12-09-2014
A Rainha Jinga, por Fr. António de Gaeta
Há bastantes documentos coevos que permitem conhecer a história da Rainha Jinga:
- Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, pelo Padre Pe. João António Cavazzi de Montecuccolo, (1622-1692);
- A História Geral das Guerras Angolanas, de António de Oliveira de Cadornega (1623-1690);
- As Memórias de Fernão de Sousa (em Angola de 1624 a 1630), nos dois volumes das Fontes para a História de Angola do século XVII, publicadas por Beatrix Heintze.
- Os documentos holandeses, nomeadamente a Descrição de Olfert Dapper (1639-1689)
No entanto, o documento mais importante é para mim o livro do Padre António de Gaeta (1615 – 1662), que conviveu com a Rainha durante pelo menos sete anos. Era conhecido em Angola como Fr. António Romano, para esconder que, sendo de Gaeta, no Reino de Nápoles, era súbdito espanhol e estaria numa situação ilegal. De facto, após a Restauração, os capuchinhos espanhóis estavam proibidos de ir para Angola. Enviou ele para Itália várias Relações sobre a missão em Matamba, mas faleceu novo, aos 47 anos. Dessas Relações coligiu o livro sobre a Rainha Jinga, o P.e Francesco Maria Gioia, de Nápoles (faleceu em 1670). O livro está escrito na 1.ª pessoa que é Antonio de Gaeta. Quase no final, continua na 1.ª pessoa mas aí é já o P.e Francesco.
A vida do Padre António de Gaeta, António Romano ou ainda Antonio Laudati-Carafa da Gaeta, está descrita no livro (de que traduzi aqui os Capítulos XV e XVI) de pgs. 450 a 465. Em 1655, Fr. António Romano foi com o Prefeito da Missão P.e Serafim de Cortona, fundar a missão de Matamba. Em 1662, foi nomeado Prefeito das Missões do Congo e Matamba, mas só ocupou o lugar uns quatro meses pois faleceu em Luanda, a 9 ou 10 de Julho de 1662.
A primeira página do livro tem o título, que é do seguinte teor:
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LA MARAVIGLIOSA CONVERSIONE ALLA SANTA FEDE DI CRISTO DELLA REGINA SINGA, E DEL SVO REGNO DI MATAMBA NELL'AFRICA MERIDIONALE Descritta con historico stile dal P.F. Francesco Maria Gioia da Napoli, detto da Posilipo, Predicator Capuccino, e Lettore vn tempo di Sagra Teologia. E cauata da vna Relatione di là mandata dal P.F. Antonio da Gaeta Predicator parimente Capuccino della Prouintia di Napoli, Missionario Apostolico, e Prefetto Generale delle Missioni ne' Regni dell'Africa, e di detta Regina da lui convertita Nella quale, oltre gli esempi d'Historie sagre, e profane, si contengono ancora molti curiosi, e degni auuenimenti, con vn breue racconto nell'vltimo capitolo del Libro della vita, e morte del medesimo Padre
In Napoli, Per Giacinto Passaro, 1669
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O exemplar da BNP (em muito mau estado) tem esta anotação à mão:
Este livro me deu o P.e Doutor Manuel Caetano de Souza, que veio de Roma no mês de Março de 1713. a) D. José Barboza.
Cap. XV
(paginas 173 a 199)
Do modo como a Rainha Jinga se regulava e regia a si mesma, organizava a Corte e governava o Reino.
O verdadeiro Rei, diz S. Isidoro, é aquele que dominando e refreando as suas paixões, antes de reger os outros, rege e regula a si mesmo, não se desviando do recto caminho da razão e da justiça, satisfazendo a Deus, não ofendendo o próximo, e procurando que outros façam o mesmo. O Rei que faz o contrário, e não corresponde ao nome e obrigação que tem, não pode, não deve chamar-se Rei, nem dos outros, nem de si mesmo, pois não sabe reger nem a si nem aos outros. S. Agostinho, indo mais além, afirma que esse tal não só não merece o título de Rei, mas sim o de servo e escravo de quantos vícios e paixões o dominam. Assim, Salústio aconselhou César no início do seu Império, que, se ele queria governar bem a República, começasse por moderar e ordenar antes de quaisquer outros a si mesmo e à sua corte, pois, como ensinam os Sábios, toda a filosofia moral divide-se em três partes, que devem ser necessariamente sabidas e praticadas por todos os Príncipes do mundo: Ética, Economia e Política. A primeira ensina o modo de saber reger com virtude e governar-se a si mesmo; a segunda a arte de dirigir bem e com prudência, a família e os afazeres domésticos; e a terceira compreende as regras de bem governar as Cidades, os Estados, os Reinos, os Impérios, as Monarquias, e as Repúblicas; com uma diferença, que a ciência económica, procura necessariamente a Política e a Política não pode estar sem a Economia, de tal modo que o Reino é como uma família e casa grande, e a casa pode considerar-se um pequeno Reino. A Ética, por sua vez, tem necessidade de ambas as outras, da Política e da Economia, pois diz respeito ao homem, que é um Microcosmo, isto é, um Mundo inteiro. Pouca esperança há, pior, só se pode esperar o mal do Príncipe que, pretendendo ser bom na Política e no governo dos Estados, cheio de vícios, não sabe governar-se e moderar a si mesmo, com a Ética, e na Economia se mostra escandaloso aos seus familiares. Eram estas três ciências e virtudes morais que o Rei David, pedia instantemente a Deus, para bem saber reger-se a si mesmo, organizar a Corte e governar o Reino. Bonitatem, et disciplinam, et scientiam doce me. (Salmos, 118, 66). É o que se deseja num Príncipe e deve ter um bom Rei, Bondade, Prudência e Justiça; e estas três virtudes, correspondentes às três partes acima mencionadas, serão por ele possuídas, quando se mostrar virtuoso na condução da sua vida, prudente em regular a família e justo no governo do Reino e dos seus Povos.
Posto isto, contarei o modo que tinha a Rainha Jinga para se regular a si mesma, governar a sua casa e reger o seu Reino, segundo estas três ordens de vida, ética, económica e política; de que se saberá facilmente quem ela era antes de se converter ao culto do verdadeiro Deus. Começando pela Ética, direi que a sua vida não foi nada diferente da da Rainha Cleópatra, dedicada toda aos prazeres dos sentidos, a voluptuosidades, a luxos e a doçuras; andava com o corpo bem cuidado, limpo e atilado; vestia tecidos finíssimos da terra que eram trabalhados artificiosamente por Mestres só para o serviço da sua pessoa, sendo-lhes proibido vendê-los a outrem sob pena de serem severamente castigados, bem como quem lhos comprasse. Nos seus vestidos usava também ricos panos de seda, de veludo, e de brocado, vindos da Europa, e cada dia mudava de roupa. Usava uma grande quantidade de odores e de perfumes, aplicava muitas vezes preciosos unguentos. Todos os dias se aperaltava e permanecia um bom pedaço de tempo nos banhos. Tinha sempre na cabeça a coroa real, e as mãos, os pés e os braços, carregados de pulseiras de ouro, de prata, de cobre, de ferro, de corais e de vidros de cores variadas. Andava descalça de acordo com o costume dos pretos daquelas terras. A sua comida era normalmente constituída por galinhas, cabritos e carnes selvagens; não comia muito, mas bebia bastante e a toda a hora, vinho puro, espirituoso, vindo das Ilhas Canárias, um barril do qual custa um escravo, pois quase não correm em todos os Reinos da Etiópia e da África Oriental, moedas de ouro, nem de prata, nem de cobre, mas tudo o que se vende de valor, levado seja das Índias, seja da Europa, tudo se compra com a troca e permuta de escravos. Sempre que ela bebia, tocavam-se diversos instrumentos musicais, com tambores e trombetas, feitas de dentes de elefantes, que, fora do seu real Palácio se ouviam muito ao longe, de tal maneira que, quem quisesse dar-se ao trabalho de contar o número das bebidas, chegaria muitas vezes a contar vinte ou trinta, especialmente quando ela tinha o ânimo alegre e o vinho, por ser generoso, lhe agradava especialmente. Ela, porém, utilizava copos muito pequenos e nunca se viu que caísse fora de si, por mais vinho que bebesse. Também era seu ordinário costume sorver tabaco a toda a hora. Gostava de cantos, de sons e de bailes, propriedade inata dos pretos que, ocupados de dia e de noite nestes exercícios, não se cansam. Para isso, tinha muitos músicos que a todo o tempo tocavam e cantavam na sua presença e com os seus sons e cantigas, ela muitas vezes adormecia e caía no sono, tanto de dia como de noite. Gostava muito de jogar e nisso gastava muitas horas e, quando vencia, dava aos próprios que tinham perdido, aquilo que lhes havia ganho ao jogo; era muito liberal a dar e conceder graças e por isso era particularmente amada e fielmente servida pelos seus vassalos e cortesãos, ainda que no resto das coisas da governação, fossem por ela tiranizados; pois que a liberalidade do Príncipe muda-lhe o nome de tirano para o de Pai; e a avareza do mesmo, o de Príncipe e de Pai, no de tirano. O dar, diz Nazianzeno, é a maior tirania, a maior força e violência que um Príncipe pode usar, para atrair os ânimos dos súbditos ao seu afecto e para os tornar a si sujeitos, benévolos e afeiçoados. Por último, tinha esta Rainha grande prazer e deleite na caça, em que muitas vezes se exercitava com muitos cães e caçadores que tinha para o efeito. Não usava de qualquer freio no moderar e travar as suas paixões, e era soberba, altaneira e irascível, não podendo sofrer as injúrias, nem perdoar as ofensas, respondendo a essas com as vinganças mais cruéis. Embora, segundo ela me disse (e se nisso me falou verdade) nunca se vingara de ofensa a ela feita às claras, mas oculta a todos os outros; mas se a ofensa era pública, vingava-se e punia-a severamente. Na concupiscência e no vício da carne, foi lasciva em extremo, desonesta e muito ciumenta dos seus amantes de que estava muito bem provida, como se dirá no Capítulo seguinte. Em suma, era toda dedicada a luxos, a prazeres e a deleites dos sentidos, gastando a sua vida em festas, em jogos e em dar-se boa vida; e porque as suas receitas não chegavam para as despesas exorbitantes que para isso fazia, assaltava muitas vezes com o seu exército, que tinha sempre em pé de guerra, as terras e domínios de outros Príncipes confinantes, roubando, despojando, e depredando os bens dos outros, tal qual fazem os ladrões, os assassinos e os corsários no mar.
Disse com sabedoria no Senado um sábio gentio, que desafortunado é o homem que, dedicado aos prazeres de Vénus e do ventre, vive imerso na crápula e na desonestidade e por isso deve suscitar compaixão e não inveja, porque não sente gosto nem recebe prazer que não pague com mil lágrimas e dores e o tributo de mil misérias e enfermidades e às vezes também a morte, ou temporal ou eterna; pois, como afirma o Apóstolo S. Paulo, quem vive pela carne, pela carne morre. Por isso proibia o Sábio aos Príncipes o beber vinho, e Séneca repreende muito a Alexandre Magno e a Marco António o vício da intemperança, como indigno de um Capitão, de um Rei e de uma alma nobre. Por isso, do mesmo modo, Túlio dizia ser coisa feia que um Príncipe sofresse de acidez no estômago, e indigestão causadas pelo vinho abundantemente bebido, o que descobre o que se deveria ocultar e seria grande vergonha o revelá-lo. “Ai de vós, ó ricos de Sião,” diz Deus pelo Profeta Amos, “ai de vós, ó Senhores, e principais do Povo que entrais e saís com pompa dos Templos, que vos divertis com as meretrizes nos vossos leitos bem limpos, e comeis os melhores bocados e bebeis vinhos escolhidos e preciosos; que gozais as músicas e os concertos e não vos lembrais dos pobres, nem vos compadeceis das misérias dos aflitos e necessitados, porque se mudarão as sortes e virá um tempo, como diz o Real Profeta, em que se alegrarão os justos, quando virem cair sobre vós a vingança divina e lavar-se-ão as mãos no sangue dos pecadores; quando gozará Lázaro no seio de Abraão e mendigará o rico avarento uma gota de água no Inferno, sem haver quem lha dê”.
Passemos, porém, da Ética à Economia, de que se servia a Rainha Jinga para governar a sua Corte, os seus familiares, os seus Cortesãos, os servos e os negócios domésticos.
Quem não souber reger e regular a si mesmo, diz Salomão, como poderá governar bem a sua casa e a sua família? Não há dúvida, responde o mesmo, que, em vez de a edificar, a destruirá com o exemplo da sua má vida e péssimos costumes. Este dito do Sábio viu-se muito bem posto em prática no governo da Corte, e da família da referida Rainha, pois, com o mesmo andamento desordenado com que ela caminhava, caminhavam também desordenadamente os de sua casa, e no modo com que ela se regia, governava ela igualmente os seus familiares e cortesãos; e mesmo se praticava alguma vez acções moralmente boas, eram no entanto inumeráveis as más e perversas: as primeiras de nada lhe serviam, porque eram por ela feitas por acaso e sem querer; e as últimas, fruto da sua malícia, tornavam-na mais obstinada no mal e digna da condenação eterna. Falando portanto desta sua mal entendida e mal praticada Economia, digo primeiramente que ela tinha a sua Corte tão cheia de gente, que pouco divergia das dos nossos Reis da Europa, no número, porém, e não na qualidade dos personagens e dos súbditos, sendo os seus cortesãos, sem excepcionar um só, todos homens rudes, malcriados, sem ponta de civilidade, ao modo de rústicos campónios, nascidos nos bosques e nas selvas; e a própria Rainha, que deles se via mal servida, repreendeu a muitos, muitas vezes, na minha presença, tratando-os de bestas e animais, privados de juízo e de senso, pela má educação e maus serviços que faziam; e ao contrário de tudo isto, era de admirar que ela, criada no meio de gente tão bárbara, e desumana, fosse no entanto cortesíssima, e gentilíssima, usando com todos de maneiras de grande civilidade, e demonstrando um ânimo verdadeiramente régio, nobre, generoso e magnânimo. Eram muitos os ofícios da sua Corte, divididos e preenchidos por ela entre os seus Cortesãos e familiares, e cada um tinha o seu superior, os quais, depois de servir naqueles alguns anos fielmente, fazia passar para outros ofícios e cargos mais importantes, ou lhes dava alguma outra mercê, escolhendo e colocando outros nos postos, de onde tinham sido retirados os primeiros. Tinha mais de cem damas ao seu serviço, algumas das quais eram donzelas e outras mulheres, que já tinham sido concubinas de outros, embora estas, enquanto estavam junto dela, estavam proibidas sob pena de morte de reconhecer outro homem carnalmente, nem sequer por uma só vez; por isso as pobres, embora contra vontade, eram obrigadas a observar castidade; por isso, muitas delas, não podendo viver assim, nem segurar-se assim pela força, fugiam não só da Corte e da Cidade, mas também do Reino. Mas se alguma dessas, por sua má sorte, tivesse sido apanhada na fuga e presa, era logo morta sem remição, pela mão do carnífice. Mantinha as mulheres e donzelas referidas ocupadas durante o dia a fiar algodão e a coser panos da terra, ou em outros afazeres domésticos e ela própria muitas vezes se punha a coser na companhia delas, ou a fazer outro trabalho de sua mão. Na alimentação e no vestir, tratava-as bastante bem, dando-lhes vestidos femininos muito ricos e curiosos, para que viessem à sua presença bem apresentadas.
Nestes Reinos da África Meridional não há cavalos, nem mulas, nem outros jumentos para levar cargas de um lugar para outro, mas os próprios pretos fazem o serviço daqueles animais; para isso a Rainha tinha cinquenta desses, altos, robustos e vigorosos; estes eram, dizia ela, os cavalos que tinha no seu estábulo, sujeitos ao Cavaleiro Mor, chefe deles, a quem todos obedeciam; todas as vezes que precisava, ou lhe apetecia, fazia-se transportar numa rede às costas deles, do mesmo modo que nas nossas partes da Europa, outros se fazem transportar em cadeiras. A despesa que para manter a Corte ela fazia regularmente, era enorme, porque à maior parte dos seus Cortesãos dava de comer e de vestir, para além dos banquetes e das mesas sumptuosas e esplendidamente guarnecidas para as quais eram convidados três ou quatro vezes por semana muitos Oficiais e Capitães do Exército, com outros Ministros importantes; por isso, todos os Macotas, maiores e menores, tinham obrigação de prover o Palácio Real de todas as vitualhas que a terra produzia, apresentando-as como tributo dos bens que possuíam; isto, para além do que tirava do seu gado, e das suas propriedades que eram muitas, às quais ia muitas vezes por divertimento de manhã, e regressava à noite, levada na rede pelos seus “cavalos”, trazendo atrás de si mais de cem mulheres com cestos, e baús na cabeça, cheios de vestidos e panos, tirados do seu guarda-roupa para ostentação da sua grandeza, e também para, quando lhe desse vontade de trocar de roupa, o que costumava fazer muitas vezes, pudesse fazê-lo à sua vontade. Do mesmo modo, fazia levar consigo grande quantidade de alimentos e manjares cozinhados, para alimentar todos os que a seguiam: daí que, cada vez que saía de casa, para além de um numeroso e nobre equipamento, levava atrás de si um exército.
Quando almoçava, tinha piada ver o modo e as cerimónias que faziam os seus cortesãos ao servi-la; e eu, que algumas vezes por acaso estava presente, tive de me fazer grande violência para evitar rir-me, para não mostrar que fazia troça dela e dos ministros da sua Corte. Sentava-se ela numa almofada posta por terra sobre um tapete, que serviam este de mesa e de toalha e aquele de cadeira ou de assento; lavava as mãos num vaso de barro, que mais parecia um pote que uma bacia, e um pajem estendia-lhe a toalha que era tecida de cores variadas; o primeiro prato, que lhe punham diante, era uma panela cheia de funje, que é como chamam um seu manjar, que se faz de milho, ou de grão da Índia, empastando com água quente a farinha muito bem, mexendo-a muitas vezes com um pau, enquanto está ao fogo, até que fica uma pasta algo sólida e densa, e este é o pão que se come nestes Reinos da África Meridional, em vez do pão de trigo que usamos nós na Europa. Os outros manjares levavam-nos nos mesmos potes em que os tinham cozinhado, e serviam também de pratos, levando cada um deles dentro de um cesto feito de vimes, os quais muitas vezes chegavam a ultrapassar o número de quarenta: ela comia o que mais lhe agradava, servindo-se das próprias mãos, que faziam de colher e de garfo, tendo em conta que os pretos não usam à mesa instrumento algum de civilidade e de limpeza, como costumam os brancos, mas levam o pedaço de comida à boca com todos os cinco dedos, e depois se limpam, não com a toalha, mas lambendo-se muito bem com a língua, o que entre eles não é considerado de má educação: mas é preciso ter pena deles, pois a estas terras nunca chegou o Galateo, com quem pudessem aprender as regras de civilidade e boa educação. Os manjares que se levantavam da mesa, fazia-os repartir pelos Senhores principais, que ali se encontravam, e pelos outros criados seus favoritos, dos quais alguns sentados, outros prostrados por terra, a cortejavam com cachimbos na boca, engolindo e expelindo fumo de tabaco em tal abundância, que enchiam quase de densas nuvens o ar. Os outros pratos, que levavam fruta e outras coisas cruas, eram de vimes bastante bem trabalhados e tecidos; sempre que ela bebia (e era sempre vinho puro), ao tomar das mãos do Copeiro a taça de vidro, que porém não tinha base, tocavam-se diversos instrumentos musicais e todos os presentes, ou se punham em pé, ou se punham de joelhos, e todos ao mesmo tempo davam estalos com os dedos, como sinal de aplauso, de festa e de alegria, enquanto os bobos diziam piadas e gesticulavam para fazer rir todo o grupo. Ó grandeza, ou antes ó estupidez, para melhor dizer, dos pretos doidos e imbecis.
Perguntei um dia à Rainha, por que não usava pratos, bacias e outros vasos de prata, já que tinha disso bem fornecido o seu guarda-louça? Respondeu que fazia isso, para seguir o antigo costume de seus antepassados; e que os pratos e vasos de prata tinham sido introduzidos pelos brancos, e no passado nunca tinham sido utilizados pelos pretos, e que, se ela agora os possuía, era por ostentação e para deles se servir, quando lhe apetecesse.
Finalmente, para dizer alguma coisa da Política, com que governava os Povos, que lhe estavam sujeitos, direi que a ciência e arte de governar Reinos e Repúblicas, segundo Platão, Crisóstomo e S. Tomás, é disciplina mais difícil de entender que qualquer outra ciência, e a mais perigosa a exercitar e disso dá a razão Nazianzeno, porque o homem, diz ele, é sempre vário, e mutável nas suas opiniões, simulado nas suas palavras e mais que qualquer outro animal, cheio de enganos, de falácias, de duplos sentidos, ingrato, ignorante e dificilíssimo a deixar-se reger e governar. Por isso, dizia Séneca: não há animal, em cujo governo se exija mais arte, mais prudência, mais saber, mais discrição, mais experiência, e mais sagacidade doo que para governar o homem. Ora, se é tão difícil saber governar-se a si mesmo, como diz o Apóstolo S. Paulo, é possível que o homem saiba reger e governar os outros? Se não sabe cuidar da própria, como poderá cuidar da família dos outros? Por isso, o Imperador Alexandre Severo, ao visitar o Senado Romano, queria saber em pormenor, como é que os Senadores regiam e governavam as suas próprias casas, porque, dizia ele, ao homem que não sabe mandar na mulher, nos filhos e nos criados, nem sabe prover às necessidades da sua casa e da sua família, é grande loucura atribuir-lhe o governo da República. Entre os mais ilustres Governadores das Repúblicas, Catão Romano foi preferido ao Grego Aristides, porque este foi superado pelo primeiro em saber bem reger e governar a sua própria casa. Por isso, antigamente eram os Reis chamados por Platão e por Xenofonte, Pais das suas Repúblicas, como os progenitores são os Pais das suas famílias. O bom Príncipe em nada difere do bom Pai, excepto no número maior ou menor de súbditos; nem melhor modo de governar pode ter um Rei que o de vestir-se do afecto de Pai, e observar e amar os vassalos, como filhos nascidos das suas entranhas. Na antiguidade, quando se queria honrar muito um Imperador, chamava-se-lhe Pai da República, que era mais que chamá-lo César ou Augusto ou qualquer outro nome glorioso, não tanto para o adular, quanto para lhe dar a conhecer a obrigação que tinha de se dedicar como Pai ao cuidado e bom governo dos súbditos, amá-los e acariciá-los como filhos; e como devia atender ao bem estar deles, mais do que ao seu próprio. E se observamos a origem e instituição dos Reis e dos Reinos, descobriremos que o Rei foi instituído para o bem do Reino e não o Reino para o bem do Rei. A obrigação entre o Rei e os vassalos deve ser recíproca, ele deve governá-los com justiça e com amor, deve protegê-los, e defendê-los com a força e as armas, e por isso lhe pagam os impostos e lhe entregam os seus bens e estes devem obedecer-lhe, servi-lo, reconhecê-lo por seu Patrão e Senhor.
Nisto é o Rei diferente do Tirano: o Tirano manda no Reino para o seu próprio interesse, o Rei ordena todos os seus bens e haveres para o bem-estar do Reino. Há que saber que, quanto à Política, a Rainha Jinga não governava como Mãe os seus vassalos, mas mais como feroz e cruelíssima madrasta os regia segundo a razão de Estado gentia, infernal e ateia, que não reconhece divindade maior que o interesse, tratando a todos como escravos, sem exceptuar ninguém, mesmo que fosse do seu sangue. Não respeitava leis, porque nem à Divina, nem à humana se sujeitava pela razão, mas barbaramente vivia como Jaga, rebel para com Deus e tirana para com os homens.
No Reino de Matamba, por ela conquistado à força das armas, perdida a maior parte dos seus soldados pelas guerras contínuas de muitos anos, vivia com a sua Corte no centro dele, onde tinha um exército sempre pronto para qualquer eventualidade ou improviso ataque; não só para defender o Reino dos inimigos, dos quais havia muitos nas terras vizinhas, mas também para castigar algum Barão seu vassalo, que se tivesse revoltado contra ela ou se negasse a pagar-lhe o tributo pré-estabelecido; e deste modo intimidava e obrigava todos os Senhores e Potentados vizinhos, fossem súbditos, ou livres, a pagar-lhe tributo e reconhecê-la por soberana, ou pelo amor, ou pela força e por escolha voluntária, ou por temor das suas armas; gostando muitos de estar voluntariamente sob a protecção dela, para não ser molestados pelas armas dos outros Príncipes, sobretudo dos Jagas. Com esta Política, mantinha-se Senhora absoluta do Reino, e todos lhe pagavam tributo e era por todos reconhecida como Rainha, a quem também todos recorriam nas suas questões e divergências, para que fossem resolvidas por decisão dela. Na Cidade, tinha um Juiz unicamente para as causas civis, pois as criminais eram julgadas por ela, ouvindo antes o parecer dos Conselheiros, os quais votavam sempre segundo o parecer e o querer dela.
Um dia, conversando eu com ela sobre as coisas respeitantes ao bom governo, exortei-a a não repreender em público os defeitos dos seus Ministros, quando não eram evidentes, para não os rebaixar perante a sua Corte, mas corrigi-los secretamente, para que se mantivesse o crédito e o respeito que lhes era devido. A isto respondeu-me ela que isso era por ela já observado, e contou-me um caso com bastante piada, que se tinha passado com o Rei seu Pai, com quem ela tinha aprendido a fazer o mesmo e foi o seguinte: “Entrou”, disse ,“uma vez um Macota na casa de um outro, e roubou-lhe duas galinhas e um cestinho de ovos, que pôs num saco que levava para o efeito, e quando ia embora alegre com o furto às costas, aconteceu para sua desgraça que, ao sair de casa, se encontrou com o patrão, que chegava , o qual, vendo o saco cheio, logo suspeitou que ele lhe tivesse roubado qualquer coisa, que ali levava; por isso, pedindo ajuda aos vizinhos e gritando com força Ladrão! Ladrão!, lhe pôs as mãos em cima, para reaver o que era seu e vingar-se da injúria. Acorreu muita gente ao barulho, e o ladrão, para fugir às pancadas e aos socos, que o outro lhe dava com abundância, e de que ele se queixava gritando, disse querer ir dar as suas razões perante o Rei, e defender a sua causa e justificar-se da calúnia que lhe era injustamente levantada: muito bem, respondeu o outro, vamos lá, e ambos, com muita gente atrás deles, compareceram à presença do Rei meu Pai, e chegados ali, disse o ladrão que tinha as galinhas e os ovos dentro do saco: Senhor, eu sou um honrado Macota, este calunia-me sem razão, dizendo que eu lhe roubei os seus ovos e as suas galinhas e isso não é verdade: veja Vossa Alteza se dentro deste saco as pus? Dito isto, separou-se um pouco dos outros e, aberto o saco, mostrou somente ao Rei, que estava sentado por terra sobre uma almofada, o que estava lá dentro. Olhou meu Pai para dentro do saco e deu-lhe vontade de rir, mas reteve-se logo, e com o rosto severo voltando-se para o que acusava o ladrão, disse que merecia grande castigo pela calúnia que levantava àquele honrado Macota, e, despedindo-os, acabou-se logo e terminou a causa. Partidos que foram , perguntei ao Rei a razão por que começara a rir quando olhara para dentro do saco? Respondeu: porque via as galinhas e os ovos que o ladrão tinha roubado e tinha escondido no saco. Porquê, então, meu Senhor tomastes a sua defesa? Ouve, filha, acrescentou ele: Aquele Macota , de resto homem honrado e bom soldado, que se tinha deixado vencer desta vez pela tentação, tinha cometido aquele erro, o seu furto tinha sido descoberto, não podia escondê-lo de outro modo, sem ficar envergonhado à frente de todos; por isso, confiou em mim, que eu teria dissimulado o seu erro, e zelado pela sua honra, restituindo-lhe com a minha autoridade o crédito, perdido por ele com aquele pequeno furto e eu não quis que ele ficasse defraudado da confiança que em mim tinha tido; tendo em conta que o Príncipe deve estimar e conservar tanto quanto possível a honra e o bom nome dos seus vassalos, como o seu próprio e cobrir sempre que possa, os defeitos deles. Deste exemplo de meu Pai, aprendi eu também o modo de me comportar em semelhantes eventualidades. Oh, quantos excessos sei que muitos cometem, e eu os dissimulo e não raramente os corrijo secretamente, sem que ninguém saiba que foram corrigidos por mim e emendados; por isso, embora seja Mulher, mantive-me até agora no governo do Reino, por todos estimada, temida e amada! Quando pude remediar só com boas palavras, nunca adoptei as bruscas; é verdade, porém, que no castigo dos protervos, tenho sido bastante rigorosa.”
O Palácio Real dela, chamado pelos pretos Banza, estava fechado dentro de um recinto de muros, com duas milhas de comprimento, onde ela morava com toda a sua Corte e era dividido em muitos quartos, feitos de paus e de palha. Tinha uma única porta, muito bem guardada por soldados, e com vários porteiros, que dela se encarregavam, os quais não deixavam entrar pessoa alguma para audiência com a Rainha, sem antes avisar os Oficiais de dentro, para obter autorização por ela dada. Desta porta até ao átrio de dentro, que havia diante da casa maior, onde dormia a Rainha, nada mais se via senão um labirinto de Dédalo, por assim dizer, pelas muitas voltas, corredores, divertículos, voltas, e cruzamentos de estradas, pelas quais era preciso passar, o que teria cansado qualquer um; e para reencontrar a saída teria sido preciso ter o fio que Ariana deu a Teseu. É este o costume de todos os Senhores e Príncipes destes Reinos, ter as casas assim metidas no meio de tantas girândolas, e abundância de estradas e caminhos, para aumentar, como dizem, a pompa e a ostentação da sua grandeza, à semelhança dos Palácios dos Príncipes da Europa, onde para chegar à audiência deles, se tem de passar por muitas salas, várias câmaras e antecâmaras.
No referido átrio, como um grande pátio, que era circundado por um corredor coberto, acendia-se sempre cada noite todo o ano um grande fogo, no qual deitavam grande quantidade de óleo de palma, quando as lenhas não ardiam bem. Ali ficava a Rainha até à meia-noite, conversando com os principais da Corte, e grandes do Reino que lhe faziam companhia sempre àquela hora, se não estavam realmente doentes e quanto isso lhes custasse pode ver-se do facto que muitos, quando regressavam às suas casas depois da meia-noite, tinham de percorrer um longo caminho, pois moravam à distância de uma milha do Palácio Real ou Banza. Durante esse tempo, tocavam e cantavam sem cessar os músicos na sua presença; e embora ela apreciasse muito essas distracções, não deixava no entanto de tratar de negócios ora com um, ora com outro e afazeres do governo, informando-se junto deste e daquele do que se fazia e dizia na Cidade e no Reino; e assim acontecia que os excessos que sucediam durante o dia e todas as exorbitâncias e faltas que os seus Ministros cometiam, ela vinha a saber em pormenor.
Quando morria algum Soba, ou Senhor de Vassalos, o filho recorria logo a Sua Alteza, para obter a investidura na herança do Pai; mas, morrendo algum Macota, eram herdados por ela os escravos que ele tinha, e todos os seus bens móveis e imóveis, ainda que ele deixasse filhos naturais, aos quais costumava deixar parte dos bens paternos e o remanescente ou o distribuía a outros ou o incorporava na Câmara Real. E para manter todos os súbditos humildes e baixos, não permitia a quem quer que fosse, que andasse em rede pela Cidade, ou trouxesse guarda-sol, excepto aqueles a quem dava essa licença, e estes eram muito poucos; também não queria que alguém vestisse tecidos finos da terra, ou de seda da Europa, senão os principais Macotas seus favoritos. Além disso, usava de grande tirania para a todos oprimir, e tê-los como se fossem escravos e era que todos os Macotas maiores e menores, que são os Senhores principais e os Cidadãos mais nobres, fossem obrigados a mandar três dias por semana toda a gente das suas casas, homens, mulheres e escravos a trabalhar nas propriedades dela, que eram muitas, quer no tempo da semeadura, quer no tempo da colheita, obrigando esses mesmos ou as suas mulheres a ir vigiar os operários, para que se dessem ao trabalho com maior diligência: e a própria Rainha muitas vezes fazia-se levar ali em rede para dirigir ela própria os que trabalhavam; mas isto servia-lhe de distracção e recreio e aos outros de peso e de opressão. Enfim, tiranizava, tinha, e tratava todos como escravos ou pior que escravos, até Dona Bárbara sua irmã e D. Salvador, marido dela eram chamados por ela escravos, e tinham de comparecer diariamente perante ela para beijar-lhe a mão, inclinar-se e prestar-lhe todo o obséquio. E um dia, conversando com os seus Cortesãos, disse-lhes, como me foi referido por quem aí estava presente, estas palavras: “Se eu tivesse um filho, queria que ele, como qualquer outro escravo, me servisse do modo que sois e fazeis vós mesmos.” Ora dá-me licença, Leitor, que, parando aqui por um momento a minha pena, te pergunte o que te parece a Política que no Governo do seu Reino praticava esta mulher? A mim, para dar a minha opinião, parece que a tinha tirado da doutrina de Macchiavelli, sem que porém nunca a tivesse visto, lido ou estudado, e lhe fora ditada talvez pelo seu génio, bastante pior que a que aquele seu infame e pernicioso livro ensina; ou então treinada nela pelo próprio Diabo, de quem o Macchiavelli a aprendeu para fazer com as suas infernais e diabólicas razões de Estado prevaricar e transgredir a lei de Deus a muitos Senhores e Príncipes cristãos.
Mas façamos aqui agora uma pequena digressão a favor das mulheres. Censuram alguns as mulheres porque, pelo facto de serem de fraca inteligência, e de ânimo vil e fraco: Mulier, quasi molliens, não são aptas ao governo dos Reinos e ao manejo das armas, e dos exércitos, quando é preciso guerrear e combater os seus inimigos; mas nisto se enganam eles e estão muito errados, pois, embora em todas as leis sejam excluídas as mulheres de intervir nos conselhos públicos e judiciais, no entanto algumas delas e não raramente, ultrapassaram muitos homens ilustres na prudência, na sagacidade, na força, na virtude, e valor, tanto do corpo como da alma. Nada digo da sua bondade moral, sendo de todos sabido que geralmente as mulheres são mais devotas e mais piedosas que os homens. Estas coisas, que vêm da natureza delas, costumam vulgarmente ser prodigiosas; e as mulheres, que negam o seu sexo e natureza, são admiráveis. Pelo contrário, os homens efeminados, e moles foram sempre considerados o opróbrio do mundo: e por isso as mulheres viris ilustraram os séculos, e para maior glória delas, já que se me dá a ocasião, trarei para aqui alguns exemplos.
Minerva (examinando bem a verdade) não foi a Deusa, que os poetas fingem, mas uma mulher que nasceu no ano cinquenta e oito da idade de Isaac, a qual inventou o azeite, as armas e a arte militar, instruiu os exércitos e ensinou a ordem bélica, que se observa na batalha. Artemísia, grande Rainha do Egipto, foi valorosa na guerra, entrou em muitos conflitos, venceu numa armada naval os Rodeanos e erigiu ao Consorte defunto o sepulcro, chamado do seu nome de Mausoléu, uma das sete maravilhas do Mundo. Semiramis reinou quarenta anos no Egipto com grande prudência, aumentou o seu Império, cingiu de muros a famosa Babilónia e edificou muitas outras cidades. Hipólita, com as suas Amazonas, foi também belicosa e fez tantas proezas que, contanto seja verdadeira a sua história, mal nela se acredita. Zenóbia, Rainha dos Palmirenos, adquiriu glória imortal nas armas. Teuca, Rainha dos Ilíricos, não teve igual em valor. Marina, também ela Rainha do Egipto, 377 anos antes da vinda de Cristo, fez tremer o Império Romano, tendo-o várias vezes superado e vencido. Tomyris, Rainha dos Massagetas na Scithia, opôs-se com o seu exército ao grande Ciro, Rei de toda a Ásia e aventurando-se, venceu-o, derrotou-o, matou-o e, cortando-lhe do busto a cabeça, pô-la num vaso cheio de sangue humano, dizendo-lhe estas palavras: Sanguinem sitisti, sanguinem bibe.
Mas deixai de parte as mulheres gentias e profanas que no governo e nas armas se demonstraram mais sábias e mais valorosas que os homens, cujos feitos ilustres dariam matéria aos escritores para grandes volumes; quero trazer os exemplos de algumas das nossas mulheres Cristãs. E em primeiro lugar, aparece-me na frente a maior mulher que hoje vive no Mundo, ou seja, Dona Mariana de Áustria, Sereníssima filha do Augustíssimo Imperador Fernando de Áustria, que foi mulher do grande Monarca Ibérico Filipe IV de gloriosa memória e é hoje Rainha reinante e afortunada mãe do pequeno Semideus Carlos II, invictíssimo Rei das Espanhas, para o qual rogo ao Céu lhe conceda longa vida e que a benigna Parca com mão amiga lhe fie o fio da vida por muitíssimos anos para a utilidade comum dos seus Povos e de toda a Cristandade, que esperam na sua idade viril, com celeste mais que com terreno presságio, ver heróicas empresas e feitos maravilhosos. Esta Senhora, nascida pois para os Impérios, para os Ceptros e para as Coroas, não menos pela fortaleza invicta do seu ânimo em afrontar os golpes adversos da sorte, que pela sábia e sagaz prudência em reger e governar com justiça qual Ástrea descida à terra, tantos Reinos e tantas Províncias, não pode dizer-se que haja obscurecido e posto no esquecimento a fama e o valor das sobreditas Princesas, mas que tenha tornado o nosso século mais claro e ilustre. Mas passemos desta para outras santas mulheres: quem houve entre os homens que igualasse a sabedoria e a constância da Virgem Santa Catarina? E a fortaleza de Inês? A animosidade de Ágata? E o valor de Doroteia? E o peito de Lúcia? E a coragem de Cecília? E a audácia de Sofrónia, de Tecla, de Apolónia, de Emerenciana, de Margarida, de Bárbara, de cem e de mil outras que, pela Santa Fé de Cristo, e para conservar a pureza virginal se mostraram corajosas e invictas? Olhemo-las no cúmulo dos seus tormentos e veremos como consideraram gemas as chagas, enfeites as cadeias, chinelas de ouro, os cepos, capitólios os cárceres, coroas as espadas e gloriosos triunfos os infames patíbulos. À vista das suas carnes laceradas e do sangue que corria, enterneciam-se os espectadores e elas imóveis; confundiam-se os Tiranos e elas atrevidas; empalideciam os próprios carnífices, e elas intrépidas se mostravam, como foi exactamente a generosíssima Princesa e Virgem Santa Úrsula, filha do Rei de Bretanha, que na companhia das suas 11 000 donzelas às mãos dos Hunos, gente bestial, se deixou matar e trucidar para conservar a fé, que havia dado ao seu Esposo celeste, desprezando o terreno.
Não pretendo eu agora nestes exemplos querer comparar a Rainha Jinga com estas santas Mulheres, o que seria grande temeridade e loucura, mas direi que, entre as ilustres e heróicas mulheres gentias tem ela, se não o primeiro, pelo menos o segundo lugar, concorrendo nela o ânimo de Pentasileia, a audácia de Cleópatra, a intrepidez de Semiramis, a constância de Zenóbia, a coragem de Hipólita, o conselho de Camila: é verdade que foi também um Herodes nas vinganças; e se como os escritores louvam a Rainha Cleópatra por muito generosa no dar, mas a apontam como muito dissoluta e lasciva no viver; assim eu, embora louve a Rainha Jinga pelo grande talento em governar e muito versada na Política do mundo, generosa no dar, atrevida e belicosa no guerrear, há nela mais de Teuca e de Zenóbia, como quando armada de arco e flechas, ia sempre primeira na vanguarda, combatendo valorosamente, e animando os seus soldados para a batalha: culpo-a no entanto por outro lado, de muito soberba, ambiciosa e lasciva e que foi também, quando era Jaga, uma feroz e cruel Tirana, como mostraremos no Capítulo seguinte.
Capítulo XVI
(páginas 199 a 222)
Das bárbaras crueldades da Rainha Jinga, quando era Jaga
Ainda que as mulheres sejam normalmente inclinadas à piedade e à misericórdia e se mostrem naturalmente doces, afáveis e sensíveis, no entanto algumas delas foram além de toda a medida, cruelíssimas e desumanas e da crueldade delas está a história cheia. Uma destas foi a Rainha Jinga, cujas bárbaras crueldades, enquanto viveu como Jaga, não deixarei de referir, para que o Mundo saiba quão diferente se tornaria depois da sua conversão, totalmente diferente do que antes era, afável, piedosa, agradável, sábia, continente e boa Cristã.
As Harpias (no dizer de Solino, que descreveu as coisas admiráveis do Mundo), animais pela sua natureza cruéis para com os homens, e que neles fazem muitas vezes grande matança, quando numa fonte por acaso se espelham, vendo a imagem dos seus vultos, semelhante à do vulto e semblante humano, impelidas de instinto natural, põem-se amargamente a chorar, gritando lamentos e vozes para o ar, e isto porque, enamoradas daquele belo rosto, que em si mesmas contemplam, ficam tristes por ter tirado a vida àqueles, que tinham a mesma efígie e o mesmo rosto. Oh, quantos homens e mulheres foram e são piores do que as harpias! Sabem que todo o homem é semelhante aos outros, não só de rosto, mas de ânimo e de corpo, por dentro e por fora e, no entanto, alheios de toda a piedade, vazios de toda a espécie de amor, cheios de ira, de ódio, e de raiva, enchem-se de crueldade contra o seu semelhante, de modo não diferente do caçador contra as feras dos bosques e como Ursos e Leões querem saciar-se com as carnes dos seus próximos, querem beber e sugar-lhes o sangue e gozam ao vê-los morrer e exalar a alma.
Não há leopardo, nem tigre tão feroz, que o homem não o ultrapasse e também a mulher, de cuja crueldade, inúmeros são os exemplos que se contam. A Rainha Atália, infâmia do sexo feminino, não matou ela todos quantos lhe caíram nas mãos, da estirpe régia, para governar sozinha, excepto um menino, subtraído com sorte ao seu furor? A descarada Jezabel não se inebriava com o sangue dos servos de Deus, como os bêbados com o vinho, e teve a ousadia de intentar a morte do grande Profeta Elias, que nunca teve igual no Mundo? A impúdica Herodíade, como prémio de uma dança, não fez cortar a cabeça de João Baptista? Mas para que vou eu buscar exemplos às Escrituras sagradas? A Imperatriz Irene não chegou a tanta maldade que teve coragem de arrancar os olhos a seu filho? A infame Túlia não passou com o carro sobre o corpo do Pai, que jazia morto por terra e zangada com os cavalos temerosos de pisar aquele cadáver, não os impeliu para diante pela força? Fúlvia, mulher de Marco António, tendo nas mãos a cabeça de Cícero, pondo-a no regaço, não lhe cuspiu com desdém várias vezes na boca? Não lhe tirou com os próprios dedos a língua e furou mais do que uma vez com a agulha, que tinha na cabeça para segurar o cabelo? Oh víboras ferozes, ó harpias cruéis, antes piores que todas as víboras e todas as harpias porque, como diz o Sábio, não há desdém que se iguale ao desdém e à ira de uma mulher.
No número das mulheres-serpentes e das harpias humanas pode contar-se a Rainha Jinga e terá talvez entre elas, pelas suas bárbaras crueldades, quando era Jaga, a maioria e o primeiro lugar; pois como víbora, era cruel contra o seu próprio sangue e mais que harpia contra todos se comportava. Bebia o sangue humano e com ele se untava e aspergia o corpo, quando para oferecer sacrifícios ao Demónio, matava como bestas os homens e quando recebia o juramento de fidelidade dos seus vassalos, obrigava-os a beber, como ela fazia, do mesmo sangue; como um dos que tinham bebido e disso agora se mostrava arrependido, me confessou de sua própria boca, e ela mesma, depois da sua conversão à verdadeira fé de Cristo, disso se arrepende agora, e chora qual harpia, como muitas vezes fez na minha presença, de ter morto tantos milhares de homens adultos e de ter dado a morte a inúmeras crianças inocentes.
Morreu o Rei Ngola Bandi, irmão da Rainha, como mencionei no Capítulo XIV e ficou ela livre, Senhora do Exército, e Soberana de muitos Sobas e Barões fiéis tributários da Coroa. Este governo e domínio que ela não esperava, vista a sucessão no Reino dos filhos que o irmão tinha, acendeu no seu ânimo tanta vontade e cupidez de agarrar o ceptro, e de se pôr na cabeça o régio diadema, que, deixando-se levar pela desenfreada ambição de reinar, matou todos os sobrinhos, filhos do irmão defunto para ser ela a herdar a Coroa e melhor estabelecer-se no Reino; neste excesso foi bastante mais cruel que a infame Atália, mãe de Acazias, Rei de Israel, de que fala a Sagrada Escritura, que, vendo morto o Rei seu filho, mandou matar para ficar Senhora absoluta, todos os que tinham sangue real e que podiam aspirar à Coroa, excepto um menino pequeno, que Jeoseba irmã do Rei fez escapar ao seu furor; porque, embora tivesse dado conta disso, dissimulando fingiu não o saber. Não assim a Rainha Jinga: depois de ter morto todos os filhos do falecido Rei seu irmão, excepto o primeiro, que não pôde ter à mão, por o pai o ter confiado à tutela de um grande Senhor Jaga, chamado Casá, valorosíssimo nas armas, até que estivesse apto a governar. Não soube ela fingir e dissimular, como havia feito Atália, a salvação dele, até que o teve nas mãos e lhe tirou miseravelmente a vida. Temia o Rei deixar o seu primogénito ao cuidado de sua irmã e com razão, porque tendo ele feito matar um filho que ela tinha, segundo o que mandavam as leis do Reino, para assegurar a Coroa sobre a cabeça do seu próprio filho, tinha grande medo que a irmã, para se vingar, não o mandasse matar; por isso, antes de morrer, quis antes deixá-lo àquele Senhor amigo para o criar, do que a sua irmã, em quem não confiava. Vendo ela este posto em salvo, procurou por diversos modos que lhe fosse entregue pelo dito Senhor Jaga, para lhe fazer a festa como fizera aos outros, mas não pôde conseguir o seu intento. Então, fingindo-se apaixonada por ele, pediu que a aceitasse por mulher; para isso lhe mandou para amolecê-lo e induzi-lo à sua vontade muitas embaixadas e donativos; mas estando ele todavia indiferente e não se fiando nela, nem dando crédito às suas promessas, quis ela ir encontrá-lo em pessoa e tanto lhe disse e persuadiu com as suas lisonjas, que o induziu a condescender aos seus desejos.
Grande ofensa a toda a natureza faz o áspide, corrompendo com o seu veneno a suavidade e a flagrância das flores. Matar a outrem com ódio e com desdém, é uma espécie de morte que pode sofrer-se, mas matar com agrados e com enganos é a quinta-essência da morte, que induz desespero. Quando o grande Alexandre quis dar batalha às Amazonas, vendo a Rainha sua Capitã, que era não menos bela que valorosa, parando na margem de um rio, em vez de combater pôs-se admirado de tanta beleza a contemplá-la, olhando um para outro sem dizer palavra pelo espaço de uma hora; voltando ao pavilhão, Alexandre viu-se todo mudado e diferente do que era; pois mudada a ferocidade para afabilidade, de forte e valoroso guerreiro, tornou-se mole e efeminado amante à vista apenas de uma engraçada e bela mulher. Por isso é que Teofrasto chamou a mulher suave engano; e Orígenes, triunfo dos valorosos, pela grande força que tem em tirar, ou melhor tiranizar os animais.
Por esta força feminina foi vencido e abatido o sobredito Capitão, considerado por todos muito valoroso na guerra, ao aparecer-lhe diante a Rainha Jinga, jovem de idade, bela de aspecto e bastante lisonjeadora no tratar e nas palavras; viu-a, agradou-lhe e tomado de amor por ela, ficando enlaçado, deu de bom grado o consentimento às núpcias e logo se casou com ela, segundo o costume dos Jagas. Mas durou pouco tempo a alegria e o contentamento dos seus corações, porque ela, tendo tido à mão e morto o rapaz seu sobrinho, de repente partiu com a sua gente, sem ser tocada ou reconhecida pelo novo esposo; pelo contrário, se ele não se apressava a fugir, também a ele seria tirada a vida.
Ninguém deve fiar-se em quem está dominado pela ambição de reinar, porque não estima nem amigos, nem parentes, não olha nem à amizade, nem ao parentesco; tomado desta cupidez de mandar, Pompeu sublevou-se contra o sogro, Júlio César; Absalão contra David, seu pai; Rómulo contra o irmão Remo e Marco António contra César, seu caro amigo. Assim, tendo o Rei de Angola morto o sobrinho para assegurar a herança do Reino no próprio filho, pelo mesmo caso permitiu Deus que a irmã matasse todos os seus filhos e um e outra foram castigados pela sua crueldade, porque o Rei perdeu o Reino quando estava ainda vivo, e os filhos depois da sua morte; e a irmã andou por muito tempo errante, fugindo das armas dos Portugueses, que lhe têm dado até agora guerra cruel e lhe tiraram o Reino que, por o ter usurpado aos sobrinhos, possuía injustamente, estando aí investido um outro para sua vergonha; e o que agora mais a aflige é ter ficado sem filhos e extinta a linha da sua descendência real, mandando assim Deus que quem recorre a meios iníquos para evitar algum dano, que a domina, pelos mesmos meios no mesmo dano incorra. As mulheres deram a Roma os Reis e as mesmas lhos tiraram: deu-lho Sílvia, mulher solta, porém desonesta, tirou-lho Lucrécia, mulher casta, embora casada; esta com o vício, aquela com a virtude; dos quais, o primeiro foi Rómulo, o último Tarquínio. Deste sexo, sempre o Mundo reconheceu ou as perdas, ou os ganhos, ou as glórias, ou as ruínas, ou as honras, ou as vergonhas.
Vendo portanto esta mulher que havia conseguido o seu malvado intento, com a morte que deu a todos os seus sobrinhos, herdeiros da Coroa do irmão, fez-se logo aclamar Rainha e Senhora absoluta do Exército e do Reino, e tornando-se uma fúria de Averno e uma tirana feroz, começou a seguir os perversos costumes dos povos Jagas, bastante pior do que havia feito seu irmão, destruindo com as armas e atacando cruelmente a ferro, fogo e sangue as terras, cidades e aldeias e povos vizinhos; e não passou muito tempo que se tornou famosa em toda a África, tal como na Ásia a Rainha Zenóbia e na Síria, Semiramis: que se para esta, os Sírios, para Helena, os Troianos para Uxodonia os Alemães e os Romanos para Agripina, que foram a causa das suas terríveis calamidades e ruinas, muito sofreram, não menos justamente se podem queixar estes Reinos e Províncias da África Meridional da Rainha Jinga, que com guerras contínuas por quarenta anos e com crueldades inauditas por ela praticadas as despovoou de todo e destruiu.
Ora, considerando os Portugueses os graves danos e as ruinas que esta Rainha nos ditos povos causava, a grande fama que cada dia ganhava junto de todos do seu valor, e o medo, e espanto que tinham do seu exército, que se ia tornando sempre maior, engrossado pela multidão de pretos idólatras, que a seguiam, por eles reconhecida como Senhora natural e patroa absoluta daqueles Reinos; e prevendo os progressos maiores que com o tempo podia fazer, tomaram para a impedir um expediente político, que foi o procurar dar-lhe alguma satisfação e tentar reduzi-la pacificamente e com bons modos à sua amizade. Para este efeito, prometeram restituir-lhe o Reino do Dongo, desde que depusesse as armas, fizesse as pazes com eles e pagasse ao Rei de Portugal um tributo perpétuo cada ano. Nunca quis aceitar esta oferta com tais condições, nem a elas obrigar-se, respondendo a quem lhe fez a embaixada que, não sendo ela escrava, nem serva, mas nascida livre, queria como Rainha e patroa absoluta dominar nos seus Reinos, que tinha herdado dos seus antepassados, sem depender de nenhuma outra potência superior à sua, ou reconhecer outro soberano; por isso preferia morrer de armas na mão, que pagar tributo ou sujeitar-se a outros.
Fugir ao dano experimentado é conselho que dão os próprios ignorantes, mas aprendê-lo das quedas e ruinas de outrem é o maior aforismo de prudência que pode ensinar a sabedoria humana. O próprio jumento conhece e desvia-se do sítio, onde uma vez tropeçou. Os pássaros que escaparam ao laço, temem sempre que lhe apareça e com essa suspeita fogem dele; como diz o antigo provérbio “Pássaro velho nunca entra na gaiola, em que já esteve fechado”, porque receando perder de novo a liberdade recuperada, já não crê na chamada, não se fia na presa morta, nem liga ao saboroso alimento que se lhe ofereça, para atrai-lo de novo ao engodo, tendo aprendido à sua custa.
Os antigos pintavam Jano, Rei de Itália, com duas faces, para demonstrar, como diz Macróbio, a sua grande sabedoria e prudência, pois olhando com uma as coisas do passado, provia com a outra às futuras. Filipe 3.º, Rei de Espanha, que o foi também de Portugal, investiu no Reino do Dongo, um parente da Rainha pela linha natural o mais próximo dela no sangue, por nome o Rei Angola Hari, na língua Ambunda, isto é do País, mas depois do Baptismo, D. Filipe 1.º, que ainda é vivo e governa o Reino com a ajuda dos Portugueses, dos quais se fez homem fiel e tributário; declarando a Rainha decaída da herança e Senhoria do Reino por ter morto o sobrinho legítimo herdeiro e feito outras crueldades e tiranias. A Rainha desdenhou o caso orgulhosamente e, não podendo vingar-se de outro modo, começou a fazer vida no mato, à semelhança dos Jagas e a perseguir com as armas na mão os Portugueses seus inimigos e os pretos da terra que se rebelavam contra ela e se juntavam aos brancos, fazendo de uns e de outros cruelíssima matança em muitas batalhas que teve com eles.
É tão perigosa a arte de julgar e dar conselho aos outros, que ao mesmo tempo que a pessoa pensa encaminhá-los pela via da prudência, sai fora do caminho. Esta proposição verifica-se infalivelmente em dois casos, ou em aconselhar e julgar os outros ou no aconselhar e julgar a si mesmo. Um homem, que seja mal aconselhado pela soberba e pela ambição, que dará à luz senão ruínas e precipícios? Um e outro avisado e declarado, vem-nos da antiga e fabulosa Gentilidade no caso de Fetonte e de Páris; o primeiro julgou-se apto a conduzir o carro do Sol e a governar o dia; o segundo a poder resolver as disputas e as divergências nascidas entre os deuses, e Numes celestes; o primeiro precipitou-se a si mesmo, o segundo causou o precipício, a queda e o extermínio de Tróia. O Rei Demétrio, filho do grande Rei Antíoco, perguntado pelo seu Capitão Patrocolo por que não oferecia e desencadeava a batalha com seu inimigo Ptolomeu, já que no ânimo era mais valoroso do que ele, e no exército mais potente, assim lhe respondeu: das coisas que, depois de feitas, ninguém pode arrepender-se, deve usar-se de grande prudência em empreendê-las, para não errar: e a prudência e a temperança são quase dois Numes divinos, de cuja assistência precisa sempre quem governa.
Se os Ministros Portugueses se tivessem guiado com razão, mas não de Estado, e tivessem considerado a gravidade do caso, as consequências irreparáveis e os maus efeitos que se seguiram, passando de um extremo ao outro, das desordens da Rainha, às pretensões que eles tinham, por certo não teriam perseguido tão ferozmente a Rainha, nem a teriam privado dos seus Reinos, de que mais de uma vez depois se arrependeram, pelos grandes danos que os mesmos Portugueses sofreram, tendo levado a tal desespero a dita Rainha, que ficaram a suspirar várias vezes; e a perda dos dois Reinos, dos quais foi por fim espoliada, custou a eles grande abundância de sangue.
Ó maldita ambição, ó infame e celerada cupidez de reinar e quantos Príncipes e quantos Reis, quantos Monarcas precipitaste dos seus tronos, mas também sepultaste no fundo do cego abismo? A cidade de Numância em Espanha, edificada por Numa Pompílio, que foi segundo Rei dos Romanos, durou 460 anos, Senhora de si mesma nunca conquistada, nem submetida a outros, mas, quando nos seus domínios se estava gozando uma felicíssima paz, foi improvisamente assediada pelos ambiciosos Romanos, que procuravam sujeitá-la à sua tirania. Nesse assédio, que durou treze anos, morreram nove Cônsules e um número quase infinito de soldados, sem poderem jamais apoderar-se dela. Por último, mandaram o grande Cipião, o qual querendo assinalar esta sua primeira empresa e dar prova do seu valor, apertou-a e cercou-a de profundas fossas e bem ordenadas trincheiras, que lhe tirou toda a esperança de fuga e de socorro. Vendo-se os assediados Numantinos reduzidos ao extremo, desesperados de não se poderem defender, tomaram uma resolução bárbara: mataram com as próprias mãos todos os velhos, mulheres e crianças e feito isso, recolhidos todos os bens e tesouros e as coisas mais preciosas, que tinham, na Praça Maior, logo lhe pegaram fogo, que tudo consumou e queimou, ardeu e reduziu a cinzas a Cidade e a si mesmos, sem que ficasse vivo um só, considerando menor mal perder a vida que a liberdade e matar a si mesmos voluntariamente, de preferência a ver triunfar os Romanos. Este foi o fim miserável da antiga e famosa cidade de Numância, para que foi levada pelo desespero, para não se tornar escrava e serva dos Romanos; desta generosidade de ânimo, embora desumana, dos Numantinos, não é diferente o peito generoso e viril da Rainha Jinga, a qual sempre disse e diz ainda que antes que sujeitar-se aos Portugueses, prefere matar-se com suas próprias mãos.
Os exércitos dos Jagas que despovoaram e ainda destroem estes Reinos da África Meridional, são compostos de diversas nações de pretos gentios, homens mortíferos, cruéis, velhacos, que fugindo da Pátria e dos seus Senhores naturais ou de patrões, de quem eram escravos, com medo de serem castigados pelas suas más acções, se unem juntos e assim unidos se dão a fazer uma vida bárbara e desumana, a quem os seus antepassados puseram o nome de Jaga, ou de Jagas, como direi no seu lugar no Capítulo 31. Desta gente facínora, ímpia e cruel, era formado todo o exército da Rainha, a cujas ordens obedeciam os soldados de tal maneira, que não se atreviam a mudar uma vírgula em tudo o que ela mandava; sabendo muito bem que, se não cumprissem as suas ordens, seriam por ela severamente punidos, fazendo-os logo morrer às mãos do algoz; e para os ter bem afeiçoados a ela e às suas vontades, e ordens sempre prontos, embora por outro lado, fossem por ela maltratados, e tiranizados, no entanto, sendo mulher muito astuta e sagaz, com diabólica, mundana e ateística política, que era gentia e idólatra, permitia-lhes mil enormidades. Para mais facilmente os obrigar a segui-la e amá-la, procurava conformar-se com o modo de viver deles e imitar os seus péssimos costumes, em especial aqueles para que via eles terem mais inclinação. Por isso, ela era a primeira e solícita mais que os outros, a invocar os Demónios, a sacrificar aos Ídolos, a fazer toda a espécie de bárbaras crueldades, a entregar-se à lascívia e às desonestidades, sem qualquer retenção, e tanto avançou na malvadez da vida, que observava com todo o estudo e diligência as vãs e supersticiosas cerimónias e leis dos Povos Jagas. Sacrificava muita gente ao Demónio e as respostas que ele lhe dava, recebia-as como oráculos divinos, feita assim perfeita discípula de Satanás, tornou-se a breve prazo, mestra de error e enganos; pois ensinava aos seus soldados e súbditos (seguindo nisto a loucura dos seus antepassados) que ela era Deusa na terra, que mandava as chuvas do Céu, fazia crescer as sementes, dava e tirava a seu prazer a saúde e a vida e muitas outras tolices, que por brevidade, deixo de contar aqui. Não discordando nisto do sentimento dos antigos Príncipes gentios, que inchados, peitudos, e soberbos pela sua vã ambição, se faziam chamar temerariamente com títulos e sobrenomes de Deuses, e que eram não menos doidos que soberbos: como Nabucodonosor, que se fez chamar Rex Regum, Alexandre Magno, Rex mundi, o Rei Dário, Expugnatur Urbium, o grande Hanibal, Dominator Regnorum, Júlio César, Dux Urbis, O Rei Mitridas, Restaurator Orbis, o Rei Átila, Flagellum Dei, Maomé, filho de Abdallah, Imperator Universi, o Rei Dionísio, Hostis Omnium, o Rei Ciro, Ultor Deorum e Domiciano, Deus Mundi. Assim,também a Rainha Jinga queria também ela ser chamada a Deusa da Terra, ao modo de uma outra Astarten, Deusa dos Sidónios. E esta é a razão, por que os seus vassalos cada vez que compareciam perante ela, se deitavam prostrados por terra e a cobriam toda de pó, em sinal de veneração e reverência.
Aconteceu a este propósito no nosso hospital um caso digno de ser admirado por quem sobre ele faça atenta reflexão. Estava o nosso companheiro, chamado Fr. Inácio num quarto com alguns carpinteiros, ou mestres da madeira, que faziam a porta da Igreja, quando de improviso chegou a Rainha e querendo entrar no dito lugar, um dos pretos que aí trabalhava, cheio de pressa saiu para fora e fugiu dali; chamou-o Fr. Inácio para que voltasse ao trabalho, mas não foi possível, desculpando-se dizendo que não podia entrar naquele lugar, porque estava lá a Rainha e ele na noite anterior tinha pecado com uma concubina (devia ser uma das servas ou criadas do Palácio) e por isso não podia comparecer à sua presença, porque seria imediatamente mandado matar: só se ela, acrescentou, me chamar não terei culpa ao voltar e não incorrerei em pena alguma. Como é que sabes, respondeu o meu companheiro, que a Rainha que a Rainha saberá o que fizeste a noite passada? Ela sabe muito bem, replicou ele, porque, sendo Deusa, para ela todas as coisas são claras e manifestas. Em resumo, não quis entrar, por mais que o dito Religioso lho pedisse. Mas a Rainha, pelo pedido que lhe fez o dito Religioso, o chamasse e logo ali entrou todo temeroso e com os olhos baixos e não a olhou no rosto, como observou e admirou o mesmo Fr. Inácio. Ó Deus da minha alma, que temor sentirá o pecador no dia do juízo, quando comparecer cheio de pecados diante do severo Juiz Cristo, que lhe pedirá contas não só dos casos manifestos como também dos pensamentos ocultos? Que confusão será a sua, vendo descobertos todos os pecados por ele cometidos nesta vida? Ai de mim, quem não morrerá de dor? Mas menor pena, menor mal seria, se morrendo, pudesse morrer; o pior é que morrerá sem nunca morrer. Ó pecador miserável, como é que não tremes, como é que não ficas horrorizado?
Mas o que eu considero digno de ser chorado pelos servos de Deus com lágrimas de sangue, é que esta cega e tola gente está de tal modo pervertida pelo falso conceito que tem da sua Rainha, que ela seja Deusa, que, por quantas razões se lhes dêem em contrário, não é possível que se lhes tire isso da cabeça. Conceito que lhes foi infundido pela própria Rainha, que se fazia tolamente e queria ser chamada Deusa, nos ânimos dos seus pretos, que ainda hoje persistem obstinadamente em a chamar, a considerar e reverenciar por tal, como muitas vezes me testemunhou Fr. Inácio, meu companheiro, tê-la ouvido assim chamar nas praças públicas em língua Ambunda, ou seja da terra, pelos mesmos pretos; e a própria Rainha para os enganar ainda mais, e mantê-los nesse falso conceito, operava muitas vezes por arte do Demónio, que os tinha alucinados e lhes punha névoas nos olhos, algumas maravilhosas demonstrações, pelas quais maior crédito e reverência lhe davam e como Deusa a aclamavam e adoravam.
Eu creio que o coração desta mulher, quando era Jaga, não fosse humano, mas coração de fera, como o do Rei Nabucodonosor quando, por castigo da sua soberba, de homem foi transformado em besta, porque o grande número de gente que fazia morrer na guerra e em paz, a sangue quente e a sangue frio, mostra claramente a sua bestial ferocidade.
Quando lhe dava o capricho, ou se sonhava de noite com algum seu parente defunto, fazia logo matar de manhã homens e mulheres, para que no outro mundo, como ela dizia e cria, o servissem, no que todos os Grandes, Cortesãos e familiares da sua Corte a aplaudiam, dando vivas à Rainha.
Zoroastro, inventor da arte mágica e Demócrito, Filósofo e Artémio, Capitão dos Tebanos e Pompeu, Cônsul Romano e muitos outros que tiveram comércio com os Demónios, e deram fé a sonhos, se, como já estão mortos, fossem vivos, contar-nos-iam os enganos, as burlas que deles receberam e os tormentos com que agora pagam no Inferno. Peço a Deus que esta Rainha que viveu como eles, enganada, não seja punida com eles na outra vida com o mesmo fogo do inferno, e condenada para sempre aos horrores daquela obscura prisão e tenebrosa caverna, onde, quem uma vez tropeça, não consegue nunca retirar o pé; pois pouco lhe valeria ter acreditado nas fabulosas histórias dos Poetas gentios, que fingem ter estado no Inferno e dele terem saído, como a fábula que dizem de Orestes, que lá entrou perseguindo as Ninfas; de Eneias que desceu lá para recuperar seu pai Anquises; de Orfeu que lá foi para libertar a sua querida Eurídice; e de Hércules por ter despedaçado a porta, a cuja guarda estava o cérbero Cão, que por três canas mandava do seu peito triplicados os latidos. Sabendo que, à saída daquele infame lugar, se lê aquele doloroso epitáfio: Deixai toda a esperança, ó vós que aqui entrais para sofrer para sempre e nunca regressar. Calo muitas outras malvadezas, e crueldades que ela fazia, para não enfastiar o leitor, com narrar uma longa história de coisas tão espantosas e horrendas; esta só direi como último sinal da sua bestial ferocidade e de seus enormes vícios, que na liberdade dada aos sentidos e à carne, foi uma outra Vénus impúdica, lasciva e desonesta: para desafogar os seus desejos libidinosos, tinha mais apaixonados e amásios que não tiveram amantes e namorados as Lamias, as Laidas e as Floras, que foram as três maiores meretrizes do mundo; da relação com eles teve ela um filho, que como acima disse, o Rei seu irmão mandou matar por razão de Estado e estatuto do Reino; e talvez por causa disso, ou pela sua natural soberba concebeu depois no ânimo uma aversão diabólica e um ódio mortal contra as crianças; tanto que não podia vê-los e apenas nascidos os mandava logo matar, com não menor crueldade que a de que usou o ímpio Herodes ao fazer morrer tantas crianças inocentes.
Chamava ela os amásios e amantes, de que estava bem fornecida, pelo grande número que tinha, suas namoradas e suas mulheres; por isso, vestindo ela fato de homem, queria que eles se vestissem de mulher e comparecessem à sua presença em gibão e saia de mulher; e é digna de ser aqui anotada uma outra esperteza de bárbara, ou melhor, diabólica crueldade, que se usava na sua casa, para fazer prova e saber se os seus concubinos lhe eram fiéis, e se misturavam com outras mulheres; e era que os fazia dormir todos num quarto grande na companhia das mais levianas moças da sua Corte e se por acaso algum deles tivesse pecado com alguma delas e se tivesse descoberto o delito, o que não raramente acontecia, eram logo cruelmente mortos por sua ordem. Muito dolentes e lamentando-se, várias vezes os concubinos lhe disseram: Senhora, por que nos faz Vossa Alteza dormir no mesmo local e pernoitar na companhia de mulheres jovens e belas? Como podemos nós aguentar os estímulos da carne? Quem poderá resistir aos ferozes assaltos dela e fazer a si mesmo uma violência contínua, sem nunca cair? Tire-nos esta vizinhança pois assim, longe da ocasião, seremos mais fiéis a si, e livrar-nos-emos de correr a toda a hora um perigo de vida tão manifesto.
Na casa do Tempo, duas entradas e duas saídas tem a ocasião, ambas no edifício e na estrutura semelhantes, mas diferentes nos efeitos. Uma Senhora, que ali não nasceu, nessa casa domina e superintende todas as coisas e o ser e a natureza delas, em qualquer altura muda, altera e confunde, fazendo que o bem apareça como mal e que o mal tenha o semblante de bem, e às vezes facilita até o impossível e não raro torna impossível o que é fácil. A maior parte dos homens amam-na sem a conhecerem e temem-na depois de a haver conhecido. Esta a razão pela qual jamais a vemos circundada de aplausos tanto quando de querelas; porque muito mais depressa nos encontramos do lado da má ventura, que da boa. No entanto não pense alguém em desculpar-se quando tropeçar no mal por força, ao passo que o não tropeçar está na sua liberdade e no seu poder. A ocasião é porta; mas não é impulso, é passo, mas não é movimento. Não diga o homem que, porque viu a ocasião, se perdeu; mas se se perdeu, foi porque quis entrar. Quem ama o perigo, diz o Sábio, perecerá no perigo, sem remédio.
Curiosamente provocou a ocasião um belo engenho. Pintou ele junto de uma tocha acesa um outro toco apagado há pouco, para ser aceso de novo por aquele; querendo significar que o fogo não incendeia, se não o que o toca, e não há modo de apoderar-se dele se não daquele que a ele se ajunta. Assim, se nós procurarmos, em vez de ficar longe, a ocasião de fazer o mal, saltam logo dela alguns átomos invisíveis, que por simpatia oculta, como pelo apagador é tirado o lume da chama acesa, puxam e chamam com o seu, o nosso próprio dano. Com grande mistério, o Cronista São Mateus diz de Cristo, que foi levado pelo espírito para o deserto à paleta das tentações. Era filho de Deus e como tal certo da vitória e triunfo que de lá traria e com tudo isso não quis expor-se por si à batalha, não quis ir ele encontrar o tentador, mas esperou ser ali levado por ele, não porque temesse Cristo o assalto e a peleja; mas para nos ensinar que não devemos ir ao encontro das ocasiões, nem expormo-nos nós mesmos nos perigos; pois quem se assegura demasiado de não cair, por mais justo que seja, cairá facilmente quando menos espera. Não basta ao pecador para não recair, o ter saído do pecado, se não sai também e não foge das ocasiões de pecar, e loucamente se dedica a fugir delas, que acaba por lhes ir ao encontro; porque, como diz o provérbio Quem demasiado confia o dano surge logo. Os amásios concubinos da Rainha queriam fugir da ocasião, porque temiam o perigo e conheciam o dano, que lhes poderia resultar da vizinhança demasiada das donzelas da Corte; por isso se queixaram a ela e lhe pediram que lhes tirasse aquela ocasião mas ela, como áspide surda, nunca quis dar ouvidos às suas instâncias e lamentos.
A conquilha, embora com as pérolas, precioso parto do seu fecundo seio, pague por assim dizer o seu tributo ao Pescador para resgatar-se das suas mãos, nem por isso pode conseguir a liberdade. A múrice, embora ofereça a sua púrpura, para que não seja presa do homem, não pode exigi-lo à sua sofreguidão. Ora, se tanto faz a avareza, a cupidez e a potência de um homem, que fará então a potência de uma mulher caprichosa, bárbara e desumana? A resposta que a Rainha deu aos seus amantes que lhe pediram para não conviver com as suas damas foi esta: É assim que me agrada, é assim que eu quero, tratai vós de não errar e isso basta.
Ora, quem não dirá ser este um prodígio da mão de Deus, que uma mulher tão cheia de vícios, de malvadez, e de rebaldarias, avidíssima como uma Harpia de espalhar e sugar o sangue humano, mais feroz que as próprias feras e mais selvagem se tenha, como mansa cordeira, tornado humilde, pacífica e obediente à voz do verdadeiro Deus que a chama e lhe oferece o perdão dos seus pecados? Estes são portentos monstruosos que Deus produz na terra, dos quais se admirava o Santo David quando dizia: Benedictus Dominus Deus Israel, qui facit mirabilia solus. Se és ímpio, diz Crisóstomo, pensa no Publicano, se imundo, considera a penitente Meretriz; se homicida, olha o Ladrão; se blasfemo, põe os olhos em Paulo, primeiro perseguidor, depois Apóstolo; antes Lobo, depois Pastor; antes chumbo, depois ouro; primeiro dissipador e depois Conservador da Igreja: Assim considero eu agora esta Rainha convertida, antes uma sentina de todos os vícios e pecados e agora um exemplo de penitência e um reduto de todas as virtudes e perfeições Cristãs.
Capítulo XXXI, aqui