RUTH FAINLIGHT
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Poemas do livro:
Visitação, de Ruth Fainlight, Tradução colectiva (a) (Mateus, Abril-Maio 1994), revista, completada e apresentada por Ana Hatherly, Livros Quetzal, ISBN: 9725642279, 1995, 54 pág.
(a)
Fernando Pinto do Amaral
Fiama Hasse Pais Brandão
António Manuel Pires
Fernando Guimarães
Maria de Lourdes Guimarães
Ana Hatherly
Nuno Júdice
Suzette Macedo
Fernando Mascarenhas
Laureano Silveira
Pedro Támen
THE CRESCENT
My stick of lipsalve is worn away into the same curved crescent that was the first thing I noticed about my mother`s lipstick. It marked the pressure of her existence upon the world of matter.
Imagine the grim fixity of my stare, watching her smear the vivid grease across her lips from a tube shiny as a bullet. The way she smoothed it with the tip of a little finger (the tinge it left, even after washing her hands, explained the name `pinky`) and her pointed tongue licking out like a kitten`s, fascinated, irritated.
It was part of the mystery of brassieres and compacts and handbags that meant being grown-up. I thought my own heels would have to grow a sort of spur to squeeze right down the narrow hollow inside high-heels.
Now I am calmer, and no longer paint my lips except with this, pale as a koshered carcass drained of blood in salty water or a memorial candle, wax congealed down one side, as though it stood in the wind that blows from the past, flame reflected like a crescent moon against a cloud in the pool of molten light.
I carry the sign of the moon and my mother, a talisman in a small plastic tube in my handbag, a holy relic melted by believers` kisses, and every time I smooth my lips with the unguent I feel them pout and widen in the eternal smile of her survival through me, feel her mouth on mine.
from: The Knot, Hutchinson, London 1990 |
QUARTO CRESCENTE
O meu bâton de cieiro gastou-se com a mesma forma de crescente curvo que foi aquilo que primeiro notei no bâton da minha mãe. Marcava a pressão da sua existência nu mundo da matéria.
Imaginem a fixidez severa dos meus olhos, vendo-a espalhar a gordura lustrosa sobre os lábios saída de um tubo luzidio como bala. O modo como os amaciava com a ponta do dedo mindinho (a coloração rósea, mesmo depois de lavar as mãos, explicava a palavra “pinky”) e a língua espetada como a de um gatinho, fascinava, irritava.
Era uma parte do mistério dos soutiens, pós de arroz, malas de mão, que significavam ser crescida. Pensei que me teriam de nascer uma espécie de esporas nos calcanhares para encaixar no oco dos saltos altos.
Agora estou mais calma e já não pinto os lábios a não ser com isto, pálido como a carne “kosher” dessangrada em água e sal ou uma vela votiva, cera escorrida de um dos lados, como se estivesse ao vento que sopra do passado, chama reflectida como um quarto crescente contra uma nuvem no charco de luz derretida.
Trago comigo o signo da lua e minha mãe, um talismã num pequeno tubo de plástico na carteira, relíquia sagrada gasta pelos beijos dos crentes, e de cada vez que amacio os lábios com o unguento sinto que se estendem e alargam no eterno sorriso da sobrevivência dela em mim, sinto a sua boca na minha. |
ELEGANT SIBYL
Having become an expert at false tones as the voices slide lower or higher than intended out of control, having heard so many lies seen so many faces altering crazily trying to hide their real motives, having pondered the fate of those who came to consult her and how little difference any words make, her gaze is now withdrawn and watchful as a diplomat`s. Her lips, though still full, meet firmly in a straight hard line.
But her feathered cloak and tall headress of glorious plumage are so elegant, no-one can resist her. The Emperor comes to hear her pronounce almost daily. All the rich men`s wives copy her style.
Alone at last, she strips off her regalia lets the fine cloak drop to the floor pushes strong fingers through the stubble of cropped hair and climbs into the deep stone bath of water so cold that even at the height of summer she shudders, and in winter the effort of will the action demands has become her greatest indulgence.
Only then is she able to think of the god and wait his pleasure.
from: Twelve Sibyls (with woodcuts by Leonard Baskin), Gehenna Press, USA 1991 |
SIBILA ELEGANTE
Tendo-se aperfeiçoado em falsas entoações quando as vozes sobem ou descem de mais, involuntariamente, tendo ouvido tantas mentiras, visto tantos rostos transtornados ao tentarem esconder os verdadeiros motivos, tendo ponderado o destino dos que vieram consultá-la e a pouca importância das palavras, tem agora um olhar distante e atento como um diplomata. Embora cheios, os lábios juntam-se firmes numa linha recta e dura.
Mas o manto de penas e o alto toucado de esplêndida plumagem são tão elegantes que ninguém consegue resistir-lhe. O Imperador vem escutá-la quase todos os dias. As mulheres dos ricos copiam-lhe o estilo.
Finalmente só, tira os paramentos, deixa cair ao chão o admirável manto, passa os dedos fortes pelo cabelo rente e entra no tanque de água tão fria que em pleno Verão estremece, e no Inverno o esforço que lhe pede tornou-se-lhe volúpia.
Só então pensa no deus e lhe guarda os desejos.
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AUTHOR! AUTHOR!
What I am working at and want to perfect — my project - is the story of myself: to have it clear in my head, events consecutive, to understand what happened and why it happened.
I wander through department stores and parks, beyond the local streets, seem to be doing nothing; then an overheard phrase or the way light slants from the clouds, unravels the hardest puzzle.
It takes all my time, uses so much energy. How can I live, here and now, when the past is being unwound from its great spindle, and tangles forgotten motives around the present? Rather
than set the record straight, further knowledge complicates. I cannot stop the action to make a judgement, or hope for better. Every gesture casts a longer shadow
into the future, each word shifts the balance. I see myself as one more character in this extravagant scenario, the story not yet finished. And who's the author?
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AUTOR! AUTOR!
Aquilo em que trabalho e quero aperfeiçoar – o meu projecto – é a minha própria história: tê-la nítida na cabeça, os acontecimentos consecutivos, compreender o que aconteceu e porque aconteceu.
Deambulo pelos grandes armazéns e pelos parques, além das ruas do bairro, pareço não estar a fazer nada; então, uma frase escutada ou o modo como a luz cai oblíqua das nuvens, decifra o mais difícil puzzle.
Toma-me o tempo todo, gasta tanta energia. Como posso eu viver. aqui e agora, quando o passado está a ser desenrolado da sua grande bobine e enrola esquecidos motivos à volta do presente? Em vez de
endireitar as coisas, o saber mais complica. Não posso deter a acção de julgar ou esperar fazê-lo melhor. Cada gesto projecta uma mais larga sombra
sobre o futuro, cada palavra altera o equilíbrio. Vejo-me como mais uma personagem neste extravagante guião, a história não concluída ainda. E quem é o autor?
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OTHER
Whatever I find if I search will be wrong, I must wait: sternest trial of all, to contain myself, Sit passive, receptive, and patient, empty Of every demand and desire, until That other, that being I never would have found Though I spent my whole life in the quest, will step Clear of the shadows, approach like a wild, awkward child.
And this will be the longest task: to attend To poem myself. To still my energy Is harder than to use it in any cause. Yet surely she will only be revealed By pushing against the grain of my ardent nature That always yearns for choice. I feel it painful And strong as a birth in which there is no pause.
I must hold myself back from every lure of action To let her come closer, a wary smile on her face, One arm lifted: to greet me or ward off attack – I cannot decipher that uncertain gesture. I must even control the pace of my breath Until she has drawn her circle near enough To capture the note of her faint reedy voice.
And then as in dreams, when a language unspoken Since times before childhood is recalled (when I was as timid as she, my forgotten sister – Her presence my completion and reward), I begin To understand, in fragments, the message she waited So long to deliver. Loving her I shall learn My own secret at last from the words of her song.
From: The Bloodaxe Book of Contemporary Women Poets, Eleven British Writers, edited by Jeni Couzyn, 8th impression, Bloodaxe Books, Newscastle, 1996, ISBN 0-906427-80-0
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A OUTRA
Seja o que for que encontre, se o procuro, está errado. Preciso de esperar: a mais difícil prova é conter-me, ficar passiva, receptiva, paciente e vazia de qualquer exigência ou desejo, até que a outra, essa que eu nunca teria descoberto por mais que procurasse toda a vida, emergindo das sombras, se aproxime como criança arisca e acanhada.
E esta será a mais longa das tarefas: aguardar, abrir-me. Aquietar a minha energia é mais difícil que aplicá-la a qualquer causa, mas a outra só poderá mostrar-se à revelia da minha ardente natureza sempre ansiosa por escolher. Isto é doloroso e violento como um parto sem tréguas.
Tenho que me afastar da tentação de agir para deixar que ela venha, com um sorriso cauto e um braço levantado – para me saudar ou para defender-se (não consigo decifrar o gesto ambíguo). Chego a ter que respirar mais lentamente até ela ficar tão perto que eu consiga captar-lhe o som da voz suave e débil.
E então, como em sonhos, quando se invoca uma língua não falada desde antes da infância (quando eu era tímida como ela, minha irmã esquecida cuja vinda me completa e recompensa), começo a entender aos poucos a mensagem que tanto demorou a entregar-me. E amando-a aprenderei nas palavras que canta o meu próprio segredo.
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Trees
Trees, our mute companions, from: "Trees be Company" |
ÁRVORES
Árvores, companheiras mudas, surgindo na bruma do Inverno dos lados da estrada, de súbito iluminadas à passagem dos faróis do carro: freixos e carvalhos, castanheiros e teixos; testemunhas, enormes, calmos seres que sofrem os efeitos de partilhar connosco o planeta sem poder fugir a todo o mal que lhes impomos, e cuja silenciosa absolvição nos oculta as marcas dos pecados, que sempre nos perdoam - e que ainda assim assumem atributos de juízes, não de vítimas.
De: "Visitação" |
IT MUST
Friends, sisters, are you used to your face in the mirror? Can you accept or even recognise it? Don’t be angry, answer me frankly, excuse the question’s crudity. I can’t – no matter how often I take the little square of glass from my bag, or furtively glance into shop-windows, the face reflected back is always a shock.
Those scars and wrinkles, the clumping of pigment into moles, spots, faulty warty growths around hairline and neck, the way skin’s texture changes absolutely, becomes roughened and scaly, coarse-grained, every pore visible, as though the magnification were intensified: horrible. These days, I prefer firmer flesh in close-up.
Younger, I remember how I stared, with a mixture of attraction, repulsion, and pity, at the cheeks of older women – the sort I chose for friends. Did they need me as much as I idealized them? There seemed something splendid and brave about such raddled features, crusted and blurred with the same heavy make-up I’ve taken to wearing .- warpaint, if, as they say, the real function of warpaint is to bolster the uncertain warrior’s spirit, more than to undermine and terrify his opponent.
Now, I long to ask my friends these very questions and compare reactions, blurt out the taboo words. But we’re so polite, so lavish with compliments, tender, protective – cherishing the common hurt: tenderness of bruised flesh, darkness under the eyes from held-back tears, watery blisters on frost-touched fruit already decaying, marked by death’s irregularities.
Friends, tell me the truth. Do you also sometimes feel a sudden jaunty indifference, or even better, extraordinary moments when you positively welcome the new face that greets you from the mirror like a mother – not your own mother, but that other dream-figure of she-you-always-yearned-for Your face, if you try, can become hers. It must.
From: The Bloodaxe Book of Contemporary Women Poets, Eleven British Writers, edited by Jeni Couzyn, 8th impression, Bloodaxe Books, Newscastle, 1996, ISBN 0-906427-80-0 |
TEM DE SER
Amigas, irmãs, já se habituaram a ver o vosso rosto ao espelho? Já o aceitaram ou sequer reconheceram? Não se zanguem, respondam com franqueza, desculpem a crueza da pergunta. Eu não consigo – não importa quantas vezes tire da carteira o espelho ou furtivamente me olhe nas montras, o rosto que vejo reflectido é sempre um choque.
Essas cicatrizes e rugas, o acumular do pigmento em verrugas, sinais e excrescências à volta da raiz do cabelo e no pescoço, o modo como a textura da pele muda completamente, se torna áspera e escamosa, grossa, cada poro visível, como se a ampliação fosse aumentada: horrível. Nesses dias, prefiro carne mais sólida em close-up.
Quando eu era mais nova, lembro-me de fitar, com um misto de atracção, repulsa e pena, as faces das mulheres mais velhas – as que elegia para amigas. Precisariam elas de mim tanto quanto eu as idealizava? Parecia haver algo de esplêndido e corajoso nesses traços sulcados, encristados e toldados pela mesma espessa maquilhagem que eu comecei a usar – pintura de guerra, se é que a verdadeira função da pintura de guerra é encorajar o espírito inseguro do guerreiro, mais do que enfraquecer e apavorar o inimigo.
Agora, anseio fazer às minhas amigas estas mesmas perguntas e comparar as reacções, deixar escapar as palavras tabu. Mas somos tão bem educadas, tão pródigas em elogios, meigas, protectoras – carinhosas com a nossa comum dor: brandura de carne ferida, negras olheiras de reprimidas lágrimas, húmidas feridas em fruta tocada pela geada, já estragada, marcada pelas irregularidades da morte.
Amigas, digam-me a verdade. Também vocês por vezes sentem uma súbita e jubilosa indiferença, ou ainda melhor, extraordinários momentos, quando decididamente acolhem com agrado o rosto que vos saúda do espelho como se fosse a vossa mãe – não a vossa própria, mas essa outra figura-do-sonho, ela-tu por-quem-sempre-suspirastes. Se tentardes, o vosso rosto pode ser o dela. Tem de ser.
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HERE
Here, like a rebel queen exiled to borderlands, the only role I can assume is Patience, the only gesture, to fold my hands and smooth my robe, to be the seemly one,
the only precept, always to know the truth, even if forced to silence, never to deny my unrepentant nature. I am my own tamer. This life is the instrument.
And yet the iron hand wears such a velvet glove, and dreams and memories of prelapsarian happiness – simple actions which, when first performed, lacked that content –
return to slow my steps as I climb up and down between the parlour and the kitchen to fill my watering-can again and give the plats their ration, makes me question that self-image.
Some power, created by an altered vision, moving to a different rhythm, annihilates the past, revealing space enough for another universe. And there,
where needs and wishes synchronize, where truth is changed and laws revised, the capital has fallen to a friendly tribe, and I can leave this exile when I choose, or rule from here. |
AQUI
Aqui, como uma rainha rebelde exilada na fronteira, o único papel que posso assumir é o da Paciência, o único gesto cruzar as mãos e alisar o vestido, ser a bem comportada,
o único preceito saber sempre a verdade, mesmo se forçada ao silêncio, nunca negar a minha natureza impertinente. Sou o meu próprio domador. Esta vida é o instrumento.
E contudo, a mão de ferro usa uma tal luva de veludo e sonhos e lembranças de felicidade anterior à renúncia – simples actos que, quando praticados pela primeira vez, careciam desse conteúdo –
voltam para retardar os meus passos quando subo e desço entre a sala e a cozinha para encher outra vez o regador e dar às plantas a sua ração, fazendo-me questionar essa imagem de mim.
Algum poder, criado por uma visão alterada, movendo-se a um diferente ritmo, aniquila o passado, revelando o espaço bastante para outro universo. E aí
onde as necessidades e desejos coincidem, onde a verdade muda e as leis são revistas, a capital caiu nas mãos de uma tribo amiga e eu posso deixar este exílio quando quiser, ou governar a partir daqui. |
STUBBORN
My Stone-Age self still scorns attempts to prove us more than upright animals whose powerful skeletons and sinewy muscled limbs were made to be exhausted by decades of labour not subdued by thought,
despises still those dreamers who forget, poets who ignore, heroes who defy mortality while risking every failure, spirits unsatisfied by merely their own bodily survival.
I know her awful strength. I know how panic, envy, self-defence, are mixed with her tormented rage because they will deny her argument that nothing but the body’s pleasure, use, and comfort, matters.
Guarding her cave and fire ad implements, stubborn in her ignorance, deaf to all refutation, I know she must insist until the hour of death she cannot feel the pain that shapes and hunts me. |
TEIMOSA
O meu eu da Idade da Pedra desdenha ainda as tentativas de provar que somos mais do que animais erectos cujos poderosos esqueletos e nervosos membros musculados foram feitos para se cansarem em décadas de labor não abatido pelo pensamento,
despreza ainda aqueles sonhadores que esquecem, os poetas que ignoram, os heróis que desafiam a mortalidade arriscando todos os fracassos, espíritos insatisfeitos pela sua simples sobrevivência corporal.
Conheço a sua pavorosa força. Sei como o pânico, a inveja, a auto-defesa combinam com a sua atormentada raiva, porque lhe hão-de recusar o argumento de que nada conta a não ser o prazer do corpo, o seu uso e conforto.
Guardando a sua cave, o fogo, os seus instrumentos, teimosia na sua ignorância, surda à contrariedade, sei que ela tem de insistir até à hora da morte sem poder sentir a dor que modela e me persegue. |
THE PRISM
Braided like those plaits of multi- coloured threads my mother kept in her workbox (beige, flesh, and fawn for mending stockings, primary tones to match our playclothes, grey and black for Daddy’s business suits), or Medusa- coils of telephone wires, vivid as internal organs exposed in their packed logic under the pavement, nestling in the gritty London clay, associations fray into messages:
codes to enravel, cords to follow out of prison, poems which make no concession, but magnify the truth of every note and colour, indifferent whether they blind or deafen or ravish or are ignored; the blueprint of a shelter against the glare - and the waterfall to build it near – The perfect place to sit and hear That choir of hymning voices, and watch The prison of the rainbow spray.
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O PRISMA
Entrelaçados como aquelas tranças de fios multicores que a minha mãe guardava na caixa de costura (bege, cor de carne e castanho claro para coser as meias, tons primários para condizer com os nossos bibes, cinzentos e pretos para os fatos do Papá) ou os anéis de Medusa dos fios de telefone, vividos como órgãos internos expostos na sua lógica compacta sob o pavimento, aninhados no arenoso barro de Londres, as associações desfiam-se em mensagens:
Códigos para decifrar, fios que conduzem para fora da prisão, poemas que não fazem nenhuma concessão mas ampliam a verdade a cada nota e cor, sem se importar se cegam ou ensurdecem ou arrebatam ou são ignorados: projecto de um refúgio contra o excesso de brilho - e a cascata para o construir ao pé – lugar perfeito para sentar e ouvir esse coro de vozes cantando hinos e contemplar o prisma das gotas do arco-íris.
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THE FUTURE
The future is timid and wayward and wants to be courted, will not respond to threats or coaxing, and hears excuses only when she feels secure.
Doubt, uproar, jeers, vengeful faces roughened by angry tears, the harsh odours of self-importance, are what alarms her most.
Nothing you do will lure her from the corner where she waits like a nun of a closed order or a gifted young dancer, altogether
the creature pf her vocation, with those limits and strengths. Trying to reassure her, find new alibis and organise the proof
of your enthralment and devotion, seems totally useless – thought it reaches how to calm your spirit, move beyond the problem’s overt
cause and one solution – until the future, soothed now, starts to plot another outcome to the story: your difficult reward. |
A SORTE FUTURA
A sorte futura é tímida e caprichosa e gosta de ser cortejada, não reage a ameaças ou lisonjas e só atende a desculpas quando se crê segura.
Dúvida, tumulto, escárnio, rostos vingativos enrugados por lágrimas iradas, os ásperos odores da presunção, eis o que mais a alarma.
Nada do que lhe faças a demove, desse canto onde espera como freira de clausura ou jovem e talentosa bailarina, inteiramente possuídas pela sua vocação, com os seus limites, suas forças. Tentar convencê-la, Encontrar novos álibis e produzir a prova da nossa entrega e devoção, é mais que inútil, embora nos ensine a acalmar o espírito, a ir além da óbvia causa do problema, da única solução - até que a sorte futura, aplacada, Comece a urdir outro Desfecho para a história: A nossa dura recompensa. |
That Presence
Like a painter stepping backward from the easel, straightening up from the worktable, with a loaded brush, to see exactly where another touch of red is wanted, like a carpet weaver wondering if the time has come to change the pattern, a sculptor hesitating before the first decisive cut, I ponder a poem, repeating every word, trying to hear where a note needs altering, testing by breath and sense and luck,
like staring at the surface of a mirror through soundless levels between glass and silver into the pupils of that reflected presence over my shoulder advancing from its depths.
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Essa Presença
Como um pintor afastando-se do cavalete, erguendo-se da mesa de trabalho com o pincel cheio de tinta, para ver melhor onde é preciso outro toque de vermelho, como um tapeceiro ponderando se chegou a altura de mudar o padrão, um escultor hesitando antes do primeiro e decisivo corte, medito um poema, repetindo palavra por palavra, tentando entender onde é preciso alterar uma nota, testando a respiração, o sentido e a sorte,
como quem fita a superfície de um espelho através dos insondáveis níveis entre vidro e prata até às pupilas dessa presença reflectida que por cima do meu ombro emerge das suas profundezas.
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A AMOROSA DENTADA DA MORTE
Uma explosão ao retardador, eis no que a minha boca se tornou, com os dentes da frente projectados em ângulos impossíveis. Os incisivos, outrora bem alinhados, retalham cruelmente os lábios e língua, e os molares esmoem-se uns aos outros. Apesar de terem levado quase trinta anos a afastar-se tanto, a cadência acelera. Tenho na boca meteoros e moléculas, ossos lascados de mastodontes, galáxias e nuvens de Magalhães; parece uma fotografia de partículas paradas num ciclotrão e ampliadas mil vezes, uma antecipação microscópica da fractura total do planeta, com elementos dispersando-se no espaço. Essa é a verdade que aperto nas maxilas, por detrás do rosto. E toda a competência técnica requerida para resolver este caso dentário não irá sarar a amorosa dentada da morte.
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In Memoriam H.P.F.
God, the dead, the Donna Elvira all inhabit the same realm: the great democracy of Imagination.
Every paradise and underworld beyond a blue horizon — Sheol or Elysium — is a beautiful product of mental function: conjuration, prayer, and purpose.
I shall not meet my dead again as I remember them alive, except in dreams or poems. Your death was the final proof I needed to confirm that knowledge.
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IN MEMORIAM H.P.F. (*)
Deus, os mortos e Donna Anna todos habitam no mesmo reino: a grande democracia da imaginação.
Cada paraíso e cada inferno para além do firmamento - Sheol ou Campos Elíseos – é um belo resultado da função mental: esconjuro, reza e intenção.
Não tornarei a ver os meus mortos tal como os evoco vivos, salvo em sonhos ou poemas. A tua morte foi a prova que faltava para me confirmar essa certeza.
(*) Her brother Harry Paul Fainlight. |
VISITAÇÃO
Uma onda crespa de espuma límpida e calada como chapa de vidro que desliza entre os seixos e nos molha os pés antes de o notarmos e depois perde brilho e se dissipa
ou um suspiro de vento sob a porta que levanta a ponta do tapete um só momento e a deixa assentar como se nada fosse embora tenha sido. |
FESTIM DE AMOR
Cogumelos de enxofre como ovos inacabados, sem casca dentro de uma galinha que minha mãe limpava. Esta manhã, os cogumelos na relva despertaram lembranças.
Brilhante como orvalho na erva e prateado como bolhas de ar, um fio de água da torneira de latão baço salpicava a parede do lava-loiça e seus dedos avermelhados pelo frio, enquanto ela abria a carcaça e se ria, mostrando-me como alguns estavam quase feitos – gemas a que só faltava a casca de cálcio e muco - enquanto outros ainda estavam a formar-se, pequenos como pérolas ou sementes.
Quando a galinha estava depenada, esquartejada e a ferver, a minha mãe pegava nesses ovos, marcados por espiras sinuosas de veias rubras como em olhos injectados, e no fígado – à parte num pires de porcelana rachada, na tábua de escorrer - e fritava tudo com uma cebola para fazer um petisco muito nosso. Na cozinha fumegante, comíamos as duas num festim de amor.
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HOMENAGEM
Não se trata de esquecer ou perdoar Quem espera por uma coisa ou outra? O que se passa é diferente. Não esqueci o que me fizeste nem o que fiz. Penso muito nisso. A meditação constante pode diluir a necessidade de acção, como o solo ácido corrói ossos, panos e madeira. Passado um tempo, até o metal desaparece. Nem perdoei. Perdoar seria compreender por que eram tão complicadas aquelas exéquias. Aos poucos rituais que restam de uma tradição perdida, presto a minha homenagem.
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