcat, in ultimas

      effusi petimus preces.

 

 

A Lúcio, poeta português

 

      Lúcio, tu cantas Virgínio, ilustre pela vitória do líbico Marte, e as ímpias revoltas do Xerife e o mar de Tartesso coberto das armadas turcas.

     

      E também referes, em versos latinos, as públicas festas e a alegria da manhã célebre em que foi entregue a Sebastião, filho póstumo, o ceptro do antigo Luso.

 

      Num e noutro tema, brilha o vigor do teu alado engenho. Nem tu és espírito sem arte ou ignorante dos princípios que ensinam os escritos brilhantes do Panécio. As águas do Permesso, às límpidas

 

      correntes do Douro tu as misturas, e cinges a tua cabeleira duma coroa fresca. Ó honra, ó glória, ó esplendor da pátria gente e protecção singular do teu poeta!

 

      A mim, a saudade da minha mãe e o meu pai, vítima de triste sorte, me forçam a passar em lágrimas os dias, em lágrimas as noites contínuas, em cruel sucessão,

 

      lá por onde o Pó, entre choupos, banha as muralhas do senhor Hércules, com a sua linfa vítrea; o Pó, célebre pela sua foz de sete bocas, com que a seguir acrescenta o mar Adriático.

 

      Aqui eu suspiro, aqui, expulso do lar paterno, eu choro e, profusamente, nas minhas derradeiras preces, a Deus rogo que por fim se compadeça de quem lhe suplica.

 

 

 

Tradução de Américo da Costa Ramalho, 1988, págs. 142-143

 

 

 

 

 

De Gymnasio Conimbricensi

a Ioanne Rege exstructo

 

 

Cernis ut illa uetus Conimbrica sedes

      Ante alias urbes exserat una caput?

Nam cum fida diu templis suspenderit arma,

      Aonidum lucos et iuga summa colit.

Hic Academiae, hic sunt loca nota Lycaei,

      Hic schola constructis inclyta porticibus.

Instat et ipsa sibi laudis studiosa inuentus :

      interea docta laurea fronde uiret.

Adsit Aristoteles, doctas miretur Athenas,

      Et locus hic dicat plus pietatis habet.

Adsit et interpres Diuum Cumaea Sibylla,

      Plena Deo uates ore futura canat :

Donec Monda maris uicini excurret in undas,

      Stabit Ioannis nobile Regis opus.

 

Sobre o Ginásio Conimbricense

construído pelo Rei D. João

 

Vês como a famosa Coimbra, antiga sede de reis, ergue  a sua cabeça acima de todas as restantes cidades? Há muito dependurou nos templos as armas em que confiava e habita agora os bosques das Aónides e os altos dos montes.

 

Aqui estão os lugares famosos da Academia, os do Liceu. Aqui a ínclita escola com os seus altos pórtico. E nela uma juventude, também desejosa de glória, em cuja douta fronte reverdece o louro.

 

Apresente-se Aristóteles, admire ele a douta Atenas, e dirá: este lugar é mais piedoso.

 

Apresente-se a Sibila de Cumas, intérprete dos deuses. Profetiza, plena de inspiração divina, anunciará o futuro:

 

Enquanto o Mondego correr para as águas do mar vizinho, estará de pé a obra ilustre do rei João!

 

 

 

 

Tradução de Américo da Costa Ramalho, 1985, págs. 209

 

 

 

DE EXILIO SVO

SCRIPSIT NOVAE OPPIDO DALMATIAE

HISPANICA CLADE NOBILISSIMO

 

Ergo mihi exilium longum, et crudele ferendum?

      Nec reditus spes est ulla relicta mei?

Et quod adhuc superest aeui infelicis, id omne

      Ducendum in gelidae rupibus Illyriae,

Qua male ad Hadriacas pugnauit Cantaber undas,

      Et iacet arx fusis strata cadaueribus,

Quaque sub umbrosi decurrens uertice montis

      Labitur exiguo murmure Nemilius?

Dextra Epidaurus inest, quaeque illius aucta ruinis

      Creuit, et est Blasi tuta patrocinio:

Laeua quoque aerias ostentat Rizanus arces,

      Et Venetis fidum patribus Ascrinium.

Nec procul, infelix Epiri terminus agri,

      Erigitur muris Butua semirutis.

At procul, et longo terrarum dissita tractu,

      Est Ebora: heu puero cognita terra mihi!

Salue terra mei natalis conscia, salue

      Non oculis posthac terra uidenda meis.

Troia decem, totidemque hiemes absumpserat error:

      Vix Ithacum spes est posse redire ducem.

Ille redit tameu, et ueteres agnoscit amicos;

      Penelope fruitur iam seniore uiro.

Me fortuna tenax terris dum iactat, et undis,

      Enumerat bis sex Elis Olympiadas;

Et cum temporibus crescunt mea damna ferendo.

      Et quis erit, cui non dulcius ante mori?

Num mea longaeuos pulsauit dextra parentes?

      Impia num patriis intulit arma focis?

Num feror abiectis impurus turpiter armis

      Miles, et antiquae transfuga militiae?

An quia solemnes ritus, et auita meorum

      Sacra colo, patriis finibus exul agor?

Et uidet hoc Superum Rector, nec fulmina torquet?

      Multus ab aetheria nec cadit arce lapis?

Ferdinande senex, ut te crudelis Erinnys

      Vexet,  ut infelix appetat ora canis!

Nec melior sors sit periurae coniugis, opto.

      Degener infernos incolat umbra lacus.

At male compositos cineres, atque ossa reuulsa

      Victor in Oceani deleat Afer aqua.

Non iniusta precor. Nostris ex ossibus alter

      Editus in nostras saeuiit hostis opes;

Altera (proh dirum facinus!) Phlegetontis ab unda

      Extulit ardentem quarta Megaera facem.

Horruit infelix uenientem Corduba pestem

      Baetis et auersas territus egit aquas.

Nec compressa loco flamma est: uolat illa per auras,

      Qualis ab Ortygia missa sagitta manu.

Qua nouus oxoritur Titan, qua conditur undis,

      Nullus ab iniecto non calet igne locus.

Ah, quoties gremio nata est abducta parentis!

      Ah, quoties natam est ipsa secuta parens!

Non secus obscura deserta in ualle iuuenca

      Mugit, et ante aras non socus agna cadit,

Sera quidem, uerum inuenit sua poena nocentem;

      Mouit et ultores iustior ira deos.

Omnis ab alterius damno culpanda uoluptas,

      Grata tamen uictis hostibus illa uenit.

Ecce iacet magnus sceptri successor auiti.

      Tot spes, tot curas abstulit una dies.

It nato comes erepto maestissima mater,

      Et bibit accitus pocula dira gener.

At nata, infelix nata, et mala credita patri

      Luget, et attonita mente repente cadit.

Illa parens regam nuper regina duorum,

      Illa potens nato Caesare mente furit;

Non secus Ogygiis late bacchatur in antris

      Thyas, et ingeminans «Euohe» sistra quatit.

Pone modum lacrimis, et tandem siste querelas,

      Corduba: tot poenis uix satis una domus,

Ipse quoque indignos casus solabor, et una

      Forsan erit nostris haec medicina malis.

Quod si rara manu ducunt iam fila sorores

      Et mihi supremi meta laboris adest,

Ipsi me montes morientem scilicet, ipsa

      Oblita ab Hispano saxa cruore inuent.

Quidquid erit, Manes descendam liber ad imos;

      Stet mihi libertas morte redempta mea.

Diis inuise Meli, et Melio mage saeue Paredes,

      Nil uobis in me iam modo iuris erit.

Excurrit pelago sensim porrecta crepido,

       Et breuis aequoreis tunditur isthmos aquis.

Sparge rosam, et uiolas, plenisque effunde canistris

      Lilia: dis sacer est Manibus ille locus.

Lysiadum cineres, defunctaque corpora uita

      Parcius iniecto puluere celat humus.

Si qua fides dictis, circum loca sacra feruntur

      Visa diu medio numina lapsa polo.

Incertum, quid agant, sed dicant carmina certe

      Grata Ioui, et propter uisitur ara breuis.

Hic mea nec ferro, nigra neque tacta fauilla

      Ossa uelim placide condat amica manus.

Neue mei fuerit moles oporosa sepulcri,

      At breuis in summo marmore uersus eat:

“Didacus hic situs est Ebora procul urbe, domoque:

      Non licuit patrio condere membra solo.

At tu, siue legis portum, seu littore funem

      Diripis, aeternum, nauta, precare uale.»

 

DO SEU EXÍLIO

ESCRITO EM NOVA, CIDADE DA DALMÁCIA, 1

ASSAZ FAMOSA PELA DERROTA DOS ESPANHÓIS 2

 

Então um exílio longo e cruel, devo eu suportá-lo?

      E de regresso nenhuma esperança me resta?

E o que sobra ainda de uma vida infeliz, tudo isso

      eu devo passar nas penedias da gélida Ilíria 3,

por onde Cântabro 4 desastrosamente combateu junto às ondas adriáticas,

       e uma cidadela jaz, coberta de cadáveres dispersos,

lá onde, no cume de monte sombrio,

      escorre, com débil murmúrio, o Nemílio 5?

À direita fica Epidauro 6 e aquela que, acrescida das suas ruínas,

      cresceu, e está sob a firme tutela de Brás 7;

à esquerda, também Rizano 8 ostenta as excelsas muralhas,

      e, confiada nos senadores venezianos, Ascrívio.

Não muito longe, termo infeliz do campo do Epiro 9,

      ergue-se Bútua 10, de muralhas meio destruídas 11.

Mas bem longe, e separada por larga extensão de terra,

      está Évora; oh! terra conhecida da minha infância!

Salve, terra, memória de meu nascimento! Salve,

      terra que meus olhos não mais hão-de ver!

Tróia lhe consumira dez invernos e outros tantos o vaguear;

      pouca esperança havia de que pudesse regressar o chefe ítaco;

mas regressa e encontra os amigos de outrora;

      Penélope desfruta do seu marido, embora mais idoso.

A mim, enquanto a Fortuna encarniçada me acossa por terra e por mar,

      conta com  a Élide duas vezes seis olimpíadas.

E com os anos crescem os tormentos que devo suportar.

      E quem haverá que não considere mais doce morrer ?

Acaso agrediu a minha mão os idosos pais?

      Acaso levantou ímpias armas contra os pátrios lares?

Acaso ando por aí aos baldões, depois de abandonar vergonhosamente as armas,

      qual soldado infame e desertor do antigo exército?

Ou só porque celebro os solenes rituais e as cerimónias sagradas

      de meus maiores, é que vagueio longe da terra pátria, no exílio?

E vê tudo isto o supremo governante 12 e não lança o seu raio?

      E dos baluartes do céu não cai uma saraivada de pedras?

Ó velho Fernando 13, que, a ti, a cruel Erínis

      te persiga, que te morda o rosto o sinistro cão 14!

E melhor não seja a sorte da esposa perjura 15, é o meu desejo:

      que a sua sombra vil povoe os pântanos do inferno!

E que as suas cinzas dispersas, os seus ossos revoltos,

      o Afro vitorioso os dissolva na água do Oceano.

Não é injusta a minha imprecação. Ele, vindo de nosso sangue 16,

      como um inimigo se encarniçou contra as nossas riquezas;

ela (oh! crime horrendo!), das águas do Flegetonte

      arrancou, como quarta Megera, uma tocha ardente.

Horrorizou-se a infeliz Córdova, diante da peste que lhe chegava 17,

      e o Bétis, aterrado, inverteu a corrente 18.

Nem aí a chama quedou sufocada: voa pelos ares,

      qual seta desferida por mão ortígia 19.

Por onde desponta, ao nascer, o Titã 20, por onde se esconde nas águas,

      nenhum lugar há que se não incendeie no fogo ateado.

Ah, quantas vezes a filha foi arrebatada ao regaço da mãe!

      Ah, quantas vezes à filha a própria mãe seguiu!

Não de outro modo, abandonada no vale sombrio, a vitela

      muge; não de outro modo frente ao altar, a cordeira cai.

Tarde, é certo, mas o castigo merecido acaba por atingir o criminoso;

      e uma ira justa move os deuses da vingança.

Todo o prazer que sai do dano de outro é condenável;

      este, porém, nascido da derrota do inimigo, vem com agrado.

Eis que jaz morto o grande herdeiro do ceptro de seus avós 21;

      tantas esperanças, tantos cuidados, arrebatou-os um só dia.

Parte, em companhia do filho que lhe foi arrebatado, a mãe desolada 22,

      e, mandado chamar, terrível veneno o genro toma 23.

E a filha, pobre, e, para sua desgraça, confiada no pai,

      deixa-se abater pelo luto e cai em súbita loucura 24.

Ela, há bem pouco rainha e mãe de dois reis 25,

      ela, poderosa graças ao César, seu filho 26, enlouquece.

Não de outro modo, dá largas ao delírio, nas grutas ogígias 27,

      a bacante 28 e, aos gritos repetidos de «Evoé!», agita os sistros.

Põe termo às lágrimas e suspende, enfim, teus lamentos,

      Córdova! A tantos castigos, a custo sobrevive uma casa!

Também eu hei-de consolar-me das desgraças que não mereci,

      e esse será, talvez, o único remédio de meus males.

E se raros são já os fios que tecem as <três> irmãs 29,

      e a meta do supremo esforço a mim se achega,

pois bem: os próprios montes me agradem ao morrer, as próprias

      penedias, manchadas do sangue hispânico, me agradem.

Seja como for, descerei livre aos Manes profundos;

      que me reste a liberdade, resgatada com a minha morte.

Tu, odioso aos deuses, ó Melo,  e tu, mais cruel do que Melo, ó Paredes 30,

      não mais haveis de ter sobre mim qualquer direito.

Ergue-se do mar, avançando, pouco a pouco, um rochedo saliente,

      e um pequeno istmo é batido pelas águas marinhas 31.

Espalha rosas e violetas e, dos açafates repletos

      lírios! Aos deuses Manos é consagrado aquele lugar.

Cinzas de Lusíadas e corpos dos que deixaram a vida,

      sob ligeira camada de pó os esconde a terra.

Se há verdade no que dizem, em volta dos lugares sagrados conta-se

      que largo tempo se vêem numes descidos do meio do céu;

não é certo o que fazem; mas dizem que os cantos, decerto,

      são gratos a Júpiter; e ali perto pode ver-se um pequeno altar.

Aqui, não tocados do ferro nem do negror das cinzas,

      os meus ossos gostaria eu que em paz os guardasse mão amiga.

E que não seja trabalhosa a construção do meu túmulo,

      mas corra, no alto do mármore, um breve poema:

«Diogo aqui jaz, longe da cidade de Évora e de sua casa.

      Não lhe foi consentido guardar os membros em solo pátrio.

Mas tu, quer recolhas ao porto, quer da praia levantes amarras,

      dirige-lhe, para sempre, ó marinheiro, um adeus!”

 
  Tradução e notas de Um judeu no desterro: Diogo Pires e a memória de Portugal, do Prof. Carlos A. André, cuja autorização para a sua reprodução nesta página se agradece.  

 

1 Actual cidade de Herceg-Novi, ou “Castelo Novo”, a cerca de 50 Km. de Dubrovnik, mas hoje pertencente ao Montenegro, País independente desde 3-6-2006.

 

2 Derrota sofrida pelos Espanhóis em Herceg-Novi, em Julho de 1539. Depois de deixar escapar os Turcos em Prevesa, a Santa Liga escolheu Herceg-Novi para os vencer. Mas a aliança cristã tinha os dias contados e caminhava para a ruptura. Veneza preferia a paz, Fernando Gonzaga, vice-rei da Sicília, optou pela não intervenção. Os Espanhóis, capitaneados por Francisco Sarmiento, ficaram entregues à sua sorte, e os Turcos levaram a cabo um autêntico holocausto.

 

3 Os contornos da Ilíria , no noroeste da Croácia, onde se inclui a Dalmácia, variaram ao longo dos séculos.

 

4 O povo espanhol.

 

5 Um escólio identifica Nemílio – fonte nos arredores de Herceg-Novi.

 

6 Outrora colónia romana e antes fundada pelos Gregos (VII a.C.) passou a denominar-se Zaptata (segundo o escólio ao texto) e corresponde à actual Cavtat.

 

7 Alusão a Ragusa

 

8 Um escólio diz tratar-se de uma cidade nas vizinhanças de Herceg-Novi.

 

9 Ascrívio, no século XVI conhecida por Cátaro, “cidade episcopal” (escólio as loc.) é a actual Kotor.

 

10 O Epiro confina, grosso modo, com a Ilíria. Bútua, perto de Kotor, tem hoje o nome de Bvdva.

 

11 A descrição geográfica dos arredores, com nomes que seriam estranhos e, mesmo, exóticos para a maioria dos destinatários virtuais, obedece a um modelo ovidiano (Tr. 2, 189 sqq.)

 

12 Deus.

 

13 Fernando, o Católico.

 

14 Cérbero, o cão dos Infernos.

 

15 Isabel, a Católica. A qualificação de perjura é esclarecida em escólio: Haec cum sub Henrico rege fratre miserrrimam uitam duceret, Abrahamo Secobiensi Hebraeo ditissimo, cuius liberalitate alebatur, saepe numero iurabat se, aliquando melhor aspiraret fortuna, Hebraeorum partes enixe defensuram. Quasd postea Regina miserabiliter attriuit, mulier nequissima et periura (“Esta, levando uma vida de pobreza no reinado do seu irmão Henrique, jurava vezes sem conta a Abraão de Segóvia, hebreu de muita riqueza, de cuja liberalidade se sustentava, que, se um dia melhor ventura a bafejasse, havia de defender com denodo a causa dos Hebreus; e, depois de ser rainha, veio a esmagá-la miseravelmente, mulher de suma ruindade e perjura.”)

 

16 Novo escólio esclarece este passo: Idem Ferdinandus, res in hunc modum habet: Fridericus regius adulescens ex Paloma Hebraea oris suaussimi Alphonsum suscepit. Alphonsus Friderici pater fuit, a quo Ioanna, Ferdinandi mater. (“Em relação ao mesmo Fernando, as coisas contam-se desta forma: Frederico, de régia estirpe, na adolescência, gerou Afonso, de Paloma, hebreia com rosto de uma doçura sem par. Afonso foi pai de Frederico, do qual nesceu Joana, mãe de Fernando.”)

 

17 Em 1473, quando do massacre de Córdova, reinava ainda em Espanha Henrique IV; só em 1476 os Reis Católicos subiram ao trono. É de supor que o choque provocado por tal chacina entre os judeus em diáspora tivesse já ganhado os contornos de um símbolo e se esbatessem os pormenores de datação. Além do mais, tal imprecisão cronológica não é relevante em texto de natureza poética.

 

18 Vd. Lusíadas, 4.28, 1-4

        Deu sinal a trombeta castelhana,

        horrendo, fero, ingente e temeroso;

        ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana

        atrás tornou as ondas de medroso.

 

Ambos os passos têm origem na Eneida, 8.239-240:

        Impulsu quo maximus intonat aether,

        dissultant ripae refluitque exterritus annis.

 

19 Designação corrente da ilha de Delos, um dos lugares onde se prestava culto a Diana, deusa da caça, hábil no manejo do arco.

 

20 O Sol.

 

21 O Infante D. João, filhos dos Reis Católicos e sua esperança de manter a união das coroas de Castela e Aragão, morreu a 4 de Outubro de 1497, com 19 anos, logo depois do casamento e sem ter chegado a ocupar o trono.

 

22 Isabel morreu a 26 de Novembro de 1504, deixando a sucessão ao neto, futuro Carlos V, e a regência ao marido.

 

23 Filipe, o Formoso, arquiduque de Áustria, casado com Joana, a Louca, filha dos Reis Católicos, e com ela herdeiro do trono. A luta que travou com o sogro pela coroa de Castela, acrescida da longa ausência na Flandres, durante a qual, a esposa ficara sozinha em Espanha, tornaram-no personagem polémica, querido por uns e odiado por outros. Por isso, talvez, levantou-se a hipótese de envenenamento, aqui dada como certa, mas jamais historicamente comprovada. Pulgar, na Crónica de los Reyes Católicos, afirma que o falecimento ocorreu em circunstâncias inequívocas e com testemunhas presenciais, pelo que exclui aquela possibilidade. A morte aos 28 anos, em 25 de Setembro de 1506, pôs termo a uma luta encarniçada para atingir a realeza, de que apenas gozou por três escassos meses.

 

24 Joana, a Louca, deu bem cedo sinais de perturbações psíquicas, que se foram agravando em resultado do desprezo a que o marido a votava e que atingiram o auge com a sua morte: levou o cadáver para a sua câmara, vestiu-o ricamente e, com ciúmes, impedia a aproximação de quem quer que fosse. Tinha ouvido uma lenda de um rei que voltara à vida catorze anos após o falecimento; e manteve-se de olhos postos no cadáver do marido, à espera de que a todo o momento isso lhe acontecesse também. Nem sequer permitia a entrada das aias; e, quando chegou a hora do parto, pois estava grávida, deu à luz a princesa Catarina sem qualquer ajuda, uma vez que recusara, até, a entrada de uma velha parteira, escolhida expressamente para o efeito (Prescott, Charles the Fifth, p. 162).

 

25 Carlos V e Fernando I.

 

26 Carlos V.

 

27 Ogígia: Tebas, terra de Baco

 

28 O texto latino tem Thyas, nome da cultora de Baco.

 

29 As Parcas.

 

30 João de Melo foi inquisidor-mor de Lisboa; Kayserling, na História do Judeus em Portugal, apelida-o de “o mais implacável inimigo da raça hebreia” (p. 205) e Herculano, na História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, a “alma do tribunal de Lisboa” (p. 148). Quanto a Pedro Álvares Paredes, dirigia a Inquisição em Évora; é citado por Francisco Leitão Ferreira no processo de Diogo de Teive (vol. III, pp. 143-146).

 

31 O escólio (Hebraeorum tumulus in litore Nouae), indica tratar-se do cemitério judeu em Herceg-Novi. Talvez por isso se julgou durante muito tempo que o poeta ali veio a falecer, hipótese que hoje se rejeita, coimo atrás se disse.