VITORINO NEMÉSIO
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POESIA
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28 de Junho de 2003
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Pedro Mexia
Alguns dos poemas tardios de Nemésio, de feição sobretudo erótica, foram agora criteriosamente editados, e revelam mais uma faceta de um poeta que, sem heterónimos, foi o mais plural e variado poeta português do século passado.
Seria difícil um acontecimento literário mais importante do que este: um livro inédito de Vitorino Nemésio. Na verdade, não é uma surpresa para os nemesianos, que há muito sabiam da existência destes poemas. Nemésio preparou-os para a publicação, a cargo de Natália Correia, e mais tarde confiada, pela destinatária dos poemas, a Luiz Fagundes Duarte. O filólogo chama por isso a este volume um “duplo póstumo», visto que desde 1986 andou em bolandas até finalmente ver a luz. A maioria dos poemas de “Caderno de Caligraphia» estão contidos em dois cadernos, preservados na Biblioteca Nacional, com textos escritos entre 1973 e 1977. Sendo os próprios cadernos uma obra de arte, mesmo se em certa medida tosca, mas com os poemas amorosamente recopiados e com desenhos do próprio Nemésio, era interessante que viéssemos a ter, um dia, uma reprodução fac-similada. Esta edição meramente textual que agora temos é, por razões óbvias, melindrosa, tratando-se de poemas sobre a vida íntima de Nemésio, e de uma vida íntima à margem da moralidade estabelecida, podendo por isso causar um natural desconforto aos familiares; diga-se de passagem que estes foram impecáveis, considerando que o interesse poético dos textos estava acima das perplexidades de natureza pessoal. É um belo exemplo do triunfo da literatura. É verdade que desde a edição de ”Amores da Cadela Pura: Confissões” (1976) os factos eram conhecidos, nomeadamente os amores tardios entre Nemésio e D. Margarida Vitória (1919-1996), marquesa de Jácome Correia e destinatária deste “Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga». Esta edição assume as questões éticas, e não publica, por ora, certas referências pessoais ou mais escabrosas, que virão a lume quando não causarem melindres pessoais. O volume aproveita essencialmente os poemas dos cadernos, mas também recupera e confronta manuscritos, dactiloscritos, rascunhos, e todo um aparato de descrição de materiais, de variantes, bem como umi glossário de lugares, pessoas e expressões. O trabalho genético, crítico e editorial de Luz Fagundes Duarte é, como sempre, primoroso, fazendo deste terceiro volume da obra poética de Nemésio (os outros dois foram organizados por Fátima Freitas Morna) o mais trabalhoso e o mais surpreendente legado poético de Nemésio.
Podemos classificar genericamente estes poemas como «eróticos». Não são apenas poemas de amor, mas um assomo de vitalidade carnal nos últimos anos da vida de um poeta. É, no sentido próprio, um excelente «se bem me lembro». Vem-nos à memória Yeats e o seu enorme fulgor libidinal nos anos finais, que o levar a afirmar que o desejo sexual era como que uma «espora» que o impelia para a escrita. O que notamos, antes de mais, nestes poemas eróticos de Nemésio, é a sua extrema violência, pelo menos dentro do contexto da sua obra. Violência propriamente sexual, mais ou menos descritiva, mas também violência de ímpeto existencial e de inventividade verbal absolutamente extraordinária, quase sem paralelo na poesia portuguesa. Já suspeitávamos desta excepcional colheita tardia pelo poema «Pedra de Canto», dado à estampa na revista «Colóquio / Letras» em 1977, um dos poemas mais poderosos da obra nemesiana, e um dos mais inesquecíveis poemas eróticos da língua (o poema vem reproduzido também neste volume, na pág. 123, e quase nos apetecia desistir da recensão e fazer apenas uma citação integral). Estes poemas apresentam-se em grande medida como um diário, quer pela abundância de referências vividas (algumas indispensáveis para a compreensão do poema, outras acessórias) quer em pormenores como, nalguns casos, como a anotação das horas em que foram escritos. São, em certa medida, textos de circunstância, bilhetinhos de amor, recados, piadas privadas, mas isso não é de todo alheio a uma certa tradição poética, sobretudo anglo-saxónica, embora tenha pouco uso entre nós. Aqui, porém, transcende-se facilmente a circunstância pela extraordinária força dos poemas, que reúnem toda a variedade nemesiana: o Nemésio lírico, lúdico, místico, satírico. Como acontece tantas vezes, a torrencialidade surrealista é por vezes tomada de empréstimo, para no poema seguinte se optar pelo modo mais medido do romance, e num terceiro romance e surrealismo se misturarem num jogo improvável mas originalíssimo. Tal como noutros momentos da sua obra, há poemas noutras línguas (espanhol e francês), e a tomada de empréstimo de outros discursos, nomeadamente o científico, essencial nas obras dos últimos anos. Vejamos o poema chamado B.N.U.:
Ando nos cheques, chiques, choques,
Entre grades de Bancos pombalinos sem Pombal
Perto da Tabacaria do Pessoa e seus pessoais
- quanto outrora –cheques
Tão longe, a xeque-mate. o teu pombaI.
Enganei-me nos transes de credor
Solvente às grades, só falido agora
No tesouro que me és, se eu te chamasse “meu tesouro”
Sem desdouro de estilo, oh Marga,
Nesta angústia sem ti. que estás lá fora.
Ausência dura. poesia tola e amarga.
………………………………………………………
Meia-hora depois (dez gravatas de saldo)
Já vou na grande, no Mercedes alheio,
Sempre obrigado à rima e a ti, que o caldo
Do Pàdinha sonhei com pão partido ao meio
(Olha que o Mercedes não é de Bela alguma...
Nunca tive Packard-Se-Me-Dão. nem desejo).
Mês e meio depois. sem piada nenhuma. (pág. 199).
Um poema puramente lúdico? Com certeza, como eram grande parte dos poemas brasileiros de Nemésio, galopantes de destreza verbal e virtuosismo exibicionista; mas aqui também existem, sob a capa da realidade comezinha, todas as remissões, subentendidos, jogos de palavras, obscenidades, que fazem destes poemas não apenas uma festa dos sentidos mas uma festa da linguagem.
Em termos de exaltação da amada estes poemas situam-se em todos os momentos sexuais: antes, durante e depois do acto amoroso, não recuando mesmo perante alguma crueza na linguagem, e algum vernáculo pouco catedrático. Fica um exemplo, aliás, dos mais formais e compostos, mas não dos menos violentos:
Não cantarei a virgem que o cavalo
Com um xairel de sangue arrebatou,
Quebrada pelo bruto, -nem levá-Io
Ao potro vingador de um verso vou.
Não cantarei tal noite aziaga. Falo
Apenas do que tenho, do que sou
Com ela, como o vinho no gargalo
Do frasco em que me bebe e me esgotou.
Nem cantarei a vítima do resto,
Violada na inocência que perdeu
Nas emboscadas de um punício lodo:
Que só meu próprio amor acendo. E atesto
A chama da Victória que me deu
Na margarida branca o mundo todo. (pág. 39).
Entre os tratamentos diminutivos, infantis, como as cartas de amor de Pessoa, e o circo sexual, por vezes num idioma quase expressionista, os poemas vão-se sucedendo, como se sucedem estados de euforia, saudade, êxtase, e todas as manifestações próprias da relação amorosa. Um dos processos utilizados é a constante nomeação: Margarida, mas também Marga, mas também os -petit noms -cadela pura e -macaca de fogo. E também se alude, evidentemente, à Margarida de Goethe, não fosse a amada sempre uma encarnação da literatura. Margarida é assim um nome, uma alusão literária, uma flor, enquanto Vitorino é gémeo de Vitória, sendo que “vitória” tem uma conotação sexual, mas também geográfica (Praia da Vitória).
Vale a pena referir este ponto: vários poemas têm tema açoriano, visto que o poeta e a amada eram ambos dos Açores. Mas não se trata apenas de geografia, ainda que de geografia afectiva: Margarida representa não apenas os Açores mas a «açorianidade”. Isso é sobretudo verdade para o período pós 25 de Abril, em que o desejo autonómico se confundiu, por um certo período, com um desejo independentista, sendo Nemésio uma das figuras de proa desse movimento. Era um independentismo bastante “poético”, como vemos em poemas aqui retomados (embora originariamente publicados noutros livros) como «Alarme nas Ilhas”; a mulher amada e a ilha tornam-se uma só, e é impossível, mais uma vez, não nos lembrarmos de Yeats e Maud Gonne, a activista. Excertos de um desses poemas:
Margarida e Natália falam-me de Lisboa, de urgência
Alta noite, dormindo em catalão, num salto as oiço
A perfídia extremista outorga carta de colónia às Ilhas
(…)
Chamam-nos os mortos, o mulherio, os baleeiros mansos
[com o cabo do arpão nas unhas.
As minhas velhas primas desamparadas esmolam dos senhores
[do MEIC a renda dos vidros por que espreitam
[o mar que sempre foi nosso.
(...)
As furnas são nossas.
As pipas do vinho são nossas,
As carroças do peixinho nossas,
O leite das tetas que ordenhamos,
As pontas com poucos faróis,
Os caminhos seculares mal calçados.
Os chafarizes com um tapete de bosta quente cheiram bem.
Vamos revoltar as ilhas: eu tenho lá ossos de pai e mãe
Sujo seria se não acudisse ao chamamento
(...)
Estes filhos da cerva hão-de afinal entrar na linha
E levar nas canelas,
Metidos nos porões
(As moças às janelas)
Os grilhões
Que nos queriam enfiar à socapa nos pulsos duros da canga,
Esses insulsos rufiões de ganga.. (pág. 213).
Lembra alguma da poesia informal, literalmente panfletária, que Ruy Cinatti escreveu sobre alguns desvarios de Abril. E ajuda a repensar o tom “maior” e o tom “menor” na poesia, o poema “a clef”, a confessionalidade interventiva e outros temas interessantes e pouco estudados na poesia portuguesa. Por tudo isto, nenhuma estante de poesia portuguesa fica completa sem este volume.
Vitorino Nemésio, Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga,
OBRAS COMPLETAS, Vol. III, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,2003. ISBN 972-27-1200-4
LINKS:
Joel Neto, A última paixão de Nemésio
Finalmente!
Margarida Victória, Amores da Cadela "Pura", Confissões da Marquesa de Jácome Correia, Volumes I e II, Bertrand Editora, Lisboa, 2004, ISBN 972-25-1373-9 e ISBN 972-25-1374-5
(Junho de 2004)
ACTUAL n.º 1664, 18-9-2004
Como um jardim romântico
Amores e outras batalhas de uma aristocrata portuguesa
Texto de Carlos Bessa
Amores da Cadela “Pura”. Confissões da Marquesa de Jácome Correia, vols. 1 e 2,
de Margarida Victória
Bertrand Editora, 2004, 292 e 188 págs. ISBN 972-25-1372-9 e 972-25-1374-5
Há mulheres que deixam atrás de si um rasto intenso. Tão intenso que advém mítico e passa à história envolto numa capa de sonho e imaginação. Torna-se então difícil distinguir entre a mulher real e aquela que foi criada pelas palavras de desejo ou frustração dos que com ela conviveram. Margarida Victória, marquesa de Jácome Correia (1919 – 1996), foi uma dessas mulheres, cujo poder de sedução deixou rendidos muitos homens, alguns dados à efabulação, à criação de histórias. No entanto, lendo-a, fica-se com a sensação de que a sua vida teve mais de dor do que de prazer. Que foi muito menos épica do que alguns puseram a correr. Audaz sim, não na sedução, mas na percepção de si própria.
E quando se pôs a olhar para trás, registou essa mistura de perda, dor, amor e morte que é comum à maior parte das pessoas. Perante o quadro que quis traçar de si. salta à vista a mistura de demãos garridas com tonalidades sombrias. tão sombrias que nem por a moldura ser e talha dourada deixam de arrepiar. Embora se perceba que ganhou a batalha, pois por entre tantas camadas de sofrimento brilha a limpidez do tom neutro, a ternura e até o pudor com que fala de quase todos, mesmo dos que lhe dizeram muito mal.
Margarida Victória nasce depois de proclamada a República. Nobre. E rica. Pelo que o luxo, as compras faustosas, as viagens constantes puderam ser e foram uma quase rotina. Como rotina o foram as sucessivas perdas, os piores sustos, o pavor de não ser uma mulher total. Levava já meia vida quando descobriu que, afinal, não era incapaz de sentir prazer. E que não só não o era, como podia alimentar uma paixão avassaladora num, homem bastante mais velho. Esse que a inspirou e ajudou a redigir as Confissões.
Esse a quem dedica e de quem fala no segundo volume com tanto carinho, definindo-o como pai, irmão, amante. Esse que deu intensidade narrativa ao primeiro volume, mas que não chegou a ler nem a rever o segundo, o que se nota em perda de fluência e de trabalho de escrita. O próprio título, algo provocador, de Amores da Cadela “Pura” provém da relação amorosa entre Margarida Victória e Vitorino Nemésio.
Dois volumes que, mais do que dar testemunho de um Portugal insular e continental aristocrata e cosmopolita, mas também mesquinho e provinciano, constituem um dos dípticos de uma bela história de amor. Um amor sem limite de idade que inspirou a Nemésio o outro díptico, o Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga e que tornou possível a redacção das Confissões, pois a autora alcançara já o encontro com a compreensão e a tolerância que só o amor oferece.
As lágrimas e o desespero, tão recorrentes, ficam como selo de uma autenticidade e não como uma pose ou enrolados na autocomiseração. Margarida Victória escreve entendendo a sua vida como um caminho, místico, de despojamento e de perdão para com quantos amou sem ter sido amada. Por isso, apesar do título e de o livro conter todos os ingredientes do “fait-divers” (sexo, fortuna, fama, situações rocambolescas), o que importa é a descoberta de um Eu feminino que ousou afirmar-se contra a sua classe, contra a sua família, contra tantas das convenções castradoras e hipócritas de uma sociedade que, mascarada ou não, ainda sobrevive no dito país profundo.
O elenco maioritariamente masculino que desfila pelas Confissões, composto por burgueses, artistas, escritores, militares e outros com quem conviveu, revela-se, salvo honrosas excepções, grosseiro, egoísta, débil. Mas para todos tem palavras amáveis. Mesmo quando as situações são caricatas e cruéis.
O vol. I, que abarca o período entre a infância e o primeiro divórcio, é o mais rico em detalhes, com fôlego narrativo. Nele estão, entre outras, as histórias da ilha natal de S. Miguel, o pai, a mãe, a descoberta do corpo. O primeiro casamento frustrado e o internamento forçado numa clínica psiquiátrica Suiça – modo aristocrata e antigo de tratar as mulheres “rebeldes”. O enamoramento com um egípcio dado ao haxixe e ao Kamasutra, com quem viria a casar e de quem teria dois filhos. Algumas viagens e uma mistura grande de encantamento, luxo, medo e violação. Que tem desenvolvimento no segundo volume, onde se traça, por exemplo, um retrato do poeta e marido Armando Cortes Rodrigues, que nunca chegou a dar ouvidos aos alertas de seu companheiro de “Orpheu”. Ou onde se faz menção das tentativas de sedução por parte da vate Natália Correia. A par de alguns episódios políticos do pós-25 de Abril de 1974 ocorridos no arquipélago dos Açores e que envolvem Nemésio.
O amor entre ambos ditou a sorte tardia do segundo volume, que figurou durante algum tempo numa espécie de índex, bem como a reimpressão, 28 anos depois, do esgotadíssimo tomo I. Talvez por uma das características do amor ser precisamente a de criar “angústia, inquietação e instabilidade”, apesar de “transformar umas pessoa, tornando-a mais bela, meiga e humana”.
[50]
Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar com sílabas ásperas o canto,
De rima em –anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, e a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo e canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De falo, falas, fala, rima, rimas, canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sêmen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces…
Amas a quem? conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora merda em sangue dessa pobre alma em ferida,
A dela e a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como o vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E Deus to deu de amor por ela no atoleiro,
Flor menina de orvalho e em amor verdadeiro?
Ainda terás alento e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou enfim amor a fogo dado e perdão puro…
Eu quero lá saber! amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violada violeta, a breve margarida
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te com ela,
Que é maior do que tu no canto,
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!
Mas antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada e nina morta?
Enfim o teu amor?
Dize lá, sem vergonha,
Homem singelo!
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.
(Quem fala?)
Lisboa, 4.6.1973
de madrugada
[44]
Tira a máscara. Escreve
Com lágrimas teu rosto:
Descansa numa lágrima que desça
Contigo à Ilha, ao sol-posto,
E lentamente cresça
Como o avião no horizonte
Até chegar a mim, eu que lágrimas meço:
E a viseira da paz em ti desponte.
Faz-me isto, se o mereço!
Levanta devagar teu corpo leve e fino
Como o fio de som no pássaro calado:
Enquanto teço este hino
Fico mais descansado:
Porque eu sou o avião que zumbe e tu meu pólen,
Eu pássaro também que de ti, flor, revive:
Chora-me asa caída como folha no parque,
Asa de bimotor sem ti, que a jacto voamos.
No amor de Margarida eu, Goethe, me renovo.
- “A Marquesinha é doente,
“Levemos-lhe primícias.” –
Voltaste assim, chegando, à voz da gente:
Como vento, um receio em hélice vibra o povo,
Mulheres de lã fizeram-te carícias:
- “A Marquesinha é doente,
“Levemos-lhe primícias:
“Seu mal de amores é velho,
“Só seu bem d’alma é novo.”
No amor de Margarida eu, Goethe, me renovo.
Convalescente, as máscaras caíram-te
Como cascas de angústia num divã:
Faz com elas abstracto nas paredes,
Os palpos cul de singe e o rimmel. Telha vã
Te dê um doce sono e a certeza de mim,
Enquanto o pescador conserta à lua as redes
E o Doutor Fausto, chamado à pressa pelo povo,
Com seu Labô de amores calca o chão do jardim.
No amor de Margarida eu, Goethe, me renovo.
Ah, Goethe victorino, como estes Versos finos cansam!
Goethe, se o for, - Victória a Margarida!
Mas paz a Margarida
Na praia da Victória
Onde o mar amanhece
E lhe traz peixe fresco, como a Emília delgada,
Talvez uma romana a Rousseau dedicada
(A princesa do humilde em tudo se adivinha).
Por isso minha mãe foi Maria da Glória
Que me dás por igual na poesia e na prece
Com mãos de engomadeira e gestos de rainha
Onde o mar se embravece
E um búzio pequenino em tuas mãos se esquece
Só de ti nacarado.
Que enquanto teço este hino
Fico mais descansado.
Lisboa, 30.5.1973
[120]
Compraste uma tanga cara
Com um toiro nos pintelhos:
Assim, abaixas a cara
Ao matador de joelhos.
E quando todos esperavam
Um farol ou um molinete;
Sua ruína em praça cavam
À bicha para o …………….
11.5.1973
[121]
Trocaste o teu biquini
Com um toiro a meio galho
Por um boné Liberty
Prá cabeça do ………………..
O troféu, dos mais gabados
Reservaste-o (“merde, alors!”)
Para o moço de forcados
Que tenha a piça maior.
Cascais, 11.5.1973
[123]
Au réveil tu me dis:- Je vais sur la terrasse:
C’est toujours imprévue la folie qui te prend.
Me méfiant de toi je vois ce qui se passe,
Et la queue du soleil t’encule heureusement.
13.5.1973
[125]
Je te mangerai, en pomme
D’Adam blottie dans du foin,
Je t’embrasse, suis ton homme,
Je te choisis, je te nomme
Marga. Que c’est loin !
13.5.1973
[127]
Esse teu cabeleireiro
Merecia forca ou garrote:
Está contigo o dia inteiro,
Depila-te até ao decote.
A franjinha é cor de milho,
A farripa verde salsa,
Trata-te enfim como um filho
Sempre com o olho na alça.
Assim em vez de coiffeur
É um nourrisson acabado,
Com figa porte-bonheur
Tout à fait amamentado.
E eu que espere a mise en pli
Que não ata nem desata,
Eunuco junto de ti
Ou teu Barnabé Chibata.
Cabeleireiro, alta costura,
Foi ao médico, dói-lhe um dente,
Fazem-me a vida mais dura
Que a matéria prima ao pente.
E é o que eu sou, no teu cabeleireiro,
A figura que faço o dia inteiro:
Hastes limpias no hall, todo eu morrillo
Esperando a tua franja cor de milho.
22.5.1973
[128]
El regalo de cadena
Que en Nice te hizo ayer
Como a una perrita llena
De gracia, que es mi mujer.
Me asegura que constante
Me eres de toda manera
De la punta del barbante
No te lleva quien lo quiera.
Pues la perra chica es loca
En su destello amarillo
Pero con astucia poca
Queda cuerda en el bolsill
[24]
Tal o vigia de alba
Soprando o corno medievo
Avisa a malmaridada
Do regresso à decepção,
Entretendo a insónia, escrevo
O poema que lhe devo
Plo que seus olhos me dão.
É alta a Torre sem sono
Na Cidade poluída,
E eu penso que sou o dono
Dos passos da escada aluída.
Ah! quantos terão tocado
Nela, na cítara, aqui,
Ao rasgar da Bela Aurora,
Como eu, sequioso de ti?
Mas, de repente reparo
Na escada inteira, - e ao dativo,
A “ti” pergunto quem és,
Varrendo-te co a lanterna
Da cabeça até aos pés:
Mulher? a Torre? o pronome
De alguém na morte? Ou sou eu
O pálido cavaleiro
Que arranca longe, de lá
De onde ninguém tem notícia,
E sobe à Torre
Onde morre
A dona, e a carícia
De pai é essa a que faz?
Mas não. Tudo isto é poesia
E amor bem nosso, bem meus
Os versos, e teus os braços
Em que o cavaleiro jaz.
Quanto à escada da Torre –
Abateu:
Não mais Cor de Alba ou Vigia,
Que o Cavaleiro sou eu.
10.4.1973
[28]
Acalmei do poema das cinco da madrugada
Nas sílabas de furor de que te deixei toucada.
Agora espero-te: Vens
Por vinte e quatro horas de cravos de Nice, amor no aroma,
Intervalando as tuas Carnes Verdes,
Monte Escuro,
De mãos nas mãos no largo laço aéreo,
Meu focinho de nada,
Por nome: a Pérola de cultura do mistério.
À espera tens uma corrente chic
Como a cadela “Pura”
- Ah! essa, chic não ! –
Uma e outra porém para que fique
à argola a orelha de ambas,
Penhor de guarda à vinha viva
Do rabinho entre as pernas de ternura
E beijos de saliva
Como a cadela “Pura”.
Nice, 5.5.1973
[29]
Faço horas para o Aeroporto,
Cigarro sobre cigarro:
É frágil como a partida
A esperança a que me agarro.
Marga – e depois a ida:
Ela, que já outra não,
Pelas viagens da vida.
Faço horas para o Aeroporto
Com alto metabolismo
E uma tensão dezassete:
O elástico no meu braço,
Trava – e o sangue promete.
Nice, 5.5.1973
[30]
Já no Aeroporto.
A nitidez das coisas separadas
Une melhor as nuvens e as pessoas.
Marga define-se já
Na espessura da demora,
Nos tímbales do haut-parleur,
Nos meus palpos de cansado,
Breve rejuvenescido
En laisse daquele canicho.
E até lhe sinto o vestido
A preparar a aterragem
No palminho de capricho
Do seu amor em viagem.
Nice, 5.5.1973
[31]
Outro poema de espera,
Mas já muito mais absorto:
Marga é um ponto na esfera
De revolução do amor morto
Que o mundo vão desconhece.
Na porta do Aeroporto,
Um nada de mulher de repente aparece.
Nice, 5.5.1973
[32]
OUTRO
Um par abraça-se e tinge
De beijos a minha fome
De Marga, que me consome
Num beijo até à laringe.
Como a um toureiro de nome
Um sátiro vibra a siringe…
Mas só a poesia o finge.
Nice, 5.5.1973