RUTH FAINLIGHT

 

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Poemas do livro:

Visitação, de Ruth Fainlight, Tradução colectiva (a) (Mateus, Abril-Maio 1994), revista, completada e apresentada por Ana Hatherly, Livros Quetzal, ISBN: 9725642279, 1995, 54 pág.

(a)

Fernando Pinto do Amaral

Fiama Hasse Pais Brandão

António Manuel Pires

Fernando Guimarães

Maria de Lourdes Guimarães

Ana Hatherly

Nuno Júdice

Suzette Macedo

Fernando Mascarenhas

Laureano Silveira

Pedro Támen

 

 

THE CRESCENT

  

My stick of lipsalve is worn away

into the same curved crescent

that was the first thing I noticed

about my mother`s lipstick.

It marked the pressure of her existence

upon the world of matter.

 

Imagine the grim fixity

of my stare, watching her smear

the vivid grease across her lips

from a tube shiny as a bullet.

The way she smoothed it

with the tip of a little finger

(the tinge it left, even after

washing her hands, explained

the name `pinky`) and her pointed tongue

licking out like a kitten`s,

fascinated, irritated.

 

It was part of the mystery of

brassieres and compacts and handbags

that meant being grown-up. I thought

my own heels would have to grow

a sort of spur to squeeze right down

the narrow hollow inside high-heels.

 

Now I am calmer, and no longer

paint my lips except with this,

pale as a koshered carcass

drained of blood in salty water

or a memorial candle,

wax congealed down one side,

as though it stood in the wind

that blows from the past, flame

reflected like a crescent

moon against a cloud

in the pool of molten light.    

                                            

I carry the sign of the moon

and my mother, a talisman

in a small plastic tube

in my handbag, a holy relic

melted by believers`

kisses, and every time

I smooth my lips with the unguent

I feel them pout and widen

in the eternal smile

of her survival through me,

feel her mouth on mine.

  

from: The Knot, Hutchinson, London 1990

 

QUARTO CRESCENTE

 

O meu bâton de cieiro gastou-se

com a mesma forma de crescente curvo

que foi aquilo que primeiro notei

no bâton da minha mãe.

Marcava a pressão da sua existência

nu mundo da matéria.

 

Imaginem a fixidez severa

dos meus olhos, vendo-a espalhar

a gordura lustrosa sobre os lábios

saída de um tubo luzidio como bala.

O modo como os amaciava

com a ponta do dedo mindinho

(a coloração rósea, mesmo depois

de lavar as mãos, explicava

a palavra “pinky”) e a língua espetada

como a de um gatinho,

fascinava, irritava.

 

Era uma parte do mistério

dos soutiens, pós de arroz, malas de mão,

que significavam ser crescida. Pensei

que me teriam de nascer

uma espécie de esporas nos calcanhares

para encaixar no oco dos saltos altos.

 

Agora estou mais calma e já não

pinto os lábios a não ser com isto,

pálido como a carne “kosher”

dessangrada em água e sal

ou uma vela votiva,

cera escorrida de um dos lados,

como se estivesse ao vento

que sopra do passado, chama

reflectida como um quarto crescente

contra uma nuvem

no charco de luz derretida.

 

Trago comigo o signo da lua

e minha mãe, um talismã

num pequeno tubo de plástico

na carteira, relíquia sagrada

gasta pelos beijos

dos crentes, e de cada vez

que amacio os lábios com o unguento

sinto que se estendem e alargam

no eterno sorriso

da sobrevivência dela em mim,

sinto a sua boca na minha.

 
 

 

 

ELEGANT SIBYL

 

 

Having become an expert at false tones

as the voices slide lower or higher than intended

out of control, having heard so many lies

seen so many faces altering crazily

trying to hide their real motives,

having pondered the fate of those who came to consult her

and how little difference any words make,

her gaze is now withdrawn and watchful as a diplomat`s.

Her lips, though still full, meet firmly in a straight hard line.

 

But her feathered cloak and tall headress of glorious plumage 

are so elegant, no-one can resist her.

The Emperor comes to hear her pronounce almost daily.

All the rich men`s wives copy her style.

 

Alone at last, she strips off her regalia

lets the fine cloak drop to the floor

pushes strong fingers through the stubble of cropped hair

and climbs into the deep stone bath of water so cold

that even at the height of summer she shudders, and in winter

the effort of will the action demands

has become her greatest indulgence.

                                                               

Only then is she able to think of the god and wait his pleasure.

 

 

 from:   Twelve Sibyls (with woodcuts by Leonard Baskin), Gehenna Press, USA 1991       

 

SIBILA ELEGANTE

 

Tendo-se aperfeiçoado em falsas entoações

quando as vozes sobem ou descem de mais,

involuntariamente, tendo ouvido tantas mentiras,

visto tantos rostos transtornados

ao tentarem esconder os verdadeiros motivos,

tendo ponderado o destino dos que vieram consultá-la

e a pouca importância das palavras,

tem agora um olhar distante e atento como um diplomata.

Embora cheios, os lábios juntam-se firmes numa linha recta e dura.

 

Mas o manto de penas e o alto toucado de esplêndida plumagem

são tão elegantes que ninguém consegue resistir-lhe.

O Imperador vem escutá-la quase todos os dias.

As mulheres dos ricos copiam-lhe o estilo.

 

Finalmente só, tira os paramentos,

deixa cair ao chão o admirável manto,

passa os dedos fortes pelo cabelo rente

e entra no tanque de água tão fria

que em pleno Verão estremece, e no Inverno

o esforço que lhe pede

tornou-se-lhe volúpia.

 

Só então pensa no deus e lhe guarda os desejos.

 

 

 

 

 

AUTHOR! AUTHOR!

 

What I am working at and want to perfect —

my project - is the story of myself: to have it

clear in my head, events consecutive,

to understand what happened and why it happened.

 

I wander through department stores and parks,

beyond the local streets, seem to be doing nothing;

then an overheard phrase or the way light slants

from the clouds, unravels the hardest puzzle.

 

It takes all my time, uses so much energy.

How can I live, here and now, when the past

is being unwound from its great spindle, and tangles

forgotten motives around the present? Rather

 

than set the record straight, further knowledge

complicates. I cannot stop the action

to make a judgement, or hope for better.

Every gesture casts a longer shadow

 

into the future, each word shifts the balance.

I see myself as one more character

in this extravagant scenario,

the story not yet finished. And who's the author?

 

 

AUTOR! AUTOR!

 

Aquilo em que trabalho e quero aperfeiçoar –

o meu projecto – é a minha própria história: tê-la

nítida na cabeça, os acontecimentos consecutivos,

compreender o que aconteceu e porque aconteceu.

 

Deambulo pelos grandes armazéns e pelos parques,

além das ruas do bairro, pareço não estar a fazer nada;

então, uma frase escutada ou o modo como a luz cai oblíqua

das nuvens, decifra o mais difícil puzzle.

 

Toma-me o tempo todo, gasta tanta energia.

Como posso eu viver. aqui e agora, quando o passado

está a ser desenrolado da sua grande bobine e enrola

esquecidos motivos à volta do presente? Em vez de

 

endireitar as coisas, o saber mais

complica. Não posso deter a acção

de julgar ou esperar fazê-lo melhor.

Cada gesto projecta uma mais larga sombra

 

sobre o futuro, cada palavra altera o equilíbrio.

Vejo-me como mais uma personagem

neste extravagante guião,

a história não concluída ainda. E quem é o autor?

 

 
 

 

 

OTHER

 

Whatever I find if I search will be wrong,

I must wait: sternest trial of all, to contain myself,

Sit passive, receptive, and patient, empty

Of every demand and desire, until

That other, that being I never would have found

Though I spent my whole life in the quest, will step

Clear of the shadows, approach like a wild, awkward child.

 

And this will be the longest task: to attend

To poem myself. To still my energy

Is harder than to use it in any cause.

Yet surely she will only be revealed

By pushing against the grain of my ardent nature

That always yearns for choice. I feel it painful

And strong as a birth in which there is no pause.

 

I must hold myself back from every lure of action

To let her come closer, a wary smile on her face,

One arm lifted: to greet me or ward off attack –

I cannot decipher that uncertain gesture.

I must even control the pace of my breath

Until she has drawn her circle near enough

To capture the note of her faint reedy voice.

 

And then as in dreams, when a language unspoken

Since times before childhood is recalled (when

I was as timid as she, my forgotten sister –

Her presence my completion and reward), I begin

To understand, in fragments, the message she waited

So long to deliver. Loving her I shall learn

My own secret at last from the words of her song.

 

From: The Bloodaxe Book of Contemporary Women

Poets, Eleven British Writers, edited by Jeni Couzyn,

8th impression, Bloodaxe Books, Newscastle, 1996,

ISBN 0-906427-80-0

 

 

A OUTRA

  

Seja o que for que encontre, se o procuro, está errado.

Preciso de esperar: a mais difícil prova é conter-me,

ficar passiva, receptiva, paciente e vazia

de qualquer exigência ou desejo, até que

a outra, essa que eu nunca teria descoberto

por mais que procurasse toda a vida, emergindo

das sombras, se aproxime como criança arisca e acanhada.

 

E esta será  a mais longa das tarefas: aguardar,

abrir-me. Aquietar a minha energia

é mais difícil que aplicá-la a qualquer causa,

mas a outra só poderá mostrar-se

à revelia da minha ardente natureza

sempre ansiosa por escolher. Isto é doloroso

e violento como um parto sem tréguas.

 

Tenho que me afastar da tentação de agir

para deixar que ela venha, com um sorriso cauto

e um braço levantado – para me saudar ou para defender-se

(não consigo decifrar o gesto ambíguo).

Chego a ter que respirar mais lentamente

até ela ficar tão perto que eu consiga

captar-lhe o som da voz suave e débil.

 

E então, como em sonhos, quando se invoca

uma língua não falada desde antes da infância

(quando eu era tímida como ela, minha irmã esquecida

cuja vinda me completa e recompensa),

começo a entender aos poucos a mensagem

que tanto demorou a entregar-me. E amando-a aprenderei

nas palavras que canta o meu próprio segredo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Trees
 

Trees, our mute companions,
looming through the winter mist
from the side of the road,
lit for a moment in passing
by the car's headlamps:
ash and oak, chestnut and yew;
witnesses, huge mild beings
who suffer the consequence
of sharing our planet and cannot
move away from any evil
we subject them to,
whose silent absolution hides
the scars of our sins, who always
forgive ­ yet still assume
the attributes of judges, not victims.

from: "Trees be Company"

 

ÁRVORES

 

Árvores, companheiras mudas,

surgindo na bruma do Inverno

dos lados da estrada,

de súbito iluminadas à passagem

dos faróis do carro:

freixos e carvalhos, castanheiros e teixos;

testemunhas, enormes, calmos seres

que sofrem os efeitos

de partilhar connosco o planeta sem poder

fugir a todo o mal

que lhes impomos,

e cuja silenciosa absolvição

nos oculta as marcas dos pecados,

que sempre nos perdoam

- e que ainda assim assumem

atributos de juízes, não de vítimas.

 

De: "Visitação"

 

 

 

IT MUST

 

Friends, sisters, are you used to your face in the mirror?

Can you accept or even recognise it?

Don’t be angry, answer me frankly, excuse

the question’s crudity. I can’t – no matter

how often I take the little square of glass

from my bag, or furtively glance into shop-windows,

the face reflected back is always a shock.

 

Those scars and wrinkles, the clumping of pigment

into moles, spots, faulty warty growths

around hairline and neck, the way skin’s texture changes

absolutely, becomes roughened and scaly,

coarse-grained, every pore visible, as though

the magnification were intensified: horrible.

These days, I prefer firmer flesh in close-up.

 

Younger, I remember how I stared, with a mixture

of attraction, repulsion, and pity, at the cheeks of older

women – the sort I chose for friends. Did they

need me as much as I idealized them?

There seemed something splendid and brave about such raddled

features, crusted and blurred with the same heavy make-up

I’ve taken to wearing .- warpaint, if, as they say,

the real function of warpaint is to bolster

the uncertain warrior’s spirit, more than to

undermine and terrify his opponent.

 

Now, I long to ask my friends these very

questions and compare reactions, blurt out

the taboo words. But we’re so polite, so lavish

with compliments, tender, protective – cherishing

the common hurt: tenderness of bruised flesh,

darkness under the eyes from held-back tears,

watery blisters on frost-touched fruit already

decaying, marked by death’s irregularities.

 

Friends, tell me the truth. Do you also

sometimes feel a sudden jaunty indifference,

or even better, extraordinary moments

when you positively welcome the new

face that greets you from the mirror like

a mother – not your own mother, but that other

dream-figure of she-you-always-yearned-for

Your face, if you try, can become hers. It must.

 

From: The Bloodaxe Book of Contemporary Women Poets, Eleven British Writers, edited by Jeni Couzyn, 8th impression, Bloodaxe Books, Newscastle, 1996, ISBN 0-906427-80-0

 
 

 

TEM DE SER

 

Amigas, irmãs, já se habituaram a ver o vosso rosto ao espelho?

Já o aceitaram ou sequer reconheceram?

Não se zanguem, respondam com franqueza, desculpem

a crueza da pergunta. Eu não consigo – não importa

quantas vezes tire da carteira

o espelho ou furtivamente me olhe nas montras,

o rosto que vejo reflectido é sempre um choque.

 

Essas cicatrizes e rugas, o acumular do pigmento

em verrugas, sinais e excrescências

à volta da raiz do cabelo e no pescoço,

o modo como a textura da pele muda

completamente, se torna áspera e escamosa,

grossa, cada poro visível, como se

a ampliação fosse aumentada: horrível.

Nesses dias, prefiro carne mais sólida em close-up.

 

Quando eu era mais nova, lembro-me de fitar, com um misto

de atracção, repulsa e pena, as faces das mulheres

mais velhas – as que elegia para amigas. Precisariam

elas de mim tanto quanto eu as idealizava?

Parecia haver algo de esplêndido e corajoso nesses traços

sulcados, encristados e toldados pela mesma espessa maquilhagem

que eu comecei a usar – pintura de guerra,

se é que a verdadeira função da pintura de guerra é

encorajar o espírito inseguro do guerreiro, mais do que

enfraquecer e apavorar o inimigo.

 

Agora, anseio fazer às minhas amigas estas mesmas

perguntas e comparar as reacções, deixar escapar

as palavras tabu. Mas somos tão bem educadas, tão pródigas

em elogios, meigas, protectoras – carinhosas

com a nossa comum dor: brandura de carne ferida,

negras olheiras de reprimidas lágrimas,

húmidas feridas em fruta tocada pela geada,

já estragada, marcada pelas irregularidades da morte.

 

Amigas, digam-me a verdade. Também vocês

por vezes sentem uma súbita e jubilosa indiferença,

ou ainda melhor, extraordinários momentos,

quando decididamente acolhem com agrado

o rosto que vos saúda do espelho como se fosse

a vossa mãe – não a vossa própria, mas essa outra

figura-do-sonho, ela-tu por-quem-sempre-suspirastes.

Se tentardes, o vosso rosto pode ser o dela. Tem de ser.

 

 
   

 
 

HERE

 

Here, like a rebel queen

exiled to borderlands,

the only role I can assume

is Patience, the only gesture,

to fold my hands and smooth

my robe, to be the seemly one,

 

the only precept, always

to know the truth, even if forced

to silence, never to deny

my unrepentant nature.

I am my own tamer.

This life is the instrument.

 

And yet the iron hand wears

such a velvet glove,

and dreams and memories

of prelapsarian happiness –

simple actions which, when

first performed, lacked that content –

 

return to slow my steps

as I climb up and down between

the parlour and the kitchen

to fill my watering-can again

and give the plats their ration,

makes me question that self-image.

 

Some power, created by

an altered vision, moving

to a different rhythm,

annihilates the past, revealing

space enough for another

universe. And there,

 

where needs and wishes synchronize,

where truth is changed and laws

revised, the capital has fallen

to a friendly tribe,

and I can leave this exile

when I choose, or rule from here.

 

AQUI

 

Aqui, como uma rainha rebelde

exilada na fronteira,

o único papel que posso assumir

é o da Paciência, o único gesto

cruzar as mãos e alisar

o vestido, ser a bem comportada,

 

o único preceito saber

sempre a verdade, mesmo se forçada

ao silêncio, nunca negar

a minha natureza impertinente.

Sou o meu próprio domador.

Esta vida é o instrumento.

 

E contudo, a mão de ferro usa

uma tal luva de veludo

e sonhos e lembranças

de felicidade anterior à renúncia –

simples actos que, quando praticados

pela primeira vez, careciam desse conteúdo –

 

voltam para retardar os meus passos

quando subo e desço entre 

a sala e a cozinha

para encher outra vez o regador

e dar às plantas a sua ração,

fazendo-me questionar essa imagem de mim.

 

Algum poder, criado por

uma visão alterada, movendo-se

a um diferente ritmo,

aniquila o passado, revelando

o espaço bastante para outro

universo. E aí

 

onde as necessidades e desejos coincidem,

onde a verdade muda e as leis

são revistas, a capital caiu

nas mãos de uma tribo amiga

e eu posso deixar este exílio

quando

quiser, ou governar a partir daqui.

 

 

 

STUBBORN

 

My Stone-Age self still scorns

attempts to prove us more

than upright animals

whose powerful skeletons

and sinewy muscled limbs

were made to be exhausted

by decades of labour

not subdued by thought,

 

despises still those dreamers

who forget, poets

who ignore, heroes

who defy mortality

while risking every failure,

spirits unsatisfied

by merely their own

bodily survival.

 

I know her awful strength.

I know how panic, envy,

self-defence, are mixed

with her tormented rage

because they will deny

her argument that nothing

but the body’s pleasure,

use, and comfort, matters.

 

Guarding her cave and fire

ad implements, stubborn

in her ignorance,

deaf to all refutation,

I know she must insist

until the hour of death

she cannot feel the pain

that shapes and hunts me.

 

TEIMOSA

 

O meu eu da Idade da Pedra desdenha ainda

as tentativas de provar que somos mais

do que animais erectos

cujos poderosos esqueletos

e nervosos membros musculados

foram feitos para se cansarem

em décadas de labor

não abatido pelo pensamento,

 

despreza ainda aqueles sonhadores

que esquecem, os poetas

que ignoram, os heróis

que desafiam a mortalidade

arriscando todos os fracassos,

espíritos insatisfeitos

pela sua simples

sobrevivência corporal.

 

Conheço a sua pavorosa força.

Sei como o pânico, a inveja,

a auto-defesa combinam

com a sua atormentada raiva,

porque lhe hão-de recusar

o argumento de que nada conta

a não ser o prazer do corpo,

o seu uso e conforto.

 

Guardando a sua cave, o fogo,

os seus instrumentos, teimosia

na sua ignorância,

surda à contrariedade,

sei que ela tem de insistir

até à hora da morte

sem poder sentir a dor

que modela e me persegue.

 
 

 

 
 

THE PRISM

 

Braided like those plaits of multi-

coloured threads my mother kept

in her workbox (beige, flesh, and fawn

for mending stockings, primary tones

to match our playclothes, grey and black

for Daddy’s business suits), or Medusa-

coils of telephone wires, vivid

as internal organs exposed in their packed

logic under the pavement, nestling

in the gritty London clay,

associations fray into messages:

 

codes to enravel, cords to follow

out of prison, poems which make

no concession, but magnify

the truth of every note and colour,

indifferent whether they blind or deafen

or ravish or are ignored; the blueprint

of a shelter against the glare

- and the waterfall to build it near –

The perfect place to sit and hear

That choir of hymning voices, and watch

The prison of the rainbow spray.

 

 

O PRISMA

 

Entrelaçados como aquelas tranças de fios

multicores que a minha mãe guardava

na caixa de costura (bege, cor de carne e castanho claro

para coser as meias, tons primários

para condizer com os nossos bibes, cinzentos e pretos

para os fatos do Papá) ou os anéis

de Medusa dos fios de telefone, vividos

como órgãos internos expostos na sua lógica

compacta sob o pavimento, aninhados

no arenoso barro de Londres,

as associações desfiam-se em mensagens:

 

Códigos para decifrar, fios que conduzem

para fora da prisão, poemas que não fazem

nenhuma concessão mas ampliam

a verdade a cada nota e cor,

sem se importar se cegam ou ensurdecem

ou arrebatam ou são ignorados:

projecto de um refúgio contra o excesso de brilho

- e a cascata para o construir ao pé –

lugar perfeito para sentar e ouvir

esse coro de vozes cantando hinos

e contemplar o prisma das gotas do arco-íris.

 

 

 

 

THE FUTURE

 

The future is timid and wayward

and wants to be courted, will not

respond to threats or coaxing,

and hears excuses only

when she feels secure.

 

Doubt, uproar, jeers,

vengeful faces roughened

by angry tears, the harsh

odours of self-importance,

are what alarms her most.

 

Nothing you do will lure her

from the corner where

she waits like a nun of a closed

order or a gifted young

dancer, altogether

 

the creature pf her vocation,

with those limits and strengths.

Trying to reassure her,

find new alibis

and organise the proof

 

of your enthralment and

devotion, seems totally useless –

thought it reaches how

to calm your spirit, move

beyond the problem’s overt

 

cause and one solution –

until the future, soothed now,

starts to plot another

outcome to the story:

your difficult reward.

 

A SORTE FUTURA

 

A sorte futura é tímida e caprichosa

e gosta de ser cortejada, não

reage a ameaças ou lisonjas

e só atende a desculpas

quando se crê segura.

 

Dúvida, tumulto, escárnio,

rostos vingativos enrugados

por lágrimas iradas, os ásperos

odores da presunção,

eis o que mais a alarma.

 

Nada do que lhe faças a demove,

desse canto onde espera

como freira de clausura

ou jovem e talentosa

bailarina, inteiramente

possuídas pela sua vocação,

com os seus limites, suas forças.

Tentar convencê-la,

Encontrar novos álibis

e produzir a prova

da nossa entrega e 

devoção, é mais que inútil,

embora nos ensine

a acalmar o espírito, a ir

além da óbvia causa

do problema, da única solução

- até que a sorte futura, aplacada,

Comece a urdir outro

Desfecho para a história:

A nossa dura recompensa.

 
 

 

 
That Presence

 

Like a painter stepping backward from the easel,

straightening up from the worktable,

with a loaded brush, to see exactly where

another touch of red is wanted, like

a carpet weaver wondering if the time

has come to change the pattern, a sculptor

hesitating before the first decisive cut,

I ponder a poem, repeating every word,

trying to hear where a note needs altering,

testing by breath and sense and luck,

 

like staring at the surface of a mirror

through soundless levels between glass and silver

into the pupils of that reflected presence

over my shoulder advancing from its depths.

 

 

Essa Presença

 

Como um pintor afastando-se do cavalete,

erguendo-se da mesa de trabalho

com o pincel cheio de tinta, para ver melhor

onde é preciso outro toque de vermelho, como

um tapeceiro ponderando se chegou

a altura de mudar o padrão, um escultor

hesitando antes do primeiro e decisivo corte,

medito um poema, repetindo palavra por palavra,

tentando entender onde é preciso alterar uma nota,

testando a respiração, o sentido e a sorte,

 

como quem fita a superfície de um espelho

através dos insondáveis níveis entre vidro e prata

até às pupilas dessa presença reflectida

que por cima do meu ombro emerge das suas profundezas.

 

 

 



 

A AMOROSA DENTADA DA MORTE

 

Uma explosão ao retardador, eis no que a minha boca se tornou,

com os dentes da frente projectados em ângulos impossíveis.

Os incisivos, outrora bem alinhados,

retalham cruelmente os lábios e  língua, e os molares

esmoem-se uns aos outros. Apesar de terem levado quase trinta

anos a afastar-se tanto, a cadência

acelera. Tenho na boca meteoros

e moléculas, ossos lascados de mastodontes,

galáxias e nuvens de Magalhães; parece

uma fotografia de partículas paradas num

ciclotrão e ampliadas mil vezes,

uma antecipação microscópica da fractura total

do planeta, com elementos dispersando-se

no espaço. Essa é a verdade que aperto

nas maxilas, por detrás do rosto. E toda a competência

técnica requerida para resolver

este caso dentário não irá sarar

a amorosa dentada da morte.

 

 
 

 

 

In Memoriam H.P.F.

 

God, the dead, the Donna Elvira

all inhabit the same realm:

the great democracy of Imagination.

 

Every paradise and underworld

beyond a blue horizon —

Sheol or Elysium —

is a beautiful product of mental function:

conjuration, prayer, and purpose.

 

I shall not meet my dead again

as I remember them

alive, except in dreams or poems.

Your death was the final proof

I needed to confirm that knowledge.

 

 

 

IN MEMORIAM H.P.F. (*)

 

Deus, os mortos e Donna Anna

todos habitam no mesmo reino:

a grande democracia da imaginação.

 

Cada paraíso e cada inferno

para além do firmamento

- Sheol ou Campos Elíseos –

é um belo resultado da função mental:

esconjuro, reza e intenção.

 

Não tornarei a ver os meus mortos

tal como os evoco

vivos, salvo em sonhos ou poemas.

A tua morte foi a prova que faltava

para me confirmar essa certeza.

 

(*) Her brother Harry Paul Fainlight.

 
 

 

 

 

VISITAÇÃO

 

Uma onda crespa de espuma límpida e calada

como chapa de vidro que desliza entre

os seixos e nos molha os pés antes

de o notarmos e depois perde brilho e se dissipa

 

ou um suspiro de vento sob a porta

que levanta a ponta do tapete um só

momento e a deixa assentar como se

nada fosse embora tenha sido.

 
 

 

 

FESTIM DE AMOR

 

Cogumelos de enxofre como ovos inacabados, sem casca

dentro de uma galinha que minha mãe limpava.

Esta manhã, os cogumelos na relva despertaram lembranças.

 

Brilhante como orvalho na erva e prateado como bolhas de ar,

um fio de água da torneira de latão baço salpicava

a parede do lava-loiça e seus dedos avermelhados pelo frio, enquanto

ela abria a carcaça e se ria, mostrando-me como alguns estavam

quase feitos – gemas a que só faltava a casca de cálcio e muco

- enquanto outros ainda estavam a formar-se, pequenos como pérolas ou sementes.

 

Quando a galinha estava depenada, esquartejada e a ferver,

a minha mãe pegava nesses ovos, marcados por espiras sinuosas

de veias rubras como em olhos injectados, e no fígado – à parte

num pires de porcelana rachada, na tábua de escorrer

- e fritava tudo com uma cebola para fazer um petisco muito nosso.

Na cozinha fumegante, comíamos as duas num festim de amor.

 

 
   

 

 

 

HOMENAGEM

 

Não se trata de esquecer ou perdoar

Quem espera por uma coisa ou outra?

O que se passa é diferente.

Não esqueci

o que me fizeste nem o que fiz.

Penso muito nisso.

A meditação constante

pode diluir a necessidade de acção,

como o solo ácido corrói ossos, panos e madeira.

Passado um tempo, até o metal desaparece.

Nem perdoei.

Perdoar seria compreender

por que eram tão complicadas aquelas exéquias.

Aos poucos rituais que restam

de uma tradição perdida, presto a minha homenagem.