6-8-2005

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Sodoma Divinizada, de Raul Leal

e Fernando Pessoa

 

Quando sai, em Novembro, o n.º 5 da revista Contemporânea, em vez da esperada réplica de Fernando Pessoa lá se encontra um pedido de rectificação:

 

«Pede-nos o Sr. Fernando Pessoa que indiquemos que houve um lapso ou erro de citação no trecho de Winckelmnann, na forma que lhe deu o Sr. Álvaro Maia ao transcrevê-lo do estudo António Botto e o Ideal Estético em Portugal, em que aparece traduzido. Onde o Sr. Álvaro Maia transcreve ‘tem de ser concebida’, está na tradução transcrita ‘tem que ser concebida’- exactamente como em português.

 

Solidário com Fernando Pessoa, Raul Leal resolve apoiá-lo nesta causa tão difícil de ganhar em Portugal. Por isso escreve um artigo à margem do tema central da polémica iniciada; mas que não deixa, anda assim, de chamar o poeta das Canções ao primeiro plano da poesia portuguesa. O seu artigo surge a 16 de Novembro no jornal  O Dia, tem por título António Botto e o Sentido do Ritmo, e considera o poeta nada menos do que Alta Descoberta, sem dúvida uma das mais altas do nosso século glorioso. Para Raul Leal, António Botto possui, sem dúvida, uma natureza universal mas universalmente portuguesa. Além disso, encontrando o sentido íntimo do ritmo, a sua natureza essencial, ele poderá viver deixando de ser a simples forma da Arte. O Ritmo assim torna-se Vida.

 

1923

 

Em Julho, Guerra Junqueiro morre. Mas antes, em Janeiro, nascem Eugénio de Andrade e Mário Henrique Leiria (só com dezassete dias de diferença); e nasce em Agosto Mário Cesariny de Vasconcelos, o que irá levar-nos - vai dizê-lo Raul Leal em 1958, empregando o vocabulário que lhe é tão caro — para regiões abstractamente siderais do Infinito. (Sessenta e cinco anos mais tarde será a vez de Mário Cesariny: dando voz a Fernando Pessoa e ao seu presumível pesar por não ter arriscado muito «em comportamento», escreve:

Raul Leal era

O único verdadeiro doido do «Orpheu»

Ninguém lhe invejasse aquela luxúria de fera?

Invejava-a eu.)

Mas 1923 também é ano de um presidente da República efémero: o escritor Manuel Teixeira-Gomes; e da primeira nomeação de Júlio Dantas para presidente da Academia de Ciências de Lisboa.

Raul Brandão publica Teatro e Os Pescadores, e sente os primeiros sintomas da doença que o há-de levar. Fernando Pessoa é poeta em francês (Trois Chansons Mortes), em inglês (Spell), e mesmo quando escreve em português é tentado a um título inglês: Lisbon Revisited.

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Quanto à polémica que aqui se pretende seguir, vai viver o período de mais forte tempestade. O facto de Fernando Pessoa não ter respondido a Álvaro Maia deixou Raul Leal insatisfeito. Não estava já em causa que o poeta das Canções pudesse ou não ser escolhido para cultor exemplar de uma estética de tradição grega; e também não estava em causa que pudessem acusá-lo de adepto da sexualidade urânica. Acaso ele, Raul Leal, não saberia conciliar no seu Vertiginismo tudo isto? Agora, que já tinha lido o Lá-Bas de Huysmans e se descobrira encarnação de Henoch, pai de Matusalem, avô de Noé, não poderia, ele próprio, divinizar Sodoma? Não mais teria do que fazer-se ouvir pela voz de Henoch e citar a Luxúria como estado entre todos divino. Houvesse templos onde ela pudesse adquirir um valor litúrgico, e o sensualismo místico surgiria no pederasta, e Sodoma seria exaltada pelo Verbo e pelo Espírito Santo.

 

Este projecto bizarro, esta recuperação do culto estético em pura Vertigem, foi teorizada num texto e o autor chamou-lhe Sodoma Divinizada (Leves Reflexões Teometafisicas Sobre um Artigo). A revista Contemporânea ter-se-á mostrado indisponível para a sua publicação? Não existem elementos suficientes para responder a esta pergunta. Saiu a público com a chancela da Olisipo, a editora de Fernando Pessoa.

 

 

SODOMA DIVINIZADA

 

Leves reflexões teometafisicas

 sobre um artigo

por

RAUL. LEAL (Henoch)

  

Publicou o Sr. Álvaro Maia na Contemporânea um artigo (1) bastante infeliz, criticando um outro (2) do meu querido Fernando Pessoa sobre a bela individualidade de António Botto. Nesse artigo o Sr. Maia, sem argumentar, cobre o autor das Canções de insultos os mais grosseiros. E através duma pretensiosa e falsa erudição em que só se sente vazio, não havendo na sua obrinha a mínima substância, não havendo enfim, nada, o Sr. Maia chega ao ponto, na sua bílis invejosa e despeitada parente a alheia formosura do corpo e do espírito que ele, coitado não pode possuir, chega ao ponto, digo, de negar talento e arte ao grande poeta que é Antonio Botto. Ora mais respeito pelos artistas, Sr. Maia. O senhor não tem o direito de cuspir na Arte lá porque é torto e feio. Se Deus lhe deu essa figura por alguma coisa foi e nessas condições o senhor, que se diz tão religioso, submeta-se sem revolta, sem gestos abomináveis de bílis plebeia, à vontade divina.

António Botto está já consagrado na alma do Fernando Pessoa, uma das mais altas individualidades de toda a nossa literatura, tão rica de Espíritos. Eu, num artigo que tive a honra do ver publicado n’O Dia (3), mostro como o poeta das Canções é um verdadeiro criador visto ser o primeiro a atingir a vida essencial do Ritmo, não se limitando, como até aqui se limitaram empiricamente todos os poetas, às suas manifestações exteriores. Teixeira de Pascoais enaltece o Artista em palavras profundíssimas, cheias de admiração e entusiasmo. E outros ainda, da mesma altura espiritual, o envolvem na mesma admiração o no mesmo amor. Portanto, Sr. Maia, se não quer cair no ridículo não contrarie a opinião dos Grandes.

Mas não é para defender António Botto que eu aqui estou. Contra os insultos baixos e soezes do Sr. Maia fala por si só o livro admirável do poeta já consagrado na alma dos Eleitos e conto sendo um dos Eleitos. Não é preciso eu defendê-lo contra si, senhor crítico das Obras de Deus. O que quero é precisamente atacá-lo nessa crítica tão insensata quão vazia.

A propóstto da bela individualidade de António Botto, o Sr. Maia ataca a luxúria e a pederastia, Obra Divinas. Incapaz de sentir os prazeres altíssimos da Carne-Espírito que o Verbo consagrou, ataca-os duma forma vil e tola. Como a Razão herética, filha da Serpente e de Anticristo, contraria o delírio da carne divinizada que é uma expressão de loucura bestialmente espiritual a negar a Razão, sacrílega anti-Loucura, anti-Vertigem, o Sr. Maia, esquecendo-se de que o racionalismo é filho dos últimos séculos de heresia e livre exame, enaltece-o encomiasticamente só para satisfazer a sua bílis contra a vertigem luxuriosa na Vida, antítese da Razão. Ora fique sabendo, Sr. Maia, que esta, procurando sempre determinar, delimitar precisamente tudo, a tudo põe limites, sendo a consagração herética do Limitado. Deus é o Infinito e impor o Limitado como o impõe a sacrílega razão, é negar Deus! Se o Infinito não vai contra limites é que ultrapassa antes metafisicamente todos os limites, obra Razão que determina, que limita tudo. O Infinito ultrapassa pois a Razão, é UItra-razão em em Vertigem. O que tem por essência o Infinito é, por natureza, indeterminável por ser indelimitável, é enfim, Indefenido Absoluto, que exprime pura Vertigem na Vida. Tudo é infinito, só o Infinito existe, só existe Deus, nada se pode pois determinar, possuindo pois tudo uma natureza imprecisa que se escapa de nós quando a procuramos agarrar pela razão determinadora, e deste modo se tudo é metafisicamente ou teomatafisicamente impreciso, incerto é que tudo tem a Vertigem por essência. A Vertigem é com efeito a suprema imprecisão anti-racional ou antes, ultra-racional das cousas mergulhadas no infinito de Deus. E é por mergulharem no infinito de Deus que as cousas são imprecisas, incertas, vertígicas. Logo a Vertigem é sagrada, é divina. O Infinito é o Indefenido Absoluto, é a própria Vertigem que é assim Deus!

Ora ela é pura, absoluta, existindo puramente, absolutamente, e o seu existir é um teometafísico manifestar-se infinito, infinitamente puro, evidente, berrante, bestial. E esse manifestar-se, cheio de berrantismo e bestialidade, é o próprio Mundo, metafísico berrante, metafísica Besta, e é também a Luxúria por se tratar de puro, de bestial manifestar-se de Vertigem. Na luxúria existe a Besta e existe a Vertigem, delírio, loucura espiritual dos Céus. Portanto a Luxúria é Obra de Deus!

Nela há a bestialidade do Manifestar-se Divino que é o Mundo—Verbo, e há a loucura delirante do Infinito que é a Vertigem. Essa é do Infinito, de Deus essência espiritual, a Sua própria divindade, o Seu Espírito Santo e portanto na luxúria divinizada através do Mundo-Verbo divino Manifestar-se puro, berrante, bestial - há bestial Carne-Espírito delirantemente em Vertigem e em Ânsia. No Infinito também a Ânsia existe porque sendo Indefinido puro, e assim se sentindo, é um eterno procurar definir-se, um eterno procurar-se  anímico, ansioso.

Assim se deve consagrar a luxúria, manifestação mundana de Deus em Vertigem que é o próprio Deus, o próprio Infinito essencíalízado. O culto erótico, ao contrário do que julga o Sr. Maia, o culto do excessivo divino que é a Vertigem pura, bestial encarnada mundanamente na luxúria, é a vertiginação do culto estético que, elevado assim a um atordoamento delirante, atinge o supremo paroxismo. A emoção luxuriosa é a emoção estética convulsivamente infinitizada. O estetismo simples atinge só a beleza determinada e pois com limites a delimitá-la, ao passo que o erotismo puro vai além de todos os limites, atingindo a vertigem do Infinito. A diferença, se é qualitativa, é por excesso absoluto de quantidade: o Infinito qualitativamente se distingue do Limitado mas porque se distingue dele quantitativamente em excesso. O erotismo e a luxúria são pois bem o paroxismo infinitamente convulsivo, vertígico do estetismo puro, não contrariando este, como julga o Sr. Maia. Num caso temos apenas o Belo, limitado por natureza, no outro caso temos o Sublime que não conhece limites, que só conhece a loucura delirante do Infinito que é Deus. E o que há é vários cultos estéticos, entre os quais alguns não chegam a ser luxuriosos, infinitos, puros, não atingindo a vertigem sagrada da Luxúria que é pois sagrada por ser Vertigem, por ser o divino Infinito. Nessa vertigem mundana, luxuriosa, o Infinito existe bem, pois nela existe tudo paroxisticamente: prazer, dor, espírito, carnalidade bestial, ânsia, morte… Ela é bem o Universo - Deus! Ora a beleza, Sr. Maia, não é só a beleza restrita que o senhor admira, há também a beleza monstruosa que pode atingir o Sublime. O belo tem muitas formas, sendo bela e muitas vezes sagrada a bestialidade. Bela é a bestialidade dos bailados russos, da Walkiria ou do Parsifal, sendo maravilhosamente sagrada e expressa nas formas horrendas das catedrais góticas, na pompa berrante, brutal da Igreja e enfim em muitas obras e atitudes dos místicos medievais - Porventura estes atingiriam a grandeza atingida se o seu misticismo não se cobrisse de bestialidades divinas? É que a bestialidade nesse caso é a pura, a berrante, brutal manifestação do espírito de Deus.

É na Besta, no Mundo que Deus se põe em evidência, acentuando-se puramente. Isso é bem compreendido pela Igreja que essencialmente O acentua numa pompa berrantíssima: a pompa em que se sente Deus é o próprio Manifestar-se Divino, puro, berrante, bestial. Só através de bestialidades puras se atinge o Sublime dos Céus. Por isso também os Grandes Devassos da Idade Média, S. Jerónimo e S. Agostinho seguidos por Santa Teresa de Jesus e Maria Alacoque, atingiram Deus através da Besta. Os êxtases misticamente luxuriosos dos ascetas exprimiam bem a Carne em convulsões pela grandeza vertígica de Deus. Há neles os espasmos delirantes do cio através de que a Matéria e o Espírito se confundem na Vertigem. Nos êxtases eróticos dos ascetas que sentem espiritualmente vibrar em si próprios a carne do Verbo, há toda a bestialidade-delírio da Vertigem divina a convulsionar a alma, assim misticamente carnalizada. É que os espasmos da Luxúria em que há Carne-Espírito a vibrar indefinidamente, são obra suprema de Deus. Eles são a própria Vertigem divina, a loucura celestial de Deus a manifestar-se bestialmente, sublimemente…

O culto luxurioso das formas bestiais não é pois antiestético, como pensa o Sr. Maia, podendo até ser divino. E o que digo da bestialidade convulsiva que pode tornar se sublime, digo de muitas outras cousas queridas dos devassos os mais exaltados, cuja beleza não pode ser atingida pela arte simples, quando impotente para sentir o que é subtilmente espasmódico. O facto de haver artistas que não são talvez luxuriosos, não prova que a Luxúria não seja em muitos casos o paroxismo da Arte. E é ela que sente o que há de divino em todos os aspectos da Existência, sendo ela que com a sua acuidade genial descobre a beleza natural deles, muitas vezes inacessível à arte, quando despida de Luxúria, arte que não atinge o paroxismo vertígico, luxurioso, divino. É por ser paroxística, ser Vertigem, sagrada enquanto espírito essencial de Deus, que a Luxúria procura o convulsivo e não apenas a beleza plástica, querendo pois a beleza da força brutal e dos nervos que a arte despida de sensualidade espasmodicamente espiritualizada não pode atingir.

A Luxúria é a mais alta manifestação de Mundo, é o Mundo em toda a sua bestialidade convulsivamente divina quando elevando a puro paroxismo. E se o Mundo é sagrado, sagrada, divina é a Luxúria! Ora antes de o Verbo surgir, o Mundo e no Mundo o Homem eram considerados fora de Deus que lhes era directamente inacessível. O Mundo era só o Inferior e Deus não se encontrava nele, não se encontrava em nós que somos o Universo visto o Universo ser só um desenrolamento de impressões nossas dirigidas interiormente pelo pensamento e pela emoção: o Universo só existe no nosso concebê-lo e no nosso senti-lo. Sendo assim, o alheamento das cousas divinas era fácil de se realizar, e portanto o reino da Serpente, feito só de Terra, só de Barro, surgindo alheado de Deus, devastava o mundo inteiro. Este era sentido só como cousa puramente terrena, sem substância e sem essência divina.

Mas surgiu por fim o Verbo que veio divinizar o Mundo. É neste que Deus se manifesta segundo o cristianismo, ele é o manifestar-se puro, berrante, bestial de Deus. E sendo nós, sendo o desenrolamento do nosso mundo de impressões, da nossa alma, visto ter Deus por essência, dá-nos a mesma essência divina. Cristo veio ensinar-nos que Deus está na alma, na alma-Mundo e não alheado dela como pensavam os hebreus e os filhos da Serpente. Cai-se assim no panteísmo ou no monismo? De modo algum, pois se é no Mundo Nós, no Mundo-Alma que Deus se manifesta, que Deus existe e em toda a Sua evidência, em todo o Seu esplendor excessivamente, convulsivamente bestial – pelo que tal esplendor exprime-se em Luxúria que é a divina Vertigem Besta - não resta também dúvida que sendo do Mundo, que sendo de nós a essência pura a animar-nos e a omnipotenciar-nos interiormente, é uma essência tão pura, é qualquer cousa de tão puro que se dá em si. Com efeito aquele que possui um purismo absoluto é só ele em abstracto, é uma individualidade absoluta separada de tudo e de todo o concreto. O que existe puramente é só feito de si próprio, de si próprio-Unidade, de si-próprio-Abstracção em que não há pois elementos estranhos como são os elementos concretos que lhe tirariam o purismo da sua natureza produto máximo duma destilação absoluta que o abstracciona, indefinindo-o pois absolutamente e através de pura infinitização visto tratar-se dum purismo de natureza absoluto, infinito. O que existe puramente, existe em si, o mesmo que em abstracto existir em si é existir num concentrar-se puro, absoluto que isola de tudo a abstracção pura que existe em si. Deste modo a essência do Mundo, sendo pura, sendo pois pura abstracção em que a sua natureza surge puramente destilada e pois sem elementos concretos, sendo enfim em si (Unidade em Si, Unidade - Abstracção), é qualquer cousa que se dá em puro concentrar-se, que é só puro concentrar-se, puro isolar-se do Mundo a que aliás pertence. O Mundo não está na sua essência, não está em Deus porque o Mundo é uma existência concreta e Deus, no Seu purismo, é pura Abstracção para quem todos os elementos concretos são estranhos. Enfim, o Mundo, Mundo-Nós, Mundo-Alma é divino porque é o manifestar-se de Deus, não sendo porém propriamente Deus. Isso por um lado pois como Deus só existe no Seu manifestar-se, a existência de Deus é por outro lado, sob outro ponto de vista, a Sua manifestação, isto é, o Mundo-Nós. E a existência ou antes o existir de Deus é o próprio Deus pois é nesse existir que Ele se realiza, que ele é Deus. Assim entre Ele e Mundo, entre Ele e nós surge uma situação contraditória, indecisa, incerta, vertígica, surgindo pura distinção vertigicamente em pura indistinção. Isso basta para não cairmos no monismo.

Antes de Cristo o Mundo é considerado apenas distinto de Deus e mostrando Cristo que Deus está no Mundo, está em nós por ser o Verbo essencialmente criador de nós, de nós Universo,  por ser a nossa própria essência anímica , mostrou-nos o caminho da divinização que se dá apenas desde que nos essencializemos, atingindo a nossa essência divina. O Mundo e o Homem são terrenos, vazios, impotentes quando se sentem alheados de Deus, alheados da sua própria essência. Mas descendo a esta apoderam-se de toda a sua força anímica, de todo o poder de Deus. E foi Cristo, encarnação do Verbo, quem mostrou essa possibilidade, fazendo surgir a distinção de Deus e Mundo, de Deus e Alma (Homem) de pura indistinção incerta, vertígica. Mas é então necessário que tudo no Mundo, que tudo em nós se não alheie de Deus que é a nossa essência, o que há de Superior na Alma e na Natureza, sendo Sobrenatural enquanto distinto dela - a distinção e a referida superioridade combinadas é que formam o conceito de Sobrenatural. Deste modo tudo na vida e no mundo deve transpirar Deus, transpirando assim Deus a pompa mundanamente sagrada da Igreja e a luxúria divínamente extásica dos ascetas, ao passo que Ele não é transpirado no luxo vulgar das naturezas profanas, alheadas da sua própria essência pelo que esse alheamento as torna impotentes, não sendo também em geral transpirado em toda a vida moderna, mesmo a mais bestial ou a mais requintada. É que o Reino do Verbo pereceu para lhe suceder, a partir da Renascença, o império de Anticristo que levou o Mundo e o Homem a tornarem-se de novo só Terra, só Barro, só distintos e não distintos-indistintos de Deus. Nós hoje alheamo-nos de Deus pelo que somos impotentes mas podemos viver a pompa e a luxúria que são o Mundo, misticamente, de modo a senti-las como expressão de Deus. Se terreno, sacrílego é o luxo das naturezas profanas, porque nele não se sente o espírito divino e se terrena, sacrílega é a devassidão luxuriosa dessas mesmas naturezas porque também nela Deus não surge misticamente, o mesmo não se pode dizer da pompa da Igreja e dos êxtases luxuriosos dos ascetas. Essa pompa e essa luxúria são bem a expressão de Deus a manifestar-se, não surgem vaziamente, indivinamente como as outras. No mundanismo profano Deus não se manifesta porque nele há só natureza, só Terra, manifestando-se então no mundanismo sagrado das naturezas exaltadamente místicas. Um palácio moderno, a pompa dos Bourbons ou dos Hohenzollerns não deixam transparecer Deus, sendo tudo isso só expressivamente terreno, mas nas catedrais góticas e na luxúria dos místicos Deus surge manifestamente em pura exaltação. Essas catedrais e essa luxúria são bem a expressão de Deus. E por que não há-de tudo tomar uma expressão divina?,.. Aos artistas compete sobretudo criar um ambiente em que se sinta imediatamente Deus em toda a sua bestialidade formidavelmente luxuriosa.

Por toda essas considerações se vê que se a luxúria pode ser profana, terrena, indivina, derivando isso da natureza, alheada de Deus, de alguns luxuriosos; também pode ser puramente mística, divina se os seus agentes forem místicos em pura exaltação, sentindo Deus através de tudo, através de todo o convulsionismo mundano, bestial e exercendo pois a luxúria corno reza elevada aos céus em extásicos espasmos ascéticos, precursores da Morte, precursores do Além... Sem dúvida o cio dum burguês e os actos bestiais que pratica no amor da carne não têm a mínima grandeza e muito menos misticidade. São só Terra ou antes Pó. Não assim o sensualismo dos artistas e estetas, sempre requintado, ou em delicadeza ou duma forma bestial como o bárbaro estetismo sensualista dos eslavos. Mas nos artistas os mais puros, o sensualismo, por muito bestialmente requintado, espiritual que seja, não é místico, é só terreno, não se envolve do perfume divinamente vertígico dos céus. No vício deles haverá Espírito-Besta mas só do Mundo alheado da Divindade. Apenas as naturezas exaltadamente ascéticas podem sentir na luxúria Sobrenatural e Deus. Vão além da Natureza que é o único plano dos burgueses e artistas terrenos. Há ocupações que são só da Terra; outras tanto podem ser da Terra como dos Céus, dependendo isso da forma como são exercidas e da expressão que tomam. As ocupações artísticas, científicas e filosóficas estão nesse caso e nesse caso estão também as ocupações do Vício e da Luxúria. Lá por haver luxurioso inferiores e terrenos não devemos condenar a luxúria que pode ser divina, manifestando o espírito bestialmente vertígico de Deus. Para a condenarmos tínhamos que condenar toda a arte e toda a ciência visto haver também artistas e cientistas inferiores ou pelo menos alheados das cousas divinas. Desde que a Arte, a Ciência e a Luxúria sirvam poderosamente a Religião, criando um ambiente de exaltado vício ascético e levando à divinização dos homens, levando-os a atingir a sua essência divina, a Arte, a Ciência e a Luxúria devem ser consagradas por todos nós. Só quando profanas, quando terrenas, naturalistas, ainda que superiores, deverão ser banidas porque deverá ser banido tudo o que é apenas da Terra. A Luxúria só por si não é condenável - ela pode ser a exaltação bestialmente vertígica dos Céus - , apenas a devemos condenar quando for só feita de Natureza, não exalando puro Sobrenatural em Deus. Mas condenável é então tudo aquilo em que não se sente espírito divino.

E consagrada não deve ser apenas a luxúria em geral, consagrada deve ser também a pederastia, quando divinamente sentida. Ela possui do mesmo modo fundamentos teológicos ou teometafísicos em Vertigem. Nela se exprime a unidade essencial de tudo, a unidade essencial da Existência em Deus. A divisão em dois sexos destrói essa unidade que devemos restabelecer através da pederastia. É no mesmo ser que devemos fundir a pura virilidade e a pura feminilidade. Trata-se de dois aspectos do mesmo. A divisão, a separação desses dois aspectos foi obra da Serpente que quis assim destruir a unidade essencial da Vida que tem Deus por essência, Deus que é a Unidade Pura. Para nos essencializarmos é indispensável a unificação da vida em nós visto a unidade que identifica tudo com tudo ser, precisamente, a nossa essência. Portanto a Vida não deve surgir mais dividida em duas partes, em dois sexos diferentes. É necessário restabelecer através de nós a unidade de Deus que se no fundo é eterna, para nós não o é, estando nós alheados dela visto pela Serpente nos termos dividido em duas partes. Estas devem confundir-se no mesmo ser se queremos essencializar-nos, se queremos atingir a nossa essência e portanto a nossa unidade essencial que é o Infinito, uno por natureza, que é enfim Deus, O Infinito não se divide em duas partes, é o supremo Um, e portanto o ponto de vista que vivemos da divisão da Vida em duas partes, em dois sexos é herético porque pretende destruir o Infinito, dividindo—o, porque pretende destruir o espírito uno de Deus. Se queremos atingir a nossa essência divina, puramente una, temos de restabelecer antes de mais nada a unidade da Vida em nós, fundindo os sexos num só. E é a pederastia, ainda melhor do que o safismo, que nos conduz a essa unificação teometafísica da Vida. Aliás a pederastia é a atracção da Força, é a mais alta manifestação de virilidade. Por isso tantos guerreiros -  César ou Frederico o Grande, por exemplo —— são pederastas. E não há sacerdotes da Igreja, dos mais piedosos, que o são igualmente? É isso uma fraqueza, acessível aos espíritos mais altos e mais santos? Conforme mostrei, é antes manifestação de força divina. É o pederasta que pode sentir Deus na Sua Unidade essencial e pois na Sua Omnipotência que dividindo-se, enfraquece. A simples ligação amorosa entre os sexos não estabelece uma unidade pura, absoluta mas apenas episodicamente artificial, fictícia e toda de superfície, toda empírica; enfim, não estabelece metafisicamente a fusão de dois seres num só, por muito convulsiva e extásica que seja a luxúria desenvolvida. A unidade pura e essencial, própria do Infinito, própria de Deus, só a pederastia poderá estabelecer. Só então se dará a divina fusão dos dois seres num só.

Isso não quer dizer que não haja pederastas inferiores ou incompletos. Mas desde que o pederasta seja um místico que exaltadamente sinta Deus em Unidade Pura e pura Omnipotência, pura Força de Vertigem—Ânsia, então a pederastia dele será divina. Ele sentir-se-á macho e fêmea, isto é, requintadamente, espiritualmente bestial e sentir-se-á assim como expressão nua e vertígica de Deus. No Universo nós existimos relativamente uns aos outros  pelos outros – pelos outros e para os outros – possuímo-nos pois mutuamente e pela poderosa acção anímica, cheia de vertigem e de bestialidade, que nos forma. Possuímos assim tudo, possuímos assim o Universo e pelo Universo que é nós, por todos os seres somos puramente possuídos em divina Vertigem-Besta. Eis uma justificação teometafísica da pederastia. E bem teometafísica pois existindo Deus só nosso, concebê-LO em puro senti-LO, sendo pois puramente possuído pelo nosso emotivo pensamento criador, sendo pois puramente possuído por nós, também nos possui em anímico Poder bestialmente vertígico, enfim em pura, divina Luxúria, visto O concebermos como criador de nós-Universo, como essência que puramente nos forma e pois puramente nos possui: criar, formar, conceber o mesmo é que possuir o que se concebe e que só existe na concepção, isto é, no espírito do criador mental.

Possuindo assim o Universo-Deus e pelo Universo-Deus sendo possuídos em Vertigem, em Luxúria, a nossa natureza é bem assim teometafisicamente pederástica, feita de actividade viril e passividade de fêmea. E isso devemos sentir intimamente por toda a Eternidade. Sentir o nosso pederastismo teometafísico o mesmo é que sentir a nossa natureza essencial. Aqueles que o não sentem, estão alheados da sua própria natureza, da sua própria substância.

Sodoma foi justamente condenada porque nela não existia Deus! Se os pederastas e luxurioso de Sodoma exercessem o vício duma forma divina, compenetrando-se em absoluto de que era Deus quem lhes convulsionava delirantemente a alma e os sentidos, compenetrando-se por exemplo, de que estavam a ser possuídos em carne e espírito por aspectos do Verbo espalhado no mundo inteiro, espalhado essencialmente em todos nós que somos aspectos vários, várias categorias da Existência Divina, então Sodoma não seria condenada a chamas purificadoras. Mas nessa cidade do Vício não havia piedosos,  a luxúria mais profunda era exercida como prazer da Terra, da Natureza em que o Sobrenatural se não imprimia misticamente. Era como cousa humana que se sentia o Vício e não como inspiração de Deus. Este encontrava-se puramente alheado dos homens. Portanto Sodoma não foi condenada às chamas por ser viciosa mas por não ser misticamente viciosa. A sua exaltação de vício era uma exaltação terrena em que Deus jamais era sentido, sendo só sentida a Terra e o Homem-Natureza, alheado da sua essência sobrenatural, divina. Foi só por isso, foi só pelo facto dos viciosos não serem exaltadamente místicos, não vivendo Deus na Luxúria, que Sodoma foi castigada como castigados por Cristo foram os vendilhões no Templo. Eles exerciam apenas ocupações terrenas, mal se compenetrando da Existência Divina e portanto era uma profanação naturezas só da Terra exercerem uma profissão só terrena no Templo sagrado de Deus. Luxúria, luxo, comércio, indústria, ciência, filosofia devem ser abominadas quando se exercem apenas duma forma terrena, alheada dos Céus. Mas quando o sopro divino destes animar quaisquer ocupações da Vida, quando essas ocupações forem formas particulares de ascese, então elas se divinizarão, saindo da sua atitude profana e herética. Enquanto só na Terra é que tudo é condenável, desde a vida do lar ou a actividade bruta e inteligente das oficinas até à prostituição ou aos movimentos sociais revolucionários.

Um pai que viva fundamentalmente para a mulher e para os filhos é tão condenável como um comerciante qualquer, por muito honrado que seja, e é ainda tão condenável como um escroque, um “souteneur”, um pederasta da rua e uma prostituta matriculada. A imoralidade e a desonra não são mais abomináveis do que a moralidade e a honra, quando expressão da Terra. Desde que tenhamos só preocupações humanas, terrenas, não sentindo exclusivamente Deus em toda a nossa vida, somos infernalmente condenados, quer haja em nós honestidade quer haja desonra. O que devemos é viver só para Deus, na luxúria, na pompa e em toda a vida… Aqueles seres que eu citei, o homem do lar, o comerciante honrado, o escroque, “souteneur”, o pederasta profissional e a prostituta só têm preocupações terrenas, humanas ou pelo menos são essas as suas preocupações fundamentais – e o ideal seria não termos nenhuma delas, nem fundamentalmente nem episodicamente, o ideal seria viver sempre para Deus em Ânsia, em Pompa e em Luxúria - ; só por isso devemos condenar essa gente. O pai que se preocupa muito com os filhos, o comerciante honrado que pensa muito nos seus negócios, o escroque que só vive para as suas trapalhices, são igualmente abomináveis visto as suas preocupações serem da Terra e não dos Céus. Não encontro diferença alguma. E na mesma ordem de ideias abomino, no fundo, a luxúria que não é de místicos e não se exerce misticamente. Mas quando assim se exerce o caso é diferente, então Sodoma diviniza-se.

Ora, sem dúvida, António Botto não satisfaz o meu ideal do luxurioso e pederasta místico; mas isso depende principalmente do meio em que vivemos, meio perverso em que se não sente Deus que assim se mantém alheado de nós. Mesmo naturezas exaltadamente místicas como a minha se sentem muitas vezes nefastamente influenciadas pelo meio depravado, sacrílego da vida moderna. Nada deixa hoje transparecer Deus imediatamente; só com um grande esforço de imaginação nós conseguimos vê-l’O; tudo é profano, pagão, terrestre, naturalista em volta de nós. Como é fácil pois sobrenaturalizar-nos no Amor e no Vício?... Seremos inferiores, condenáveis por não vivermos eternamente Deus em toda a nossa vida, mas somos todos igualmente condenáveis. O pederasta e luxurioso alheado das cousas divinas não é digno de censura por ser pederasta e luxurioso; é-o apenas como quaisquer outros homens – o do lar, o comerciante honrado, o escroque por não exercer o vício misticamente. Mas quem o pode hoje exercer no ambiente terreno, naturalista das nossas cidades e em que os nossos companheiros do vício se alheiam de Deus, sua própria essência?... Criem-se templos de Luxúria em que esta tome uma feição litúrgica e só então surgirá o verdadeiro sensualismo místico que há-de exprimir a divinização do Mundo, a divinização de Sodoma estabelecida exaltadamente pelo Verbo e pelo Espírito Santo de Deus!

(1) «Literatura de Sodoma: o Sr. Fernando Pessoa e o ideal Estético no Portugal» (Contemporânea, n.º 4).

(2)  «António Botto e o Ideal Estético em Portugal» (Contemporânea n.º3)

(3) O Dia, 16 de Novembro de 1922.

 

Logo de seguida, Raul Leal é alvo de um ataque cerrado da Liga dos Estudantes de Lisboa. A obra (Sodoma Divinizada) é apreendida, juntamente como as Canções de António Botto e o livro de poemas de Judith Teixeira, Decadência.

 

 

 Se as Canções de António Botto faziam carregar vários e bem comportados sobrolhos, o panfleto de Raul Leal continha “blasfémia” suficiente para acirrar contra ele os moralistas de mentalidade burguesa. Surpreende apenas que esses moralistas se não encontrassem entre os homens velhos, mas na juventude das escolas superiores da capital. A 20 de Fevereiro, poucos dias depois de ter sido posto à venda Sodoma Divinizada, o jornal A Época inseria nas suas páginas a seguinte notícia:

“Nos últimos tempos, a par de outros sintomas alarmantes, como o torpíssimo baile da Graça, apareceram por aí, à venda nas montras de conhecidos livreiros, que reduzem a negócio a antiga moral do negociante, apareceram por aí - íamos dizendo - uns livros, onde não sabemos o que seja mais repugnante e baixo, se a infâmia da linguagem, se a falta de vergonha de quem assina; se a ganância miserável de quem vende ou a falta de escrúpulos do comprador.

Desgraçadamente, as autoridades fazem vista grossa ou não vêem mesmo essas  vilíssimas e desavergonhadas manifestações de decadência moral, provocadoras de quantas ruínas possam imaginar-se. Com a lei nas mãos, os governadores civis não fazem uso dela.

“E a pornografia mais hedionda, segura da impunidade, alastra par todos os cantos da cidade, desde o postal obsceno ao livro ignominioso).

«Em face desta pavorosa indiferença de quem tudo podia fazer e nada faz, alguém, movido pela mais legítima revolta, se propõe queimar a ferro em brasa esses cancros de depravação de costumes e de espíritos.

“Esse alguém -  são os estudantes.

“Numa grande reunião de alunos das Escolas Superiores de Lisboa, ontem realizada e onde foram analisados os aterradores sintomas a que nos referimos, foi resolvido iniciar-se um grande e imediato movimento de acção moralizadora, tendente a reprimir, com a máxima energia e por todos os meios, a continuação e o aumento do miserável estado social.

Podemos acrescentar ainda que, em breves dias, esse movimento se exteriorizará duma maneira decisiva e enérgica.”

Dois dias depois, ficava a saber-se, pelo mesmo jornal, que o grupo de estudantes moralizadores era encabeçado por Pedro Teotónio Pereira (nessa altura com 20 anos de idade mas a preparar já a futura carreira, a que dentro de dez anos iria permitir-lhe ser - a convite do governo de Salazar - subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social; e dentro de treze sobraçar a pasta do Comércio e da Indústria; e dentro de catorze ser agente português junto de Franco; e dentro de quinze embaixador em Espanha; e dentro de vinte e dois embaixador no Brasil…)

Com uma pequena entrevista, feita a Teotónío Pereira, o jornalista M.R.L. notícia dos objectivos da Liga de Acção dos  Estudantes de Lisboa:

“Pedro Teotónio Pereira, antigo director da Federação Académica de Lisboa e distintíssimo aluno do 4.º ano de Matemática da Escola Politécnica, pertence à vanguarda prestigiosa dos rapazes novos que, sacudindo as teias de aranha do preconceito liberalista, foram lavar o espírito às fontes eternas e saudáveis das tradições nacionais e religiosas.

“Pedro Teotónio Pereira, - como não podia deixar de ser – faz parte do movimento de acção moralizadora que os estudantes superiores vão imediatamente iniciar, conforme anunciámos [ante]ontem.

“É ele, pois, que vai falar sobre este assunto:

- “Nós já andávamos há muito tempo alarmados com a vergonhosíssima desmoralização que, sob os mais repugnantes aspectos, alastra constantemente por aí… Mas como na verdade não estávamos em contacto directo com os elementos desmoralizadores, passou muito tempo, alguns anos, sem que nos decidíssemos a tomar quaisquer resoluções.

- “Até que ultimamente…

- “Vendo a criminosa indiferença das autoridades – prossegue Teotónio Pereira – e sentindo a gravidade dos sintomas por demais conhecidos de toda a gente, deliberámos em reunião dos alunos das Escolas Superiores de Lisboa, há três dias realizada, formar uma espécie de liga de acção directa, que vai exercer com a máxima energia funções preventivas e ao mesmo tempo repressivas.

« Por onde vão começar - interrogou o jornalista –essa obra de higiene moral e social?

- “Há tantas coisas para fazer, meu caro amigo, que não sei por onde começaremos … No entanto, dir-lhe-ei que principiaremos, em boa ocasião, por meter na ordem esses equívocos senhores que andam por aí, nas ruas e nos cafés, irritando o indígena – como eles dizem – com maneiras femininas e elegâncias ridiculamente exageradas. .

- “Refere-se…

- “Aos meninos desavergonhados que frequentam clubes e baile duvidoso e que, num dia de Carnaval, foram presos e logo soltos por andarem vestidos de mulher… Lembra-se?

- “Sim, vagamente…

- “Pois esses meninos escandalosos vão ser metidos na ordem mais depressa do que V. julga…

- “Como?

- “Verá depois. Na ocasião actual, em que toda a gente ou quase toda se furta a responsabilidades, nós – os estudantes – vamos tomar aos nossos ombros a tarefa de queimar a ferro em brasa, expondo-os à luz do sol, esses cancros nauseabundos que têm medrado à custa da fraqueza de uns e da tolerância incompreensível de outros.

- “ E que mais tencionam fazer?

- “Fiscalizar as livrarias e meter também na ordem os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais como este, aquele e aqueloutro

“E Teotónio Pereira citou-me vários folhetos, publicações e livros que eu, por uma questão de limpeza, não cito nestas colunas.

-« Mas essas cousas - disse eu – estão sob a alçada do governo civil…

- “Pois estão, mas o triste facto é que o chefe do distrito e a polícia nenhum caso fazem.

- “Infelizmente é verdade.

- “ Em vista de tanto é que nós entendemos intervir, como se diz em linguagem policial… Ah! Pode afirmar ainda que exerceremos uma rigorosa censura nos teatros e cinemas, enfim, que tomaremos a nosso cargo o papel que lá fora compete aos poderes legalmente instituídos.

- «A Academia em geral recebeu bem a iniciativa?

- “Admiravelmente. As notícias que vieram nos jornais provocaram em todas as faculdades o maior entusiasmo. Ontem recebemos umas trezentas adesões! Só receberemos os rapazes que nos convierem…

- “Questão de número?

- “Não, de qualidade…

- “Agora, a derradeira pergunta: quando principiam?

- “Discretamente, já principiámos…

- “Não compreendo…

- “Tenha paciência. De aqui por alguns dias terá notícias nossas…”

Três dias mais tarde, A Época incluía uma pequena nota sobre o mesmo assunto. É provável que Fernando Pessoa ou Raul Leal tivessem enviado à secção de crítica literária do jornal um exemplar de Sodoma Divinizada, pois a reacção é expressa da seguinte forma:

«Ao fogão vão parar certas publicações escandalosas que se não podem ter em casa e cujo título nem deve ser referido para se lhe não fazer reclamo. E há livrarias que descem à miséria de as estadear nos seus mostradores! E há jornais que as mencionam e elogiam!

Pesa-nos ter de corresponder nestes termos à atenção da oferta destas obras, em prosa umas, outras em verso.

 

« Produções de manicómio com título pornográfico; baixo soalheiro, corrupto e corruptor, da derrancada sociedade frequentadora das casas de tavolagem; composições ignóbeis, em que um talento poético prostituído faz gala da miséria repugnante; tudo isso, impresso luxuosamente em óptimo papel; são livros que pertencem mais ao domínio da polícia que da crítica, nem podem ser guardados em estante que se preze.

“Alimentem pois esses livros, sem reclamo prévio, o fogo purificador, havendo para com os autores a deferência de lhes não citar os nomes.”

 

*

*    *

 

Nos primeiros dias de Março é ordenada a apreensão de alguns livros – “imorais”. Da editora Olisipo são apreendidos as Canções de António Botto e Sodoma Divinizada de Raul Leal. (Escapam Antinous e Epithalamium de Fernando Pessoa, talvez por estarem escritos em inglês). É também apreendido Decadência de Judite Teixeira, colaboradora da Contemporânea.

No dia 6 de Março, a liga de Acção dos Estudantes de Lisboa é recebida pelo Governador Civil, e a seguir distribui um manifesto. A Época dá-nos também noticia desse facto e o texto do próprio manifesto.

“O manifesto que deixamos transcrito foi ontem largamente distribuído nas ruas, nos cafés, nas casas de chá e nas livrarias da baixa por alguns centos de rapazes da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa.

“Antes de fazerem a distribuição. os rapazes reuniram-se em grande número - deviam ser umas cinco da tarde - ao princípio da Rua António Maria Cardoso, saindo dali em grupo para o Governo Civil, onde tiveram uma conferência com o chefe do distrito sobre o importante assunto de que o referido manifesto se ocupa. O Sr. Capitão Viriato Lobo, não escondendo a simpatia que a atitude dos estudantes lhe mereceu, comunicou-lhes ao mesmo tempo que já tinha mandado apreender algumas edições de livros onde não sabemos qual seja o maior defeito: se a falta de talento, se a falta de vergonha...

“Os rapazes ficaram radiantes com a boa vontade que o Sr. Governador Civil demonstrou e crentes em que Sua Ex. vai empenhar se a valer na urgente luta contra os vários aspectos da imoralidade que por aí campeia.

“Depois desta conferência é que os estudantes se dirigiram então a diversos pontos da baixa, distribuindo milhares de manifestos, que eram lidos. com aprovações entre o público em geral.

“Os próprios livreiros foram gentilíssimos para com os rapazes prometendo-lhes não aceitar à comissão nem vender a tal literatura de Sodoma.

As Escolas Superiores de Lisboa podem orgulhar-se de ter iniciado ontem um dos mais belos movimentos dos últimos anos.”

 

 

AOS PODERES CONSTITUÍDOS

E A TODOS OS HOMENS HONRADOS

DE PORTUGAL

 

pela

LIGA DE ACÇÃO DOS ESTUDANTES DE LISBOA

 

 

Não vimos tratar de política, nem trazemos também um novo programa de partido, pronto a salvar o país.

Simplesmente, na nossa função de trabalhadores do Espírito e de soldados da Ciência, entendemos que é chegado o momento do erguermos a nossa voz para ser escutada por todos aqueles que a possam compreender.

A situação de Portugal é desgraçada.

Profundamente e totalmente.

A nós, fere-nos mais de perto, na nossa sensibilidade, a parte moral e intelectual da derrocada que nos rodeia.

É dela que vimos falar.

Não queremos agora aprofundar causas ou apontar responsabilidades. Basta que constatemos os factos e apontemos o caminho a seguir.

De dia para dia o mal é mais fundo e mais avassalador. Derrubaram-se todas as fronteiras do espírito entre a inteligência e a loucura, entre a beleza e a perversão.

Mascarados em mil hipocrisias literárias, em pseudofilosofias extravagantes, encobrindo a sua animalidade em frágeis farrapos de escolas inverosímeis, todos os baixos instintos humanos, numa liberdade desvairada, se erguem, alastram, dominam como flores de pântano no crepúsculo triste duma terra abandonada.

É contra essa dispersão, contra essa inversão da inteligência, da moral e da sensibilidade, que nós gritamos numa revolta sagrada da nossa dignidade de homens, o protesto vibrante dos que não deixam cerrar os seus olhos à luz da Verdade.

Já não se paira, por desgraça, no campo das atitudes snobs e literárias. Atingiu-se a última abominação, aquela que nas tradições bíblicas fazia chover o fogo do céu.

Urge a reacção pronta e implacável. À frente dela se levanta a nossa mocidade forte e resoluta. Nas nossas mãos brandimos o ferro em brasa que cicatriza as chagas.

A quem manda nós apontamos hoje a necessidade imperiosa de fazer justiça. É preciso que os livreiros honrados expulsem das suas casas os livros torpes. É necessário que os adeptos da infâmia caiam sob a alçada da lei, que um movimento enérgico de repressão castigue em nome do bem público.

Que a justiça venha e implacável!

 

 

Mais uma vez Pessoa reage. Assinando Álvaro de Campos, publica na sua editora os opúsculos Sobre um Manifesto de Estudantes e Aviso por Causa da Moral.

 

 

SOBRE UM MANIFESTO

DE ESTUDANTES

 

 por

FERNANDO PESSOA

 

 

Há três cousas com que o espírito nobre, de velho ou de jovem, nunca brinca, porque o brincar com elas é um dos sinais distintivos da baixeza da alma: são elas os deuses, a morte e a loucura. Se, porém, o autor do manifesto o escreveu a sério, ou crê louco o Dr. Raul Leal, ou não crendo, usa o parecer crê-lo para o conspurcar. Só a última canalha das ruas insulta um louco, e em público. Só qualquer canalha abaixo dessa imita esse insulto, sabendo que mente.

Ainda sobre vileza, O Dr. Artur Leitão, se escreveu um opúsculo antipático, escreveu-o contudo contra o presidente do conselho, então ditador: atacou um homem que tinha consigo toda a força das autoridades do Estado e da Tradição; um homem que, a ser louco, sem dúvida exerceria, pelo lugar que ocupava, uma acção largamente nefasta (1). 

Os estudantes são de melhor cálculo. Entrincheirados simultaneamente no Governo Civil e na Época - isto á, na república e na monarquia -  seguros por isso do apoio de toda a imprensa e da consequente dificultação de qualquer protesto, ataram insultam confiadamente. Atacam e insultam a quem? A um homem que não os atacou, que está sozinho ou tão pouco acompanhado que é como se o estivesse, sem posição que o torne perigoso a quem o ataca, sem influência que torne prejudicial a sua acção, supondo que ela em sua essência o seja. E porque foram movidos a esse insulto? Por aquilo mesmo que os devera demover, se o intentassem; por um manifesto em que sem dúvida transparece uma alta inteligência e se mostra uma altíssima dignidade. Estúpidos e sórdidos, são por isso incapazes de conceber a possibilidade de um talento alheio que não compreendam, ou senão de rebelar-se contra a alheia dignidade, como se a existência dela os humilhasse.

De resto, terão eles culpa? Fortes, como estão, com a força alheia, cujo apoio os torna representantes e símbolos dela, esta vasa do liberalismo e da democracia é já o transbordar das forças desintegrantes, de cuja acção provém a nossa miséria nacional. Sim, eles não são eles próprios: São o ambiente que os produziu. São bem o resultado da Monarquia dos Braganças e da República Portuguesa. São bem o produto de uma sociedade em que vários séculos de educação fradesca e jesuítica prepararam, pela anulação do espírito crítico e científico, o advento das ideias «liberais»; em a qual, portanto, a estagnação da inteligência se completou, como era lógico, com a perversão do carácter e a ruína da ordem.

É por essa mesma estupidez, e esta mesma complexa vileza, que o manifesto dos estudantes, sendo que, sendo que é de jovens, é entristecedor. Moços, cuja inteligência deveria ser, não por certo disciplinada, porém álacre e dispersa, rastejam assim na imbecilidade. Jovens, cuja moral devia pecar só pelos defeitos do impulso e da precipitação, mostram-nos, no emprego da subtileza baixa, da desonestidade da inteligência e do cálculo sórdido, os vícios menos desculpável da decrepitude.

Nem as ideias doentias de grandeza, nem as ideias de perseguição bastam, de per si, separadas ou juntas, para provar a paranóia. Há mister que se manifestem de certa maneira, que se desenvolvam de certo modo, e que nelas e em seu desenvolvimento haja o que se chama sistematização. E, provada que não seja a paranoia, pode a morbidez mental revelada descer facilmente - e quase sempre se verá que desce - do nível das psicoses para o das neuropsicoses, cuja gravidade é muito menor, como a sua natureza muito diferente. Tenho notado — leigo que sou —  em casos de simples histereplipepsia a eclosão episódica e irregular de tais ideias; nunca, porém, nelas se estabelece uma coordenação tal, que simulem de perto um delírio sistematizado.

No Dr. Raul Leal não se revelam ideias de perseguição. No manifesto dele parece haver, em algumas referências à Igreja Católica, um esboço muito vago delas. Como, porém, na sua conversação e nos actos da sua vida tais ideias nunca surgem, nem mesmo vagas, podemos considerar o que no manifesto as simula como menos que episódico, pormenor antes da só imaginação exaltada, sobretudo literariamente, que da inteligência em desvio. A exaltação mórbida do orgulho e da personalidade é que nele é manifesta e frequente. Carece, porém, de linha mórbida directriz, que a constitua em delírio. E tem, talvez, ainda que doentia na sua manifestação, uma razão de ser que de certo modo o não é, e que de todo a diferença do delírio das grandezas.

A presença ou ausência de elementos justificativos de um orgulho excessivo é um facto primordial para se fazer juízo em casos desses. O orgulho desmedido, e, por desmedido, doentio, de um homem de génio não tem analogia, senão na forma externa, com o delírio orgulhoso de um megalómano vulgar. Quando um homem de génio, cujo génio reconhecemos já, manifesta um orgulho doentio, desculpamos-lhe o excesso da afirmação pela razão, que lhe vemos, para fazê-la. Que diríamos, porém, se esse mesmo homem de génio manifestasse esse mesmo orgulho, do mesmo modo legítimo porque o homem é o mesmo, antes que o reconhecêssemos como génio? Tê-lo-íamos, talvez, por louco. Assim, muitas vezes, o que nos parece a loucura dos outros não é mais que a nossa própria incompreensão.

Como sabem os estudantes, como sabe quem quer que seja, se o orgulho desmedido do Dr. Raul Leal não é ilegítimo hoje só para ter sido sempre legítimo amanhã? Acham excessivo, mesmo como doença, o aspecto desse orgulho? Acham sofistica a demonstração de que não é louco quem que quer fundar uma nova religião, «o terceiro reino divino»?

Por muitos que sejam os sintomas de desequilíbrio que uma psiquiatria justa possa encontrar no Dr. Raul Leal, não são tantos quantos os sintomas de loucura, de degeneração, de perversão intelectual e moral que um psiquiatra eminente, o Dr. Bínet-Sanglé, encontrou na pessoa de .Jesus Cristo, o qual, contudo, fundou uma religião, como mesmo os estudantes de Lisboa devem saber.

Os três volumes intitulados La folie de Jésus constituem, sem dúvida, um exemplo de probidade clínica e de exposição psiquiátrica. Nelas podem os estudantes aprender, lendo, como se demonstra um caso de loucura. Fechados eles, porém, podem aprender, reflectindo, que é a loucura que dirige o mundo. Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os génios, sem os quais a humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam.

Disse o que tinha que dizer. Concluo saudando, que assim manda a tradição.

Aos estudantes de Lisboa não desejo mais - porque não posso desejar melhor –de que um dia possam ter uma vida tão dignam uma alma tão alta e nobre como as do homem que tão  nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta hora da plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha amizade, que não tem limites, mas também da minha admiração pelo seu alto génio especulativo e metafísico, lustre, que será, da nossa grande raça. Nem creio que em minha vida, como quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente, que é a de tê-lo por companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, diferentes e sozinhos, sob os chasco e o insulto da canalha.

 

(1) Artur Leitão, médico republicano, escrevera anos antes um opúsculo que aproveitava as teses de Max Nordau, em La Dégénérescence, para classificar João Franco, então Presidente do Conselho, de degenerado inferior.

 

 

 Álvaro de Campos

 AVISO POR CAUSA DA MORAL (1922)

 

 

Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim - exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor...

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más - boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte.

Mas quanto ao resto, calem-se. Calem-se o mais silenciosamente possível.

Porque há só duas maneiras de se ter razão. Uma é calar-se, que é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.

Tudo mais é uma grande maçada para quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais por acaso estamos presentes.

Europa , 1923.

 

Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 

Publicado em folha volante.

 

 

Entretanto, Fernando Pessoa continuou a sua colaboração na «Contemporânea» onde publicou Soneto já antigo de Álvaro de Campos (n.º 6 - Dezembro de 1922),  as Trois Chansons Mortes (n.º 7 - Janeiro de 1923) e Lisbon Revisited, 1923 de Campos (n.º 8 - Fevereiro de 1923).

 

1926

 

Desde o 28 de Maio há em Portugal o regime que trará Salazar e o Estado Novo.

O jovem Marcelo Caetano anda descontente com a falta de vigilância das autoridades Dir-se-á que moralização dos costumes abrandou, desde a espectacular intervenção de Pedro Teotónio Pereira e da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa. E por isso mesmo, no n.º 5 da publicação Ordem Nova que na própria capa se anuncia “antimoderna, antiliberal, antidemocrática, antibolchevista e antiburguesa; contra-revolucionária; reaccionária; católica, apostólica e romana; monárquica; intolerante e intransigente; insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras, das artes e da informação”, escreve um artigo chamado Arte Sem Moral Nenhuma onde desabafa assim:

“Têm ultimamente aparecido nas livrarias – alguns precedidos de largo reclame – vários livros obscenos. Houve já uma inundação parecida, aqui há uns anos, quando um tal Sr. Raul Leal publicou um opúsculo intitulado Sodoma Divinizada, que nas montras era ladeado pelas Canções dum tal António Botto, e por um livro de grande formato intitulado Decadência, duma desavergonhada chamada Judite Teixeira.

«A intervenção dos estudantes de Lisboa pôs cobro a este estado de coisas com grande indignação do Sr. Júlio Dantas e de vários impagáveis bípedes, catedráticos e não-catedráticos, académicos e não-académicos. Ele há cada um!

“O que é facto é que o Leal e o Botto e a Sr.ª Judite Teixeira foram todos para o Governo Civil onde, sem escolha, se procedeu à cremação daquela papelada imunda que empestava a cidade.”

Mas, se este desejo de auto-da-fé era possível em relação a livros e publicações que pusessem em perigo a boa moral dos portugueses, mais difícil era fazê-lo impedir  que se expressassem opiniões políticas adversas ao regime que governava. Por isso se organiza (nos finais de Agosto) um grupo irritado contra a ferocidade crítica de Raul Leal e que vai surpreendê-lo à mesa de um café. A Reacção noticiou o incidente:

“Raul Leal, que é possuidor duma rara coragem e espírito de sacrifício, tem atacado publicamente duma forma esmagadora os Escândalos da Assistência – uma das muitas quadrilhas que por nosso mal tem tripudiado neste desgraçado país.

“Custou-lhe o atrevimento – se assim se pode chamar – uma agressão cobarde, sendo agredido num café da Baixa por um numeroso grupo de indivíduos que, munidos de bengalas e cavalos-marinhos, o espancou brutalmente, sem que a Polícia prendesse nenhum dos facínoras.”

Durante vinte e três anos, Raul Leal deixará de escrever em jornais.

 

1927

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Há, no entanto, uma ditadura militar, e quem se revolta contra ela ou é preso ou tem que sair do país: Aquilino Ribeiro vai durante um ano para Paris.

Almada também sai, mas porque pretende trabalhar em Madrid: ali descobrirá a relação 9/10 num elemento arquitectónico do Tesouro de Delfos e num vaso de Suse.

Fidelino de Figueiredo, esse é nomeado director da Biblioteca Nacional. (A tipografia de que se mantém proprietário inspira lhe, contudo, uma decisão infeliz: reduz o salário dos que lá trabalham em 25%, aumenta em 2 horas diárias o seu período laboral e é espancado por um dirigente sindical.)

Vitorino Nemésio, jovem escritor, publica A Varanda de Pilatos.

António Ferro publica Viagem à Volta das Ditaduras, onde descreve o seu encontro com Mussolini: “Eu sou um admirador sincero do Fascismo e do seu chefe», diz-lhe quando se apresenta. “Desejo esclarecer o meu país sobre a actual situação da política italiana.»

  

1928

 

Salazar é Ministro das Finanças.

Fernando Pessoa publica O Interregno – Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, manifesto com a chancela do Núcleo da Acção Nacional.

A 15 de Agosto Aquilino evade-se (estava encarcerado na prisão de Viseu, por ter tomado parte da revolta do regimento de Pinhel).

 

 

NOTA:

As notas em itálico são de Aníbal Fernandes e foram extraídas do seu livro sobre este caso:

LEAL, Raul, Fernando Pessoa, Álvaro Maia, et al. Sodoma divinizada: uma polémica iniciada por Fernando Pessoa a propósito de António Botto, e também por ele terminada, com ajuda de Álvaro Maia e Pedro Teotónio Pereira (da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa). Organização, introdução e cronologia de Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena Editora, Julho de 1989. Colecção Memória do Abismo, 23. 8°, 157 pp.