4-10-2004

 

SYLVIA PLATH - o filme em Lisboa

 

 

 O que falta no filme

Como acontece com quase todos os fãs da obra e da personalidade de Sylvia Plath, o filme desperta em mim sentimentos ambivalentes. Por um lado, aprecio o trabalho do cenarista e da realizadora, que se esforçaram por fazer obra condigna e a interpretação da G. Paltrow que é inteligente e esforçada. O filme é bonito de se ver, apesar de triste. Pesem embora as suas limitações, o filme contribuirá para que SP seja mais lida e estudada do que já o é, no mundo inteiro.

 
Sylvia Plath, em adulta
 

Por outro lado, lamento que o filme tenha deixado de fora aspectos essenciais e, sobretudo, que não possa sequer mostrar a grande poeta que ela é. Aqui a culpa é dos herdeiros dela, em especial da filha que tem tido uma atitude perfeitamente hipócrita: vende o pai e a mãe, mas não quer assumir que o faz e, por isso, proibiu a utilização da sua obra no filme. Mas entrou em litígio com a madrasta, porque achava que tinha direito a uma maior fatia dos direitos de autor.

Telegraficamente, eis o que eu penso que falta no filme:

+ Sylvia era às vezes alegre e de um humor contagiante, embora por vezes, sarcástico e acutilante. Tinha também momentos de euforia, como é normal entre os depressivos. Infelizmente, no filme ela é sempre triste e chata. SP não foi assim.

+ Sylvia e Ted tinham consciência dos problemas da feminilidade e ela lutou pelo que considerava seus direitos de poeta e escritora. Partilhavam as responsabilidades da casa e dos filhos, para que ambos tivessem tempo para a criar, escrevendo.

+ A consciência feminista de Sylvia agudizou-se após a infidelidade de Ted. O poema “Ariel” é uma “canção” de protesto que, aliás, ela recitava em coro com as amigas que a visitavam.

+ Foi pena que o filme não tivesse poesias de Sylvia lidas por ela própria aos microfones da BBC. Ouçam-na neste site; é realmente impressionante.

+ Durante bastante tempo (1956 – 1962), o casamento de Ted Hughes e Sylvia Plath foi um casamento feliz. Praticamente, só se foi desfazendo depois do nascimento do segundo filho, Nicholas. Sylvia era dotada de uma sexualidade explosiva e muito interessante, que não ressalta do filme, apesar de algumas cenas de nudez. Isso é muito claro nos diários, onde ela descreve assim uma noite com Ted: "We had a very good f 'ing. Enormously good, perhaps the best”. Aliás, os diários têm muitas descrições atrevidas, como, por exemplo, esta:

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There was something in Emile tonight, a touch of seriousness, a chemical magnetism, that met my mood the way two pieces of a child's puzzle fit together. He has a fine face, dark hair, and eyes with enormous black pupils; a straight nose, a one-sided flashing grin, a clean-cut chin. He is neatly made, with small, sensitive hands. I knew it would be the way it was. On the dance floor he held me close to him, the hard line of his penis taut against my stomach, my breasts aching firm against his chest. And it was like warm wine flooding through me, a sleepy, electric drowsiness. He nuzzled his face in my hair; kissed my cheek. "Don't look at me," he said. "I've just come out of a swimming pool, hot and wet." (God, I knew it would be like this.) He was looking at me intently, searchingly, and our eyes met. I went under twice; I was drowning; and he flicked his gaze away. On the way to Warrie's at midnight, Emile kissed me in the car, his mouth wet and gentle on mine. At Warrie's, more gingerale, more beer, and dancing with the dim light from the porch, Emile's body warm and firm against mine, rocking back and forth to the soft, erotic music. (Dancing is the normal prelude to intercourse. All the dancing classes when we are too young to understand, and then this.) "You know," Emile looked at me, "we ought to sit down." I shook my head. "No?" he said. "How about some water, then. Feel all right?" (Feel all right. Oh, yes. Yes, thank you.) He steered me out to the kitchen, cool, smelling of linoleum, with the sound of the rain falling outside. I sat and sipped the water he brought me, while he stood looking down, his features strange in the half-light. I put the glass down. "That was quick," he said. "Should I have taken longer?" I stood up and his face moved in, his arms about me. After a while I pushed him away. "The rain's rather nice. It makes you feel good inside, elemental, just to listen." I was backed against the sink; Emile was close, warm, his eyes glittering, his mouth sensuous and lovely. "You," I said deliberately, "don't give a damn about me except physically." Any boy would deny that; any gallant boy; any gallant lier. But Emile shook me, his voice was urgent, "You know, you shouldn't have said that. You know? You know? The truth always hurts." (Even clichés can come in handy.) He grinned, "Don't be bitter; I'm not. Come away from the sink, and watch." He stepped back, drawing me toward him, slapping my stomach away, he kissed me long and sweetly. At last he let go. "There," he said with a quiet smile. "The truth doesn't always hurt, does it?"

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Sylvia e Ted

PUBLICO  Sexta-feira, 23 de Abril de 2004

Uma história turva

Alexandra Lucas Coelho

No futuro dos que morrem cedo, deixando um belo cadáver e talvez uma obra, aparece sempre alguém a perguntar, por exemplo:

- E se ela não tivesse metido a cabeça no forno?

Como quem diz que talvez não falássemos dela agora. Que talvez ela não merecesse morrer assim.

"Essa morte era minha", terá dito a poeta Anne Sexton quando Sylvia Plath se matou aos 30 anos, metendo a cabeça no forno.

Sylvia Plath (1932-1963) não seria um ícone sem essa morte. Mas essa morte também não seria nada sem a obra de Sylvia Plath. É bastante inútil especular sobre o que a cabeça no forno fez à obra. A obra estava escrita e sobrevive. Sobreviveu mesmo ao andor, ao altar, a Santa Sylvia, padroeira das aflitas.

   
Sylvia Plath, na praia, em Agosto de 1952. É um detalhe da foto em que aparece com a colega e amiga Joan Cantor, tirada em Nauset Beach, Cape Cod, Massachusetts
 

E sobreviverá a "Sylvia", o filme de Christine Jeffs. Gwyneth Paltrow é Sylvia Plath, Daniel Craig é Ted Hughes, Amira Casar é Assia, a mulher com quem Ted se envolve, levando Sylvia à ruptura. Um "filme romântico", diz o argumentista John Brownlow. "Uma história de cornos", dirá ao Y Helder Macedo, escritor e professor de literatura portuguesa no Kings College de Londres. Foi amigo de Sylvia Plath e Ted Hughes, e não os reconhece no filme.

Onde está a história? O argumentista Brownlow conta que para escrever "Sylvia" leu biografias, os diários de Plath e "Cartas de Aniversário" - o intenso volume de poemas que Ted publicou em 1998, meses antes da sua morte, quebrando o silêncio sobre Sylvia.

Algumas das imagens do filme vêm destes poemas.

Os "lábios carmesim" e a "franja à Veronica Lake" na festa de Cambridge em que se conhecem (ele um brilhante selvagem do Yorkshire, poeta-xamanista; ela uma inquieta "all american girl" de Massachussets, bolseira Fullbright).

As pedrinhas contra a janela ("Depois da meia-noite / fiquei num jardim com o meu amigo, / a atirar com torrões de terra a uma janela escura.")

O dia do casamento, em 1956, ela de rosa e lilases. O primeiro Verão à beira-mar. Londres, a América, Londres, o campo. O nascimento das crianças, a roupa estendida ao vento, Sylvia a recitar Chaucer às vacas.

Mas isto são apenas clarões, na lógica de Brownlow, que queria um "script" de grande público. Precisava de uma história e tinha várias, pró-Sylvia (Ted era o egoísta que não a deixava escrever, o traidor que dormia com uma amiga de ambos), ou pró-Ted (Sylvia era neurótica, tinha o trauma da morte do pai e a ansiedade de quem quer tudo, ser grande poeta, grande amante, grande mãe e grande cozinheira).

O filme procura manter-se no meio, ir gerindo a proximidade em relação a Sylvia e a Ted, e "supõe" cenas como a do último encontro entre ambos.

A reserva de Helder Macedo não vem dessa cena, aplica-se a todo o filme. "Não se acredita que aquilo seja uma poeta. A perspectiva é de saldos de fim de ano. Se aquela gente era assim, que se lixem.. É tão intelectualmente mesquinho e estúpido. A Sylvia e o Ted merecem melhor, não uma história de cornos."

A rábula da acompanhante

Helder Macedo foi viver para Londres nos anos 60. "Conheci a Sylvia e o Ted talvez em 1961, em casa de amigos. O Ted já tinha publicado [o primeiro livro de poemas] "A Hawk in the Rain", com sucesso. A Sylvia fazia aquela rábula de ser a acompanhante - em todo o caso, dizia: 'Ah, mas eu também escrevo.' Existia como uma poeta em início de carreira, o Ted é que era reconhecido."

Sylvia e Ted, Helder e a sua mulher Suzette continuaram a encontrar-se. "Havia essa cumplicidade de jovens que queriam escrever poesia. Aproximámo-nos. Eles tinham um pequeníssimo apartamento perto de nós, em Primrose Hill."

Lembra-se de todos terem pouco dinheiro, e de como Ted e Sylvia foram viver para o campo (Devon), já depois do nascimento da filha Frieda. "O Ted tinha uma atracção pelo campo, arranjaram uma casa a cair aos pedaços que foram reconstruindo."

Isto - a casa no campo - está no filme. O que não está é a partilha entre iguais que Helder Macedo diz ter testemunhado entre Sylvia e Ted. "Ela tornou-se um símbolo de um feminismo primitivo, quando eles partilhavam tudo, incluindo as obrigações em relação à filha. Criaram espaço um para o outro para poderem escrever. E o Ted era extremamente generoso e atento, com uma maneira subtil de puxar pela criatividade dos outros. Ambos beneficiaram um do outro. Tinham muito a noção do casal ideal, dos parceiros em criação poética, com o Ted talvez mais interessado em incentivar os outros do que ela, que era mais centrada em si própria. Ele estendia mais as mãos para o mundo."

Conversaram sobre Pessoa, Sá-Carneiro. "O Ted dizia: 'Põe-me isso palavra por palavra em inglês.' Depois ele fazia a transformação. Traduziu alguns dos meus poemas. E traduziu Sá Carneiro, 'A caranguejola', a partir de transcrições da Suzette. Interessava-se pela poesia portuguesa como pela poesia polaca ou checa." Helder Macedo recorda-se de Sylvia ter ficado entusiasmada com "A Confissão de Lúcio", de Sá-Carneiro, "história de duplos".

"Quando estavam em Londres, não havia semana que não nos encontrássemos. Foi um período muito intenso." Quando eles estavam em Devon, no campo, trocavam cartas.

É num jantar no campo, com Assia e o marido (o poeta David Wevill), que o filme estabelece a ruptura, por ciúmes. "Quando Sylvia saiu de Devon [deixando Ted Hughes] e veio para Londres, ficou um tempo no nosso apartamento", lembra Helder Macedo. "Ela fazia uma espécie de bibliomancia com Yeats. Abria ao acaso o volume dos poemas dele, punha o dedo, lia o verso e tomava isso como algo profético. A certa altura, encontrou um verso com a palavra 'casa'. E disse: 'Ah, vou ver se a casa do Yeats está para alugar.' Foi ver e estava. Alugou-a e instalou-se com as crianças."

É nesta fase que Sylvia escreve os poemas de "Ariel", a sua obra-prima, póstuma. No princípio de 1963, diz Helder Macedo, "ela estava razoavelmente bem", a recuperar. "Não era tanto a traição sexual, mas um sentido de que qualquer coisa se tinha quebrado, o que pode ser uma base de reencontro. Não era inevitável que a tragédia acontecesse."

Na sua correspondência dos anos 80, Ted Hughes diz que a morte de Sylvia terá sido o resultado de "uma pura combinação desafortunada de acidentes", o último dos quais foi ter mudado para um anti-depressivo que "induzia nela ciclicamente uma depressão suicida".

Numa recente biografia, "Her Husband: Hughes and Plath - a marriage", a americana Dianne Middlebrook sustenta que o casamento de Sylvia e Ted lhes permitiu a ambos escrever numa parceria cúmplice, e desvaloriza o peso das infidelidades de Ted: "A depressão matou Sylvia Plath."

Middlebrook contou com o testemunho de Helder e Suzette Macedo. Suzette leu o livro e gostou muito: "É extraordinário." Quanto ao filme, é mais radical do que o marido: "Recuso-me a ver." A começar por Gwyneth Paltrow. "Ela é muito sonsa. E a Sylvia não era loura. Foi loura durante um Verão em que pintou o cabelo. Chamou-lhe 'my blond summer'. A Gwyneth Paltrow quis fazer aquilo e projectou toda a sua agenda ali. Há muitas mulheres atraídas pela Sylvia Plath profundamente neuróticas, não estão interessadas na poesia. Imensas pseudo-biografias têm contribuído para este mito, com umas senhoras a acusarem o Ted Hughes de ser um assassino. Ficavam frente à casa dele com cartazes, ele passou a ser o Barba-Azul da história..."

A femme fatale

Suzette recorda assim a aparição de Assia nas vidas de Ted e Sylvia: "Deslumbrante, fantástica, uma 'femme fatale'. Ele apaixona-se. E a Sylvia não quis tolerar aquilo, passou o Natal de 62 connosco."

Mas Assia "foi apenas a catalizadora de coisas terríveis que estavam a acontecer", ressalva. "Foi vertiginoso, passou-se em meses. A Sylvia tinha acabado de ter o filho [Nicholas], estava com uma depressão pós-parto. Eles tinham ido para uma casa enorme no campo, fria, não tinham dinheiro. Havia toda essa inquietação quando Assia e David lá foram passar o fim-de-semana. Ficou tudo fora de controlo."

O que acontece entre a separação e o suicídio, quando Sylvia volta a Londres, diz Suzette, "não é a história do triângulo, tem a ver com os poemas terríveis de 'Ariel', em que ela estava a tentar fazer terapia de fundo", nesse Inverno de 62-63, "o mais frio" de Inglaterra, numa casa sem aquecimento.

"Ela percebeu que precisava de ajuda" no fim-de-semana antes da morte. Foi ao médico, e ele arranjou uma pessoa para a ajudar com as crianças na segunda-feira seguinte.

"Estivemos juntas na sexta e ela ficou com uma dor-de-cabeça horrorosa." Passou a noite de sábado com as crianças em casa de amigos. "No sábado de manhã telefonaram a dizer que a Sylvia tinha desaparecido e a Frieda estava histérica." Suzette foi passear com a menina de autocarro, até Sylvia aparecer. "Estava excitada, disse que tudo tinha ficado resolvido. Ninguém sabe o que se terá passado. As pessoas julgam que ela esteve com o Ted. Sei pela Assia que ele estava a querer voltar para Sylvia."

Nesse sábado, conta Suzette, Sylvia foi para casa. "No domingo à noite, pôs uma manta extra na cama das crianças, deixou um copo de leite, bolachas, desceu, selou o andar de baixo e matou-se."

Suzette soube no dia seguinte, quando arrombaram a porta. Foi lá buscar Frieda, enquanto Ted não vinha.

"Ele lá fez a vida dele, complicadíssima. Assia não queria deixar o marido, mas continuava a ver Ted. Quando a filha nasceu, disse-me que era de Ted." Em 1969, Assia matou-se a si e à filha, abrindo o gás.

Foi com todas estas mortes, que Ted Hughes viveu até 1998. "Ele não se descreve. Era uma encarnação do Heathcliff do 'Monte dos Vendavais'. Enorme, com uma cara extraordinária, uma voz maravilhosa e interessado em tudo."

O homem que oito anos antes Sylvia vira em Cambridge, um homem que dormia num ex-galinheiro e recusava as coisas mundanas, recorda Suzette. "Ela nunca vira ninguém assim."

"A Sylvia era muito, muito americana, muito inteligente, nervosa, entusiástica, nada inglesa. Alta, bem feita, com imensa vivacidade, desenhava excepcionalmente, e muito uma poeta. Eles apaixonaram-se. Foi uma paixão. E Ted passou anos a trabalhar na obra de Sylvia. É o melhor comentador da poesia dela. Entendia a Sylvia como ninguém." A história deles, conclui Suzette, é "turva, turva, turva".

O filme é bastante transparente.

  

Boneca Suicida

PUBLICO  Sexta-feira, 23 de Abril de 2004

Kathleen Gomes

"Ariel", o livro de poemas que Sylvia Plath deixou escrito antes do suicídio, termina com a palavra "vida". O anterior "Winter Trees" também. Isto é o que ninguém quer ver porque Sylvia Plath, a poeta, começa com o seu suicídio. Este é o mito, e sobrepôs-se a tudo o resto. "Morrer é uma arte", diz-se no início de "Sylvia", o filme que a neo-zelandesa Christine Jeffs realizou sobre Plath, e sobre a sua relação com o poeta Ted Hughes, e o que se vê é Plath/Gwyneth Paltrow como uma Ofélia deitada. Já sabemos o fim: numa manhã de Fevereiro, depois de preparar o pequeno-almoço dos filhos, fechou-se na cozinha e abriu o gás.

Tal como nos surge em "Sylvia", Plath é um acidente à espera de acontecer: os prenúncios de morte estendem-se pelo filme como uma inevitabilidade. "Um dia, a minha morte será por ele", escreve Plath/Paltrow a seguir ao primeiro encontro com Hughes. Jeffs passa por cima de anos de especulações de como Hughes teria levado Plath ao suicídio - o que é natural, dado que muitos dos episódios de "Sylvia" são inspirados em "Cartas de Aniversário", o livro de poemas que Ted Hughes publicou em 1998 sobre a sua relação com Plath. "Sylvia" opta por não moralizar a questão mas é como se Plath já tivesse, desde o início, o filme todo dentro da cabeça - Frieda, a filha do casal, afirmou que o retrato em "Sylvia" é o de uma "suicide doll", "boneca suicida".

"Sylvia" é um "biopic", e traz a marca da BBC Films, o que estabelece um território reconhecível: a pintura arquetípica de uma época (a Inglaterra lúgubre do pós-guerra), personagens compósitas, omnisciência, cronologia explicativa. De um "biopic" espera-se, por estes dias, mimetismo como caução de verdade (veja-se "Monstro", de Patty Jenkins) em desinvestimento de uma visão pessoal. "Sylvia" estará algures a meio caminho, sem se reduzir aos maneirismos das personagens, mas também sem propor outro programa que não o determinismo trágico da protagonista. O mais interessante está naquilo que é lateral, não-dito: a oposição entre a dona de casa que cozinha bolos e o "super-homem" poético, pequenas subtilezas, digamos assim, como as mãos de Paltrow enrolando o cabelo ou beliscando os lábios.

Paltrow é excelente, congregando uma aparência de "american girl" solar e um desassossego interior, a sua frieza nunca se compadecendo com exteriorizações fáceis (abençoadamente anti-Kidman, portanto), com uma pronúncia e uma dicção que evocam Katharine Hepburn. "Sylvia" evolui com a tensão crescente entre Plath e Hughes (não há, praticamente, momentos de felicidade entre o casal) que culmina numa refeição cortante. Nunca saberemos se Hughes saltou para fora do casamento ou se foi empurrado - Jeffs evita o melodrama (mesmo que se pressintam duas alusões a Douglas Sirk, no ambiente social da visita à casa materna, em Boston, e no plano final, com Hughes olhando pela janela) preferindo concentrar-se na auto-consumação de Plath. E Daniel Craig, que interpreta Ted Hughes, é mais corpo e voz do que presença.

Lembramo-nos de "Rain" (2001), primeira longa-metragem de Christine Jeffs sobre o fim da adolescência, em que a protagonista também se perdia por um corpo masculino, mas que também revelava um trabalho sobre o tempo, sobre a suspensão, que fechava o filme numa bolha. Num ou noutro momento de "Sylvia", Jeffs tenta instalar uma dimensão fora do real, mas é algo que se dissolve na urgência do "plot". Plath, segundo "Sylvia", viveu como quem não espera pela morte - ou como quem só espera a morte, o que vai dar no mesmo. Contra todas as evidências em contrário, a sua última palavra foi "vida."

 

 

Sylvia e a verdade

24 de Abril de 2004

JOÃO LOPES

Uma mulher a ler, em voz alta, um livro. Não é exactamente uma imagem corrente. Nem sequer uma imagem popular nos sistemas de difusão do nosso planeta mediático. Não pertence, decididamente, à galeria de objectos valorizados pelos circuitos dominantes no mundo televisivo e publicitário. Mais facilmente se encontra uma mulher em poses eróticas (?) a comer um iogurte, ou sexualmente rendida (?) ao perfume de um macho, ou ainda exibindo um sorriso de felicidade (?) enquanto consome uma qualquer bebida alcoólica. Estou a exagerar? Em boa verdade, importa não prolongar a discriminação e lembrar que imagens de homens a ler também não é coisa que esteja muito bem cotada - diz-me as imagens que te rodeiam, dir-te-ei o mundo em que vives...

A mulher que lê é Gwyneth Paltrow, a mesma que ganhou um Óscar pela interpretação em A Paixão de Shakespeare (1998), obra simpática que ela dominava com impecável correcção técnica. Em todo o caso, neste novo filme - Sylvia, de Christine Jeffs -, ela é cem vezes melhor e mais subtil. Mas não temam pelo alinhamento dos telejornais. Não será manchete em nenhuma televisão.

Gwyneth Paltrow interpreta Sylvia Plath (1932-1963), a escritora americana cuja poesia já superou todas as fronteiras classificativas, a começar pelas literárias, para se afirmar como matéria viva do próprio mito. Que mito? O da escritora maldita? Não obrigatoriamente. O suicídio de Sylvia foi-se consolidando na memória das palavras (e dos leitores) como algo mais do que um casamento consentido com a morte - persiste como um gesto para sempre ligado à crueza possível das palavras, ao fulgor irredutível da escrita. Ela não é, por isso, heroína de coisa nenhuma, a não ser da verdade. A verdade gosta de mim, diz Sylvia no filme.

Christine Jeffs, cineasta neozelandesa, tinha já assinado um filme belíssimo, intitulado Rain, tal como o romance de Kirsty Gunn em que se baseia (o filme nunca cá chegou; o livro existe, com o título Chuva, publicado pela Editorial Notícias). Algo já presente nesse primeiro trabalho - em parte resultante de um mesmo extraordinário director de fotografia: John Toon - surge, agora, multiplicado de modo absolutamente arrebatador: Sylvia é um filme de singularíssima relação com a matéria, a ponto de um raio de luz, uma onda do mar ou a rugosidade de uma pele, muito mais do que elementos descritivos, surgirem como verdadeiros acontecimentos dramáticos, sobressaltos das superfícies do mundo e da história secreta das relações e dos amores. Como se algo do realismo abstracto de Sylvia Plath tivesse passado para estas imagens. Era ela que escrevia, em «O Jardim do Solar»: As fontes estão secas e as rosas acabaram. / Incenso da morte. O teu dia aproxima-se. / As peras engordam como pequenos budas. / Uma névoa azul prolonga o lago (tradução de Maria de Lourdes Guimarães, incluído em Pela Água, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000).

Produzido pela BBC, Sylvia é também uma luminosa lição do que pode ser uma relação aberta, criativa e inteligente entre investimento televisivo e especificidade cinematográfica. Em vez dos estereótipos de muitos telefilmes biográficos, deparamos, aqui, com uma lógica - narrativa e ética - que, curiosamente, se enraíza em alguma revalorização da mais rica psicologia do cinema clássico.

Esperemos por isso que, face às representações comuns da(s) mulher(es), as imagens de Gwyneth Paltrow possam, no mínimo, ser incómodas e inclassificáveis. De facto, a palavra poética não aceita submeter-se aos desígnios do bom senso. E, escândalo supremo, isso é uma coisa sem sexo.

 

Actual – Expresso n.º 1643, 24 de Abril de 2004

Incandescência e rotina

Um filme convencional sobre dois criadores que o não foram

ANTÓNIO CABRITA

Após o muito badalado Rain, a neozelandesa Christine Jeffs realiza um biopic centrado em Sylvia Plath/Gwyneth Paltrow, poetisa americana, e no seu tumultuoso casamento com Ted Hughes/Daniel Craig, poeta britânico, em consequência do qual Sylvia, numa catarse de grande voltagem, escreveu a sua obra-prima, Ariel, tendo-se suicidado a seguir. Como resumiu a produtora do filme, Alison Owen: “Sylvia não recebeu o verdadeiro reconhecimento pela sua poesia senão depois da sua morte e essa é a ironia da história de Ted e Sylvia. Ela buscava duas coisas na vida: o reconhecimento do seu trabalho e o grande amor de um homem. Finalmente conseguiu uma destas coisas ao perder a outra, o que é a sua grande tragédia. “

Sylvia era uma jovem bolseira em Inglaterra e assim que conheceu Ted foi tiro e queda. Mudam-se para os EUA, onde Ted logrou a sua fama (graças a ela, que enviou o seu primeiro livro, The Hawk in the Rain, a um prestigiado concurso literário), mas o desequilíbrio emocional de Sylvia (que já tinha tentado suicidar-se) começou a manifestar-se e os ciúmes azedaram a relação. Voltaram a Inglaterra para recomeçar, tiveram dois filhos, mas o conflito foi cavando entre eles e Ted encontrou consolo noutra mulher. A escritora utilizou todo o ódio e paixão que sentia para escrever Ariel mas, sentindo uma insuperável deterioração mental, sucumbiu à depressão.

O filme, dum convencionalismo formal que nenhum dos dois subscreveria, e competente q.b., não está à altura dos criadores que evoca. Limita-se a colar uma enxurrada de factos e situações (algumas delas em esboço), o que neutraliza qualquer nuance ou construção dramática acurada e não transmite o transe da intimidade entre dois seres de excepção. Christine Jeffs confundiu a impressiva entrega de Paltrow ao papel, a sua intensidade, com mais-valia dramática e acabamos por nada aprender sobre a obra ou os processos criativos de Sylvia, reduzida a uma bomba-relógio ciumenta e a uma paranóia doentia. Tal como está, o filme apresenta-se um pouco excessivamente como o gráfico martirológico de uma femininista e não capta a essência da personagem na sua paixão, ambição e natureza de mulher dividida entre os seus vários papéis (é inexistente, por exemplo, a relação com os filhos). Claro que, a não sermos muito exigentes, esta pode ser uma obra útil para suscitar a curiosidade sobre as obras de Ted e Sylvia, mas lidos Ariel e Cartas de Aniversário, de Hughes (o volumoso livro que desenha o historial da relação entre os dois e que Ted publicou antes de morrer, quebrando o silêncio de duas décadas), percebe-se a diferença e os limites desta biografia que a filha dos poetas não aprovou.

  

 

 

O AMOR ENTRE OS GÉNIOS

“Ler um poema de Hughes é às vezes como sair de casa desabrigado num dia muito frio. A alternativa é mais gratificante: ficar em casa e saborear poemas de interior”, avisava Derek Walcott. Do mesmo modo, quando a universitária Sylvia Plath vê o Gigante de Ferro (como Ted era conhecido entre os amigos) na festa de apresentação da revista “St. Botolph’s”, e aí decide, intempestivamente, que ele é o actor certo “para o principal papel do seu drama”, era-lhe impossível adivinhar que Ted, à semelhança do seu famoso “Crow”, era uma criatura curiosa, voraz, inteligente e amoral. O próprio, um poeta que concebe a captura do poema como uma extensão da caça. O obra de Hughes reorienta-nos para uma pergunta abissal: o que é o humano? E neste interim tudo é alternadamente humano e selvagem e molda-se no barro da página que, no seu caso, é o mesmo que dizer: na sua personalidade omnívora, para além do bem e do mal.

Uma escritora britânica, Emma Tennant, em 99, um ano depois da morte de Ted, revelou num diário a relação secreta que manteve com o poeta. E fala do seu fascínio quase hipnótico, mas também da sua crueldade, de como com ele era fácil passar todos os limites: “It was like being in one of those awful movies where you are hanging off the edge of the cliff and someone is about to jump with hobnailed boots on your fingers”. E impressiona constatar que a mulher com quem Ted traiu Sylvia, Assia Wevill, em Março de 69, se veio a suicidar também, e com gás, levando consigo a filha., Shura, de dois anos, Refira-se que, para Sylvia, o tema de The Colossus, o seu único livro de poesia publicado em vida, era a “pessoa destroçada e curada, que começa por ser um colosso estilhaçado e acaba com a personalidade refeita”. Este sentimento de destroçamento e incompletude fora-lhe dado pela morte do pai, à saída da sua infância, e acabou por lhe gerar uma personalidade bipolar, insegura; mais tarde reflectida nos seus ciúmes doentios. O exterior, para a autora de Ariel, é um pálido reflexo da verdade existencial do ser humano: é necessário adentrar-se para poder captar a sua essência. Mas esta propensão é algo que nunca se logra, na medida em que a sua metade está algures, no exterior, no ser amado em que se projectaram todas as esperanças de fusão. Era este o sonho de Sylvia para com Ted, mais egoísta, cujos sonhos afinal se situavam no anel externo à relação. O trágico é que ambos se mereciam.

A.C.

 

 

DIÁRIO ECONÓMICO

 2 de Maio de 2004

Quando Gwyneth é Sylvia

Tânia Sarmento

Gwyneth Paltrow interpreta um dos papéis mais exigentes da sua carreira. Ela é a escritora Sylvia Plath, num filme de Christine Jeff.

“Morrer é uma arte/ como tudo o resto/ e eu faço-o excepcionalmente bem”. Assim começa um poema famoso da escritora norte-americana Sylvia Plath, publicado postumamente em “Ariel”. Assim começa também o filme de Christine Jeff, que retrata a vida atormentada da poetisa, até ao Inverno de 1962-63, quando Plath pôs termo à vida.

Mais do que uma biografia sobre a escritora americana, “Sylvia” é uma história de amor com final trágico. Começa com o encontro entre os dois monstros da literatura do século XX, em Cambridge, no ano de 1956, eram eles estudantes. Sylvia Plath (Gwyneth Paltrow) e Ted Hughes (Daniel Craig) conheceram-se numa festa e embarcaram numa relação apaixonada, tumultuosa e infeliz. Prenúncio ou não do que o futuro lhe reservava, Plath escreveu então sobre o seu “cavaleiro negro”, acrescentando que era ele quem a iria matar.

O filme acompanha os seis anos de casamento. Da felicidade absoluta à infidelidade e à violência, que levaram Plath a meter a cabeça no forno e abrir o gás. Tinha 30 anos e deixava dois filhos. Neste período negro, escreveu os seus melhores poemas, deixando-se invadir por uma espécie de febre criativa.

Muitos olham para Sylvia como o grande papel na carreira da actriz Gwyneth Paltrow, depois de ter sido a musa de Shakespeare, o que lhe valeu o Óscar de melhor actriz em “A Paixão de Shakespeare”. Parece ser ponto assente que vestir a pele de grandes nomes da literatura, perturbados e perturbadores, pode chamar a atenção do público e da crítica.

As parecenças físicas entre Paltrow e Plath são evidentes. Mas mais do que a semelhança física, Paltrow consegue transpor para o ecrã um estado de alma. O filme peca por reduzi-la, por vezes, a uma mulher talentosa mas pouco apreciada que se ressente do sucesso do marido.

Sylvia
De Christine Jeffs. Com Gwyneth Paltrow, Blythe Danner e Daniel Craig.

Site Oficial: www.sylviathemovie.co.uk

                                      

A INCOMENSURÁVEL DOR DA REALIDADE

PUBLICO Sábado, 03 de Julho de 2004

Eduardo Prado Coelho

Três Mulheres, poema a três vozes, Edição bilingue. Tradução e nota introdutória de Ana Gabriela Macedo, Relógio de Água, Lisboa, 2004, ISBN 972-708-782-5

Um filme recente contava-nos à sua maneira o destino trágico de Sylvia Plath, sobretudo na sua terrível relação passional com o poeta Ted Hughes (que também escreveu um belíssimo texto sobre estas matérias em chamas). A verdade é que o filme, apesar de algumas qualidades, reduzia a tragédia a um enredo de traições e ciúmes, quando em Sylvia Plath (que se suicidou em 1963) o que está em causa é "a incomensurável dor da realidade", que se redobra em termos aflitos na assimetria de sentimentos e comportamentos entre o masculino e o feminino e na relação difícil e delirantemente apavorada com a ideia de uma maternidade salvadora.

Na magnífica colecção de poesia da Relógio d' Água (onde encontramos diversos autores portugueses, mas sobretudo um conjunto de traduções de livros de poesia de primeira qualidade), Ana Gabriela Macedo apresenta-nos e traduz o poema a três vozes intitulado "Três Mulheres". Trata-se de um poema radiofónico com uma muito ténue estrutura teatral, que foi gravado em 62 e editado bastante tempo depois, mais precisamente em 68, numa edição em livro. Ana Gabriela Macedo sublinha o horizonte trágico que acompanhou a elaboração deste texto: nascimento em 60 da filha Frieda e do filho Nicholas, sentimento crescente de solidão, dor insuportável, separação de Ted Hughes, suicídio em 63. Se se trata de um poema para três vozes (designadas como a Esposa, a Secretária, a Jove), essas vozes são vozes de uma só voz, reverberações de um drama íntimo. Entre uma exigência feroz e sempre frustrada em relação à vida, o instante redentor de uma maternidade luminosa e o regresso a uma normalidade cínica e desencantadamente aceite, Sylvia Plath vai traçando sempre, de um modo contraditório e dilacerado, o trajecto de uma mulher em que o psicológico se dilui (a começar pelo facto de se refractar na multiplicidade das vozes entrecruzadas) e em que tudo acaba por ser um jogo de massas emocionais, em carne-viva, permanentemente deslocadas nos diversos espaços do mundo: a casa para a esposa, o trabalho para a secretária, a universidade para a jovem. Mas estes três lugares estão suspensos no lugar onde a vida se dá, se expõe, se violenta, se revela, se deixa envolver no sangue e na alegria: a maternidade.

A poesia de Sylvia Plath não tem em conta os sentimentos de uma pessoa considerada na sua espessura afectiva. Aquilo de que nos fala tem mais a ver com massas de sentimentos anónimos e sonâmbulas que rolam sobre si mesmas, com correntes de emoções, com fragmentos do corpo que se emancipam e ganham um recorte metafórico, com precipitações de angústia que se elevam como vagas marítimas. É a combinatória destes movimentos que nos dá uma agitação febril, um sono ofegante, uma ansiedade empolgada.

O essencial reside numa tentativa de apreender a "normalidade". E a "normalidade" é para Sylvia Plath a vida tal qual ela é - o horror de um quotidiano sem intensidade. Daí um conceito de difícil tradução, que no entanto constitui uma peça-chave no sistema mental de Sylvia Plath. A tradutora coloca o problema nestes termos: "O poema constrói-se em torno de uma metáfora que, por sua vez, se consubstancia num símbolo - 'flat' ou 'flatness', em inglês. Este conceito, de complexa tradução pela sua polissemia (vazio, estéril, sem sentido, raso), é repetidas vezes usado em diferentes contextos e é fundamental para se entender a construção conceptual e retórica de todo este 'drama poético'." E Ana Gabriela Macedo dá-nos um exemplo perfeito: "Observei os homens que andavam à minha volta no escritório. Como eram vazios! / Pareciam figuras de papelão, e de repente eu senti-me contaminada, Esse imenso, imenso vazio de onde desfilam ideias, destruições, / 'Bulldozers', guilhotinas, câmaras lívidas de horror, / Desfilando infinitamente - e os anjos gélidos, as abstracções. / Sentei-me à secretária com as minhas meias de seda, os meus sapatos de salto alto, // e o homem para quem trabalho riu-se: 'Viu algum fantasma? / De repente ficou tão branca.' E eu não disse nada. / Via a morte nas árvores desfolhadas, o vazio total. / Não podia crer nos meus olhos. Será assim tão difícil / Ao espírito conceber um rosto, uma boca? / As letras têm origem nestas teclas pretas e estas teclas pretas têm origem / nos meus dedos alfabéticos. Os elementos que sustentam a ordem. // Elementos, pedaços, coágulos, múltiplos luminosos. /Sinto-me morrer aqui sentada. Perco a dimensão de mim./ Comboios zunem nos meus ouvidos, partidas, partidas! / O caminho prateado do tempo desvanece-se no longe. / O céu branco esvazia a sua promessa. Como uma taça. / Estes são os meus pés. Os meus ecos mecânicos. / Toc, toc, toc. pegadas de aço. Dão pela minha falta."

Como verificamos, o mundo é aqui apreendido na sua estrutura molecular, o mais perto possível do tecido das coisas, elementos, pedaços, coágulos. É aqui, nesta zona baça da matéria, que tudo se trabalha e se transforma. É aqui que as formas nascem e se desfazem. É aqui que surge a árvore e a morte, o comboio e a distância, a esperança e a taça, a tecla e o mundo. Para Sylvia Plath, existe um código primordial feito de um alfabeto que sustenta a ordem do mundo.

O facto de Sylvia Plath partir de uma estrutura primordial permite que os seus poemas sejam por vezes inventários mais ou menos caóticos - ou aparentemente caóticos, na medida em que são formas emergentes que pertencem ao mesmo horizonte cósmico. As rupturas semânticas, as guinadas sintácticas têm sempre uma coerência profunda. A tonalidade dominante é a de uma atmosfera de morte que se torna apavorante no momento em que o sujeito toma consciência dela. "Vi a morte nas árvores desfolhadas, o vazio total." E mais adiante: "Sinto-me morrer aqui sentada." Daí que certos adjectivos apenas se compreendam se tivermos em conta a contaminação generalizada de morte que se instala progressivamente. Dedos alfabéticos, por exemplo: "As letras têm origem nestas pretas e estas teclas têm origem no meus dedos alfabéticos."

O esforço por grudar a esta naturalidade rasa é imenso. Mas Sylvia odeia-a. Mesmo quando finge aceitá-la, há uma linha de ironia que domina o discurso. O que é importante no mundo das coisas rasas é aquilo que não tem a menor importância. O interessante reside no facto de que o mundo da banalidade prolifera, ganha evidência e consistência: "Tive várias oportunidades. Tentei vezes sem conta. / Cosi a vida dentro de mim como um órgão precioso. / E caminhei precária e cautelosamente como se fosse etérea. /Tentei não pensar demais. Tentei ser natural. /Tentei ser cega no amor, como outras mulheres, / cega na minha cama, com o meu cego amante, / Sem procurar, na espessa escuridão, a outra face, // Não a procurei. Mas ela estava aí / A face do que não tinha nascido e amava as suas perfeições, / A face do que jazia morto e que só encontraria a perfeição / Na sua tranquila paz, só assim se manteria sagrado. / E havia também outras faces, As faces das nações,/ Dos governos, parlamentos, sociedades, / Os rostos sem vida dos homens importantes. / São estes os homens que não suporto: / têm tanta inveja de tudo aquilo que não é raso!"

É perante isto que o momento da maternidade institui uma pausa: de súbito, a alegria, a inocência, a energia das coisas. Mas não basta. A evidência da normalidade baixa de novo sobre os homens. Felizmente que eles não sabem. Apenas Sylvia, aquela que já começou a morrer, que morre de tédio e ódio pela vida que não quer: "E se eles se vissem de repente surpreendidos, tal como eu? / Enlouqueceriam pela certa."

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