4-8-2005

 

Sodoma Divinizada, de Raul Leal

e Fernando Pessoa

 

Em 1921, Fernando Pessoa fundou a editora Olisipo, com a qual só conseguiu perder dinheiro.

António Botto (1902 – 1959), um poeta amigo de Pessoa, homosexual,  havia publicado em 1920 na editora Agartha Press as Canções do Sul, no que é considerada a 1.ª edição das Canções, o seu principal livro de poemas. No início de 1922, a editora Olisipo publica a 2.ª edição do livro, chamado agora simplesmente, Canções.

Em Maio de 1922, José Pacheco dá início à publicação da revista Contemporânea, cujo primeiro número inclui O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa.

O livrinho de António Botto agradara a Pessoa, que no n.º 3 da Contemporânea publica o artigo António Botto e o ideal estético em Portugal (pág. 37 a 50), que a seguir se transcreve.

 

 

 

ANTÓNIO BOTTO E O IDEAL ESTÉTICO EM PORTUGAL (1922)

 

 

António Botto é o único português, dos que conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância. Com um perfeito instinto ele segue o ideal a que se tem chamado estético, e que é uma das formas, se bem que a ínfima, do ideal helénico. Segue-o, porém, a par de com o instinto, com uma perfeita inteligência, porque os ideais gregos, como são intelectuais, não podem ser seguidos inconscientemente.

A obra de António Botto, no que realmente típica, resume-se, por ora, no seu último livro, «Canções». Que essa obra se distingue com facilidade da obra de qualquer outro poeta, português ou estrangeiro - todos, que possam ver, o podem ver. Já não é tão fácil explicar em que consiste, distintivamente, essa diferença. Algum interesse haverá em determiná-lo.

 

Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.

Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.

Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita; é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização, senão na essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.

Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que parece que deveria ser. Assim, todo o corpo é imperfeito porque não é um corpo perfeito; toda a vida imperfeita porque, durando, não dura sempre; todo o prazer imperfeito porque o envelhece o cansaço; toda a compreensão imperfeita porque, quanto mais se expande, em maiores fronteiras confina com o incompreensível que a cerca. Quem sente desta maneira a imperfeição da vida, quem assim a compara com ela própria, tendo-a por infiel à sua própria natureza, força é que sinta como ideal um conceito de perfeição que se apoie na mesma vida. Este ideal de perfeição é o ideal helénico, ou o que pode assim designar-se, por terem sido os gregos antigos quem mais distintivamente o teve, quem, em verdade, o formou, de quem, por certo, ele foi herdado pelas civilizações posteriores.

Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência, ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior - inferior a qualquer coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a superioridade. É esta inferioridade essencial que, neste critério, dá às coisas a imperfeição que elas mostram. Porque é vil e terreno, o corpo morre; não dura o prazer, porque é do corpo, e por isso vil, e a essência do que é vil é não poder durar; desaparece a juventude porque é um episódio desta vida passageira; murcha a beleza que vemos porque cresce na haste temporal. Só Deus, e a alma, que ele criou e se lhe assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida. Este é o ideal a que poderemos chamar cristão, não só porque é o cristianismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós.

Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não existente, porque a não existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição. Teremos a vida por ilusória não já imperfeita, como para os gregos, por não ser perfeita, não já imperfeita, como para os cristãos, por ser vil e material; senão imperfeita por não existir, por ser mera aparência, absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. É deste conceito de imperfeição que nasce aquela forma do ideal que nos é mais familiarmente conhecida no budismo, embora as suas manifestações houvessem surgido na Índia muito antes daquele sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo substrato metafísico. É certo que este ideal aparece, com formas e aplicações diversas, nos espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de quase todas as confissões. Como, porém, foi na Índia que as manifestações formais dele distintivamente apareceram, poderemos ser imprecisos, porém não seremos inexactos, se dermos a este ideal, por conveniência, o nome de ideal índio.

 

Pela própria natureza do seu ideal, é a civilização helénica essencialmente a civilização artística. Fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza objectiva, beleza acrescentada à que há no mundo. Para que esta actividade lembre e preocupe, é mister haver um critério objectivo de beleza ou de perfeição. Ora, dos três critérios de perfeição só o dos gregos tem objectividade. Que impulso natural pode ter para criar obras de arte, formas que pertencem ao mundo e à vida, quem, como o cristão, tem o mundo por pó e mal, a vida por vileza e pecado, ou quem, como o místico da Índia, tem toda a Aparência por ilusão absoluta, flor que nasceu murcha na haste da Mentira? Se a criação artística não procedesse de um instinto irreprimível nas comunidades civilizadas, nunca teria havido arte índia, nem cristã. E a arte cristã, por certo, ter-se-ia aproximado mais da imperfeição estrutural e formal da arte índia, se não fosse que o helenismo é um elemento componente do cristianismo, e que a arte dos povos cristãos, tendo a dos gregos por exemplar, se guia, nas suas manifestações superiores, pelos princípios assentes como fundamentais pelo preceito e exemplo dos clássicos.

 

Há, porém, uma outra razão, esta mais emotiva e profunda, para que o ideal helénico seja, de todos, o que mais directamente conduz à criação artística.

O cristão é metafisicamente feliz. Tem os olhos da alma postos naquela perfeição divina em que não há mudança nem cessação. Pesa-lhe pouco a vileza do mundo: viver e ver são para ele um mal-estar transitório. Ao índio nada dói o haver mundo; volta para o lado o rosto, e contempla em êxtase o Todo a que nem o Nada falta. É metafisicamente feliz também.

Outra é a vida espiritual do homem de ideal helénico. Esse vê que a vida é imperfeita, porque é imperfeita; porém não rejeita a vida, porque é na mesma vida que tem postos os olhos. Mesmo que veja no mundo dos deuses aquela beleza suprema, pela qual anseia, anseia também por essa beleza nos homens. «A raça dos deuses e dos homens é uma só», disse Píndaro; a uns deve pertencer o que aos outros pertence. Por isso, dos três idealistas, é o heleno o único que não pode rejeitar aquela vida a que chama imperfeita. O seu ideal é, portanto, humanamente o mais trágico e profundo.

De aqui o que resulta? A carência de uma fé religiosa, de uma confiança, moral ou metafísica, no Além, reduz as almas vis ou à materialidade animal, ou à estéril ficção de um milénio do estômago - o socialismo, o anarquismo, e todos os plutocratismos invertidos que se lhes assemelham; por isso os mais cépticos dos gregos e dos romanos nunca pretenderam que se destruísse a fé religiosa das plebes por estulta e irrisória que a julgassem. Se é este, porém, o efeito do ideal puramente objectivo nas almas inferiores, nos espíritos superiores, que são os susceptíveis de criar, o efeito é outro. Não podendo buscar consolação espiritual na religião, força é que a busquem na vida. Como, porém, encontrá-la na vida, se a vida é imperfeita, e o imperfeito, por sua natureza, não pode construir ideal, porque o ideal é perfeição? Aperfeiçoando a vida, para que a sua imperfeição lhes doa menos. Aperfeiçoando-a como? Objectivamente não pode ser, porque a acção humana sobre o universo é menos que limitadíssima. É portanto só subjectivamente que se pode aperfeiçoá-la, aperfeiçoando o conceito e o sentimento dela. A consolação e o repouso, no que podem atingir-se, só a Arte, portanto, os pode dar. A Arte é, com efeito, o aperfeiçoamento subjectivo da vida.

A calma, o equilíbrio, a harmonia, característicos distintivos, com outros, que os não contradizem, da arte grega, provam bem que não é abusiva a atribuição desta íntima direcção lógica ao caminho do instinto helénico para o ideal estético absoluto.

Quando o heleno pretende pôr em arte o seu ideal, isto é, quando o ideal helénico assume o aspecto criador ou activo, são três as formas de manifestação por que se revela.

Na primeira, e mais alta, dessas formas, o heleno, vendo que a vida é imperfeita, busca criar, ele, a perfeição, substituindo a arte à vida; e busca incluir em cada obra, para que a substituição seja perfeita, ou toda a vida ou um aspecto supremo da vida. É esta a forma intelectual e construtiva do ideal estético absoluto; Homero e Vergílio dos antigos, Dante e Milton dos modernos, são os representantes máximos dela. As obras destes poetas mostram a preocupação severa da perfeição absoluta, revelada tanto na estruturação harmónica de um conjunto pleno de significação, quanto na execução escrupulosa de todos os elementos seus componentes.

Na segunda, e média, dessas formas, o heleno sentindo que a vida é imperfeita, busca aperfeiçoá-la em si próprio, vivendo-a com uma compreensão intensa, vivendo de dentro, com o espírito, a essência do transitório e do imperfeito. E esta a forma emotiva e dolorosa do ideal estético absoluto; foi este conceito da vida o que criou a tragédia, desconhecida, como espécie emotiva e estética, antes dos gregos.

Na terceira, e ínfima, dessas formas, o heleno, vendo e sentindo vagamente a imperfeição das coisas, porém sem força espiritual, quer para construir uma perfeição que as substitua, quer para se consubstanciar emotivamente com a sua imperfeição, decide aceitá-las como se fossem perfeitas, escolhendo em cada uma aquele momento, aquele gesto, aquela passagem que de tal modo encheu a nossa capacidade de sensação que naquele momento, naquele gesto, naquela passagem, a sentimos perfeita. É esta a forma sensual do ideal estético absoluto; forma débil, porque não a energiza uma reacção da inteligência, vazia, porque a emoção lhe não dá corpo, mas por isso mesmo, porque é estética e mais nada, propriamente classificável de ideal estético, sem qualificação.

De que maneira, por que processo reconheceremos o esteta, propriamente tal, na sua obra? Quais são os sinais necessários da aplicação do ideal estético? Como distinguiremos, se se trata de poetas, o esteta do poeta simples, que canta simplesmente o prazer e a vida, porque lhe não cabe mais na alma? Como distinguiremos o esteta do cristão revoltado, que procura o pecado só porque é pecado, e blasfema, embora subtilmente, só para ter a consciência da blasfémia? Em outras palavras, como distinguiremos o esteta do satânico menor?

A distinção não apresenta dificuldade, desde que nos representemos com clareza em que consiste necessariamente a aplicação activa do ideal estético.

Se o ideal estético consiste na consideração vaga de que a vida é imperfeita, e que só é perfeita, num momento feliz, a nossa sensação dela, força é que essa consideração não atinja um alto grau de absorção metafísica ou moral; porque, se for altamente metafísica haverá consciência de mais para poder haver ilusão, e, se for altamente moral, haverá dor de sobra para que a ilusão possa agradar.

O primeiro característico da arte do esteta é pois a ausência de elementos metafísicos e morais na substância da sua ideação. Como, porém, os ideais helénicos procedem todos de uma aplicação directamente crítica da inteligência à vida, e da sensibilidade ao conteúdo dela, essa ausência de metafísica não será uma ausência de ideias metafísicas, nem essa ausência de moral uma ausência de ideias morais. Há uma ideia que, sem ser metafísica nem moral, faz, na obra do esteta, as vezes das ideias morais e metafísicas. O esteta substitui a ideia de beleza à ideia de verdade e à ideia de bem, porém dá, por isso mesmo, a essa ideia de beleza um alcance metafísico e moral. A célebre «Conclusão» da «Renascença» de Pater, o maior dos estetas europeus, é o exemplo culminante desta atitude.

Nisto se distingue a obra do esteta da obra do artista simples, em quem os elementos metafísicos e morais são ausentes, não por diferença de ideal, senão por ausência dele.

Se, porém, o esteta substitui a ideia de beleza à ideia de verdade e à de bem, o certo é que, por isso mesmo que as substituiu por outra, se não interessa pelas ideias de bem e de verdade. Não é por isso, propriamente, nem céptico nem imoral; o propósito de ser céptico revela uma preocupação metafísica, o de ser imoral uma preocupação ética, e o carácter negativo de ambas as preocupações não as torna menos preocupações. Nisto claramente se distingue o esteta do mau cristão decadente, como Baudelaire ou Wilde.

 

Se tivermos presentes estas considerações na análise do livro de António Botto, não nos será difícil determinar que esse livro representa uma das revelações mais raras e perfeitas do ideal estético, que se podem imaginar.

Que a substância do livro é altamente intelectual, revela-o o estudo cuidado da forma e ritmo, a escolha severa dos momentos representativos, a falta de espontaneidade emotiva que em cada verso se manifesta. Tudo é pensado, tudo é crítico e consciente. Não há, porém, como seria de esperar de uma inteligência tão constantemente empregada, metafísica nenhuma, nem explícita nem implícita, interesse nenhum pelas ideias como tais. É uma inteligência que dirige, porém não pensa; que compreende, porém não aprofunda; que guia, porém não se preocupa. Nem positivamente, nem negativamente, sugere o livro « Canções» qualquer metafísica. Duas ideias centrais governam a inspiração do poeta, e lhe servem de metafísica e de moral. São as ideias de beleza física e de prazer. A análise do conteúdo dessas duas ideias, tais quais se nos apresentam nas «Canções», revelará o esteta inequivocamente. No modo como apresenta a primeira delas, o poeta afasta-se de toda a espécie de moralidade; no modo como apresenta a segunda, de toda a espécie de imoralidade.

 

Das três formas, que podemos conceber, da beleza física  - a graça, a força e a perfeição - , o corpo feminino tem só a primeira, porque não pode ter a beleza da força sem quebra da sua feminilidade, isto é, sem perda do seu carácter próprio; o corpo masculino pode, sem quebra da sua masculinidade, reunir a graça e a força; a perfeição só aos corpos dos deuses, se existem, é dado tê-la. Um homem, se se guiar pelo instinto sexual, e não pelo instinto estético, cantará, como poeta, só o corpo feminino. Essa atitude representa uma preocupação exclusivamente moral. O instinto sexual, normalmente tendente para o sexo oposto, é o mais rudimentar dos instintos morais. A sexualidade é uma ética animal, a primeira e a mais instintiva das éticas. Como, porém, o esteta canta a beleza sem preocupação ética, segue que a cantará onde mais a encontre, e não onde sugestões externas à estética, como a sugestão sexual, o façam procurá-la. Como se guia, pois, só pela beleza, o esteta canta de preferência o corpo masculino, por ser o corpo humano que mais elementos de beleza, dos poucos que há, pode acumular.

Foi assim que pensaram os gregos; foi esse pensamento que Winckelmann, fundador do estetismo na Europa, descobrindo-o neles, reproduziu, como no passo célebre que Pater transcreveu, e que parece feito para servir de prefácio a um livro como «Canções»; «Como é confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral, assim tenho notado que aqueles que observam a beleza só nas mulheres, e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens, raras vezes têm instinto imparcial, vital, inato da beleza na arte. A pessoas como essas a beleza da arte grega parecerá sempre falha, porque a sua beleza suprema é antes masculina que feminina».

Ora é este conceito puramente estético, da beleza física que é, como todos sabem, porque escandalizadamente se notou, uma das duas ideias inspiradoras das «Canções».

 

Disse eu que António Botto se afasta de toda a moralidade no modo por que canta a beleza física, e que se afasta de toda a imoralidade no modo por que canta o prazer. De que modo canta ele o prazer? Que modo há-de cantar o prazer que, sem ser moral (porque se o fosse, estaríamos fora do caso estético), se afaste da imoralidade?

Para com o prazer há três atitudes possíveis - aceitá-lo, rejeitá-lo, aceitá-lo com moderação. A cada uma destas atitudes correspondem graus vários de moralidade e de imoralidade, porque pode haver moralidade no modo de aceitar o prazer, e imoralidade na maneiras de rejeitá-lo. Aqui, porém, trata-se de quem aceita o prazer, e só o prazer; não temos portanto que considerar as outras hipóteses.

Aceite o prazer, e só o prazer, de que modo pode ele ser aceite? Pode ser aceite como alegria, ou como forma da alegria, e é esta a maneira moral, porque é natural, de aceitar o prazer. Pode ser aceite como excitação, como, por assim dizer, a única forma agradável da dor, pois que toda a excitação - tomada a palavra no sentido vulgar, e não no fisiológico - tem um fundo de dor; e é esta a maneira imoral, porque é a antinatural, de aceitar o prazer. Pode, finalmente, ser aceite simplesmente como prazer, como, em sua essência, nem alegre nem triste, porém a única coisa que pode encher o vácuo absurdo da existência. Deste conceito de prazer não se pode dizer que seja moral nem imoral, logo que se não esqueça que se está considerando o prazer só, isolando-o de qualquer outro elemento da vida.

Quem leia com atenção normal o livro «Canções», não tardará que veja, é este último o conceito que António Botto forma do prazer, que é neste sentido de compreendê-lo que ele o canta. «Canções» é um hino ao prazer, porém não ao prazer como alegria, nem como raiva, senão simplesmente como prazer. O prazer, como o poeta o canta, nem serve de despertar a alegria da vida, nem de ministrar um antídoto a uma dor substancial constante; serve apenas de encher um vácuo espiritual, a ser conceito de vida a quem não tem nenhum. Há neste livro, sim, a intuição do fundo trágico do ideal helénico, do fundo trágico de todo o prazer que sabe que não tem além. Essa intuição, porém, se é do que é trágico, não é trágica em si. Este prazer não tem a cor da alegria, nem a da dor. «A alegria» disse Nietzsche, «quer eternidade, quer profunda eternidade». Não é, nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento.

Resulta destas considerações, que me esforcei por fazer lúcidas e concisas, a determinação exacta de que António Botto, no seu livro « Canções», se revela um dos tipos mais perfeitos e mais íntegros do esteta, que se podem imaginar.

Que importância tem este facto? A de representar uma raridade. O tipo perfeito do esteta é raríssimo na civilização cristã, ou de origem cristã, e mais que raro, porque, até às « Canções», desconhecido, em Portugal. A razão dessa raridade, quer em toda a Europa, quer em Portugal, e o valor que nela haja, são relativamente fáceis de compreender.

O ideal estético é, como se viu, uma das formas - a mais ténue e vazia - do ideal helénico; mas, por isso mesmo que é a mais ténue e vazia delas, é a mais explicitamente representativa daquele ideal. Para que apareça um tipo de esteta é necessário um meio social análogo ao meio social helénico. Ora o meio social europeu, se é certo que modernamente, e em algumas das suas manifestações, de certo modo se aproxima, tanto quanto pode ser, do meio social da Grécia antiga, é em todo o caso, radicalmente diferente dele. Segue que o aparecimento na Europa moderna de um tipo íntegro de esteta só pode dar-se por um desvio patológico, isto é, por uma inadaptação estrutural aos princípios constitutivos da civilização europeia, em que vivemos.

Este desvio patológico é, porém, no caso dos grandes estetas europeus o elemento predisponente, se bem que, por isso mesmo, radical, do seu estetismo; a ele se acrescenta uma mergência prolongada do espírito na atmosfera helénica, que lhe cria um perpétuo contacto, ainda que só intelectual, com a Grécia antiga e os seus ideais. Da acção deste segundo elemento sobre o primeiro o esteta desabrocha. São desta origem os estetismos de Winckelmann e de Pater, quase, em verdade, os únicos tipos exactos do esteta que a civilização europeia pode apresentar. Como, porém, este estetismo tem uma base cultural, resulta que tem a plenitude e a largueza que distinguem todos os produtos culturais, em contraposição aos naturais seus semelhantes, e por isso de algum modo transcende a estreiteza específica do ideal estético, sem todavia deixar de lhe pertencer.

Como os elementos culturais são inteiramente negativos na obra de António Botto, vemo-nos forçados a assentar em que o seu estetismo nasce de um simples desvio patológico, sem solicitação cultural eficiente. Este processo de ser esteta apresenta uma singularidade notável: é um desvio patológico sem desequilíbrio, porque todos os ideais gregos (e portanto o estético, que é um deles) são essencialmente equilibrados e harmónicos. Ora um desvio patológico equilibrado é uma de duas coisas - ou o génio ou o talento. Ambos estes fenómenos são desvios patológicos, porque, biologicamente considerados, são anormais; porém não são só anormais, porque têm uma aceitação exterior, tendo, portanto, um equilíbrio. A esse desvio equilibrado chamar-se-á génio quando é sintético, talento quando é analítico; génio quando resulta da fusão original de vários elementos, talento quando procede do isolamento original de um só elemento.

Adentro do ideal estético, os casos de Winckelmann e de Pater representam o génio, porque a tendência para a realização cultural imanente no seu estetismo ingénito é, por sua natureza, sintética, o caso de António Botto representa o talento, porque o ideal estético, dada a sua estreiteza e vacuidade, representa já o senso estético isolado de todos os outros elementos psíquicos, e, no caso de António Botto, esteta simples, esse isolamento não se modifica, como no estetismo culto, pelo reflexo nele da multiplicidade dos objectos de cultura.

Temos, pois, por demonstração severamente conduzida, que o livro «Canções» é uma obra de talento, tendo além desse, o valor acessório e especial de ser o único exemplo, que eu saiba, na literatura europeia, do isolamento espontâneo e absoluto do ideal estético em toda a sua vazia integridade.

À parte este valor, que pertence àquela obra em absoluto, isto é, como obra e não como obra em português, o livro «Canções» tem, para nós em Portugal, um outro aspecto de valor, já de ordem relativa. É que é o único exemplo em Portugal da realização literária, de qualquer espécie, do ideal estético. Facilmente o verificará quem houver lido com atenção o que estabelecemos sobre os característicos do esteta. Artistas tem havido muitos em Portugal; estetas só o autor das «Canções».

 

Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 

1ª publ. in "Contemporânea", nº 3. Lisboa: Julho. 1922.

 

  

No n.º 4 da mesma revista, de Outubro de 1922, é publicada uma carta de Álvaro de Campos.

 

  

Álvaro de Campos

 

[Carta dirigida à revista Contemporânea] (1922)

 

Meu querido José Pacheco:

 

Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua «Contemporânea» para lhe dizer que não tenho escrito nada e para pôr alguns embargos ao artigo do Fernando Pessoa.

Quereria mandar-lhe também colaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.

Isto de mim, que é quem mais próximo está de mim, apesar de tudo. De si e de sua revista, tenho saudades do nosso «Orpheu» ! V . continua sub-repticiamente, e ainda bem . Estamos, afinal, todos no mesmo lugar. Parece que variamos só com a oscilação de quem se equilibra. Repito-lhe que o felicito. Julgava difícil fazer tanto bem aos olhos em Portugal com uma coisa impressa. Julgo bom que julgasse mal. Auguro à «Contemporânea» o futuro que lhe desejo.

Agora o artigo do Fernando. Com o intervalo entre a primeira palavra desta carta e a primeira palavra deste parágrafo, já quase me não lembra o que é que lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exactamente o que vou escrever a seguir. Enfim, prometi, e digo o que sinto agora, e segundo os nervos deste momento.

Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada se prova senão para ter a hipocrisia de não afirmar. O raciocínio é uma timidez - duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.

Ideal estético, meu querido José Pacheco, ideal estético! Onde foi essa frase buscar sentido? E o que encontrou lá quando o descobriu? Não há ideias nem estéticas senão nas ilusões que nós fazemos deles. O ideal é um mito da acção, um estimulante como o ópio ou a cocaína: serve para sermos outros, mas paga-se caro - com o nem sermos quem poderíamos ter sido.

Estética, José Pacheco? Não há beleza, como não há moral, como não há fórmulas senão para definir compostos. Na tragédia físico-química a que se chama a Vida, essas coisas são como chamas - simples sinais de combustão.

A beleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si-própria de preferências provavelmente de origem magnética. Tudo é um jogo de forças, e na obra da arte não temos que procurar «beleza» ou coisa que possa andar no gozo desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilíbrio de força - energia e harmonia, se V. quiser.

Perante qualquer obra de qualquer arte - desde a de guardar porcos à de construir sinfonias - pergunto só: quanta força? quanta mais força? quanta violência de tendência? quanta violência reflexa de tendência, violência de tendência sobre si própria, força da força em não se desviar da sua direcção, que é um elemento da sua força?

O resto é o mito das Danaides, ou outro qualquer mito - porque todo o mito é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.

Li o livro do Botto e gosto dele. Gosto dele porque a arte do Botto é o contrário da minha. Se eu gostasse só da minha arte, nem da minha arte gostava, porque vario.

E, à parte gostar, porque gosto? É sempre mau perguntar, porque pode haver resposta. Mas pergunto - porque gosto? Há força, há equilíbrio de força, nas «Canções»?

Louvo nas «Canções» a força que lhes encontro. Essa força não vejo que tenha que ver com ideais nem com estéticas. Tem que ver com imoralidade. É a imoralidade absoluta, despida de dúvidas. Assim há direcção absoluta - força portanto; e há harmonia em não admitir condições a essa imoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz para todo o imoral; e tem a harmonia de não tender para mais coisa alguma. Acho inútil meter os gregos no caso; grego se veria o Fernando com eles se eles lhe aparecessem a pedir-lhe contas do sarilho de estéticas em que os meteu. Os gregos eram lá estetas! Os gregos existiram.

A arte do Botto é integralmente imoral. Não há célula nela que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não hipocrisia, uma não complicação. Wilde tergiversava constantemente. Baudelaire formulou uma tese moral da imoralidade; disse que o mau era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá à sua imoralidade razões puramente imorais, porque não lhe dá nenhumas.

O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão.

Não lhe digo mais. Se continuasse, contradizer-me-ia. Seria abominável, porque talvez fosse uma maneira (a inversa) de ser lógico. Quem sabe?

Relembro saudosamente - aqui do Norte improfícuo - os nossos tempos do «Orpheu», a antiga camaradagem, tudo em Lisboa de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava - tudo com a mesma saudade.

Saudo-o em Distância Constelada. Esta carta leva-lhe a minha afeição pela sua revista; não lhe leva a minha amizade por si porque V. já há muito tempo aí a tem.

Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.

Um abraço do camarada amigo

 

ÁLVARO DE CAMPOS

 

Newcastle-on-Tyne, 17 Outubro 1922.

 

Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 

1ª publ. in "Contemporãnea", nº 4. Lisboa: 1922.

 

 

Adormecida durante três meses, a questão desperta em Outubro quando é posto à venda o quarto número da Contemporânea e se verifica que Álvaro Maia (1) está indignado e responde ao artigo que Fernando Pessoa escrevera no número anterior.

 

(1) Jornalista; 35 anos de idade; formado em Letras; explicador ao domicílio de matérias do curso dos liceus; tradutor e revisor de jornais. Quatro anos depois de morrer, teve um livro póstumo: Vento sobre a Charneca.

 

Pessoa, para Álvaro Maia, engana-se redondamente; os Gregos defendiam, sim, o culto da beleza masculina, mas nada disso tem a ver com a sexualidade urânica de que António Botto é adepto. As suas Canções não são livro de um bom poeta, e mais não fazem do que denunciar a patologia que o desejo de fazer escândalo é, constituindo, além disso, o último dos sintonias da deliquescência romântica. Literatura de Sodoma (O Sr. Fernando Pessoa e o Ideal Estético em Portugal), assim se chama o artigo de Álvaro Maia.

 

 

LITERATURA DE SODOMA

 

O Sr. Fernando Pessoa e o ideal estético em Portugal

por

 

ÁLVARO MAIA

 

Senhores meus, nunca eu me vi em tamanha atarantação!... Aqui muito à puridade lhes confesso, coração nas mãos, pena emperrada e hesitante, que não sei como demónio hei-de começar este artigo e, — o que é muito pior! — nem mesmo chego a decidir comigo se o devo ou não lançar à publicidade... Aqui têm os leitores da Contemporânea um assunto de que é urgente falar, mas que requeria um canto absolutamente isolado, como as salas escondidas de certos museus por esse mundo de Cristo... O que lhes tenho a dizer abonam-no a voz de Deus, a prosa candente e viril do Apóstolo das Gentes, a saúde do corpo e do Espírito; estão comigo as regras invioláveis da natureza e os ensinamentos inflexíveis da razão humana quando despida de romantismos de qualquer espécie, a Razão que actua sobre a sensibilidade e dela é capaz de se tornar absoluta dominadora... Mas, Deus do céu!, não é contudo verdade também haver assuntos repugnantes que se podem facilmente tornar pedra de escândalo — e ai de quem der escândalo!, ameaça a voz divinamente cândida de Nosso Senhor pela boca dos seus evangelistas! — assuntos que, tratados com a largueza necessária, podem redundar em reclame a obras de maldição, atenta a morbidez da humana curiosidade nestes tempos de transição, em que a imunda teoria dos vícios pretende encovar a alfurja por entre as ruas floridas da mocidade?... Valha-me Deus, que nem eu sei como a minha consciência há-de traduzir para o papel o que é urgente afirmar — para colocar as coisas no lugar devido, para desviar de sobre a minha geração aquelas imputações nefandas que o seu silêncio poderia suscitar, mas que o seu culto da serena e divina Beleza em absoluto condena e repele...

Preciso falar-lhes de Sodoma: que os anjos enviados por Deus a casa de Lot abstraiam da minha indignidade e me acompanhem na repugnante travessia...

…Que Nosso Senhor seja comigo!

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Visava a foros de enorme retumbância entre os moços da geração que ora passa, o artigo-sofisma que o Sr. Fernando Pessoa, cultivando a blague com amor e o escândalo com dedicação, há semanas publicou nesta revista, feita expressamente para gente civilizada e para civilizar gente. Mas, a escandaleira política dos últimos tempos levou de vencida o doentio propósito do novel escritor e eu acharia justo remetê-lo ao esquecimento se, por má ventura, ele não houvesse ficado arquivado para leitura de todo o momento nas páginas de arte desta revista para gente civilizada...

Entre os novos tornou-se já um estafado lugar-comum o indicar o nome do Sr. Fernando Pessoa como um dos mais representativos entre os valores da minha geração. Não serei eu quem conteste a verdade de tal afirmativa, antes a confirmo com a minha nenhuma autoridade, e é exactamente por isso que me espanto com as turbas vendo-o enfileirar entre os sinfonistas dos fedores, remexer, às mãos ambas e plenas, os escorralhos nauseantes da esterqueira romântica, olhar com amorosa complacência o pus literário dos últimos gafados. Sequioso de ineditismo, pescou do justo esquecimento um livro sem arte nem beleza e como, nessa miséria impressa, fosse claramente feita a apologia daquelas aberrações sexuais que levaram Deus a sepultar Sodoma e Gomorra sob um dilúvio de fogo e enxofre, o Sr. Fernando Pessoa sacudiu de sobre o livro a poeira espessa que o encobria, pendurou-o nas primeiras protuberâncias lunares que se lhe talharam, falou-nos do culto da Beleza entre os Gregos e, com toda a imponência — aquela imponência que lhe dá a admiração que todos os novos lhe dedicam — proclamou ore rotundo que o autor daquela escorrência literária é o único entre os portugueses a quem o título de esteta pode caber.

Um triste sorriso de ironia e de piedade — eis o que devera provocar sempre a leitura das páginas geradas pelo espantoso lapso mental do Sr. Fernando Pessoa... Não concorrendo no livro que tanto o entusiasma qualidade alguma que o recomende à admiração dos estetas — de tal modo escassearam no seu autor faculdades de realização literária, tão pobre é o seu conteúdo mental, tão chatas e languescentes as suas construções podálicas - forçoso será concluir que a intrusão dos Gregos no arrazoado panegirista do Sr. Fernando Pessoa, apenas é devida ao facto de o livro referido ser uma torpe exibição do amor trácio.

E realmente desolador que o Sr. Fernando Pessoa não tenha respeito pela sua própria inteligência... Por justa consideração para com o Sr. Fernando Pessoa de ontem, respondamos ao Sr. Fernando Pessoa de hoje, e façamo-lo — para desviar suspeitas de parcialidade — não à luz dos nossos princípios religiosos e morais, mas sim ajudado pelos princípios da própria cultura helénica.

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Pondo de parte tudo quanto no seu artigo nos diz sobre os critérios de imperfeição e o ideal helénico, — mero amontoado de coisas boas e más, que para o caso não passa de simples falatório, — admitamos o que Winckelmann, citado pelo Sr. Fernando Pessoa, afirma e que reproduzo textualmente:

Como é confessadamente a beleza do homem que tem de ser concebida sob uma ideia geral, assim tenho notado que aqueles que observam a beleza só nas mulheres, e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens, ra­ras vezes tem um instinto imparcial, vital, inato da beleza na arte. A pessoas como essas a beleza da arte grega pare­cerá sempre falha, porque a sua beleza suprema é antes masculina que feminina.

Se me dá licença, acho o argumento daqueles que voltam os bicos contra o argumentador. Em primeiro lugar, se muito são de espírito não ousa expressar em público a sua admiração pela be­leza masculina é porque tem receio de que o confundam desas­tradamente com os amadores de actos contra-natura, entre os quais enfileira o próprio Winckelmann. Em segundo lugar, sendo a arte grega o culto da beleza plástica, e um perfeito concerto de harmonias e de linhas terrenas, a perros teria de se dar o Sr. Fernando Pessoa para me convencer de que os seus estetas pos­suem esse culto, sentem esse concerto. Se me dá licença, repito, o argumento volta-se contra o argumentador, e os seus estetas não vão além de simples devotos do orgasmo invertido: para disso nos capacitarmos bastará ler o livro do seu panegirizado. Uma coisa é ter veneração pela beleza plástica, como na maioria dos gregos; e outra, inteiramente diversa, é a impulsão genésica, seja ela hétero ou homossexual. Um corpo de atleta, aonde se verifiquem perfeições de estátua grega, é uma coisa bela, incontestavelmente bela, como obra da sabedoria divina, Mas, por ventura os indivíduos que, patologicamente, se desviam da contemplação da beleza masculina e se deixam levar pela onda ascorosa do desejo invertido, porventura esses serão estetas, no sentido puro e insofismável da palavra? Acaso esses réus do nefando, — como o Santo Ofício justiceiramente os apelidava — acaso eles têm o culto da beleza plástica, à semelhança dos helenos e no que ele possuía de mais elevadamente artístico? Por amor de Deus!, deixemo-nos de hipocrisias! Para se ter o sentido da beleza física, mister se torna possuir também o sentido das proporções, o respeito pelas inflexíveis leis da natureza, ou — o que é muito mais elevado e filosoficamente cristão — o culto pela obra de Deus, pelo que de perfeição Deus pôs nessa obra, para nos dar uma ideia do que, de mais perfeito, nela poderia ter posto. Ora, o que a experiência tem demonstrado a todos quanto estudam as profundas misérias sexuais de todos os tempos, é que os tais estetas, na sua totalidade esfuriados pela pedicação, não possuem de modo algum o sentido da Beleza plástica mas única e exclusivamente a tentação pela anormalidade sexual. E esse o único móbil do seu escândalo e só esse. E a experiência igualmente demonstra ser raríssimo os réus do nefando escolherem cúmplice que participe das harmonias duma estátua grega: em geral, o pático escolhe um brutamontes, e é levado por um exame que a decência me impede de apontar. Quanto ao cinedo, a sua escolha recai em indivíduos de compleição franzina e delicada que, pelo aspecto exterior, pelos modos, falas e acções, macaqueiam o sexo belo. Em qualquer dos casos teremos um critério de escolha que não abona as tendências helénicas dos tais estetas. Onde, pois, o culto da beleza masculina, se, em ambos os casos sujeitos, se lhe foge pela contrafacção? Será porventura estético o culto pela bestialidade? Será acaso manifestação de entusiasmo pela beleza máscula e viril, o procurar no homem atributos femininos, atributos esses que, no caso em questão, por serem antinaturais e estarem deslocados, se caracterizam de ridículo e de ignomínia?

 

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Note-se desde já que, mesmo entre os gregos, e a despeito de tudo quanto o desvergonhamento de hoje nos queira fazer, acreditar, o uranismo não se legitimava por cultura estética mas sim por aquelas alegações risíveis cujo relator foi Platão no seu Simposion. Para o célebre filósofo, não sendo o mundo físico objecto de ciência, só poderia ser tratado por meio de fábulas ou de mi­tos, que ele desenvolveu com arte mas que, na frase de Jacques Maritain, mais não servem do que para mascarar a impotência da sua doutrina perante a realidade corporal.

C’est dans ces mythes qu’il attribue la production ou plutôt l’organisation du monde à un demiurge — regardé par beaucoup d’interprètes comme distinct de Dieu et inférieur à lui — et qu’il expose cette étrange idée que tons les organismes vivants proviennent de l’homme: les premiers hommes produits par les dieux étaient du sexe masculin; ceux qui ont mal vécu ont été après leur mort changés en femmes, qui à leur tour, si elles ont continué à pécher, ont été changées eu animaux sans raison et même peut-être en végétaux (1).

Assim, para o célebre discípulo de Sócrates, o uranismo, muito mais do que uma base puramente plástica, tinha urna base metafísica, asserção que não resiste a meia gargalhada. E a irrefragável expressão da verdade é que, para os gregos, tanto a plástica feminina como a masculina eram igualmente belas, se é que o não era muito mais a feminina porque entre eles o árbitro da formosura plástica estava simbolizado por um ser feminino, a deusa Afrodite, e não pelo outro sexo (2). Para os gregos, como para todos quantos possuam dez réis de miolos, o homem e a mulher eram belos em si, materialmente, e incompletos em relação um ao outro: completavam-se na união heterossexual e quebravam essa harmonia na inversão. Foi assim que o compreenderam os gregos em questões de estética: o uranismo para eles, a despeito do lirismo das frases de Platão no seu Banquete, era uma forma de líbido: instintivamente, apesar das práticas vergonhosas a que se entregavam, desprezavam-no, ou, pelo menos, não lhe conferiam foros de culto pela virilidade porque o termo que designa a miséria física e moral, a que se entregavam, provém de duas palavras: paidos e erastes — ou seja (que horrível coisa ter de o escrever aqui!) as práticas eróticas com crianças.

Como se vê claramente, pelo que acima deixo escrito e transcrito, nem entre os Gregos, nem tão-pouco entre os panegirizados pelo Sr. Pessoa, havia, na sua degradação sexual, sintoma algum de culto pela beleza masculina, culto esse que requeria absoluta pureza de instinto e de ideias. É que, tanto os helenos, como os seus mais directos herdeiros, os romanos, atribuíam aos invertidos certas qualidades que não abonam absolutamente nada o tal culto pela beleza masculina. Nuns e noutros, e com referência àqueles que não haviam corrompido o sentido da Beleza, era frequente a murmuração contra o vício a que me refiro. E lançando mão da sátira — quando não da sanção legal, como entre os Romanos pela célebre lei Scantinia — flagelaram sem piedade os uranistas. As poesias de Anacreonte e de Teócrito, que tamanha miséria exaltam, fazem-no em homenagem ao líbido que lhes combure até ao inverosímil a apodrecida carcaça, e não nos apresentam como passivos senão indivíduos aonde se encontrem reflexos da beleza feminina. Impossível é fazer citações das suas líricas porque a minha repugnância física e os meus escrúpulos religiosos mo proíbem totalmente. Quem se quiser certificar do que afirmo, mais não tem do que consultar as muitas traduções que poetas, com poucos pruridos de moral, se deram ao trabalho ingrato de elaborar.

Note-se ainda que, se entre os Gregos, por deficiências de toda a ordem, se não chegou a condenar pela injúria, pelo agravo e pela sanção legal semelhante miséria, entre os Romanos, seus discípulos e aperfeiçoadores em tudo, os cinedos e os páticos foram objecto das mais cruas invectivas, e bastaria a leitura de Juvenal ou de Séneca para ficarmos fazendo uma ideia do tal culto estético professado pelos indivíduos de que o Sr. Pessoa se fez o desastrado panegirista. Para o grande satírico latino, como para Séneca, todos os amadores passivos das inversões sexuais não passam de contrafactores daquilo que nas filhas de Eva é graça natural; têm como características principais: olhar lânguido; passo indeciso; marcha sem porte viril; rosto efeminado; fragilidade, delicadeza de membros; cabelos soltos; moleza de espírito; uso e abuso dos cosméticos e perfumes; garridice do vestuário; aluvião de anéis nos dedos; requebro de meneios... E pois, malgré a repugnância que sentem pelo sexo fraco, a tácita confissão da superioridade feminina: é a natureza a tentar, baldadamente, pôr tudo no seu lugar, buscando não ser torpemente escarnecida! A inversão, nesses miseráveis, repudiando leis eternas, vai cair na entrudada vergonhosa da contrafacção dessas leis!... A malignidade dos seres referidos vai até à suprema irrisão de nos querer pôr abaixo dos próprios irracionais — que nem abusam do que lhes é natural, nem usam (a não ser por engano do instinto) do que lhes não é dado!

Se os estetas de que nos fala o Sr. Pessoa não passam, afinal de contas, de rebotalhos duma geração; se neles o culto da beleza máscula em nada mais consiste do que na ânsia de satisfação duma carnalidade monstruosa, fora de todas as leis da natureza e exemplificada nas mais ridículas mascaradas do desejo sexual, na mais bestializante coprolália; se para eles a Grécia não vale senão pelo uranismo — que não é esteticismo, nem é oriundo das belas terras de Homero, mas sim uma anormalidade erótica supurada em todos os tempos, todos os países, e em todos os países e tempos escarnecida, quando não amaldiçoada e punida — para que demónio vir a público com a apologia indecorosa dum livro que só tem de especial o ser, em toda a acepção da palavra, uma porcaria?

Culto da beleza?, esteticismo à grega? Porque demónio é que o Sr. Fernando Pessoa lhe não chama aquilo que todos, inclusive o próprio autor, lhe chamam?

…A ideia que certos fabianos fazem do que seja criticar!...

 

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Afinal de contas, tanto a imundície publicada pelo Sr. Pessoa como aquela que lhe deu origem, mais não são do que simples manifestações de podridão romântica. O Romantismo, rebelião do instinto contra a inteligência, é de todos os tempos, como expressão de fadiga na organização intelectual, como impulso violento do individualismo contra a disciplina social. Vem de longes tempos: o próprio Platão, apesar de lírico defensor de páticos e cinedos, assim o compreendeu. Le souci de luter contre le romantisme moral de son temps apparaît fort net dans Platon, lorsque, de sa République idéale, il écarte les poètes, qui s’adressent à la partie «faible» de 1’âme, à celle qui est susceptible d’illusions, et s’attendrit immodérément sur la misère humaine - à la sensibilité en un mot (3), escreve Ernest Seilliére. E sempre foi a literatura o melhor veículo da miséria moral: desde as produções fesceninas da decadência romana, até a imoralidade sentimental de vários romances de cavalaria; desde a Renascença com a sua degeneração pagã, passando pela miséria intelectual das gerações saídas de Rousseau até ao romantismo de esgoto de Zola, - o Crand Fécal, como lhe chama Léon Daudet — ao que temos nós assistido senão à tendência da Besta para se sobrepor ao Espírito? Erasmo talvez não andasse muito longe da verdade quando afirmava que a Loucura era a rainha do mundo, tanto a civilização parece querer levar os homens para a inconsciência, para a bestialidade. Jugez de là s’il ne faut pas que la Folie sois un grand bien, puis que les Sçavans ont donné tant de louanges à son ombre seule & à son image. Horace qui s’appelle lui-même un pourceau d’Épicure des mieux conditionnés, dit la chose plus naturellement lorsqu’il ordonne «de mêler la Folie avec la Sagesse». Il veut, je i’avoue, que cette Folie  sois courte; mais en cela il n’en a pas plus d’esprit. Le même Poète dit dans se  odes: «Qu’il  est doux d’extravaguer à propos!» Et ailleurs, qu’il «aime mieux passer pour un homme en délire & sans nul tallent, que d’être sage & enrager tout son saoul». Homère, qui donne tant de louanges à son Télémaque, ne laisse pas de la nommer quelquefois jeune étourdi; & les Poétes tragiques donnent volontiers le même nom aux jeunes gens, comme s’il était de bon augure. Quel est le sujet de la divine Iliade? Ne sont pas les fureurs & les folies des Rois & des peuples? Ciceron n’a jamais pensé plus heureusement que lorsqu’il a dit: «Que tout le monde était plein de fous». Or, vous n’ignorez pas que plus un bien est général, plus il est excellent (4).

Erasmo quase que tinha razão... Que temos nós visto desde há muito — e sobretudo nos últimos duzentos anos — senão o instinto cego a rebelar-se contra a inteligência, os pseudo-sábios a escavacarem tudo com a sua ânsia de reformas, os humanitários a pregarem verdadeiras loucuras, e os homens de letras a secundarem a sua tarefa de morte e destruição? Se todo o mundo, ao contrário do que pretendia Cícero, não está cheio de doidos, não haverá nele, contudo, uma boa meia dúzia de malucos a pretender tripudiar sobre a impassível preguiça do resto? Este caso do Sr. Pessoa e do seu panegirizado é bem concludente. Quem é que apareceu a protestar, — não contra o segundo porque esse é talvez o menos culpado — mas contra o primeiro que se tornou assassino da sua própria inteligência, prestando-se a protagonista duma reles farsada de reclame?

 

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Do arrazoado do Sr. Pessoa se conclui que apenas serão estetas em Portugal os páticos e cinedos. Portanto quem quiser ser esteta, forçoso será que se entregue a actos contra-natura. Semelhante teoria, bruta até ao exagero, visa à complacência dos basbaques elegantes, e ao reclame pelo escândalo, Verdadeira miséria psíquica em ambas as intenções, não me causaria espanto se proviesse dum célebre titular que o lápis de Bordalo Pinheiro justiceira e implacavelmente fustigou; que provenha porém dum indivíduo que se nos apresenta como intelectual, isso é que me causa uni espanto doloroso como manifestação do que seja a crítica em terras lusíadas. Se o Sr. Pessoa, com toda a sua cultura, se nos revela como acabámos de ver, que demónio se há-de exigir dos chumecos que fazem crítica nos periódicos?

O assunto que, com tamanha repugnância, aqui tenho tratado —a prosa do Sr. Pessoa — revela-se-nos como mais uma exibição patológica do desejo de fazer escândalo. É o último porventura dos sintomas da deliquescência romântica em Portugal: trata se duma subordinação do juízo à sensibilidade e, tanto pelo que respeita ao indivíduo em questão como ao seu panegirizado, os carácteres românticos são absolutamente nítidos. Tanto num como noutro — e com a diferença apenas de que um tem talento e o segundo está sujeito à clínica da especialidade — o caso é absolutamente caracterizado. Como consequência lógica da subordinação da inteligência à sensibilidade, ambos possuem — notada é claro a restrição que acima deixo —- uma impressão obsediante de incompleto, de angustiosa solidão moral, de melancolia pro­curada, de excitação nervosa, de langores de erotismo, de existência descolorida, irreal, longínqua — as qualidades, exarcerbadas é claro, da Weltschmerz dos românticos alemães, ou do mal do século da geração francesa de 1830. Entram em função, dum modo assolador e como único recurso admissível para ambos, as faculdades do seu subconsciente no fito de sobre elas apoiarem o seu esforço de expansão vital, donde um misticismo invertido e irracional — para me servir da expressão de Ernest Seilliére — e a qual conduz, como é óbvio, às piores aberrações, à degradação última do ser humano. E ainda como últimas características do seu marcado romantismo (e todos sabem como a essência do Romantismo se opõe em absoluto ao ideal helénico) ambos se dão a velleités passagères de retour à les inspirations rationelles, bem como ao emploi fréquent du vocabulaire de la raison; têm por vezes le langage intermitent de la vertu, qui ne naît pourtant que d’un effort sur soi même, d’une discipline consciente imposée aux propositions subconscientes du moi. Incapables de réaliser l’acte raisonnable, ces impulsifs en conservent du moins la respect et en emploient le nom afin de farder à leux propres yeux les fantaisies de leur instinct (5). É o caso de Winckelmann procurando coonestar, sob o protesto de helenismo, os vícios vergonhosos a que se entregava: é o de Byron e Chateaubriand, ambos incestuosos mentais, se é que o primeiro o não foi por pensamentos, palavras e obras; é o de Teófilo Gautier na Mademoiselle de Maupin, e o de todos os criminosos literários de então para cá. A sua verborragia, desmarcada e aberrativa, importa sempre um recurso ao sofisma e foi isso que observámos na prosa que motivou as linhas deste artigo. Como já fiz notar, nas líricas tão prezadas pelo Sr. Pessoa (tão banais como arte, como realização plástica, santo Deus!) o que nos surge a cada passo são as apologias homossexuais do autor; culto da Beleza, como expressão de harmonia não existe nele porque, para ser lógico e absolutamente helénico, teria de pôr em igual plano a beleza feminina. Estamos pois em frente, repito, dum caso de putrescência romântica: o autor em questão é um romântico e não um romano; um fabiano como vários e não um grego da última hora; um débil de espírito e jamais um ser inteligente; é um desventurado, se assim o quiserem, no qual se dissolveram por completo as faculdades superiores da inteligência. E o recurso de ambos ao sofisma é a melhor prova da sua podridão romântica. En effet, leur subterfuge le plus redoutable, parce qu’il est sincère, c’est de prendre et donner leur débilité physique et morale pour un excès de force, leur maladie comme une exubérance de santé. Illusion qui procède de celle maladie elle même! (6) Não sei bem se, realmente, será sincero o subterfúgio, conforme quer o ilustre crítico que me fornece estas achegas; o que eu sei é que, por cobardia e indolência dos portugueses, a estes lhes tem sido feito nos últimos cem anos toda a casta de judiarias mentais por banda dos pseudopensadores! . O receio cobardíssímo de parecer retrógrado tem levado muito espírito a contemporizar com a Suburra intelectual, a permitir entre nós e em todos os campos, sem protesto quase, as mais risíveis abstrusões; uma critica irremediavelmente cretina, enciclopedicamente ignorante, comodista, agnóstica, — o seu agnosticismo vem não só da sua ignorância como também do seu culto pelo vil metal —— adoptando o critério da arte pela arte como o mais próprio a deixar em paz e à vontade a sua ignorância, o seu comodismo, a sua ganância e a sua preguiça mental, uma crítica tal como a acabo de caracterizar deu as melhores complacências a tudo quando lhe apresentararn como novo e distinto. O resultado é a miséria política e moral em que a Nação se debate.

Pouquíssimos se lembram da máxima sublime de S. João Berckmans, Ad meliora natus sum: Deus não existe para esses animais e, quando eles admitem a sua existência é para subordinarem esse Deus às misérias humanas de toda a casta! O Deus destes símios, a existir, seria igual a eles, e perfeita inutilidade portanto; ter-se-ia dado ao luxo de elaborar um código maravilhoso de conduta moral, mas sem se importar de que os homens o seguissem ou não. tudo o que fizéssemos sobre a Terra estaria bem: acabada a vida, por mais porca e abjecta que ela houvesse sido, teríamos na outra vida uma Biarritz aonde, logicamente, iríamos continuar a bela vidinha terrestre. Assim, pois, inteligência seria sinónimo de instinto desenfreado; Cristo não teria cá vindo fazer nada e os Apóstolos não passariam duns respeitáveis maçadores. Daqui, guerra à Igreja, às instituições políticas criadas pelos povos à sua sombra; combate sem tréguas às ideias de ordem, de disciplina, de hierarquia; sobreposição do indivíduo à sociedade e, consequentemente, ruína total do indivíduo. Desse período miserável a que Léon Daudet chamou o estúpido século XIX, ficou-nos um pântano; e aquilo que dele podermos salvar não lhe pertence. Podre nas ideias e nos factos, os seus miasmas chegam ainda até nós. Pierre Lasserre definiu bem a podridão romântica, ao escrever:

Sensualisme des idées; metaphysique dos émotions, materialisme mystique, bestialité lyrique, ainsi pourrait-on définir la tare, disons mieux: la pourriture romantique de l’intelligence (7). Já Goethe definia como classicismo a saúde, e romantismo a doença!... Não haverá no que acabo de citar matéria que baste para definir o estado intelectual do Sr. Pessoa? Pobre dele que ainda não compreendeu ser a vida uma coisa tão séria que, nela, mais deveríamos pensar do que rir! A vida é uma simples e longa preparação e há coisas de que não é lícito zombar. E pior, muito pior se a nossa imaginação se agita continuamente entre os espelhos de Hostius Quadra... Será a ruína completa dum espírito, o emparceiramento com as coisas inúteis que são lançadas ao fogo... Quanto aos seus estetas, na vida terão o sarcasmo justiceiro de Juvenal:

 

Interea tormentum ingens nubentibus haeret,

Quod nequeunt parere, et partu retinere maritus.

 

…Mas, depois da morte, Sr. Fernando Pessoa, o que será deles e de quem tiver desprezado trazê-los à diritta via?

 

NOTAS:

 

(1) Jacques Maritain, Eléments de Philosophie. Introduction générale à la philosophie, p. 49, Paris, Pierre Téqui, libraire éditeur, 1921.

(2) Os que defenderam a estulta afirmação de que os Gregos mais prezavam a beleza masculina do que a feminina ver-se-iam em serias aflições para explicar o caso (história ou lenda, pouco importa), de os Heliostes terem absolvido Frineia acusada de um crime gravíssimo perante o foro helénico. Vendo em perigo a cabeça da sua constituinte, o defensor da célebre hetaira rasgou-lhe a tónica de alto a baixo e desafiou os carrancudos juízes a que votassem à morte o corpo escultural que ali se exibia inteiramente desnudado... E os Heliostes, vencidos, deslumbrados, nua tiveram remédio sentiu absolver a loira Mnezarete...

Facto ou lenda, mal parada fica em ambos os casos a preferência pela beleza masculina entre os helenos...

(3) La Philosophie de l’Impérialisme, vol. IV: Le Mal Romantique, Introduction, p. XIX, Plon Nourrit, éditeur, Paris, 1908.

(4) L’Éloge de la folie, traduit da latin d’Érasme par M. Gueudevil.  Nouvelle Édition, revue & corrigée sur le Texte de 1’Edition de Bâle, M.DCC.LXXI, pp. 187 e 188.

(5) Ernest Seillière, obra citada, Introduction, p. X.

(6) Idem, Idem, p. XII

(7) Pierre Lasserre, Le Romantisme Français, p. 170, Paris, Librairie Carnier, Fréres,

 

 

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