12-10-2011
A INQUISIÇÃO E OS “LUTERANOS” (1550)
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A principal razão para o estabelecimento da Inquisição por D. João III foi a perseguição dos cristãos novos que supostamente continuavam práticas do tempo do Judaísmo dos seus antepassados.
Ao mesmo tempo, porém, constatou-se na Europa a necessidade de reformar as práticas da religião católica, em face da depravação generalizada que se verificava. À frente dos reformadores, Lutero e Calvino, que acabaram por contestar e rejeitar a autoridade do Papa. Ao mesmo tempo, Erasmo exprimia dúvidas sobre a confissão e o culto dos santos. Surgiu então a contra-reforma, a resposta da Igreja Católica a estes desvios da doutrina da Igreja.
A estrutura da Inquisição tomou todas as providências para que as ideias reformadoras se não propagassem em Portugal. Porém, na base da sua acção, não estava como sempre, a falada defesa da fé, mas sim a defesa de outros interesses.
Os processos de maior repercussão na opinião pública, foram os dos professores do Colégio das Artes ou Colégio Real em Coimbra, George Buchanan (escocês) (Processo n.º 6469), João da Costa (Processo n.º 9510) e Diogo de Teive (Processo n.º 3209) . Já foram estudados em detalhe pelo Prof. Mário Brandão que publicou em dois livros os processos de João da Costa e Diogo de Teive. Porém, fê-lo em transcrição diplomática, absolutamente idêntica ao original, até sem desfazer as abreviaturas; assim, a leitura dos dois livros torna-se bastante custosa e desagradável. Ele deve ter dado conta disso, porque depois escreveu uma narrativa em dois grossos volumes denominada “Os professores do Colégio das Artes e a Inquisição”, onde interpretou os textos dos processos anteriormente publicados. Fê-lo, porém, do mesmo modo que os nossos historiadores estudaram a Inquisição, no tempo do Estado Novo (e alguns continuaram por inércia no mesmo rumo após o 25 de Abril): tratando a Inquisição como um tribunal como outro qualquer, um tribunal da fé, com as suas regras e seus legítimos fins. Ora isto está profundamente errado. Considerar a Inquisição um tribunal como outro qualquer não está correcto, porque a Inquisição tinha uma missão impossível: conhecer as crenças das pessoas. A Inquisição era por isso uma instituição absurda; como corolário, a Inquisição era também absolutamente perversa, porque, sendo impossível o que pretendia fazer, acabava por ser apenas um instrumento de fazer mal.
O pensamento é livre por natureza, é um princípio de direito natural. Como era impossível conhecer as crenças reais dos incriminados, as verdadeiras razões para a actuação da Inquisição nunca são a defesa da fé, mas sim esse prazer de fazer mal (a até de matar) fingindo que faziam o bem. Por isso, as penas aplicadas não tinham que ver com a culpa que não era provada, mas sim com outros interesses, inimizades ou ódios em relação aos réus. Conclui-se assim que a Inquisição era uma instituição fundamentalmente perversa.
Aceito perfeitamente que digam se o imputado ia ou não à Missa, se se confessava e comungava anualmente (isto é, se fazia a desobriga), mas não se acreditava na transubstanciação, se era católico ou luterano ou se era luterano ou erasmista e outras histórias do mesmo género. Estudar a Inquisição assim, é fazer o jogo dos inquisidores, agir como eles, o que é inadmissível. Acho aceitáveis os factos, mas não querer desvendar as crenças que lhes iam na cabeça.
A Inquisição tem de ser estudada, procurando as razões reais e não as “heresias” dos condenados e com a consciência plena de se tratar de una instituição absurda e perversa.
A mudança da Universidade de Lisboa para Coimbra, afigura-se ter sido uma tentativa de D. João III de, em extremo, se livrar da influência dos Jesuítas que o rodeavam em Lisboa. Para dar prestígio à nova Escola, contactou em Bordéus, André de Gouveia, pedindo-lhe para trazer para Portugal um bom grupo de professores para fundar em Coimbra o Colégio das Artes ou Colégio Real. André de Gouveia na direcção do Colégio de Guyenne, ganhou um prestígio enorme que levou Montaigne a classificá-lo, “sem comparação, o maior Principal de França” Éssais, tomo II, pag. 125 (edição de Londres, 1769). Não teve dificuldade em arranjar uma equipa sólida e muito prestigiada, com que partiu de França para Portugal na Primavera de 1547: George Buchanan, Arnaldo Fabrício, Nicolau de Grouchy, Guilherme de Guerente, Elias Vinet, João da Costa, Diogo de Teive, António Mendes. Todos estes provinham do Colégio de Guyenne, na Aquitânia. Mas, como é evidente, o Colégio precisava de muitos mais professores e os outros tinham sido formados em Paris, com as várias dezenas de bolsas pagas pela Corte de D. João III. Em pouco tempo, formaram-se em Coimbra dois partidos, o dos Parisienses (ou Parisinos) e o dos Bordalenses (ou Bordaleses).
Os Bordalenses eram mais bem pagos, porque contratados no estrangeiro. Além disso, o Colégio era mal visto, porque D. João III desalojou vários prédios e habitações para instalar o Colégio das Artes e os professores vindos de fora. Na disputa entrava também a profunda inimizade entre André de Gouveia e seu tio Diogo de Gouveia Senior, Reitor do Colégio Santa Bárbara, em Paris. Anos antes, o primeiro fora buscar a Paris vários professores, que aliás, conhecia bem, por ter sido também Principal de Santa Bárbara. Ficou o Colégio de Santa Bárbara mais desguarnecido e o tio Diogo de Gouveia, furioso.
Tudo isto criou em Coimbra, meio pequeno, um clima de hostilidade permanente e de quase guerra civil. O ambiente não serenou quando, de repente, faleceu o André de Gouveia em 9 de Junho de 1548. Foi nomeado Principal Diogo de Gouveia Junior, sobrinho do antes referido Diogo de Gouveia Senior, por ser filho do irmão deste, Gonçalo (enquanto André e seus irmãos eram filhos de uma irmã, Inês). Este Reitor mostrou-se bastante conflituoso e, dirigindo tantos dos Bordalenses, tinha tomado partido pelos Parisienses, o que suscitou ainda mais conflitos. Gouveia foi compelido a abandonar o cargo em Outubro de 1549 e logo a 12 de Novembro seguinte, foi nomeado Principal João da Costa, com quem, naturalmente, se davam bem todos os Bordalenses.
Vista a hostilidade entre os dois campos, os Parisienses procuraram o ponto mais fraco dos Bordalenses: a sua prática religiosa, ou a falta dela. Naquele tempo e durante muitos séculos, a prática religiosa era perfeitamente controlada: ida à Missa aos domingos, confissão e comunhão anual, jejum e abstinência nos dias prescritos, compra das Bulas visando as possíveis dispensas, etc. O “rol da desobriga” durou nas freguesias do interior português até meados do Século XX.
Vindos de França, onde os costumes eram menos severos, os professores não se preocuparam com o que julgavam detalhes sem importância. Por outro lado, tinham consciência do prestígio que davam à Universidade de Coimbra e pensaram até ao fim que tinham a protecção do Rei para os defender da prisão dos Estaus, em Lisboa.
Enganaram-se.
Ao contrário do que pensava o Prof. Mário Brandão, não chegou a haver nenhuma participação ou denúncia por escrito. Aliás, se tivesse havido, o Cardeal Inquisidor-Mor não se teria dado ao trabalho de enviar a Paris uma “comissão” tão complicada como a que mandou. Certamente tinha recebido muitas denúncias verbais, que não fez reduzir a escrito. De outro modo, não referiria na “comissão” os “Portugueses e os estrangeiros que vieram a este Reino para residirem e ensinarem na Universidade de Coimbra”, como candidatos a Réus da “Santa” Inquisição.
É o texto desta comissão que vou transcrever a seguir em texto perceptível, a partir da cópia do Prof. Mário Brandão e traduzindo também as partes em Latim que ninguém ainda traduziu. É um bom testemunho do furor persecutório do Cardeal Infante, manobrado sobretudo pelos Jesuítas que acabaram por obter ganho de causa quando o Colégio das Artes lhes foi entregue em 1555. O original do documento encontra-se no processo n.º 9510, de João da Costa, embora se refira aos três Professores.
Como mencionei, a história dos professores do Colégio das Artes foi já descrita em pormenor pelo Prof. Mário Brandão. O processo de George Buchanan foi também publicado por Guilherme João Carlos Henriques, nascido William John Charles Henry (1846-1924), mas ele não traduziu as defesas e os depoimentos em Latim. O livro de James M. Aitken é mais completo, pois traduziu do Latim a defesa do Réu.
A ordem de colher em Paris depoimentos que incriminassem os portugueses e estrangeiros que tinham vindo de França para ensinar em Coimbra, foi dada a Fr. Duarte da Apresentação, Agostiniano que já se encontrava em Paris (assinou como Eduardus Presentatus), actuando como Examinador e Juiz da Causa e ao Licenciado Brás de Alvide, do Desembargo do Paço, que partiu de Lisboa e que seria o escrivão. A comissão apenas menciona uma testemunha, Frei João Pinheiro, Dominicano, e este é que indicou depois outras pessoas conhecedoras do assunto para testemunharem.
TESTEMUNHAS:
FREI JOÃO PINHEIRO era sobrinho de Gonçalo Pinheiro, depois Bispo de Viseu. Em 1537, foi enviado em missão diplomática a Baiona por D. João III. Levou consigo três sobrinhos: João Pinheiro (1521-1561) e o irmão mais novo deste. Miguel (1525-1577), filho de sua irmã Teresa, casada com Jorge de Cabedo, já falecido e Diogo Mendes de Vasconcelos (1523-1580), filho de sua irmã Beatriz, casada com Gonçalo Mendes de Vasconcelos. Pôs os três a estudar no Colégio de Guyenne, onde ficaram dois anos. Em 1540, os três foram para Toulouse estudar Direito. Mas, nesta cidade, João entrou para os Dominicanos.
Segundo João da Costa (Vice-Reitor em Guyenne), os três sobrinhos de Gonçalo Pinheiro eram maus estudantes e ele em certa altura mandou aplicar a João o maior castigo em uso no Colégio: a salle. O aluno de joelhos e em tronco nu, em frente da turma, recebia vergastadas de alguns professores escolhidos para o efeito. Costa diz que o castigado jurou vingar-se.
No seu depoimento, deixou cair, como por acaso o nome de Lopo de Almeida, que, por isso, foi preso pela Inquisição mais tarde em Lisboa também como “luterano”.
Mestre DIOGO DE GOUVEIA Sénior (1471 – 1557) – Era o Reitor do Colégio de Santa Bárbara, e, como disse, era inimigo figadal de seu sobrinho, André de Gouveia (1498-1548), filho de sua irmã Inês de Gouveia. Se André não tivesse falecido, teria certamente sido preso também pela Inquisição. André tinha mais três irmãos e três irmãs. O irmão mais velho, Marcial (ou Marçal) de Gouveia foi também preso pela Inquisição mais tarde, como referirei; o mais novo, António de Gouveia, ficou por França, foi jurisconsulto e professor insigne e poeta novilatino apreciável e acabou a sua carreira em Turim, onde faleceu. Um terceiro irmão, Diogo Rodrigues de Ayala, foi frade carmelita.
Note-se que André de Gouveia apenas escapou à Inquisição por ter falecido, de outro modo, teria sido acusado com os outros.
JOANNES FERRERIUS – Piemontês, tutor dos sobrinhos do Cardeal da Escócia, David Beaton (1494-1546).
SIMON SIMSON, escocês, Doutor em Teologia, de Paris. Ele e a testemunha anterior foram referidos por Diogo Gouveia, para deporem sobre detalhes da vida de Buchanan, na Escócia.
JEAN TALPIN, francês, Mestre em Artes que tinha sido Regente no Colégio de Guyenne durante 5 anos (1539-1543) e conhecia portanto os suspeitos.
O seu nome foi referido por João Pinheiro.
Mestre ÁLVARO DA FONSECA, Doutor em Teologia , também referido por Pinheiro.
SEBASTIÃO RODRIGUES, que vivia na Universidade de Paris.
22 de Novembro a 21 de Dezembro de 1549
Auto com os depoimentos das testemunhas de acusação interrogadas em Paris - Original aqui - pags. 5 a 28 do software
Culpas de mestre João da Costa e de mestre Diogo de Teive e de mestre Jorge Buquenano as quais vieram de França, pelas quais foram presos.
Auto de informação que o Cardeal Infante Inquisidor-mor dos Reinos de Portugal mandou fazer tocante ao dito (en)cargo em França.
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e quarenta e nove anos, aos vinte dois dias de Novembro na cidade de Paris a par de São Gervásio nas pousadas de mim, o Licenciado Brás d’Alvide, fidalgo da casa d’el-Rei nosso senhor e do seu desembargo que ora por seu serviço estou neste Reino de França, logo aí (a)pareceu o Padre Frei Duarte português que está (ag)ora no Colégio dos Agostinhos ao qual apresentei a comissão do dito senhor Cardeal Infante feita a ele e a mim para o negócio nela contido, a qual é a seguinte:
Nós o Cardeal Infante Inquisidor-Geral em estes Reinos e senhorios de Portugal, etc., fazemos saber a vós Padre Frei Duarte Português que ao presente residis em Paris no Mosteiro de Santo Agostinho e a vós Licenciado Brás d’Alvide, do desembargo d’el-Rei meu senhor irmão, como cumpre a serviço de Nosso Senhor e bem deste santo ofício da Inquisição havermos informação da vida e costumes assim dos Portugueses como dos estrangeiros que vieram a este Reino para residirem e ensinarem na Universidade de Coimbra onde ao presente estão e portanto vos encomendamos que com muito segredo pergunteis em forma de testemunho o Padre Frei João Pinheiro Português que está em essa Cidade de Paris que é da Ordem de São Domingos e assim as mais testemunhas que o dito padre referir e outras que parecerem necessárias de modo que se possa saber a verdade do negócio com todo o segredo e fieldade que for possível e as ditas testemunhas declararão particularmente as pessoas de que derem informação e as culpas que deles souberem particularizando os casos de maneira que se possa compreender em que qualidade de culpas são culpados e como o sabem com declaração do tempo e das mais coisas que parecerem que convém em casos de tanta importância e o dito Padre Frei Duarte perguntará as ditas testemunhas como inquiridor e Juiz do caso e vós Licenciado Brás d’Alvide escrevereis os ditos das testemunhas para se poder fazer o negócio mais seguramente e para todo o sobredito se fazer como convém a serviço de Nosso Senhor e bem do negócio autoritate apostolica vos cometemos nossas vezes e vos havemos por nomeados a cada um em seu ofício para o dito negócio. Feito em Lisboa aos dezassete dias do mês de Outubro, António Rodrigues o fez, de mil e quinhentos e quarenta e nove.
O Cardeal Infante
E em cumprimento da dita provisão e comissão sendo por nós vista e aceitada perguntámos o Padre Frei João Pinheiro outrossim Português e colegial no Colégio de São Domingos desta cidade nela nomeado, cujo testemunho se segue:
O Padre Frei João Pinheiro Português da Ordem de São Domingos que ora reside no Colégio da dita Ordem nesta cidade de Paris, testemunha jurada por seu hábito pondo as mãos em o peito segundo costume de sua Religião, perguntado pelo contido na dita provisão atrás, disse ele testemunha que é verdade que sempre suspeitou que mestre João da Costa e Diogo Teives e mestre Jorge Buquenano Scoto e três ou quatro franceses que com os ditos foram de Bordéus a Coimbra especialmente Guilhelmo Garamta e Regnaldo Piloet e os outros a quem não sabe o nome sentirem mal da Fé e serem da seita de Lutero e isto por o que viu e entendeu deles e ouviu a pessoas dignas de fé. Primeiramente vindo ele testemunha de Tolosa para Bordéus pousou no Colégio onde o dito de Teives e Buquenano e um médico Ruivo Francês comiam na câmara do dito mestre João da Costa e ele testemunha outrossim comia com eles e por ser Advento não comia carne segundo sua Ordem e nunca os sobreditos lhe falavam em outra coisa salvo em cerimónias da Religião e da Igreja, zombando e escarnecendo, de sorte que ele testemunha não podia crer senão que eram verdadeiros luteranos. Perguntando-lhe os sobreditos quem ordenara a defesa de não comer carne ou outras viandas e quem ordenara a Quaresma e Advento dizendo que os homens e que Cristo ordenara não haver diferença nos comeres alegando que mandara aos apóstolos que comessem o que lhes fosse posto diante, e quem ordenara as Religiões senão homens perguntando-lhe por que se apartara do estado comum e perguntando-lhe outras coisas semelhantes e isto por tantas vezes que respondendo-lhe ele testemunha o melhor que podia, se viera a agastar com eles vendo que não queriam deixar de continuar os tais propósitos, principalmente o Diogo de Teives e o da Costa e o médico. Ela testemunha dissera ao mestre João da Costa que lhe não falasse mais nestas coisas porque com segura consciência não podia ouvir disputar das semelhantes coisas e ao Teives falando a ele testemunha nestas coisas lhe dissera que olhasse o que falava e a quem, por que em algum tempo se não arrependesse e que dizendo-lho quatro ou cinco vezes se não quisera calar até então. Que daí por diante lhe não falara mais nisso e estando ele testemunha em Paris lhe dissera Pedro Luz filho de Álvaro Luz de Setúbal que ora está em Portugal que Dom Lopo de Almeida o qual havia estado em Bordéus lhe quisera persuadir que tomasse a seita dos luteranos e entre as razões que lhe dava era dizer que dela eram o dito mestre João da Costa e mestre Diogo de Teives e Buquenano e outros de Bordéus que eram homens de espírito e que a que ele tinha não tinha dos Portugueses que homens de pouco espírito como o doutor mestre Diogo de Gouveia e outros semelhantes. E os sobreditos Diogo de Teives e João da Costa e Buquenano sempre conversaram estando em Paris com gente suspeita como ele testemunha ouviu dizer ao dito mestre Diogo de Gouveia e a mestre Sebastião o qual lhe dissera que por esta suspeita se tirara de sua conversação. Assim ouviu o mesmo ao doutor Mongelos e a mestre João Talpino que foi muito tempo Regente em o dito Colégio de Bordéus, pessoa de boa vida e boas letras, o qual Talpino disse a ele testemunha que a conversação do dito de Teives não somente fora com luteranos mas com pessoas que eram reputados por ateus que são os que negam a Deus e o mesmo ouviu ao doutor mestre Álvaro da Fonseca. E assim lhe disse o dito Talpino que lhe havia dito pessoa digna de fé que, estando o dito de Teives e uma companhia que era dos mesmos suspeitos se dissera (não lhe querendo dizer quem) que era Riso fazer consciência de coisas leves segundo seu parecer, dizendo que se tivesse algum movimento carnal e tendo sua mãe diante, não deixaria de fazer sua vontade sem escrúpulo de consciência. E outrossim ouviu ele testemunha dizer ao mesmo Talpino que tinha os sobreditos Teives, Buquenano e Costa por luteranos por os ver muitas vezes disputar duvidosamente nas coisas da fé e que o dito Buquenano lhe quisera provar e mostrar segundo Santo Agostinho De doctrina Christiana que o corpo de Nosso Senhor estava no Sacramento da Eucaristia per modum signi tantum. E também ouviu ele testemunha a muitas pessoas que o dito Buquenano, sendo mestre de um príncipe em Escócia, fora acusado e outros cinco de haverem comido o cordeiro pascal segundo a maneira dos Judeus, pelo que os cinco foram queimados e ele fugira e fora queimado em estátua no dito Reino de Escócia e disto também ouviu ele testemunha ao dito doutor de Gouveia que o havia sabido de um doutor Escocês, do Colégio da Sarbona; o qual doutor também lhe dissera que, estando o dito Buquenano no Colégio comia carne na Quaresma. E disse mais ele testemunha que quanto aos mais Portugueses que foram do dito Colégio e nele estão, ele outra coisa não sabe, somente que mestre Antonio Mendes, vindo um dia de uma pregação de Bordéus Ihe disse que um homem douto pregara então que não havia de fazer oração aos santos, não sabe ele testemunha com que intenção. Quanto aos franceses disse ele testemunha que ouvira dizer que eram Iuteranos, principalmente o Guilhelmo Garamta e Regnaldo Piloet e quanto ao Piloet somente ouviu dizer o dito doutor Mongelos e do Garamta a mestre João Talpino acima referido, o qual disse a ele testemunha que queimando-se um Regente de Artes em Bordéus por luterano, da conversação do dito Garamta que foi pertinaz até à derradeira e queimando-o a pequeno fogo louvava o dito Garamta a perseverança do dito luterano que sofrera o fogo por defesa de seu error. E disse mais ele testemunha que ouviu dizer ao dito Mongelos que um dos franceses que lá leram em Coimbra a quem não sabe o nome, se viera de lá e fizera vender a fazenda a seu pai e mãe e se fora com eles pera Genebra onde ora está. E assim conhece ele testemunha a um francês de Auvergne de que lhe não lembra o nome que lhe dissera que lia no dito Colégio em Coimbra em uma classe das baixas, o qual tem por homem simples e de bem. E al não disse. E perguntado pelo costume, disse que fora discípulo dos mais dos acima ditos em letras humanas no dito Colégio estando em Bordéus.
Ffr. Eduardus Presentatus fr. Joannes Pinarius Brás d’Alvide
O doutor mestre Diogo de Gouveia etc. testemunha perguntada pelo contido na dita provisão e assim pelo referimento da testemunha atrás jurada por suas ordens pondo a mão em o peito disse que era verdade que ele conhecia mestre João da Costa Português o qual fora bolseiro d’el-Rey nosso senhor e discípulo de um Regente que fora em o seu Colégio de Santa Bárbara, chamado o Copo médico que primeiramente regentara no Colégio do cardeal Moine o qual mestre André e sobrinho dele testemunha metera no seu Colégio estando ele em Portugal o qual Copo era grande luterano como está provado por Justiça na corte do parlamento desta vila e depois viu ele testemunha conversar o dito mestre João da Costa com os frades da terceira Ordem de São Francisco deste Reino os quais todos são havidos por grandes luteranos donde ele testemunha sempre teve suspeita que pela dita conversação o dito mestre João consentia com eles e depois se foi a Auvergne onde toda a terra está mui gastada deste mal do Lutero e daí se foi a Bordéus estando em companhia do dito mestre André e mestre João Gelida e de mestre Jorge Escocês e de mestre Regnaut Piloet que segundo o que dizem é grande luterano segundo ele testemunha ouviu dizer ao doutor mestre Nicolau Mongelos ao qual mesmo ouviu dizer que todos os nomeados não valiam nada. E disse mais ele testemunha da conversação deles muitos homens de bem e bons cristãos eram mal edificados quanto a esta seita segundo ouviu dizer ao padre de Super Sanctis, comissário da observância em Gasconha e frei Clemente Faraot da mesma ordem e ao segundo Presidente de Bordéus chamado de Calvimonte, o qual Presidente lhe dissera que o Colégio de Bordéus era causa da perdição de todo Gasconha nesta parte. E assim ouviu ele testemunha dizer aos sobrinhos do bispo de Tânger, principalmente Miguel de Cabedo e Diogo Mendes muitas coisas deles todos os quais se guardavam de comunicar com eles como por eles que ora estão em Portugal se poderá saber. E quanto a mestre Diogo de Teives não sabe ele testemunha outra coisa, somente vê-lo sempre conversar com os sobreditos mestre André e Gelida e estar sempre no Colégio em Bordéus e negociar os negócios do dito mestre André. Quanto a mestre Jorge Escocês que está no Colégio em Coimbra ouviu ele testemunha dizer que fugira de Escócia por herege e judeu, dizendo que podia celebrar o cordeiro pascal e outros cinco com ele eram desta heresia os quais todos cinco foram queimados vivos e por o dito mestre Jorge ser mestre de um filho d’el-Rei de Escócia lhe foi dada por prisão uma casa donde fugiu e veio a ter a esta cidade haverá seis ou sete anos pouco mais ou menos, onde o cardeal de Escócia que estava aqui por Embaixador o quisera fazer prender e outro Escocês o salvou e daqui se foi a Bordéus donde foi para Portugal, o que tudo ouviu ele testemunha; ouviu dizer ao doutor mestre Simon Semisson Escocês e ao mestre dos sobrinhos do cardeal de Escócia a quem não sabe o nome e a mestre João Soard que ora está nesta vila outrossim Escocês. Quanto a mestre Regnaut Piloet francês disse ele testemunha que mestre Nicolau Mongeles lhe disse por muitas vezes que era um grande luterano e maior que todos os outros. E disse outrossim ele testemunha que um que esteve em Coimbra no dito Colégio se veio de lá ao Bispado de Ssoisson neste Reino donde era natural e fez vender os bens a seu pai e mãe e se foram todos para Genebra onde ora prega a dita seita de Lutero. E al não disse e do costume disse nada.
fr. Eduardus Jacobus Brás d’Alvide
Presentatus Gouveia doctor Senior
Aos vinte e sete de Novembro do dito ano perguntámos a George Ferreira Piemontês que ora é aio dos sobrinhos do cardeal de Escócia que Deus haja e por não falar espanhol, testemunhou em latim e seu dito é o seguinte:
Joanes Ferrarius artium magister in formam testimonii tactis sacrosanctis evangeliis juratus depossuit quod nouerat familiariter Georgium Buquenanum priusquam profisciceretur in Scociam unde postea profugit suspectus de heresi et cum per Angliam in Luteciam venisset aliquamdui hic latuit propter presentiam Reverendissimi cardinalis Scotie ne authoritate ipsius in vincula duceretur deinde parato sibi viatico et vestitu profectus est Burdegales illinc parisius rediit postea in Portugaliam abiit, quantum attinet ad ea de quibus dictus Buquenanus accussabatur Scocie ut audivit ex infinitis et fide dignissimis accussacio dicti Georgii erat comunis cum quinquem qui exusti sunt in Andeburgi et particulari intelegit quod dicti novum Rictum observabat in conjungendis viris mulieribus et eo modo conjunxerant quandum mulierem uni sacerdoti, item de delictu ciborum et tota quadragesima carnibus vescebantur preterea de libero arbitrio et de confessione, de consuetudine interrogatus dixit quod dictum Georgium Buquenanum ut fratrem dilexit sed in causa pia et juratus veritatem deponit.
ffr. Eduardus Joanes Brás d'Alvide Presentatus Ferrerius Pedemontanus manu propria
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João Ferrerio, professor de Artes, jurado como testemunha tocando os Santos Evangelhos, depôs dizendo que conheceu George Buchanan familiarmente, antes que ele se estabelecesse na Escócia de onde depois fugiu suspeito de heresia, e chegou a Paris passando por Inglaterra. Ali esteve escondido por bastante tempo em face da presença do Reverendíssimo Cardeal da Escócia e teria sido preso se não fosse a influência dele. Depois de ter arranjado comida e roupa partiu para Bordéus. Daí regressou depois a Paris e partiu para Portugal. No que respeita às culpas do dito Buchanan na Escócia, como ouviu a pessoas sem conta da maior credibilidade, a acusação contra o dito Jorge foi a mesma que a dos cinco que foram queimados em Edimburgo, e em particular ele ouviu que o mesmo acusado segue a nova religião na união de homens e mulheres, e assim, eles casaram uma certa mulher com um padre. Além disso, no que respeita a carnes, estes costumam comer carne durante toda a Quaresma, e além disso em matéria de livre arbítrio e de confissão adoptaram as novas ideias. Interrogado sobre os costumes, disse que trata o dito George Buchanan como um irmão, mas em matéria de fé e estando juramentado, tem que dizer a verdade.
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Simon Simson doctor in sacra theologia parissiensis in formam testimonii per ordines suos manu ad pectus admota juratus depossuit quod novit Georgium Buquenanum Lutecie qui postmodum abiit in Scociam ubi habuit pueros Regis ad docendum et eo gubernante predictos pueros fertui illum cum aliis quinque viris jam combustis in Scocia agnum pascalem comedise ante Pasca cujus Rei factum pervenit ad aures Regis qui dedit illum litori in custodiam ac hujus domo nocte discessit clam et se ipsum in Angliam contulit ubi aliquamdiu manssit et tandem urbem parissiensem venit ubi Rexit in Colegio cardinalicio, et hec audivit ab scotis et nihil aliud dixit, de consuetudine interrogatus nihil respondit.
Symsom ffr. Eduardus Brás d’Alvide M.te Presentatus
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Simon Simson, doutor em Teologia Sagrada pela Universidade de Paris, jurado como testemunha pelas suas Ordens, e colocando a sua mão no peito, depôs dizendo que conheceu George Buchanan em Paris. Este foi a seguir para a Escócia, onde foi educador dos filhos do Rei, e, quando ele estava a ensinar os referidos meninos, disse-se que ele e outros cinco homens que foram queimados na Escócia, comeram o Cordeiro Pascal antes da Páscoa. Este facto foi aos ouvidos do Rei, que o deu em custódia a um oficial, de cuja casa fugiu em segredo de noite Buchanan e foi para Inglaterra onde ficou durante algum tempo. Depois foi para Paris onde foi Regente do Colégio do Cardeal. Este facto soube Simson pelos Escoceses e mais não disse. Interrogado sobre os costumes, nada disse.
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Joanes Talpinus artium magister sacrosanctis Evangeliis tactis interrogatus de hiis quibus fuit a fratre Joane Pinario rellatus et de contentis in comissione, juratus depossuit quod suo judicio Jacobus de Teives, Joanes a Costa et Buquenanus sunt hac labe luteranorum maxime suspecti quod cognovit aut ex sermonibus aut ex communi racione vite nec tantum periculum esse factione luterana in causa de Teives sed quod omnium gravisimum est ne cecitate mentis a nostra Religione et fide defecerit ut nefariam sectam epicoriorum aprobare maxime videatur et voluptatem pro sumo bono habeat et mortalem animam existimet moreque beluarum et vitam et interitum nostrum suspicet et hoc de illo suspicat quod consuetudem haberet familiarisimam cum doleto qui combustus fuit parisiis et atheus erat ut accepit a servitore ipsius doletitum quod fama comunis de eo ferebatur specie teiveso postremo quod ex eodem intelexit nostram vitam more equorum componi solere ut adolescentes more equaleorum, lascivire saltitari cum vero in senectutem vergunt et in anocio torpescere que verba sunt atheorum, item nescit an teivius vel alius essent qui dixerit in cetu quorundam vituperandos esse quosdam quide nescio quibusdam Rebus sibi scrupulum formabant nam si motus aliquis carnis insurgeret non esse ulo pacto formidandum etiam cum matre propria suam libidinem explere, sed a quodam accepit Teivium in dicto cetu adfuise. De Costa autem dixit quod admittebat et atheos et luteranos in domum suam et consuetudinem et a medico quodam accepit fidedigno quod nobilis quidam Vasco semel dixit in cubiculo dicti a Costa (nescit tantum an tunc ille adeesset) sunt quidam qui dicunt esse demones si qui sint obtestor eos ut veniant ad me et adiuro eos ut veniant et abripiant me et inde dixit videte quomodo non sunt demones? Preterea cum in convivium accepisset hunc nobilem et Teivium cum aliis quos suspicabatur esse luteranos et sermo incedisset de iis qui nostro tempore opponunt vitam pro Christo (ut putat) ille nobilis dixit hujus modi verba insani sunt illi qui pro quodam Christo de quo blasphemum sermonem habuit mortem oppettunt tunc quidam exurrexerunt eum diabolum quemdam vocitantes, alii autem specie Costa et Teivius tacuerunt et descendentibus aliis hii duo remanserunt quod accepit a dicto medico qui a convivio preterea discessit et Garanta adderat ut dictus medicus renunciabat item de Garanta dixit quod ab eo audivit cum quidam olim preceptor in facultate artium ejusdem gimnasii burdegalensis pro errore luterano flamis traditus fuisset eundem putare beatum quod pacienter et constanti animo ignem sustulisset et dixit quod predictos omnes noverat propterea quod rexit in dicto Colegio per quinquenium iliis ibidem Regentibus et tum temporis illos suspectos habuit sed postquam e colegio recessit predicta novit. De consuetudine interrogatus dixit quod omnes sunt sibi amici // fiz as duas entrelinhas nesta folha por verdade.
fr.Eduardus Brás d’Alvide Presentatus Talpinus
Item dixit predictus testis quod in dicto colegio qui est modo Conimbrie docet quidam Antonjus Lusitanus qui fuit famulus principalis magistri Andrea de Gouveia qui specie Antonius aliquando vacilabat et aliquando luteranis aliquum catholicis consenciebat quem judicio suo confirmandum in fide putabat.
ffr: Eduardus Talpinus Brás d’Alvide Presentatus |
João Talpino, Professor de Artes, tendo tocado os Sagrados Evangelhos, interrogado sobre o que foi contado por Frei João Pinheiro e sobre o conteúdo da precatória, depôs sob juramento que, na sua opinião, Diogo de Teives, João da Costa e Buchanan são suspeitos ao máximo desta nódoa de luteranos o que soube seja pelas conversas seja em face da vida em comum. (Disse) que no caso de Teives, nem era tanto o perigo da seita luterana mas o que é mais grave de tudo é que se constate à evidência que por cegueira da mente se afasta da nossa fé e Religião para aprovar a abominável seita dos Epicuristas, e tenha como sumo bem o prazer; considere a alma mortal e a vida e a morte tal como as dos animais; e suspeita isso dele porque tinha um relação muitíssimo familiar com (Étienne) Dolet que foi queimado em Paris e era ateu, como lhe foi dito por um criado do próprio Dolet, pois era a fama geral que se tinha dele, e em especial, no que respeita a Teives chegou a ouvir que ele costumava comparar a nossa vida à dos cavalos, os adolescentes como potros, a correr e a saltar, quando velhos dobram-se e entorpecem ociosos: estas são palavras de ateus. Do mesmo modo, ignora se Teives ou outro fossem dos que disseram numa qualquer reunião que deveriam ser reprovados os que (desconheço em que coisas) tinham escrúpulos se se suscitava um qualquer movimento da carne até com a própria mãe satisfazer a sua luxúria; mas soube de alguém que Teives estava nessa reunião. Sobre da Costa disse que recebia ateus e luteranos na sua casa e convívio; e de um médico de confiança soube que um nobre Basco dissera num aposento do dito De Costa (ignora no entanto se ele aí estava) “Dizem alguns que os demónios existem: pois, se aqui estão, intimo-os a que venham e me levem”. E depois disse: “Vêem que não há demónios?” Depois como num banquete estivessem esse nobre e Teives com outros de que se suspeitava serem luteranos, e a conversa incidisse sobre aqueles que no nosso tempo dão a vida por Cristo (como julga) aquele nobre disse palavras deste modo: são loucos os que enfrentam a morte por um Cristo qualquer, foi a afirmação blasfema que fez. Então alguns falaram em altas vozes chamando-o de diabo, mas outros, nomeadamente Costa e Teives calaram-se; e, indo-se embora outros, eles os dois ficaram, o que soube do referido médico que em seguida foi embora. Quando o dito médico saía, entrava [Guilherme de] Guérente. Sobre Guérente disse que dele ouviu, quando outrora um professor da Faculdade de Artes na mesma Universidade de Bordéus morreu na fogueira por ter aderido ao erro luterano, considerava-o digno de louvor, por ele suportar o fogo paciente e calmamente e disse que conheceu todos os que mencionou por ter sido Regente no dito Colégio por cinco anos, sendo eles também Regentes e nessa altura os teve por suspeitos, mas depois que saiu do Colégio soube o que agora contou. Interrogado sobre os costumes, disse que todos são seus amigos.
Disse ainda a testemunha anterior que no Colégio referido que há em Coimbra, ensina um certo António Lusitano que foi criado do Mestre principal André de Gouveia. Esse António de vez em quando vacilava e por vezes aceitava aos católicos algo de luterano; na sua opinião deveria ser confirmado na Fé.
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Item o doutor mestre Álvaro da Fonseca doutor em a santa teologia, Português, testemunha jurado por suas ordens e perguntado pelo Referimento e assim pelo contido em a dita comissão, disse que outra coisa não sabia somente que Diogo de Teives conversava nesta vila de Paris com um São Martin Normando o qual foi aqui preso por herege e assim ouviu que o dito de Teives sentia mal da fé e assim o Buquenano Escocês e al no disse. Do costume (disse) que é amigo de todos.
ffr. Eduardus Alvaro da Brás d’Alvide
Presentatus Fonseca
aos vinte e um de Dezembro perguntámos a testemunha seguinte
Mestre Sebastião Rodrigues, Português estante ora nesta universidade de Paris testemunha jurado por suas ordens, perguntado pelo contido na provisão atrás e assim pelo Referimento de frei João Pinheiro disse ele testemunha que em particular não sabe coisa alguma de nenhuma das pessoas contidas na dita provisão, somente em comum ouviu dizer a muitas pessoas que não lhes queriam mal, que os Portugueses, Franceses e Escoceses que estiveram no Colégio de Bordéus e ora estão em a Universidade de Coimbra sentiam mal da fé pelo qual ele testemunha se retirara de sua conversação estando os sobreditos em esta vila de Paris e que das pessoas a que assim o ouviu não se lembra salvo dos sobrinhos do Bispo de Tânger especialmente Diogo Mendes e Miguel de Cabedo e Antonio de Cabedo e ao padre frei João Pinheiro testemunha atrás por haverem estado em Bordéus com os sobreditos no Colégio. E outrossim ouviu dizer que Buquenano Escocês fugira de Escócia por herege. Perguntado pelo costume disse nada.
ffr. Eduardus Sebastianus Brás d’Alvide
Presentatus Rodoricus
E tendo a testemunha acima assinado seu testemunho disse que lhe lembrara que indo desta vila de Paris frei Jorge de Santiago e com ele Antonio de Melo e Francisco Foreiro e outros que com ele iam para se fazerem Religiosos como ora são da Ordem de São Domingos, passaram por Bordéus e um ou dois deles lhes escreveram que passaram muitas coisas acerca da Religião com os sobreditos que estavam no Colégio sentindo deles que sentiam mal da fé como mais larga e particularmente se poderá saber pelos ditos Religiosos.
ffr. Eduardus Sebastianus Brás d’Alvide
Presentatus Rodoricus
E com os ditos atrás cerrei a dita inquirição para a enviar ao dito senhor cardeal Infante.
Brás d’Alvide
Aos XXVII dias de Junho de M D L anos, em Lisboa em Lisboa, eu notário fiz estes autos conclusos a sua Alteza, Antonio Rodrigues o escrevi.
Vistas as culpas que per estes autos se mostram ter contra a nossa santa Fé mestre João da Costa e Diogo Teives e mestre Jorge Buquenano, mandamos que sejam presos ao parecer dos abaixo assinados.
O Cardeal Infante
O Bispo do Porto O Bispo de Angra
Yº Monteiro, d.j.
Ao primeiro dia do mês d’Agosto de M D L anos em Lisboa foi dado a mim notário estes papéis com este despacho de sua Alteza para se cumprir como se nele contem. Antonio Rodrigues o escrevi.
Outras pessoas, apontadas por simpatias com o luteranismo, na mesma altura:
MARCIAL DE GOUVEIA (Processo n.º 2882)
Marcial de Gouveia foi o filho mais velho de Afonso Lopes de Ayala e de Inês de Gouveia, devendo ter nascido por volta de 1496. Foi para Paris com seu tio Diogo de Gouveia Senior. Estudou cinco anos Humanidades e ficou mestre em Artes. Não estudou mais. Por volta de 1524, foi para Lyon, onde ensinou durante cinco anos. Viajou para Itália, onde esteve durante dois ou três anos, passando por Pádua, Sena e Nápoles. Regressou a França e na cidade de Tulette foi tutor de meninos fidalgos por quatro anos. Foi depois para Paris onde esteve um ano e foi depois para a Universidade de Poitiers, onde ficou por três anos. Aqui, o embaixador português, Rui Fernandes de Almada convenceu-o a regressar a Portugal. Estas andanças conta-as ele no seu processo e devem ser vistas com alguma reserva. É um erro comum acreditar em tudo o que os presos da Inquisição dizem.
Diz ele no processo que foi amigo de Melanchthon e que visitou Erasmo e este o recebeu muito bem. Mas diz que visitou Erasmo em Basileia o que apontaria para 1535, quando Erasmo já estava muito doente e não recebia quase ninguém. Como diz M. Bataillon, o mais provável é que ele baralhe as datas e os locais e tenha encontrado Erasmo em Friburgo. Deverá tê-lo feito em 1530, pois em 2 de Agosto de 1530, Erasmo escreve uma carta a Melanchthon (Allen, 2358) dizendo ter recebido um jovem português, que trazia uma carta de recomendação do Reformador (que ainda o não era). Marcial de Gouveia deveria vir de Ausburgo, onde Melanchthon se encontrava. Deverão ter conversado muito tempo, pois Marcial transmitiu muita informação a Erasmo. Mas Erasmo não deverá ter simpatizado muito com ele, pois não registou o nome. Diz Marcial no processo que deu alguns epigramas por ele compostos e que Erasmo os louvou muito, prometendo enviá-los a Guillielmus Budaeus, seu conhecido e amigo.
Outro assunto de conversa, foi a dedicatória que Erasmo fizera a D. João III das Chrysostomi Lucubrationes (Allen, 1800), de que não resultara qualquer dádiva do Rei. Marcial deve ter explicado a Erasmo que este fizera mal em acusar o Rei de manter o monopólio das especiarias da Índia. Na carta de 29-8-1530 a Erasmo Schets (Allen 2370), lá diz Erasmo “Lusitanus quidam iuuvenis egregius fuit apud me”. Este distinto jovem português não é Damião de Góis, porque ainda não tinha contactado com ele; Martim Ferreira, idem (e este não era “egregius”, nem poderia sê-lo porque não chegou ao contacto pessoal com Erasmo; escreveu-lhe cartas que ele não guardou); terá de ser então Marcial de Gouveia. Erasmo culpa o seu informador (quase certamente, Rui Fernandes de Almada) de lhe ter dado informações erradas.
Alguns autores negam, argumentando com o depoimento na Inquisição, que Marcial fosse o “distinto jovem português”, referido por Erasmo. Mas a verdade é que não existe outro “candidato” e Erasmo não era assim tão generoso no seu relacionamento, para ter encontrado muitos mais portugueses.
Chegado a Portugal, Marcial ficou à espera de uma benesse real, um lugar de professor na Universidade, mas nada surgia. Foi então ensinar para Braga, a convite do Arcebispo D. Diogo da Silva, sucedendo a João Vaseu que tinha vindo para Évora. E assim esteve durante quatro anos. Falecido D. Diogo, sucedeu-lhe D. Manuel de Sousa, que cortou o ordenado de Marçal em trinta mil réis. Este aborrecido deixou Braga e veio para o Porto, terra da esposa. Ensinou ali por um ano e veio depois para Coimbra.
O homem, porém, tinha mau feitio e não tardou a criar inimigos por todo o lado, entre professores e alunos. O Bispo Conde, D. Frei João Soares não esteve com meias medidas: chamou dois estudantes Cristóvão Paz e João Pais, que depuseram contra ele, mandou Marcial de Gouveia vir ao Paço e deu-lhe ordem de prisão. Marcial dizia que o Bispo lhe queria mal por nunca o ter ido cumprimentar. Os Inquisidores, porém, atribuíram-lhe outras faltas, nomeadamente a de não deixar ir à Igreja sua mulher e sua sogra.
O processo (n.º 2882) foi rápido. A queixa do Bispo está datada de 11 de Julho de 1551, em 6 de Outubro abjurou em forma e a 19 de Janeiro de 1552, foi autorizado pelo Cardeal Infante a regressar a Coimbra.
D. LOPO DE ALMEIDA (Processo n.º 2183)
Lopo de Almeida nasceu em 1524 e faleceu em 1584, em Madrid. Era filho de D. António de Almeida, Contador-Mor do Reino e de D. Maria Pais Lem ou Leme, e neto do 2.º Conde de Abrantes, D. João de Almeida. Moço fidalgo, não tinha porém fortuna própria. Por isso, abraçou a carreira do sacerdócio, disso esperando tomar partido. Foi estudar para Coimbra, onde tinha quem o protegesse:
- seu tio Garcia de Almeida, filho ilegítimo do 2.º Conde de Abrantes, Reitor da Universidade;
- Bispo Conde de Coimbra, D. Jorge de Almeida, seu tio Avô, sendo irmão do 2.º Conde de Abrantes e do Vice-Rei da Índia, D. Francisco de Almeida.
Este último fê-lo em Novembro de 1537 Cónego da Sé de Coimbra, cargo bastante rendoso, e não muito trabalhoso.
Entretanto recebeu as ordens de sub-diácono (o que já obrigava à leitura diária do breviário).
Em 25 de Julho de 1543, faleceu o Bispo Conde e Lopo de Almeida deverá ter deixado de se sentir bem em Coimbra. Em Março de 1544 vendeu a conezia a António Carrero, ficando este a pagar-lhe uma renda anual de 200 cruzados. Decidiu depois partir para França com uma bolsa de estudo paga pela Corte. Foi para o Colégio de Guyenne, onde estudou durante ano e meio como aluno interno.
Entre os seus colegas, Jerónimo Monteiro e Pero Luz Monteiro. Este último foi dizer coisas dele a Fr. João Pinheiro, o qual arranjou maneira de o incluir (a Lopo de Almeida) na sua denúncia à Inquisição de 22 de Novembro de 1549, antes transcrita.
Em meados de 1546, uma epidemia de peste em Bordéus obrigou a fechar o Colégio durante uns 7 ou 8 meses. Lopo de Almeia e Jerónimo Monteiro refugiaram-se com outros estudantes não portugueses em Cadillac em casa do Príncipe de Candale, aliás, pai de dois colegas deles. Esteve lá ao todo um ano, por duas vezes.
Em Março de 1547 abandonou o Colégio e foi para Paris, onde se matriculou na Faculdade de Cânones. Ouviu lições de Grego e estudou Matemática em casa com um explicador privado.
Em Outubro de 1548 foi com Pero Luz Monteiro à Flandres, acompanhado por um criado francês chamado Gilbert. Quinze dias durou o passeio. Regressaram depois a Paris com um colega chamado Francisco de Figueiredo.
Em Novembro de 1548, partiu para Portugal . Demorou-se, porém, no caminho para visitar fidalgos franceses seus conhecidos e só deve ter chegado a Portugal nos primeiros meses de 1550. Vinha carregado de dívidas que totalizavam 600 cruzados, e que possivelmente a família ajudou a pagar.
Entretanto, foram presos no início de Agosto de 1550 os três professores de Coimbra, Buchanan, João da Costa e Diogo de Teive. Para depor foi ouvido em 4 de Setembro seguinte, Pero Luz Monteiro, que não poupou Lopo de Almeida; o seu depoimento foi transcrito para o livro das denúncias, emitida ordem de prisão e o fidalgo preso a 10 de Setembro.
O processo tem depoimentos de apenas três testemunhas: Pero Luz Monteiro, Álvaro da Fonseca e Jerónimo Monteiro.
O processo foi muito rápido. Foi convocado em 6 de Dezembro de 1550 à sala de despacho para lhe lerem a sentença, excepcionalmente subscrita pelo próprio Inquisidor-Mor.
Foi condenado a cárcere perpétuo… mas só lá ficou três dias. Foi mandado em penitência para o Mosteiro de S. Domingos, mas passados poucos dias passou em 2 de Janeiro de 1551 para o Convento de Benfica. Aqui conseguiu um regime especial de ir dormir fora, mediante uma caução de um fiador, Lucas Giraldi. Em 21 de Agosto do mesmo ano, foi amnistiado da penitência ainda por cumprir.
Na sentença, foi condenado à deposição das ordens clericais, mas a verdade é que mais tarde teve ordens de diácono e foi ordenado sacerdote.
JERÓNIMO MONTEIRO
Era amigo desde Coimbra de Lopo de Almeida, mais novo uns dois anos que ele. Frequentou o Colégio de Guyenne ao mesmo tempo que ele e foi depois para Paris frequentar o Colégio de Santa Bárbara.
Regressou a Portugal com André de Gouveia e os outros professores e foi frequentar o Colégio das Artes em Coimbra.
Depôs no processo de Diogo de Teive e não se coibiu de “entalar” também o amigo Lopo de Almeida que à data do depoimento (18 de Setembro de 1550) já estava preso.
Depois, reflectiu um pedaço e concluiu que a sua maneira de pensar não era muito diferente da do seu amigo Lopo de Almeida. Por isso, em 13 de Março de 1551, apresentou-se à Inquisição pedindo uma “Reconciliação”. Naquela altura, as reconciliações não eram instauradas como processos e a sua figura em quatro folhas do Livro da Reconciliações (fls. 50 r. a 51 v. ou pags. 109 a 112 do software aqui). Está transcrita no livro indicado de J.S. da Silva Dias (pag. 521, ss.). Fez bem, porque, mais tarde, em 24 de Abril de 1566, um seu amigo “da onça”, de que pouco que sabe, Rui Lopes de Basto, foi denunciá-lo à Inquisição de Coimbra. E diz porque o faz: “…E que o que nesta sua denunciação toca a D. Lopo somente tem já testemunhado na Santa Inquisição de Lisboa, como se lá pode ver, e a isso se refere. E porém do que lhe parecia e parece agora deste Jerónimo Monteiro, o não disse senão agora, por o ver tomar depois ordens e se fazer clérigo e viver bem e ao presente lhe dizem que está em uma sua Igreja, não sabe onde é, e que ele viveu com o Conde de Mira, que pode ser que ela lha daria” (em J.S. da Silva Dias, pag. 524). Isto é, deveria ser por pura inveja. Anote-se também que a denúncia mencionada feita contra D. Lopo de Almeida não aparece em parte alguma.
Mas a denúncia de Rui Lopes de Basto foi perfeitamente inofensiva, porque Jerónimo Monteiro estava protegido pela “Reconciliação” efectuada quinze anos antes.
Para definir melhor o personagem, transcrevo uma contradita de Mestre João da Costa, que se encontra a fls. 88 v do seu processo n.º 9510:
Jerónimo Monteiro me quer mal porque muitas vezes o repreendi que não continuava nas suas lições e se ausentava muitas vezes do colégio sem minha licença, que é contra os estatutos e leis do colégio. Veio em minha companhia até Salamanca e daí o mandei para Portugal e lhe dei uma carta para El-Rei nosso senhor; mandei também Lucena com ele e Estêvão Vidal porque nos havíamos de deter às Endoenças em Braga e alguns dias em Salamanca.
Este Monteiro pelo caminho comprava as mais das vezes o comer e comia connosco e sabe muito bem que nunca comemos carne senão em Salamanca e é esta a maior falsidade do mundo quem quer que a diz. Dom Jerónimo não veio em minha companhia, mas ficou em Burgos; esta testemunha quem quer que é se contraria a si mesmo, porque diz que sempre comia carne e mais abaixo diz que algumas vezes comia peixe. Não sei que diga de tão grande falsidade, senão que V. Mercês se informem na verdade dos que vieram todo o caminho em minha companhia.
Este Monteiro me quer também mal porque em Burgos tive umas razões com ele sobre o dinheiro que despendia e a conta que dava, que me não parecia bem e ele disse que de tal homem como ele não se havia de presumir tal rapaziatas.
a)Mestre António Mendes, a) Diogo de Teive, a) António Portano.
TEXTOS CONSULTADOS
Mário Brandão, O processo na inquisição de mestre João de Costa, Universidade de Coimbra, 1944.
Mário Brandão, O processo na inquisição de mestre Diogo de Teive, Universidade de Coimbra, 1943.
Mário Brandão, O Colégio das Artes, Universidade de Coimbra, 1924, 2 vols.
Mário Brandão, A Inquisição e os professores do Colégio das Artes, Universidade de Coimbra, 1948, 2 vols.
Mário Brandão, D. Lopo de Almeida e a Universidade, Universidade de Coimbra, 1990
Mário Brandão, Marcial de Gouveia und seine beziehungen zu Erasmus und Melanchthon, in Estudos Vários, vol. I, Universidade de Coimbra, 1974, pags. 97-122
Online: http://books.google.com
Mário Brandão, D. Lopo de Almeida e a Universidade, Universidade de Coimbra, 1990.
António Baião, O processo desconhecido da Inquisição contra o lente do Colégio das Artes, Mestre Marcial de Gouveia, in Anais da Academia Portuguesa de História, vol. IX, 1945, pags. 9-45
Ineditos goesianos, colligidos e annotados por Guilherme J. C. Henriques. - Lisboa : Typ. de Vicente da Silva, 1896-1898. - 2 vol. : il. ; 22 cm. - 1º vol.: Documentos. - XXX, 212 p ; 2º vol.: O processo na Inquisição : documentos avulsos, notas. - XXVI, 262 p. :
Marcel Bataillon, Erasme et la Cour de Portugal, in Études sur le Portugal au temps de l'Humanisme, Universidade de Coimbra, 1952, pags. 49-100
Online: http://books.google.com
Marcel Bataillon, Sur André de Gouveia, Principal du Collège de Guyenne, O INSTITUTO, vol LXXVIII, 1929, pgs. 1 a 19.
Online : https://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/IndiceInstituto.htm
Desidério Erasmo (1469-1536), Opus Epistolarum Des. Erasmi, denuo recognitum et auctum per P. S. Allen, Oxonii, in Typographeo Clarendoniano, imp. 1992, 12 vols.
Online: www.archive.org (Edição inicial, 1906 e ss.)
Aitken, James Macrae, The trial of George Buchanan before the Lisbon Inquisition, including the text of Buchanan's defences along with a translation and commentary, Edinburgh, Oliver and Boyd, 1939
Brown, Peter Hume, 1849-1918, George Buchanan and the Inquisition, in Scottish Review, 1893, April, 1.st semester, pp. 296-315
Online: www.archive.org
Guilherme João Carlos Henriques, George Buchanan in the Lisbon inquisition : the records of his trial with a translation thereof into English, fac-simile of the papers and an introduction, Lisboa, Typ. Empr. História de Portugal, 1906, 45-Rua Ivens-47, 1906,
Online: http://www.archive.org/details/buchananin00buchuoft
Guilherme J. C. Henriques, «Buchanan na Inquisição», Archivo Historico Portuguez, vol. 4, Lisboa, 1906, pp. 241-281
Online: www.archive.org
António José Teixeira, Documentos para a história dos Jesuítas em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1899
Online: www.archive.org
Eduardo Pessoa Domingos, Um humanista português do sec. XVI : Marcial de Gouveia. Lisboa : [s.n.], 1962. - 101 f. ; Tese de licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1962
Andreas Schottus, Hispaniae Bibliotheca sev de Academiis ac Bibliothecis. Francofurti: Apud Claudium Marnium haeredes Ioan. Aubrii. 1608.
Online: http://books.google.com (Págs. 475)
Quicherat, J., Histoire de Sainte-Barbe : collége, communauté, institution, 3 vols. Paris, Hachette, 1860, 1862, 1864
Online: http://books.google.com
Ernest Gaullieux, Histoire du collège de Guyenne d'après un grand nombre de documents inédits, Paris Sandoz et Fischbacher, éditeurs - 33, Rue de Seine et rue des Saints-Peres, - Paris
Online: http://books.google.com
Essais de Montaigne, Tome II, A Londres, chez Jean Nourse et Vaillant, 1769
Online: http://books.google.com
José Sebastião da Silva Dias (1916-1994), Correntes de sentimento religioso em Portugal: séculos XVI a XVIII, 2 vols. Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1960.
Santa Casa da Misericórdia do Porto
http://www.scmp.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=18968
ANDRE DE GOUVEA, natural da Cidade de Beja na Provincia do Alentejo, filho de Affonso Lopes de Ayala Fidalgo Castelhano, e de Ignez de Gouvea filha de Antão de Gouvea Cavalleiro professo da Ordem de Christo, irmão do insigne Jurisconsulto Antonio de Gouvea, de quem em seu lugar se fará larga menção. Sendo chamado por seu Tio Diogo de Gouvea Regente do Collegio de Santa Barbara de Pariz para se instruir nas sciencias Sagradas, e profanas, como era dotado de agudo engenho, sahio brevemente consumado assim na Oratoria, como na Poetica. Com a mesma promptidão penetrou os segredos da Filosofia, e os mysterios da Theologia servindo de assombro aos Mestres, e enveja aos Condiscipulos, merecendo ser eleito por voto de todos Lente de tão sublimes faculdades para com ellas instruir aos estudiosos, que de toda Europa concorriam ao Collegio Barbarano, ao qual não sómente illustrou com a doutrina, mas governou com prudencia substituindo a seu Tio no lugar de Regente pelo espaço de alguns annos. A opinião, que corria da sua profunda Sabedoria moveu a Universidade de Bordeux para o convidar com generosos partidos a ser seu Mestre, o que executou no anno de 1534, sendo Reytor do Collegio de Guienne. Tendo ennobrecido duas tão famosas Universidades, era justo, que viesse illustrar a de Coimbra, para cujo efeito meditando ElRey D. João o III. novamente restaurar esta Universidade, e sendo informado do seu grande talento lhe cometeo à sua eleyção os Mestres, quehaviam ensinar nella as linguas Latina, Grega, e Hebraica; e as faculdades de Rhetorica, e Filosofia. Obedeceo promptamente à ordem do seu Soberano, e chegando a Portugal no anno de 1547, foy tão acertada a eleyção dos Mestres, que fez de varias naçoens para a nova Universidade, que brevemente competio com as mais celebres da Europa, sendo venerado depois da Magestade delRey D. João o III. como segundo restaurador deste Atheneo da Lusitania, onde com geral sentimento de todos os seus alumnos morreo em 9. de Junho do anno (não de 1558‑ como escreve Andre Scoto in Bib. Hispan.) mas de 1548. como diz Bayle Diccion. Critiq. Tom. 2. pag. mihi 579. e o affirma como testemunha ocular Belchior Belliago hum dos famosos Mestres, que conduziu de França, dizendo na Oração, que recitou em a Universidade de Coimbra no 1. de Outubro de 1548 De Disciplinarum Omnium studiis ad Universam Acad. Conimb.estas palavras Jussu regis volens juventutem institui, elegit viros qui rectissime eamdem juventutem optimis disciplinis imbuerent, quorum ducto nostri homines cursum omnium disciplinarum conficerent: hunc nobis tristia, & importuna fata hac ultima aestate eripuerunt, & illius morte magnum litterarum ornamentum abstulerunt. Está sepultado no Real Convento de Santa Cruz de Coimbra, em cujo tumulo tem gravado este Epitafio:
Julia pax genuit: rapuit Conimbrica corpus:
Excoluit mentem Gallia: Olympus habet.
O seu nome exaltam Busin in Praefat. ad Epistol. Gelidae.Petr. Angel. Sper. deProfes. Gramat.lib. 4. fol. 352. e 458. Elias Vinet. in Epist. ad And. Scotum. Republic. Portug. fol. 364. Joan. Soar. de Brito in Theatr. Lusit. Litterat. lit. A. n. 40. Mariz Dial. de Var. Hist.Dial 5. cap. 3. Jacob. Menet. Vasconc. in Vit. Sua.onde lhe chamaVirum Gravissimu. Scot. inBib. His.Tom. 3. Class. 2. pag. 475. Theologicum fuisse Praesbyterum concionatorem tam liberalem, quam doctorum hominum fautorem. et Classe 3. pag. 619. in Elog. Gelid. Virum de universa Aquitania, & litteris, ut siquis alius, optime meritum, pium, doctum, et ad regendam juventutem omnino totum.
Compoz
‑Orationes habitae in Collegio Barbarano M. S.
As quaes erão escritas com a pureza, e magestade do estilo de Cicero, e muitas delas se conservam com grande estimação no poder dos Eruditos.
MARÇAL DE GOUVEA, natural da Cidade de Beja em a Provincia Transtagana, filho de Affonso Lopes de Ayala, Fidalgo Castelhano, e de Ignez de Gouvea filha de Antão de Gouvea Cavalleiro professo da Ordem de Christo, e irmão mais velho de André de Gouvea Mestre, e Regente no Collegio de Santa Barbara de Pariz, e depois Principal do Collegio das Artes em a Universidade de Coimbra, e de Antonio de Gouvea celebre Jurisconsulto, que illustrou as Universidades de Tolosa, Cahors, Granoble, e ultimamente a de Montdevis em o Ducado de Saboya, com o seu magisterio dos quaes ambos se fez larga memoria em seus lugares. Acompanhado destes dous irmãos partio para Pariz, e no Collegio de Santa Barbara de que era Reitor seu Tio Diogo de Gouvea aprendeo letras humanas em que sahio tão eminente, que as dictou na Cadeira de Prima em a Universidade de Poictou, donde foy chamado por ElRey D. João III. para a de Coimbra. Foy insigne Poeta Latino seguindo por exemplar dos seus versos a Ovidio assim na suavidade do metro, como na discrição dos pensamentos. Para argumento da facilidade da sua Musa he celebrado aquelle epigramma, que extemporaniamente compoz em Pariz, assistindo em hum banquete, onde como observasse no seu copo com que brindava aos comensaes mais copia de agua, que de vinho rompeo nestas metricas vozes.
In cratere meo Thetis est conjuncta Liaeo Est Dea juncta Deo, sed Dea mayor eo.
Do seu Nome fazem merecida estimação, Nicol. Anton.Bib. Hisp. Tom. 2. pag. 72. col. I. Cadab. Grav. de Obit. Reg. Joannis "na Dedic. á Rainha Dona Catherina ornatissum virum, Hispaniensium latinorum principem. Joan. Soar. de Brito Theatr. Lusit. Litter. lit. M. n. 6 K. Poeticae studiosus maxime fuit sibi Ovidium imprimis imitandum proposuit Petr. Angelus Spera de Professorib. Gram. lib. 4. fol. 289. Taxand. Cathal. Clar. Hisp. Script. Draud. Bib. Classic. Petrus Sanches Epist. ad Ignat. Moral. fallando de seu irmão Antonio de Gouvea o louva na fórma seguinte por ter o nome do Poeta Marcial natural de Biscaya
Nec tibi fraterno conjunctum sanguine vatem
Subticeam qui nomen habet, quo Bilbilis alta
Indidit arguto mordacis fellis alumno.
Unguibus arrosis Umbro jam Vate relicto
Cynthia mirari, & vellet fortasss amare.
Compoz
Institutiones in octo Orationis partes. Parisiis. 1534. 8.
Carmina, Elegiae, Epistolae. M. S.
Estas obras mostrou o Author em Poictou a Elias Vineto de nação Francez, que foy Mestre da sexta Classe de Humanidades em a Universidade de Coimbra, como refere na Carta escrita a Andr Scoto que está impressa na sua Bib. Hisp.pag. 475.
da: Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica: na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuserão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até ao tempo presente, por Diogo Barbosa Machado (1682-1772), 4 vols., 1741.