2-10-2009

 

 

Uma história em Tondela, no ano de 1735

 

 

Em 1735, Manuel Rodrigues, de 29 anos de idade, alfaiate de profissão, casado com Antónia do Loureiro, de 34 anos, de quem tinha dois filhos pequenos, de nome António e Agostinho, nado, criado e morador na vila de Tondela, tinha a sua vida desorganizada. Situação irritante, sobretudo porque não havia razões para isso. Afinal, ganhava a vida razoavelmente, tinha a sua casita com lojas e podia sustentar mulher e filhos decentemente. Chamavam-no o Bizarro ou o Bizarrete por alcunha, que já vinha de família.

Havia dois anos, porém, que arranjara uma amante de nome Simoa e com ela dividia os seus dias e suas noites. À amante, é preciso sustentá-la e para isso é preciso ter dinheiro. Por causa dela, fazia a vida negra a sua mulher que também não era menina para se calar. Acabava ele por ter remorsos da vida que levava e, por isso, volta e meia, acabava por beber um copo a mais.  Não tinha vinhas, mas, de vez em quando, ia à Comenda de Santa Maria de Tondela comprar um pipo de vinho que punha na loja.

As discussões com sua mulher eram frequentes. Ela invocava castigos divinos, que ele não levava a sério, sendo conduzido a proferir blasfémias, o que ainda punha mais fora de si a  senhora: “Tanto se me dá ir para o Céu como para o Inferno”, dizia ele. “E, se for para o Inferno, não me faltará lá companhia”.

Quando ela o repreendia pela relação ilícita com a Simoa, ele dizia “Nossa Senhora também pariu, e com certeza alguém lho fez” e ainda “Ando com uma mulher ruim? Também Nosso Senhor andou com mulheres ruins”.

Logo pouco tempo depois de casarem, estando ambos em casa, pusera um crucifixo pequeno numa malga com água, dizendo “Vamos lá ver se este Senhor sabe nadar”. E vendo que o crucifixo se afundava: “Se este Senhor que tudo pode vai logo ao fundo, que faria eu?”.

Numa tarde de Verão, em 1735, cerca de quinze dias após o S. João, tinha ele estado na loja a trasfegar vinho, ao mesmo tempo que ia bebendo. Chegado a casa, reagindo a qualquer observação de sua mulher, pegou no cabo de uma sachola para lhe bater. Reagiu ela: “Deixa-me em paz, pelas chagas daquele Senhor que ali está, pendurado na Cruz” , apontando para um crucifixo de cerca de um palmo que estava numa prateleira. Furioso, deu uma paulada no crucifixo que caiu no chão, partido em pedaços. A mulher desatou aos gritos e fugiu para a cozinha a chorar. Ele pegou nos pedaços do crucifixo, foi atrás dela e atirou-lhe com eles dizendo: “Ó grandecíssima puta, advirta que ninguém sabe disto senão você, e se disser alguma coisa advirta que a hei-de matar”.  A mulher ficou-se, mas depois foi recolher todos os pedaços do crucifixo, que escondeu. Entretanto, acrescentou ele: ”O crucifixo não estava benzido e por isso não passa de um cavaco”.

Mas ela não se conformava e foi desabafar com sua irmã Feliciana Álvares, viúva de Manuel Rodrigues Valverde, de 40 anos, contando o sucedido. Estava também presente ali Filipa Simões, de 45 anos, casada com João Lourenço, e foi esta que, semanas depois, precipitou os acontecimentos, indo contar tudo ao Reitor da paróquia de Tondela e Comissário do Santo Ofício, Padre Silvério Pereira Teles [1].

O Reitor mandou chamar Antónia do Loureiro para que lhe trouxesse os pedaços da Cruz partida. Levou-os ela e confirmou os factos, narrando a sua versão do caso.

O Reitor não hesitou: mandou prender na cadeia pública o Manuel Rodrigues, à espera de ordens da Inquisição de Coimbra. Para ali remeteu em 21 de Agosto um relato sucinto dos acontecimentos.

Antónia do Loureiro deu conta que as coisas estavam a ir longe demais. A cadeia tinha grades para a rua, mas ela tinha receio que a não deixassem falar com o seu homem.  Por isso, pediu a sua irmã Ana Maria, viúva, que lá fosse e lhe desse os conselhos que pessoa sabedora lhe tinha sugerido: que confessasse os factos, mas que dissesse que não tinha intenção de atingir o crucifixo, que fora um acaso quando estava a “dar” em sua mulher (como se dizia na altura). Que dissesse que estava toldado pelo vinho, já que isso serviria de atenuante. Isso mesmo fez Ana Maria.

A participação do Reitor chegou depressa a Coimbra e logo a 23 de Agosto, os inquisidores mandaram ao Reitor da Paróquia de Santa Maria de Tondela uma comissão (nome que na altura se dava a uma deprecada) para serem ouvidas as testemunhas do caso dizendo pormenorizadamente os factos a apurar e as questões a colocar.

Logo no dia 30 de Agosto, foram interrogadas Filipa Simões, Feliciana Álvares e Antónia do Loureiro. A audição foi concluída em 3 de Setembro e enviada nessa data para Coimbra.

A 7 de Setembro, os Inquisidores João Pais do Amaral e Bento Pais do Amaral emitiram mandado de prisão contra Manuel Rodrigues, a ser feita por qualquer Familiar ou Oficial do Santo Ofício. Diga-se de passagem que, neste caso, era um pouco ridículo, pois já estava preso na cadeia pública de Tondela. O Reitor deve ter encarregado o Familiar do Santo Ofício, João Ferreira da Costa, de Tondela, de o levar para Coimbra, o que ele fez, tendo-o entregue na porta da dispensa em 12 do mesmo mês.

Logo no dia 13, começou a confissão do preso, que seguiu as orientações recebidas de sua mulher. Não queria atingir a imagem, mas sim bater em sua mulher; e estava toldado pelo vinho.

Voltou a ser ouvido de novo a 12 de Outubro, de manhã e de tarde, mas nada acrescentou ao que já tinha confessado.

Terão entretanto havido ordens (que não constam do processo) para serem ouvidas em Tondela mais testemunhas sobre as mesmas questões da anterior deprecada .

O Reitor iniciou os interrogatórios a 1 de Outubro e terminou-os no dia 25 do mesmo mês. Foram ouvidas as testemunhas:

- Ana Maria, viúva de Manuel Domingues, irmã de Antónia do Loureiro, de 39 anos;

- Lourenço Rodrigues do Vale, natural de Elvas, casado com Teresa Maria Caetana, de 36 anos;

- Teresa Maria Caetana, natural da cidade de Viseu, casada com o anterior, de 42 anos;

- Micaela Maria de Santa Rosa, filha de Jorge Vaz, já falecido, de 45 anos.

As testemunhas pouco ou nada acrescentaram, porque ninguém (a não ser a mulher do preso) tinha presenciado os factos, sendo todas testemunhas de ouvir dizer.

 

No mês de Novembro e primeira quinzena de Dezembro, nada aconteceu. A 19 de Dezembro, o preso pediu para ser ouvido e veio repetir aos Inquisidores o mesmo: não tivera intenção de atingir o crucifixo e estava toldado pelo vinho.

Ficou a “descansar” na cadeia da dispensa, até que em 22 de Março o escrivão faz o processo concluso aos Inquisidores. Estes acharam que ele devia ser processado pelo “desacato” que cometera, mas não avançaram mais.

O processo parou, o preso continuava na cadeia da dispensa.

Temos de adivinhar o que se passou entretanto. Os Inquisidores terão hesitado em prosseguir com a acusação de blasfémia e heresia o que implicaria ida ao auto de fé e possivelmente cárcere perpétuo. Era muito trabalho para peixe tão pequeno. Manuel Rodrigues era analfabeto e, se se decretasse o sequestro e perda dos bens, o ganho seria muito pouco. Além disso, era claríssimo que ele nunca iria confessar que destruíra o crucifixo de propósito. Apesar de tudo, os Inquisidores também não eram tão iníquos que ousassem pôr nos autos uma confissão que ele não tinha feito. A Inquisição manteve sempre aparências de seriedade. A solução era pois deixá-lo uns tempos no cárcere, e despachá-lo depois com uma dura repreensão e a obrigação de pagar as custas.

Foi isso que se fez a partir de 5 de Junho de 1737, depois de o processo ter estado parado durante catorze meses. As peças processuais sucederam-se a grande velocidade:

5 de Junho – Genealogia – Refere que sua mãe era ainda parente do Padre António Guilherme Hebre de Loureiro [2], recentemente condenado pela Inquisição.

6 – Interrogatório (in genere)

6 – Interrogatório in specie

7 – Admoestação antes do libelo

7 – Libelo

8 – Citação

8 -  Admoestação antes da publicação

8 – Publicação da prova da justiça

12 – O escrivão faz o processo concluso

12 – O processo foi a voto de todos os Inquisidores. Por unanimidade, acharam que não havia prova concludente de que partira a Imagem de propósito; e que o crédito do testemunho de sua mulher ficava diminuído por ele a tratar mal e andar amancebado com outra, sendo pois natural que lhe tivesse raiva. Seria pois repreendido e condenado nas custas do processo.

24 – Publicado o Acórdão com a Sentença.

24 – Termo de soltura e segredo

Custas: 3$053 réis.

 

Esta a história verdadeira que vem contada no processo n.º 9979 da Inquisição de Coimbra, que vai transcrito a seguir.

 

[1] Silvério Pereira Teles foi Reitor da Paróquia de Santa Maria de Tondela, durante muitos anos, sendo natural da vila, onde foi baptizado em 29 de Julho de 1683. Foram seus padrinhos o Reitor da Paróquia, seu tio materno, Manuel de Figueiredo Soares e João Pereira Teles, seu tio paterno, de Lazarim – Lamego. Era filho de Maria de Figueiredo Soares, natural de Tondela e de Bernardo Pereira Teles, natural de Alvarenga – Arouca. Possivelmente seus pais eram aparentados, para se conhecerem. O seu casamento foi celebrado em S. Miguel do Outeiro em 10-6-1675. Silvério Pereira Teles era neto paterno de Manuel Soares Mendes e Ângela Teles, de Alvarenga e neto materno de Manuel Coelho Soares e de Isabel Figueiredo, naturais e moradores que foram da vila de Tondela.

O pai era proprietário abastado, quer em Alvarenga, quer em Tondela. O mesmo se deve dizer de sua mãe, de cuja família provieram, durante um século, quatro Reitores da Paróquia de Tondela:

- P.e Manuel Vaz de Figueiredo, no sec. XVII. Pouco depois dele foi também Reitor da mesma paróquia, o seu sobrinho filho de sua Irmã, Isabel de Figueiredo,

- P.e Manuel de Figueiredo Soares, nascido por volta de 1640. Foi depois Reitor o seu sobrinho filho de sua irmã D. Maria de Figueiredo Soares,

- P.e Silvério Pereira Teles (1683 – 1745). Foi depois Reitor o seu sobrinho, filho de sua irmã D. Helena Caetana Pereira Teles,

- P.e Caetano António Pereira Teles de Villa Fanha e Araújo (1718 – 1763)

É curioso que, poucos anos depois, desde 1778 até à morte, foi Reitor de Santa Maria de Tondela e da anexa Paróquia de S. Pedro de Molelos, o P.e José António de Villa Fanha (1740 – 1813), filho natural do P.e Caetano anteriormente referido, que o teve em Josefa Micaela, de Barrô – Santiago de Besteiros; foi Comissário do Santo Ofício, por carta de 2 de Outubro de 1794.

Bernardo Pereira Teles foi nomeado Sargento-Mor das Milícias dos Concelhos de Besteiros e Guardão, que se encontravam agregadas para efeitos operacionais.

Os pais do P.e Silvério deram origem a uma prestigiada família de Tondela (os Teles da Casa de Santo António) que veio a extinguir-se no sec. XIX. Além de Silvério, tiveram antes três filhas mais velhas:

D. Bernarda Pereira, baptizada a 13-12-1676, falecida a 29-12-1701;

D. Helena Caetana Pereira Teles, baptizada a 14-8-1678, falecida a 23-7-1760;

D. Mariana Ângela Pereira, baptizada a 3-8-1680, falecida a 16-12-1704.

D. Helena Caetana Pereira Teles, casou em Tondela a 16 de Agosto de 1714 com Caetano Luis de Barros Monteiro, do Porto, Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo e Familiar do Santo Ofício (desde 1705), que veio a “herdar” a função militar do sogro, por Carta Patente de 9 de Junho de 1723.

Silvério Pereira Teles matriculou-se na Universidade de Coimbra em 1699, ali se formando em Cânones em 4 de Novembro de 1706. Foi Presbítero do Hábito de S. Pedro em 1710. Após as demoradas habilitações da praxe, foi nomeado Comissário do Santo Ofício por provisão de 29 de Novembro de 1726.

A seu favor, depuseram em Tondela as doze testemunhas seguintes:

P.e Manuel de Matos, natural e morador em Tondela, de 59 anos

P.e Manuel Simões do Vale, natural e morador em Tondela, de 68 anos

Manuel Rodrigues do Vale, casado, ferrador, de 77 anos, natural e morador em Tondela

Cristóvão Alves, casado, vive de sua fazenda, natural e morador em Tondela, de 70 anos

Bernardo Alves, casado, familiar do Santo Ofício, natural e morador em Tondela, de 58 anos.

Maria de Horta, solteira, natural e moradora em Tondela, de 87 anos

P.e Manuel Rodrigues do Vale, natural e morador em Tondela, de 78 anos

Dr. António Dias Alves, Familiar do Santo Ofício, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo, Desembargador dos Agravos na Relação do Porto, natural e agora residente na vila de Tondela, de 66 anos

Jorge Vaz, casado, vive de suas fazendas, morador na vila de Tondela, de 88 anos

P.e António Marques, Presbítero do hábito de S. Pedro, natural e morador em Tondela, de 54 anos

Isabel João, mulher de Jorge Vaz, natural e morador em Tondela, de 75 anos

P.e e Licenciado Manuel Vaz Leal, Sacerdote do hábito de S. Pedro, natural e morador nesta vila, de 56 anos

Em Arouca, mais precisamente em S.ta Marinha do Tropeço, depuseram outras tantas (12) testemunhas.

Disseram todas as testemunhas que o P.e Silvério Pereira Teles não tinha qualquer parte de cristão novo. Os seus ascendentes  eram cristãos velhos, sem raça, fama ou rumor de infecta nação (de judeu ou de preto); nem ele nem seus ascendentes incorreram em infâmia, não tem filhos ilegítimos. Além disso era irmão de D. Helena Caetana Pereira, casada com Caetano Luis de Barros Monteiro, Familiar do Santo Ofício desde 1705.

É Bacharel formado pela Universidade de Coimbra nos Sagrados Cânones. A sua Igreja de Tondela tem 150$000 de rendimento anual e tem muitas fazendas patrimoniais; tem juízo, capacidade e bom procedimento para servir a ocupação que pretende.

Os depoimentos distorcem um pouquinho a realidade. Quer Bernardo Pereira Teles, quer os filhos, quando crianças e jovens, passavam temporadas em Alvarenga – Arouca. E, segundo diz João Bernardo Galvão-Telles, no seu livro, lá teve Silvério Pereira Teles um filho natural de uma Bernarda, rapariga solteira. Tê-lo-á reconhecido já que ele usava o sobrenome do pai, chamando-se Luis Pereira Teles.

Em 21 de Maio de 1743, foi nomeado Arcipreste de Besteiros pelo Bispo D. Júlio Francisco de Oliveira (1693 – 1765), Bispo de Viseu desde 1640 até falecer. A verdade é que ele já muitos anos antes se intitulava Arcipreste de Besteiros, sobretudo em processos da Inquisição em que interveio (por ex., processos n.ºs 6441 e 9979, da Inquisição de Coimbra).

Faleceu em 12 de Janeiro de 1745.

 

 

[2] António Guilherme Hebre de Loureiro foi um célebre sacerdote do hábito de S. Pedro, condenado pela Inquisição num processo (n.º 3532, de Lisboa) extremamente volumoso que na Torre do Tombo ocupa três bobines de microfilme e tem 1792 páginas (imagens).

Era pessoa inteligente, formado em Cânones por Coimbra, mas completamente desaparafusado.

Terá começado por fazer exorcismos, mas depois alargou o campo da sua acção, dando consultas privadas sobre os mais variados assuntos religiosos. Sendo reputado como filho de um padre, dizia no entanto que sua mãe o tinha concebido por intervenção divina; afirmava que nele tinham encarnado as três pessoas da Santíssima Trindade.

Outro disparate dele era consagrar pedaços de maçã, que ele dizia serem o corpo de Cristo.

Nascera na freguesia de Salvador, em Lisboa, em 1694, sendo filho do Abade de Moreira - Viseu, Manuel Simões Hebre e de Joana Maria, natural de Peniche. Foi preso em Almeida, mas indicou a sua residência em Tondela, onde tinha duas irmãs casadas.

Em 30 de Dezembro de 1727 foi emitido pela Inquisição de Coimbra um mandado de prisão contra ele, tendo dado entrada na prisão do S.to Ofício em Coimbra, em 9 de Janeiro de 1728.

Andou pelas zonas de S. João da Pesqueira, Vila Nova de Foz Côa, Penedono, e também Almeida, vindo, de vez em quando, passar temporadas a Tondela.

Iniciada em Janeiro de 1728 a instrução do processo, com inúmeras testemunhas de acusação, só em 22 de Outubro de 1729 é que começou a confessar as suas culpas. Não chegou a ir ao tormento, embora a sua confissão não fosse muito completa.

Em 1 de Maio de 1731, foi transferido, ele e o seu processo, para Lisboa, onde os Inquisidores se limitaram a proferir a sentença, tendo ido ao auto-de-fé de 17 de Junho de 1731.

Foi condenado como herege e blasfemo a cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão.

Veio a falecer no cárcere em 20 de Novembro de 1754 às 11 da noite.

As custas do processo elevaram-se a 30$330 mil réis.

O padre é mencionado no processo n.º 61, da Inquisição de Coimbra, contra Maria Lopes, casada, de 25 anos, de Rio Torto, freguesia de Souto de Penedono, presa a 2 de Março de 1728,e condenada em 9 de Maio do mesmo ano ao degredo para o Couto de Crasto Marim, por ter acreditado que o Padre Hebre de Loureiro era o novo Messias, bem como em muitos mais processos.

Camilo  Castelo Branco tinha no seu arquivo uma cópia da sentença, mas suponho que não escreveu sobre ele.

Quem o refere é J.P. de Oliveira Martins, no 2.º volume (pags. 202) da sua História de Portugal (4.ª edição - 1887): O padre António Hebre Loureiro, penitenciado em 1741, dizia-se o próprio Deus e anunciava uma segunda encarnação do Verbo e uma segunda redenção do mundo. Era em pessoa o Messias, e havia seiscentos anos que andava pela terra esperando a hora da salvação geral. Tinha morrido, tinha ressuscitado, e possuía o dom dos milagres. O mistério da transubstanciação endoidecera-o, e consagrava-se na Hóstia, vendo-se unido em corpo e sangue à Trindade. As suas heresias tinham porém um carácter nacional, porque o profeta que o anunciara fora o Bandarra.”

 

 

Nota: O processo n.º 9979 não tem numeração. Os números indicam a numeração virtual de todas as páginas, incluindo as páginas em branco. A ordem dos documentos é cronológica, alterando-se a ordem dos documentos no processo quando é diferente. Actualizei a grafia, mas não a pontuação.

 

 

Processo n.º 9979, da Inquisição de Coimbra

 

/5/ Capa interior

Processo de Manuel Rodrigues Bizarro, que diz ser cristão velho, alfaiate, natural e morador na vila de Tondela, Bispado de Viseu.

 

/17/

Il.mos Senhores

Dou a V. Senhoria conta em que me veio dizer Filipa Simões, mulher de João Lourenço, desta Vila, que indo a casa de Feliciana Álvares, aí achara uma sua Irmã por nome Antónia do Loureiro, casada com Manuel Rodrigues, todos desta Vila, a qual vinha fugida do dito seu marido, dizendo que já não lhe podia aturar tanto, porquanto, querendo-lhe ele dar, ela lhe pedira que, pelas chagas daquele Senhor que ali estava, a deixasse; e o dito seu marido com o cabo de um sacho, atirou o Crucifixo e o fez em vários pedaços, e ela retirando-se para a cozinha por não poder ver estes desacatos, ele fora logo donde ela estava e lhe atirou com a Cruz, estava tudo feito em pedaços, dizendo que daquilo ninguém sabia senão ela e que se o dizia, que a matava; e que não queria que se confessasse, para que não dissesse, e já em outra ocasião tivera outro crucifixo pequeno afogado; e que em muitas ocasiões dizia que, se ele andava amancebado, que também Nossa Senhora não podia parir sem lho fazerem e que tanto se lhe dá ir para o Céu como para o Inferno; isto é o que a dita Filipa Simões que ouvira a dita Antónia do Loureiro, a qual veio também a dar-me a mesma conta e com ela me entregou a Cruz e Imagem, tudo feito em pedaços, que fica em meu poder. O caso entendo será verdadeiro assim  pelo que se deixa ver em tão extensos despojos, como pela tal mulher ser de bom /18/ procedimento e verdadeira e ele, pelo contrário, ser mal procedido. Não é bêbado; e pelo que faz e diz mostra pouco ou nenhum temor de Deus e eu assim o inferi nesta Quaresma  pois dizia que se lhe não dava da Confissão.

Conforme que me deram esta conta, a dou a V. Senhoria que Deus guarde.

Tondela, de Agosto 21 de 1735

Humilde súbdito de V. Ex.ª

 

Silvério Pereira Teles [1]

 

Termos da Comissão remetida ao Comissário do Santo Ofício em Tondela, o Reitor Silvério Pereira Teles.- 23 de Agosto de 1735.

 

/21/ Os Inquisidores Apostólicos contra a herética pravidade e apostasia nesta Cidade de Coimbra e seu distrito, etc. Fazemos saber ao Licenciado Silvério Pereira Teles, Reitor da Igreja de Tondela e Comissário do Santo Ofício que nesta Mesa há informação que um Manuel Rodrigues casado com Antónia do Loureiro dessa vila, querendo dar na dita sua mulher, e pedindo-lhe ela que a deixasse pelas chagas de Nosso Senhor, cuja Imagem ali estava, o dito Manuel Rodrigues atirara com o cabo de um sacho á dita Imagem de Cristo Crucificado, e a fizera em vários pedaços e juntamente a Cruz em que ela estava cravada e depois atirara com tudo à dita sua mulher, que já estava em outra casa, dizendo-lhe que daquilo ninguém sabia senão ela, e que, se o dissesse, que a havia de matar; e que não queria que ela se não confessasse pelo não dizer; e que em uma ocasião também o sobredito tivera afogada outra Imagem pequena de Cristo Crucificado; E que por muitas ocasiões dissera que se andava /22/ amancebado, que também Nossa senhora não podia parir sem lho fazerem, e que tanto se lhe dava ir para o Céu, como para o Inferno .

E, porque convém ao serviço de Deus Nosso  Senhor, e ao bem da justiça do Santo Ofício constar nesta Mesa judicialmente a verdade do referido, Autoritate Apostolica cometemos a Vossa Mercê que sendo-lhe esta dada, faça a diligência nela mencionada com um Notário do Santo Ofício, e, não o havendo ou estando impedido, elegerá para escrivão da mesma a um Sacerdote, tido, havido e geralmente reputado por legítimo e inteiro cristão velho de boa vida, e costumes, ao qual dará o juramento dos Santos Evangelhos, em que porá sua mão, sob o cargo do qual prometerá escrever nesta diligência com toda a verdade e segredo, de que a princípio se fará, termo por ambos assinado na forma do estilo do Santo Ofício.

E logo, estando Vossa Mercê na parte e lugar que lhe parecer mais conveniente, e acomodado para esta diligência se fazer com cautela, e segredo que convém, mandará ir perante si, a Filipa Simões, casada com João Lourenço, e a dita Antónia do Loureiro, e as mais pessoas que esta referir, e dos sobreditos casos souberem, e, sendo presentes, lhes dará /23/ Juramento dos Santos Evangelhos, sob cargo do qual prometerão dizer a verdade e guardar segredo no que lhes for perguntado, e logo o serão pelos interrogatórios seguintes:

1.     Se sabe ou suspeita o para que é chamada ou se alguma pessoa lhe disse que se fosse perguntada por parte do Santo Ofício, dissesse mais ou menos do que soubesse ou na verdade passasse.

2.     Se sabe, viu, ou ouviu alguma coisa contra nossa Santa Fé Católica, Lei Evangélica, ou bons costumes, ou outra alguma cujo conhecimento pertença ao Santo Ofício,  de que deva e haja de denunciar na mesa do Mesmo?   Que é o que sabe, viu ou ouviu, a que pessoa, sobre que matéria, em que parte, que tempo há, e quem mais estava presente?

3.     Se sabe que alguma pessoa, com temerária ousadia, e com um pau, fizesse em pedaços a uma Imagem de  Cristo Crucificado, e juntamente a Cruz em que estava cravada, e depois atirasse com tudo a outra pessoa, dizendo-lhe que daquilo ninguém sabia senão ela, intimando-a que se o dissesse a havia de matar, e que /24/ não queria que ela se confessasse pelo não dizer?  Se sabe que a mesma pessoa em outra ocasião tivesse afogado outra Imagem pequena de Cristo Crucificado? E se outrossim sabe que a dita pessoa dissesse por muitas ocasiões que, se andava amancebado, que também Nossa Senhora não podia parir sem lhe fazerem o filho; e que tanto se dava ir para o Céu, como para o Inferno?   Como se chama, e donde é natural, e moradora a pessoa que afogou  e fez em pedaços as ditas Imagens de Cristo Senhor Nosso, em que parte, em que tempo há, e quem mais estava presente nessas  ocasiões, que motivo teve para obrar tão execrandos excessos, quem é a pessoa a quem atirou com os tais pedaços da Imagem, e com que formalidade e palavras a intimidou para que nem ao confessor desse conta do referido, dizendo-lhe que, se fizesse o contrário, a havia de matar, e em que parte disse que, se andava amancebado, que também Nossa senhora não podia parir sem lha fazerem o filho, e por quantas vezes o disse, a que respeito e quem mais ouviu a referida blasfémia?  E tudo o que as testemunhas responderem a cada uma das perguntas insertas neste interrogatório se escreverá com clareza e individuação.

4.     Se sabe que a dita pessoa seja de boa vida e costumes, e tenha juízo, e capacidade, ou se, pelo contrário, é louca, desassisada, falta de juízo, e se padece lúcidos intervalos, ou, se quando /25/ obrou e disse o referido, estava tomada de vinho, ou com alguma paixão que lhe turvasse o entendimento, de sorte que não soubesse o que obrava ou dizia, e que qualidade de sangue tem tal pessoa?

5.     Se tudo o que tem testemunhado é público e notório, e pública vox e fama e se tem alguma razão que declare aos costumes?

 

Pelos interrogatórios acima, perguntará Vossa Mercê às duas testemunhas, e às mais que elas referirem, e dos sobreditos casos souberem, as quais no princípio dirão de suas idades, qualidades de sangue, pátrias, ofícios e habitações, e no fim ao costume e causas dele, e assinarão o seu testemunho, o qual (fazendo culpa a alguma pessoa) virá ratificado na forma da ratificação que com esta vai; e pelas mulheres, que não souberem escrever, assinará o Escrivão desta diligência, dizendo usar de seu rogo e consentimento, pelo qual Escrivão, no fim da mesma, mandará Vossa Mercê fazer declaração dos dias que gastarem fora de suas residências (se alguns forem) para a tudo se dar inteira satisfação. E ultimamente, dará Vossa Mercê sua informação  declarando nela /26/ toda a notícia que souber, e puder alcançar, assim a respeito do que se procura averiguar, como da fé, e crédito que às testemunhas se deve dar, escrevendo tudo por sua mão, sem comunicar ao escrivão desta diligência, e feita ela  com toda a brevidade possível, com a mesma nos será enviada a própria com esta nova Comissão, sem que lá fiquem cópia ou treslado algum.

Dada em Coimbra no Santo Ofício, sob nossos Sinais, e Selo do mesmo, aos vinte e três dias do mês de Agosto , António Baptista a fiz, de mil setecentos trinta e cinco anos.

a)    João Pais do Amaral

b)    Bento Pais do Amaral

 

 

 

/27/ Apresentação de uma comissão dos Muito Ilustres Senhores Inquisidores Apostólicos da Inquisição da Cidade de Coimbra, remetida ao Reverendo Licenciado Silvério Pereira Teles, Reitor da Igreja de Santa Maria da vila de Tondela, Comissário do Santo Ofício.

 

Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e trinta e cinco anos, aos trinta dias do mês de Agosto do dito ano, nas casas e moradas do Reverendo Reitor da Igreja da dita vila, Silvério Pereira Teles, Comissário do Santo Ofício ali por ele me foi apresentada a Comissão dos muito Ilustres Senhores Inquisidores Apostólicos da Inquisição de Coimbra, a qual sendo-lhe remetida por ordem dos ditos Senhores e por ele dito Reverendo Comissário com o todo o devido respeito aceitada. Logo para o efeito de se dar a sua devida execução, elegeu para escrivão dela por não haver notário que usasse do ofício a mim o P.e Licenciado Bernardo Pereira da Cunha, natural e morador nesta dita vila. Logo me mandou a autuasse o que eu fiz pelo que me deu o Juramento dos Santos Evangelhos, sob cargo do qual prometi guardar segredo e juntamente com ele de bem e na verdade fazermos o que verdadeiramente competisse a nossa obrigação de que de tudo fiz este termo de apresentação e juramento  que ambos assinamos, eu o Padre Bernardo Pereira da Cunha, que o escrevi e assinei.

a)    Silvério Pereira Teles

a)    P.e Bernardo Pereira da Cunha, Escrivão

 

/28/ Testemunha 1.ª

Filipa Simões, mulher de João Lourenço, natural e moradora nesta vila de Tondela, testemunha a quem o Reverendo Comissário do Santo Ofício deu o Juramento dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita sob cargo do qual prometeu dizer o que souber na verdade de tudo o que lhe fosse perguntado e guardar segredo e de sua idade disse ser de quarenta e cinco anos, pouco mais ou menos.

Perguntada ela testemunha pelo conteúdo em o primeiro artigo da Comissão, disse que não sabia para o que vinha chamada mas sim suspeitava que era para testemunhar a respeito de uma conta que tinha dado /29/ a ele Reverendo Comissário a respeito do desacato que se fez a uma imagem de um Cristo Crucificado, e que nenhuma pessoa lhe disse que sendo perguntada, por parte do Santo Ofício, jurasse mais ou menos a verdade, e mais não disse deste.

Do segundo, disse que não sabia nem vira coisa alguma contra a Nossa Santa Fé Católica, ou outra alguma cuja conhecimento pertença ao Santo Ofício, mas sim por ouvida sabe por lho dizer Antónia do Loureiro, em casa de sua irmã Feliciana Álvares, na noite de sexta-feira, doze do corrente mês de Agosto, a qual vinha fugida de casa, de seu marido Manuel Rodrigues dizendo que tinha ao dito seu marido sofrido muito, mas que ela que tinha a culpa dizendo pode mais ser que um Senhor Crucificado que tinha em casa pregado em uma parede, por razões que tivemos, castigando-me ele por lhe eu dizer cala-te, que aquele Senhor te dará a paga = ele então se fora com um sacho e fizera a Imagem e Cruz tudo em pedaços, ela retirando-se para a cozinha, ele dito seu marido, foi com o dito Senhor e Cruz feito em pedaços e lá lhe atirou com eles e ela acendeu uma candeia e ajuntou tudo, e o metera dentro de uma caixa embrulhado em uma toalha; e quando a dita Antónia do Loureiro lhe contou isto a ela testemunha, ela testemunha lhe disse que o fosse buscar, o que ela fez, e com efeito o viu ela testemunha feito tudo em pedaços. Dizendo-lhe mais quando lhe atirou com a dita Imagem, = ó grandecíssima puta, advirta que ninguém sabe disto senão você, e se disser alguma coisa advirta que a hei-de matar = e querendo-se ela ir confessar, o dito seu marido lhe dissera que bem sabia que era por confessar este pecado, e para que ela assim não fizesse, que não queria que ela lá fosse; dizendo-lhe também que ele era tão maligno, que já em outra ocasião, havia afogado a Imagem de um Crucifixo pequeno em /30/ uma tigela de água,  e também lhe disse na mesma ocasião a dita Antónia do Loureiro que repreendeu ao dito seu marido algumas vezes  por andar amancebado e ele lhe dizia que me hão a mim de fazer, também Nossa Senhora pariu, pois podia parir sem lho fazerem; = e que assim como assim, que a sua alma já estava perdida, e que tanto se lhe dava ir para o Céu como para o Inferno, e quem estava presente na mesma ocasião e ouviu tudo isto a dita Antónia do Loureiro em presença dela testemunha, foi Feliciana Álvares, viúva e irmã da dita Antónia do Loureiro, porém, no tempo e ocasião em que ele disse e obrou estas coisas, não sabe ela testemunha, porque só o poderia saber a dita sua mulher; a pessoa que fez os ditos desacatos e disse as ditas blasfémias chama-se Manuel Rodrigues, alfaiate, o Bizarrete, por alcunha, e é natural e morador nesta vila de Tondela, Bispado de Viseu, e a pessoa a quem ele atirou com os pedaços de Imagem e Cruz, e disse o mais referido,  foi a dita sua mulher Antónia do Loureiro, e o motivo que ele teve para o fazer lhe disse a dita sua mulher, que era pelo mau estado em que andava e má inclinação que tinha e tem, tanto que ela mesma lhe disse que ele muitos dias santos, ficava sem missa, e que algumas vezes que ia a ela, era depois de tangerem a última entrada, e se ia a horas, ia, se não que se lhe não dava ficar sem ela, o que tudo sabe pelo modo como tem testemunhado, e mais não disse deste, nem do terceiro, mais do que dito tinha.

Do quarto disse que o dito Manuel Rodrigues é um homem muito mal procedido que quase desde o tempo 31/ em que ele casou até o presente, sempre andou amancebado, dando escândalo à maior parte da gente, assim vizinhos, como desta vila, e muito má vida à dita sua mulher, e no tempo que a dita Antónia do Loureiro lhe contou a ela testemunha todo o referido, não lhe disse que o dito Manuel Rodrigues estava bêbado, nem fora do seu juízo, e só depois que a dita Antónia do Loureiro foi notificada para vir a este Juramento, falou com ela testemunha e lhe disse  que o seu marido estava bêbado quando fez o dito desacato à dita Imagem, o que ela testemunha entendeu que era pelo querer desculpar, porquanto ela testemunha nunca o viu bêbado, nem com juízo perdido, nem menos o tem por louco nem desajuizado, mas sim por mal inclinado, e o dito Manuel Rodrigues está tido e reputado por cristão velho, o que sabe pelo conhecer e ver e mais não disse deste.

E do quinto disse que tudo o que tem testemunhado, é público e notório, excepto os desacatos, que fez á Imagem de Cristo que isso só sabe por lho dizer a dita sua mulher, como dito tem; e mais não disse nem ao costume disse nada.

E tendo assim deposto a testemunha, e sendo-lhe lido o seu testemunho, que ela entendeu e percebeu muito bem, disse que tudo o que estava escrito nele, era verdade e nele se afirmava e ratificava, e dizia de novo, sendo necessário, e não tinha que acrescentar, diminuir, mudar, ou emendar, nem que dizer de novo ao costume, sob cargo do Juramento dos Santos Evangelhos que outra vez lhe foi dado, ao que estiveram presentes por honestas e religiosas pessoas que tudo viram e ouviram , e prometeram dizer verdade e guardar segredo, e assim o juraram aos Santos Evangelhos, os Padres, o Licenciado Manuel Henriques, e Manuel Lopes Camelo, cura desta Igreja, que aqui assinam comigo, Escrivão que pela testemunha /32/ assinei de seu rogo, e consentimento pelo ser mulher e não saber escrever e com o Reverendo Comissário do Santo Ofício, Silvério Pereira Teles, eu, o Padre Bernardo Pereira da Cunha, Secretário desta diligência, que o escrevi.

 

a)     Pereira Teles         a) A rogo o P.e Bernardo Pereira da Cunha

a)     Miguel Henriques    a) Manuel Lopes Camelo

 

E ida para fora a dita testemunha, logo ele dito Reverendo Comissário perguntou debaixo do dito Juramento dos Santos Evangelhos aos ditos Padres, se lhes parecia que a testemunha era verdadeira e falava verdade em seu Juramento e se a ela se lhe deveria dar inteiro crédito, e por eles foi dito que lhes parecia que a testemunha falava verdade no que tinha deposto; e ao seu Juramento se lhe devia dar inteiro crédito, por ser uma mulher que eles têm por verdadeira e bem procedida, o que tudo declararam debaixo do dito Juramento e sabem pela conhecer e ver e mais não disseram e assinaram aqui com o Reverendo Comissário do Santo Ofício, Silvério Pereira Teles, eu o P.e Bernardo Pereira da Cunha , Secretário desta diligência, que o escrevi.

a)     Pereira Teles

a)     Miguel Henriques

a)     Manuel Lopes Camelo

 

Testemunha 2.ª

Feliciana Álvares, viúva que ficou de Manuel  Rodrigues Valverde, natural e moradora nesta vila de Tondela, ……….e de sua idade disse ser de quarenta anos, pouco mais ou menos.

 

/33/

 

Depoimento praticamente idêntico ao da testemunha anterior.

…………………………

…………sabe por lhe dizer sua irmã Antónia do Loureiro, em presença de Filipa Simões, mulher de João Lourenço, desta vila, vindo fugida de casa de seu marido Manuel Rodrigues………………

……………………………………..

…ele pegou nos pedaços todos assim da imagem como da Cruz e lhe atirou com eles dizendo-lhe , = ó grandessíssima puta, isto ninguém sabe se não você, e se o diz hei-de matá-la; ela logo à vista disto, pegou nos pedaços da dita Imagem e Cruz, e ajuntou tudo e o embrulhou em uma toalha e logo o meteu em uma caixa e o levou  a casa dela testemunha, que ela muito bem viu feita em pedaços, e que vendo-se ela, dita Antónia do Loureiro, ir confessar para dar conta do dito desacato, o dito seu marido por várias vezes a impediu, até que em uma ocasião lhe disse a ele “homem, eu não quero andar excomungada, quero-me ir confessar”, ao que ele lhe respondeu “Olha lá, o beata, já é tarde; daqui a um ano, tem tempo; e se se for confessar, olhe que a hei-de matar”; e, com efeito, lhe tirou a mantilha da cabeça, dizendo-lhe mais que já em outra ocasião, afogara em uma tigela de água, uma Imagem de um Cristo pequena, e também na mesma ocasião lhe contou que em outra, repreendendo-o a ele por andar continuamente amancebado, e que Nosso Senhor  lhe daria a paga, ele lhe respondeu: = “porque também Nosso Senhor não andou com mulheres”, ao que ela lhe respondeu “Homem, tu vives na Lei de Moisés”, ele lhe tornou a dizer “pois Nossa Senhora não pariu? E quem lho fez?”, e também lhe disse que ele dizia que a sua alma já estava perdida, e que tanto se lhe dava ir para o Céu, como para o Inferno. E tudo isto lhe disse a dita sua irmã Antónia do Loureiro ………………………………..

…………………………………………………………………………..

/36/

 

Testemunha 3.ª

 

Antónia do Loureiro, mulher de Manuel /37/ Rodrigues, alfaiate, natural e morador nesta vila de Tondela, testemunha a quem o Reverendo Comissário do Santo Ofício deu o Juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs a sua mão direita, sob o cargo do qual prometeu dizer o que soubesse na verdade de tudo o que lhe fosse perguntado e guardar segredo; e de sua idade, disse ser de trinta e quatro anos, pouco mais ou menos.

Perguntada ela testemunha pelo contido em o primeiro artigo da Comissão, disse que não sabia para o que vinha chamada mas que suspeitava que seria para testemunhar em um caso de que tinha dado conta a ele Reverendo Comissário mas que nenhuma pessoa lhe disse que sendo perguntada, por parte do Santo Ofício, jurasse mais ou menos do que soubesse na verdade, e mais não disse deste.

E do segundo disse que não sabia que pessoa alguma obrasse coisa conta a nossa Santa Fé Católica, ou outra alguma cujo conhecimento pertença ao Santo Ofício, só sim sabia que seu marido Manuel Rodrigues, sendo em quinze dias depois do S. João, pouco mais ou menos, deste presente ano, cujo dia certo não está ela testemunha certa, sendo por horas, de tarde, estando ambos na  dita sua casa, e tendo algumas razões entre si, viu ela que, com um sacho, o dito seu marido, dera em uma tábua onde estava pousado o pé de uma Cruz, em que estava o Senhor Crucificado, e vendo cair assim a Cruz  com o Senhor, ela se retirou para a cozinha das casas, com medo de ele lhe dar, e ele entrou no mesmo tempo dentro a cozinha onde ela estava, lhe atirou com o Senhor e Cruz, tudo feito em pedaços, e ela logo apanhou os bocados do Senhor e Cruz, que viu, e faltando-lhe um braço do Senhor, esperando que ele fosse embora, acendeu uma candeia, e o buscou, e com efeito o achou, e mais um cravo do dito Senhor, /38/ e com medo dele, enterrou tudo em uma pequena de farinha, que tinha em uma maceira, e, passados alguns dias, o embrulhou em uma toalha e o fechou em uma caixa e dela o tirou para mostrar a sua irmã, Feliciana Álvares, e Filipa Simões, e em sábado, treze deste presente mês, trouxe tudo a ele dito Reverendo Comissário, a quem deu conta, e lhe disse a ela testemunha  o dito seu marido, que daquele caso ninguém sabia senão ela, e que se dizia alguma coisa, que a havia de matar, e dizendo-lhe ela testemunha que se queria ir confessar, lhe disse ele de que se queria ela confessar, e ela lhe disse que não queria andar excomungada, e ele respondeu porque andava ela excomungada, e ela respondeu pois já não te lembra a heresia que tens feito, e ele lhe disse, então porque eu faço cá caso disso, isso em um cavalo que não estava benzido, e bem se pode estar diante dele com o chapéu na cabeça, e ela então, vendo e ouvindo tudo isto lhe disse, já não fazes caso disso, queira Deus que te não dêem essas gracinhas na cabeça, e ele então respondeu, bem reparo eu nisso. E em outra ocasião, que haverá seis para sete anos, ou um n.º de anos que não está ela testemunha certa, pegou o dito seu marido em um Crucifixo pequenino, que estava dependurado em um prego e o botou em uma tigela de água, dizendo quero ver se sabe este Senhor nadar, e vendo que ele se ia ao fundo disse para ela testemunha, quando ele se deixa ir ao fundo a si, que fará a mim; e em outra ocasião de que ela testemunha não está certa no tempo nem no dia, estando-lhe ela testemunha pelejando por andar amancebado, o que continuamente lhe fazia = lhe disse ela para ele, ora cala-te, que Nosso senhor te dará a paga do que tu andas fazendo, /39/ ao que ele então respondeu por andar com uma mulher ruim? Também Nosso Senhor andou com mulheres ruins, e dizendo-lhe ela, homem tu estás tolo, tu és um bruto, não crês no Mistério da Encarnação! Ele respondeu, pois Nossa  Senhora também não pariu?  E ela lhe disse, ora o certo é que ou estás já desesperado da graça de Deus, ou não tens entendimento para mais, e ele então disse, bem reparo eu nisso, dizendo também por algumas vezes a ela testemunha que tanto se lhe dava ir para o Inferno como para o Céu, e que se para lá fosse, que se não havia de achar lá só;  e em outra ocasião que foi em quarta-feira de trevas, a noite esta passada fez um ano, dizendo-lhe ela testemunha algumas coisas conducentes para ele tratar da sua alma, e que no outro dia era quinta-feira santa, que se confessasse como faziam todos, ele respondeu, tanto se me dá que seja quinta-feira santa como que seja quinta-feira do diabo, e em outra ocasião, querendo-se ele ir confessar, obrigado pelo seu Pároco, depois de pago o preceito da Quaresma esta passada, lhe disse ela testemunha, tu andas fazendo bom exame, sem quereres deixar de ir a casa da amiga, ora olha que hás-de receber Nosso Senhor, ao que ele respondeu, tanto me dá a mim que me dêem Nosso Senhor, como que mo não dêem.

E a pessoa que fez e disse as sobreditas  coisas, se chamava Manuel Rodrigues, alfaiate, o Bizarrete, por alcunha, e a quem o disse foi a ela testemunha, e ele  é natural e morador nesta vila de Tondela, Bispado de Viseu, e tudo sabe pelo modo referido, e mais não disse deste, nem do terceiro disse mais do que dito tinha.

E do quarto disse que era verdade que o dito seu marido Manuel Rodrigues é de má vida e costumes, porquanto há três anos a esta parte, anda  amancebado de sorte que  a pessoa com quem /40/ ele tem a  dita mancebia, o traz enredado, de sorte que entende ela testemunha que ela o faz fazer estes desatinos, tanto que nem à Missa o deixa ir, e em uma ocasião disse ele que tomara ter algum caminho para se ir desta terra, ou com Deus ou com o diabo, só para ver se me tiro do poder de um tal demónio, que ela diz que enquanto eu for nisso e mais ela, que me não há-de largar; e declarou ela testemunha que quando o dito seu marido fizera o desacato à sobredita Imagem, que estava bêbado; porém quando pronunciou as mais palavras e blasfémias que tem deposto então o não estava, nem menos perturbado ou motivado de alguma paixão que lhe perturbasse o juízo, o que tudo sabe pelo modo referido e mais não disse deste.

E do quinto disse que tudo o que ela testemunha tinha deposto não sabe que passasse com mais alguma pessoa do que com ela testemunha, excepto o seu mau procedimento que esse é público e notório e mais não disse e do costume que era mulher do dito Manuel Rodrigues como tem deposto e que tinha declarado a verdade.

E tendo assim deposto a testemunha, e sendo-lhe lido o seu testemunho, que ela entendeu e percebeu muito bem, disse que tudo o que estava escrito nele, era verdade e nele se afirmava e ratificava, e dizia de novo, sendo necessário, e não tinha que acrescentar, diminuir, mudar, ou emendar, nem que dizer de novo ao costume, sob cargo do Juramento dos Santos Evangelhos que outra vez lhe foi dado, ao que estiveram presentes por honestas e religiosas pessoas que tudo viram e ouviram, e prometeram dizer verdade e guardar segredo, e assim o juraram aos Santos Evangelhos, os Padres, o Licenciado Manuel Henriques, e Manuel Lopes Camelo, cura desta Igreja, que aqui assinam comigo, Escrivão que pela testemunha assinei de seu rogo, e consentimento por ela ser mulher e não saber escrever e com o Reverendo Comissário do Santo Ofício, Silvério Pereira Teles, eu,  Padre Bernardo Pereira da Cunha, Secretário desta diligência, que o escrevi e assinei.

 

 

a)    Pereira Teles         a) A rogo o P.e Bernardo Pereira da Cunha

a)    Miguel Henriques    a) Manuel Lopes Camelo

 

Declaração sobre o crédito das testemunhas

………………………………………………………………..

 

Encerramento do escrivão

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/42/

 

Il.mos Srs.,

Não achei coisa alguma mais do que o que têm deposto as testemunhas e me parece ser de dar inteiro crédito ao seu dito, por as ter por verdadeiras, só a testemunha Antónia do Loureiro, como estava lá em casa de seu marido, Manuel Rodrigues, me pareceu que estava já por ele inclinada, porque perguntando-lhe eu quando ela me veio dar conta, se o dito seu marido estava bêbado ao tempo que fez o desacato na imagem, me respondeu que não; e que o fizera por velhaco e maligno; e no juramento depôs que estava bêbado e isto mesmo foi dizer a uma das testemunhas que assim havia de jurar; porém, não sei nem me consta que o ele o seja, mal procedido e pouco temente a Deus, sim, isto tudo informo a V. Senhoria, que Deus guarde.

Tondela, e de Setembro 3, de 1735.

Silvério Pereira Teles.

 

/57/

 O escrivão António Baptista dá o processo por concluso a 7 de Setembro de 1735

……………………………………………………………………………………………………….

/59/

Foi visto na mesa do Santo Ofício o sumário das testemunhas que se tirou contra Manuel Rodrigues Bizarro, concluído e confrontado do requerimento do Promotor, sendo também visto o mesmo requerimento, pareceu a todos os votos, que, visto constar que o delato fizera desacatos à imagem de Cristo Senhor Nosso Crucificado, e são as culpas bastantes para se proceder contra ele, e que portanto seja mandado vir em custódia para o cárcere da dispensa, donde será examinado, e do que resultar se verá em mesa para se lhe deferir; e para a dita prisão se passe mandado. De Coimbra, em Mesa, de Setembro, 7 de 1735.

 

a)     Baltazar de Faria e Vilas Boas

a)     Bento Pais do Amaral

 

/9/

Mandado de prisão

………………………………………………………………

….mandamos a qualquer Familiar ou Oficial do Santo Ofício , a que este da nossa parte for apresentado, que, na vila de Tondela, ou aonde for achado Manuel Rodrigues, o Bizarrete de alcunha, casado com Antónia do Loureiro, natural e morador da dita vila, o prendais…..

Datado de Coimbra, 7 de Setembro de 1735

 

/13/

Auto de entrega do preso na Dispensa em 12 de Setembro de 1735 pelo Familiar João Ferreira da Costa, morador na vila de Tondela

………………………………………………………………

 

/15/

Planta do Cárcere

Os Inquisidores dão ordem para colocar o Réu no cárcere da dispensa.

 

/61/

 

CONFISSÃO

 

Aos treze dias do mês de Setembro de mil setecentos trinta e cinco anos, em Coimbra, na Casa do Oratório da Santa Inquisição, estando ali em audiência de tarde o Senhor Inquisidor Bento Pais do Amaral mandou vir perante si a um homem que em os doze dias do presente mês e ano, veio preso para os cárceres da Dispensa, e sendo presente por dizer que tinha que confessar culpas pertencentes a esta Mesa, lhe foi dado o Juramento dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão sob cargo do qual lhe foi mandado dizer a verdade e ter segredo, o que prometeu cumprir.

E logo disse chamar-se Manuel Rodrigues Bizarro, que diz ser x.v., alfaiate, casado com Antónia do Loureiro, filho de Manuel Rodrigues Bizarro, que também foi alfaiate /62/ e Eufémia de Loureiro, defuntos, natural e morador na vila de Tondela, Bispado de Viseu, de vinte e sete anos de idade.

Logo foi admoestado que, pois tomava tão bom conselho como era o de querer confessar suas culpas nesta Mesa, lhe convinha muito trazê-las todas à memória para fazer de todas uma inteira e verdadeira confissão, para se pôr em estado de alcançar a Misericórdia que a Santa Madre Igreja costuma conceder aos bons e verdadeiros confitentes, não impondo a si nem a outrem testemunho falso, que, fazendo o contrário, além de não alcançar a Misericórdia desta, se arrisca ao rigoroso castigo, que se dá aos que de si ou de outrem dizem falsamente.  Respondeu que só a verdade queria dizer, a qual era:

 

Que no mês de Junho deste presente ano, achando-se ele /63/ confitente na vila de Tondela, em sua casa, depois do sol posto, não lhe lembra o dia, por ocasião de agarrar-se com sua mulher, por ela não ter feito o que lhe tinha recomendado, a castigou dando-lhe umas pancadas com a mão, e porque a mesma se retirou, pegando ele em uma sachola para lhe dar, aconteceu cair no chão uma Imagem de Cristo Senhor Nosso Crucificado na Cruz, de comprimento mais de um palmo, a qual estava encarnada e havia pouco tempo a tinha comprado. E logo a sua mulher a arrecadou e ele não sabe se  quebrou ou teve algum perigo com a queda; e, vendo ele declarante aquele sucesso, que não sabe como caiu no chão, se foi pesaroso para as lojas das suas casas e a dita sua mulher ficou nas de cima. E nesse dia, andou ele de clavante trasfegando um tonel de /64/ vinho e não estava muito em seu juízo.

Disse mais que ele havia mais de dois anos tem trato ilícito com uma mulher chamada Simoa, solteira, e por esta causa dá má vida à mulher com quem era casado e advertindo-o esta pela Semana Santa, para que se emendasse, e fosse á Igreja pedir a Deus perdão, ele lhe respondeu que tanto importava para ele que fosse Semana Santa como não; e que havia de ir para onde lhe aprouvesse , pois lho não podia impedir. E por algumas ocasiões rogava pragas à dita sua mulher.  E que estas são as culpas que tem que confessar, as quais cometeu provocado da sua paixão, porquanto ele sempre foi verdadeiro católico e nunca sentiu mal da Doutrina da Igreja e do Culto que se deve às Santas /65/ Imagens; e de haver cometido as ditas culpas, pede perdão e  que com ele se use de Misericórdia.

Foi-lhe dito que tomou muito bom conselho com principiar a confessar as suas culpas e lhe advertem que está obrigado a dizer toda a verdade, não buscando subterfúgios de desculpas, pois quem usa destas cautelas, mostra que não tem arrependimento.  E portanto o admoestam com muita caridade para que declare toda a verdade, e atenção verdadeira que teve em cometer as  que tem confessado, não levantando a si nem a outrem testemunho falso, por ser o que lhe convém para descarregar a sua consciência e poder alcançar a Misericórdia da Igreja.

E, por tornar a dizer que não tinha mais que confessar, e que tinha /66/ dito toda a verdade, foi outra vez admoestado em forma e mandado para o cárcere da dispensa . Sendo-lhe primeiro lida esta sua declaração e por ele ouvida e entendida, disse estava escrita na verdade, e assinou com o dito Senhor Inquisidor, Leão Henriques, o escrevi.

 

a)     Bento Pais do Amaral

a)     Manuel Rodrigues Bizarro

 

/67/

 

Mais confissão

 

Aos doze dias do mês de Outubro de mil setecentos trinta e cinco anos em Coimbra, na casa do Oratório da Santa Inquisição, estando ali em audiência de manhã o senhor Inquisidor Bento Pais do Amaral, mandou vir perante si a Manuel Rodrigues Bizarrete, preso na Dispensa, e, sendo presente, por dizer, pedia para continuar na sua confissão, lhe foi dado o Juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão, sob cargo do qual lhe foi mandado dizer a verdade e ter segredo, o que ele prometeu cumprir.

 

Disse que neste verão próximo passado, não está certo no dia, achando-se em sua casa e com sua mulher, estando ambos sós, a sobredita o repreendera, advertindo-o para que procedesse bem, e não andasse amancebado, ao que ele respondera, que também Nosso Senhor andara com mulheres e que pecara, e que morrera pelos homens, as quais palavras /68/ disse e proferira por estar apaixonado com a dita sua mulher e pelo seu pouco e limitado juízo, porquanto sabe muito bem que Cristo Senhor Nosso não pecou nem teve trato com mulheres, e de haver proferido blasfémias tão execrandas pede perdão, e que com ele se use de misericórdia, e quando a dita sua mulher ouviu o referido, lhe não respondeu coisa alguma de que esteja lembrado e mais não disse.  Sendo-lhe lida esta declaração, e por ele ouvida e entendida, disse estava assente na verdade e assinou com o dito Senhor  Inquisidor, Antunes da Silva, o escrevi.

a)     Bento Pais do Amaral

a)     Manuel Rodrigues

 

 

/69/

Aos doze dias do mês de Outubro de mil setecentos trinta e cinco anos em Coimbra, na casa do Oratório da Santa Inquisição, estando ali em audiência de tarde o senhor Inquisidor Bento Pais do Amaral, mandou vir perante si a Manuel Rodrigues Bizarro, preso na Dispensa, conteúdo neste processo. Sendo presente, lhe foi dado o Juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão, sob cargo do qual lhe foi mandado dizer a verdade e ter segredo, o que ele prometeu cumprir.

Perguntado se cuidou em suas culpas como nesta Mesa lhe foi mandado e aqui acabar de confessar para descargo da sua consciência e salvação de sua alma e bom despacho de sua causa.

Disse que sim, cuidara e que não tinha mais culpas que confessar.

/70/

Perguntado se está ele lembrado na confissão que fez nesta Mesa em os treze dias do mês de Setembro do presente ano, dizer nela que por ocasião de castigar sua mulher, caíra no chão uma imagem de Cristo que tinha em sua casa e que não sabe que quebrasse ou tivesse algum perigo.

Disse que muito lembrado estava de assim o ter confessado.

Perguntado em que lugar de sua casa tinha ele a Imagem de Cristo Senhor nosso, se era de vulto pregado na cruz.

Disse que a Imagem era de Cristo crucificado de vulto, teria um palmo de comprimento, e estava encostada a umas ripas que dividiam a casa, e postas sobre uma tábua, e não tinha coisa alguma com que pudesse estar segura.

Perguntado se viu ele que a dita Imagem caísse no chão, e se estava muito /71/ levantada do sobrado da casa em forma que com a queda pudesse ter algum perigo.

Disse que estaria levantada do sobrado sete ou oito palmos, e não viu o modo como caiu no chão, como estava perturbado com vinho, não tem esse acordo e desceu logo para baixo.

Perguntado se quando a dita Imagem caiu no sobrado, disse sua mulher algumas palavras, quais foram, e se procurou ele depois saber se a mesma Imagem tivera algum perigo na queda.

Disse que a dita sua mulher ficava muito apaixonada, e no dia seguinte dissera a ele declarante, que naquela ocasião estava com muito vinho e não sabe que a dita Imagem tivesse perigo algum.

Perguntado que fez a dita sua mulher à Santa Imagem de Cristo, e se a conserva ainda em sua casa.

Disse que ele não sabe o que foi feito da /72/ Imagem, e poderia a dita sua mulher levá-la para casa de uma das irmãs que tem na mesma vila de Tondela, que chamam Feliciana, e Ana Maria, porquanto, pela ocasião das razões e pendência que tiveram, lhe fugiu de casa, e, passado um mês, ele a foi buscar, mas  a  mesma sua mulher não trouxe consigo a dita Imagem, nem soube mais o que dela fez, em tanto que ele comprou outra do mesmo feitio e a tem em sua casa no mesmo lugar.

Perguntado que razão tem ele declarante para não procurar a mesma Imagem de Cristo que já tinha em sua casa, porque se escusava buscar outra e também para certificar-se se tivera algum perigo quando caiu do lugar em que estava.

Disse que ele por uma ocasião procurara a sua mulher pela mesma Imagem, mas não está certo na resposta que lhe dera.

Perguntado como é possível que ele esteja tão esquecido da resposta que a dita sua mulher lhe havia de dar nesta matéria, sendo muito verosímil que lhe não /73/ falasse por uma só ocasião nela, de que se mostra que ele está faltando à verdade.

Disse que não está lembrado da resposta que sua mulher dera, e como buscou a outra para sua casa, não fez mais diligência.

Perguntado como é possível que, caindo a dita Imagem de Cristo do lugar em que estava, não procurasse ele depois saber se tivera algum perigo, pois é muito natural que ele entrasse nesta averiguação para se tirar do certo cuidado com que se achava daquele sucesso.

Disse que ele, como não vivia com a sua mulher em paz, ela fugiu de casa, não cuidou mais nestas averiguações.

Perguntado se lhe constou a ele declarante que nesta matéria se falasse na sua terra, e que se diria a este respeito.

Disse que não sabe que em tal matéria se falasse.

/74/

Foi-lhe dito que pelas perguntas que se lhe tem feito, terá alcançado que não tem dito toda a verdade e o admoestou com muita caridade para que confesse inteiramente as suas culpas, não levantando a si, nem a outrem, testemunho falso, não se valendo de cautelas e subterfúgios, porque lhe não podem aproveitar e cuide muito em confessar as suas culpas na forma que as cometeu porque assim lhe importa e convém e por tornar a dizer que ele tinha confessado toda a verdade e que se não lembrava de mais coisa alguma, foi admoestado em forma e mandado para a dispensa, sendo-lhe primeiro lida esta sessão, que sendo por ele ouvida e entendida, disse estava escrita na verdade e assinou com o dito Senhor Inquisidor, José Antunes da Silva o escrevi.

a)     Bento Pais do Amaral

a)     Manuel Rodrigues

 

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