2-9-2012

 

 

Os ratos da Inquisição, de António Serrão de Crasto (1613 - 1684)

 

 

António Serrão de Crasto, cristão novo, poeta, nasceu por volta de 1613 e faleceu em 1684. Na família, tinham entrado já muitos cristãos velhos, não sendo de acreditar que se dedicassem à prática de cerimónias judaicas. No entanto, foi preso a 24 de Maio de 1673, quando era já viúvo. Seguiu-se a prisão de seus filhos Luis Serrão, estudante de medicina, de 23 anos, Pedro Serrão, estudante de teologia, de 20, e Teresa Maria, solteira, de 18 anos. Escapou o filho mais novo, Duarte de 16-17 anos.  A Inquisição prendeu ainda três irmãs, já bem idosas, Francisca Serrã, Paula de Castro e Inês Duarte. Esta última morreu na prisão em 28 de Fevereiro de 1675. Prendeu ainda os sobrinhos Luis de Bulhão  e Pedro Duarte Ferrão e ainda uma segunda prima, Catarina de Castro.  Para salvarem a vida, todos se sujeitaram à comédia da Inquisição denunciando a família; todos, menos o filho Pedro Serrão que se recusou a representar o papel de arrependido. Segundo testemunhos da época, era ele um católico fervoroso, mas foi morto no auto da fé de 10 de Maio de 1682, onde saiu também toda a família.

António Serrão de Castro participou activamente nas Academias dos Singulares e deixou bastantes poesias barrocas nos dois volumes ali publicados; mas a maior parte dos esus poemas chegou até nós em  manuscritos. Em 1765, saiu em Lisboa a Macarronea Latino-Portuguesa, onde aparece um poema dele em Latim macarrónico. Em 1883, Camilo Castelo Branco, publicou o poema “Os ratos da Inquisição”.  Em 2004, numa reedição da Frenesi, foi-lhe acrescentado o poema Carta a Francisco de Mezas, que tem bastante mais valor e publico a seguir neste site.

Camilo Castelo Branco põe em dúvida que “Os ratos da Inquisição” seja uma sátira à Inquisição. Se dúvidas houvesse, a leitura do poema “Carta a Francisco de Mezas” tira-as. António Serrão de Castro, saiu da Inquisição, ao fim de dez anos menos dois dias de prisão, completamente arruinado, do corpo, do espírito e da fazenda.  Aliás terá sido a composição de poesias, unicamente com a memória, que lhe permitiu manter alguma sanidade mental.  Os ratos que lhe roem a roupa e a canastra de alimentos (inexistente) são os Inquisidores que o despojaram de tudo.

Deixo a seguir uma selecção das quadras de “Os ratos da Inquisição”, apenas uma pequena amostra para despertar o interesse pela leitura do livro, que é muito fácil de encontrar, ou na Internet ou na edição da Frenesi.

 

 

 

                   I

 

 

Com ser a gente de Rates

tão simples e boa gente,

vós, ratos, à unha e dente,

na roupa me dais combates:

olhai que são disparates,

quando somos tão vizinhos

o serdes vós tão daninhos

com esses trapos coitados,

quando tão aproveitados

da Beira são os Ratinhos.

 

Do mal guardado come o gato

 

Dizem que o gato e o ladrão

leva o mal arrecadado;

mas vós do melhor guardado

na canastra lançais mão.

Porque vossos dentes são

umas mui agudas puas,

e vossas unhas gazuas,

e vós uns salteadores;

e assim vos fazeis senhores

de minhas cousas e suas.

 

Cada qual diz da feira como lhe vai nela

 

Mas, se cada um da feira

diz conforme lhe vai nela,

vós podeis dizer bem dela,

eu de nenhuma maneira:

que vós nela de carreira

tudo o que quereis achais;

vós dela nada pagais,

mas eu sisa e cabeção,

real d'agua, imposição,

e outros direitos mais.

 

Ir buscar lã e vir tosquiado

 

Sois tão bem afortunados

que até vindo buscar lã,

vós a levais limpa e sã,

sem nunca ir tosquiados.

Os meus colchões desbastados

tendes de sua lã basta,

e os tendes feito de casta,

que quando me vou deitar

só as bastas venho achar,

não lã, entre basta e basta.

 

 

                   II

 

 

Quando em rapaz me nascia

em minha boca um dentinho,

que me nascia um ratinho

então minha mãe dizia;

mas agora que á porfia

caindo todos me vão,

vós, ratinhos, sem razão

vindes com pressa não pouca

não a nascer-me na boca

mas tirar-me dela o pão.

 

Desta água não beberei.

 

Desta água não beberei

é um dito mui comum;

mas de vós não diz nenhum

deste pão não comerei,

porque muito certo sei

que quem pão alheio achou

que dele muito gostou,

seja de trigo ou centeio,

porque comer pão alheio

a ninguém enfastiou.

 

Quem não trabuca, não manduca

 

Olhai que quem quer comer

trabalha, lida, e trabuca;

que quem trabuca manduca

mil vezes ouvi dizer;

mas ociosos viver

e vir comer pão alheio

é um caso muito feio;

coma quem sua e trabalha,

beba quem na eira malha,

ao sol e calma, o centeio.

 

 

Em terra de cegos, quem tem um olho é rei

 

Nenhum erro cometi

em chamar torta á fortuna,

que a esta varia importuna

chamar cega sempre ouvi;

mas eu mais a engrandeci,

pois, se torta lhe chamei,

de mais um olho lhe dei;

e quem com um olho se achar

mui bem se pôde chamar,

na terra dos cegos, rei.

 

Det tibi manus avara,

diz do queijo a medicina,

mas vós dele em tal ruina

comeis quantidade rara:

e sendo cousa tão clara

que o queijo tira a memoria,

vós o tendes por historia,

assim dele vos fartais,

e para mi o deixais

feito esterco e feito escoria.

 

Na arca aberta, o justo peca.

 

Na arca aberta o justo peca,

não em canastra fechada;

mas vós da minha coitada

fechada a fazeis caneca:

vindes lá de seca e meca

com tal pressa e furor tal,

que fazeis, para meu mal,

com mau termo e ruim modo,

do meu queijo lama e lodo,

e do meu pão cinza e sal.

 

Quando as peras me levais,

então para peras levo,

pois vos pago o que não devo,

e vós rindo vos ficais:

se pêra flamenga achais

a comeis em português,

e me fazeis d'essa vez,

com estrondo e com arenga,

os narizes á flamenga

muito mal em que me pez.

 

Não vos escapam por pés

minhas cerejas bicais,

nem as ginjas garrafais,

se as tenho alguma vez:

porque mal, em que me pez,

como cerejas se vão

pelos pés á vossa mão

e da vossa mão á minha,

a cereja é marouvinha

as ginjas galegas são.

  

Passa hoje por lebre o gato,

por perdiz passa o francelho

por capão o galo velho,

passa a gaivota por pato:

por arraia passa o rato,

mas é cousa que me encanta,

que passando cousa tanta

com mentira e com trapaça

só a passa não me passa

para baixo da garganta.

 

Águas passadas não moem moinhos

 

Porém passa-me por alto,

e tanto por alto, que

mais meu olho não a vê

depois que lhe dais assalto:

eu então de passas falto

fico morfuz e mofino;

vós moendo-a de contino,

eu sem moer dela nada;

porque com agua passada

no puede moler molino.

 

 

                        III

 

 

São mais as vozes que as nozes

 

Mais são as vozes que as nozes

p’ra mim nesta ocasião,

e para vós nesta acção

mais as nozes que as vozes:

vós jogais os arriozes

com elas muito contentes;

e, sendo as nozes tão quentes,

eu fico d’elas mui frio;

vós com calor e com brio,

com elas ficais valentes.

  

Assim que a guerra será

não guerra de cão com gato,

senão de gato com rato

que é para vós guerra má:

que eu não posso sofrer já

tanta perda, nem tal dano,

nem que um ratinho tirano

me dê uma e outra vez

más horas em português,

maus «ratos» em castelhano.

 

A padeira de Aljubarrota matou sete Castelhanos

 

Porque aos sete de maneira

eu fiz mais males e danos

do que aos sete Castelhanos

de Aljubarrota a forneira:

olhai que n'uma poeira

vos farei n'estes contractos,

dando-vos esfola-ratos

mui grandes nesta ocasião,

porque esfola-ratos são

piores que os esfola-gatos.

 

Quando vires as barbas do teu vizinho a arder, põe as tuas de molho

 

Por isso agora, ratinhos,

pois conheceis meu rigor,

em remolho as barbas pôr,

vendo arder as dos vizinhos:

porque os sete coitadinhos

mo pagaram muito bem;

assim vigiar convém

porque, se nas horas más,

não ladram cães; se é sagaz,

não mia o gato também.

 

Ganha boa fama e deita-te a dormir

 

E, se em garra tão cruel

algum de vós vivo colho,

se não lhe puser trambolho,

lhe porei um cascavel:

este fará tal tropel

que aos mais faça fugir;

e, se eu então livre me vir,

farei logo a minha cama,

e, sem cobrar boa fama,

me irei deitar a dormir.

 

Mas porém nada farei,

porque gato miador

nunca é grande murador,

e de mais já eu miei;

mas a mim mesmo direi:

«larga a gata, larga a gata!»

e, se a largar, rato ou rata

nenhum comigo se tome,

porque gato que tem fome

para a matar ratos mata.

 

 

                    IV

 

 

Muitos brados caem no cu do lobo

 

Mas vós podereis dizer,

vendo-me velho e doente

um a outro mui contente:

«papa ratos quer morrer».

E logo me ireis fazer

na canastra grandes roubos,

e porque é bradar de lobos,

serão brados escusados

porque cabem muitos brados

nos c... de ratos e lobos.

 

Olhai que nela se agacha

um gato com grão cautela,

e em achando o rato nela,

o que quer o gato acha:

logo o parte, fende e racha

para fazer dele migas,

porque de migas amigas

são as gatas e gatinhos,

e então aos tristes ratinhos

em os olhos mete as figas.

 

Um rato, uma vez, caiu

na mão de um gato esgalgado;

de fome o gato esganado

sem mastigar o engoliu:

mas, como o rato se viu

na barriga sem canseira,

deu nela uma tal carreira,

que sem nenhuma fadiga

lhe saiu como lombriga

por sua porta traseira.

 

Gato escaldado da água fria tem medo

 

E também alerta estai,

porque inda é viva a tijela;

e, pois podeis cair nela,

em a vendo, vos guardai.

Dos gatos lições tomai,

e andareis muito acertados;

porque gatos escaldados

da agua fria medo tem,

que de escarmentados vem

fazerem-se os avisados.

 

O gato tem sete fôlegos

 

E por isso a nenhum rato

brigar com gato está bem,

que um rato um fôlego tem,

quando sete tem um gato:

e com tão desigual trato

o fugir é boa estreia;

que uma gata fraca e feia

e um rato forte e valente

será um rato somente,

mas a gata é gata e meia.

 

Porque ela, para ensinar

a caçar a seus filhinhos,

vivos lhe entrega os ratinhos

para neles se ensaiar:

e, se algum quer escapar,

a gata a ele se arroja,

e, se com ele se enoja,

lhe dá tão grão torquesada,

que cuidando não ser nada

uma gata é que se espoja.

 

Porque eu as fiz na memória,

sem tinta, pena e papel;

porque rato algum cruel

delas não fizesse escoria:

mas por ter de vós vitória

agora as quis trasladar,

pois se rato lhe chegar

a roer, ou a morder

logo a vida há-de perder

porque são um resalgar.

 

Também nelas vos falei

já em Latim onze vezes

que nos versos portugueses

ser mui grande erro eu sei:

- mas eu dele adrede usei;

porque o médico avisado

vendo um enfermo arriscado

diz como discreto enfim:

murietur em Latim

que não o entenda o coitado.

  

Mas mais fácil de entender

é o latim mais escuro

do que um verso culto e duro

para quem o chega a ler:

que tal modo de escrever

é um falar sem conceito,

um falar muito imperfeito

de ruins línguas um paio,

um falar de papagaio

que dá gosto e não proveito.

 

Ladrão que anda com frade, ou o frade será ladrão ou o ladrão frade.

 

Se n'estas trovas roí

com má boca, e com mau dente

a varia sorte de gente,

dos ratos eu o aprendi:

que sempre dizer ouvi

é muito bom parecer

que se frade algum tiver

com o ladrão amizade

que ou ladrão será o frade

ou o ladrão frade há-de ser.

 

 

Ora, ratos, pois estamos

n'uma casa como amigos,

por evitarmos perigos,

entre nós pazes façamos:

os trapos também partamos,

e escusaremos baralhas;

e d'essas mais vitualhas

roei espinhos e ossos,

cascabulhos e caroços,

cascas, côdeas e migalhas.

  

Mais vale ruim composição que boa demanda.

 

Este concerto aceitai,

termina aqui nosso pleito;

ponha-se em silencio o feito,

guerras e brigas deixai:

de mão a demandas dai,

haja paz de banda a banda,

porque nos adágios anda

um que diz mui bem e certo

que é melhor ruim concerto

do que é boa demanda.

 

 Que nem já queixar-me espero

de vós, nem de vossos tractos,

mas de uma rata e dous ratos

com razão queixar-me quero:

é um rato o tempo fero;

outro o mundo maldizente;

rata a fortuna inclemente

que estes me tem destruído,

estes me tem consumido

com seu venenoso dente.

  

Só a morte, rata fera,

para ver-me mais penar

não acaba de chegar

pelo gosto que me dera.

Chega pois, tirana austera

para ser minha homicida;

porém vem tão escondida

com que eu não te possa ver,

porque o agosto de morrer

não me torne a dar a vida.

  

Se é furtado este conceito,

e alguns dos outros também,

não é muito furtar quem

a tanto rato está afeito:

mas furtar não é defeito,

conceito tão excelente;

e mais quando é tão patente

que hoje o conceito melhor

ou já o disse o orador,

ou o poeta antigamente.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

António Serrão de Crasto, Os ratos da inquisição, prefácio biográfico de Camilo Castelo Branco, Porto, Ernesto Chardron—Editor,1883

Online: www.archive.org

 

Academias dos Singulares de Lisboa, dedicadas a Apollo - Lisboa: na Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1665-1668 – 2 tomos em 2 vols.

Online: http://purl.pt/21936 

 

Academias dos Singulares de Lisboa. Dedicadas a Apollo - Lisboa: na Officina de Manoel Lopes Ferreyra & à sua custa, 1692-1698. – 2 tomos em 2 vols.

Online: http://purl.pt/21937

 

Maria Luisa Malato Borralho, “Nem muros, nem cidade” – o espírito utópico nas Academias Portuguesas in Estudos de homenagem a Luis António de Oliveira Ramos, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pag. 277-287

Online: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4968.pdf

 

António Baião, Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa, Porto, Renascença Portugueza, 1924, 2.º vol., pags. 9-35

Online: www.archive.org

 

Heitor Gomes Teixeira, As tábuas do painel de um auto: António Serrão de Crasto, Lisboa, Universidade Nova, 1977 (Tese de Licenciatura de 1972)

 

António Serrão de Crasto, Os ratos da inquisição,  seguido de A Francisco Mezas, prefácio biográfico de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Frenesi, 2004.

 

Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro, António Serrão de Castro: um poeta marrano e seu trágico destino, in Ensaios sobre a intolerância - Inquisição, Marranismo e Anti-semitismo (Homenagem a Anita Novinsky), organização de Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro, 2.ª edição, Associação Editorial Humanitas, São Paulo, 2005,  ISBN 85-98292-79-6. pgs. 223-240

 

Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro, Um Morgado de Misérias, o Auto de um Poeta Marrano, Associação Editorial Humanitas, São Paulo, 2007,  ISBN 978-85-7732-023-3

 

Macarronea Latino-Portugueza: quer dizer amontoado de versos Macarrónicos Latino-Portugueses, que alguns poetas de bom humor destilaram de alambique da cachimónia para desterro da melancolia. Lisboa, na Oficina Patriarcal de Francisco Luis Ameno, 1765.

Online: http://books.google.com