CESÁRIA ÉVORA
Cesária Évora, voz de Cabo Verde
E
Cesária, como dizia, deambula por entre as nuvens. O seu corpo pesado está
instalado no sofá do hotel, não no sofá rente à janela para onde, a
seguir, o deposita, o instala, para uma sumária sessão fotográfica. Há
uma parte da entrevista em que se fala do fotógrafo Pedro Loureiro. A sua
história com Cize é incontornável por ser demasiado bela e por dizer
uma parte, que é uma grande parte, da forma como ela conduz o espírito
independentemente do corpo depositado. Talvez estivesse depositado na
soleira da porta, como as velhas perdidas para o mundo, esquecidas do
mundo, da sua casa em Cabo Verde. Tinha as chaves mergulhadas no regaço e
sentenciou: "Entrevista não dou, mas se quiser entrar e comer
cachupa, pode comer". Evidentemente,
ao cabo destes anos, que não são muitos mas que são alguns numa
contabilidade atabalhoada pela vida incerta e pelo álcool, já não
lembrava se tinha falado ou não; tinha apenas a certeza de ter tratado
bem, porque herdou isso da mãe e da avó. |
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Cesária
podia ser mais uma dessas velhas que não contam para o mundo importante, dessas
velhas que se esquecem do mundo enquanto baralham as chaves na soleira da porta.
É estranho pensar na vida que foi a sua, quedada pela ilha de S. Vicente, sem
outro porto sequer para a imaginação. Já era mulher madura a quem se
prenunciavam os calores menopáusicos, quando o acaso a trouxe a Lisboa e lhe
marcou encontro com José da Silva. Ou Djô Silva, se preferirem, produtor e
empresária da boa causa que é Cesária Évora.
Foi
também por essa altura que entrou em cena o instrumentista Paulino Vieira que,
digo eu do alto da minha autoridade musical (que por acaso é inexistente, mas não
interessa), reformulou a sonoridade africana e se tornou numa peça fundamental
dos discos de Cesária.
Como
sabem, a coisa explodiu primeiro em França, encharcada de africanos até à
medula, e resvalou a seguir para a Europa toda, os Estados Unidos logo depois.
No Mindelo já todos a conheciam, das serenatas e da paródia, animadas pelo
grogue e por outras bebidas tocantes. Sabiam-na filha de um homem que se perdia
no violão e sobrinha de um tal de B.Leza que lhe haveria de escrever parte das
grandes canções. O que não poderiam imaginar é que aquela voz seria a voz de
Cabo Verde e que o mundo inteiro a reconheceria no princípio de cada morna.
Numa tarde em Lisboa, fumou sucessivos cigarros e embriagou-se na conversa da história da sua vida. Ao seu lado, jaziam copos altos para o leite e chávenas para o café. Os pés descansavam fora dos chinelos, os pulsos e o pescoço enrodilhavam-se no ouro. Por acaso, prescindiu na quase totalidade da entrevista da assistente que lhe verte o discurso de creoulo para português. Nessa tarde Cesária estava deveras animada e apenas contou com ela para o riso solto que acompanhou as conversas. Foi assim antes de nós, assim foi depois de nós.
Entrevista a Cesária Évora
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Anabela
Mota Ribeiro: Algum dos seus colares tem um significado especial? Um
investimento, portanto. Os
brincos parecem mais antigos. Foram herdados? Quantos
netos tem? Acompanham
de perto a sua carreira? Assistem aos concertos? O
Adilson é filho da Fernanda que nasceu de uma relação que a Cesária
teve com um jogador de futebol. Mantém
alguma relação com os pais dos seus filhos? Que
idade tinha? Era uma menina. Deve
ter sido difícil ser uma mãe sozinha há quase 40 anos. Viviam
de quê? Quando
é que passou a ter dinheiro? Como
é que lhe pagavam, entregavam-lhe uma maço de notas ou faziam um depósito
bancário? Como
pagou esse ouro, por exemplo? A
primeira peça que pôde comprar, deve ter sido uma espécie de concretização
de um sonho. Em
Portugal há quem venda ouro em pacotes de 6 ou 12 cheques pré-datados. O
comprador passa ao vendedor a totalidade dos cheques que vão sendo
descontados mensalmente. Sim. Usam-se
cheques? Tentam
impingir-lhe coisas, por saberem que pode comprar? Além
do ouro, quais são os seus gastos? Alguma
dessas peças é para usar nos espectáculos? Gosta
de comprar sozinha ou tem alguém que a aconselhe? Sempre
foi assim? Houve
um momento em que tivesse deixado de ser verde e inocente e passasse a ser
uma mulher madura? E
via? Quanto
tempo se aguentou? Foi
uma má aluna? Sabe
ler e escrever correctamente? Havia
alguém que tinha mão em si? O
seu pai tocava violão e a Cesária cantava no colo dele. Como
é que soube que ele tinha morrido? A
única coisa que a abala é a morte? É
uma história inventada. É
assim tão namoradeira? Casamento
à espanhola? Houve
algum homem de que tivesse gostado muito? Teve um amor da sua vida? Desde
aí nunca pensou casar? Quando
menina, não teve o sonho de casar e ter filhos? Sonhava
pelo menos ser cantora? Era menina e já fazia serenatas. Cantava
para ganhar uns trocos? Porque
é que tinha receio em ir à rádio gravar? Não
sentia que era um passo importante para a sua carreira? Sentiu
uma emoção particular quando se ouviu na rádio pela primeira vez? Fala
como se tudo isto lhe fosse indiferente. Sente um genuíno prazer quando
canta? Um
dinheiro, aliás. Já concretizou o sonho de ter uma casa no Mindelo. Quem
é que vive consigo? Não. Qual
é a profissão dele? É
verdade que a Cesária faz sempre comida a mais para as pessoas que vão
chegando? Trata-se
mesmo de uma outra maneira de estar. Confia-se abertamente nas pessoas. Quando
o Pedro Loureiro (fotógrafo) esteve em sua casa disse-lhe que entrevista
não dava, mas que se quisesse podia entrar para comer. Deu. Muito.
Mostrou os discos de ouro que estavam debaixo do sofá. Sente-se
muito orgulhosa quando pensa no sucesso? Acredita
no destino? Foi
a primeira vez que saiu da sua terra. Conheço.
Deve ter sido difícil estar dez anos sem cantar? Foi
nesse período que deixou de beber? Não
foi particularmente difícil? Como
é que começou a beber? Parou
de cantar, parou de beber. Porque
é que parou há cinco anos? Problemas de saúde? Então? Nunca
mais bebeu? Agora
bebe leite e café. Fumar
e cantar são os seus prazeres? Já
não se fazem serenatas nas noites de Cabo Verde? Tendo
o estatuto que tem, se um amigo lhe pedir ainda faz uma serenata? É
a Cesária que escolhe os músicos que a acompanham? O
encontro com o Djô Silva mudou a sua vida. O
Djô Silva era agulheiro dos Caminhos de Ferro. Tinha experiência como músico? Foi
na mesma altura que se cruzou com o Paulino Vieira (instrumentista)? É
a sua assistente pessoal? Tem
um orgulho patriótico? É-lhe
indiferente estar em França ou em Portugal? Conhece
a Amália? Gosta
especialmente do fado? Também
Amália era de uma família humilde e começou a cantar nas ruas. É
verdade que vai fazer uma pausa na sua carreira e pode mesmo deixar de
cantar? Gosta
de pintar as unhas? Vai
à manicure? Canta
sempre descalça? Sente-se
mais confortável? Em
Cabo Verde, passa os dias na soleira da porta com as chaves depositadas no
regaço. De onde são as chaves? Quem
é a pessoa de quem mais gosta? Das
suas canções, tem uma de que goste mais? |
S. Vicente no coração Ainda que o último disco reforce a voz de Cize como artista do mundo. Ainda que o último disco enlace pontas do Atlântico à volta da voz de Cize. Ainda que a Terra inteira clame pela sua presença, imponente Cize. O coração se Cize pertence a São Vicente. |
No
calor da ilha e a morna a insinuar-se, a entranhar-se, ela deixa de ser a Cesária
que o mundo aplaude como Diva dos Pés Descalços, e outros epítetos vários; e
passa a ser a Cize que a ilha viu crescer e distender-se na modorra dos dias.
Num
tempo que parece infinitamente distante, mas que aconteceu já quando a vida lhe
ia para mais de metade, uma França ávida de novas sonoridades descobriu uma
musa provinda de um distante Cabo Verde. Expiravam os anos 80 e ela, como conta
em entrevista anexa, tinha já passado muito...
Passaram-se
os anos e somaram-se os discos. "São Vicente di longe" é o mais
recente, e é o que Cesária traz a Lisboa. Gravado em Paris, Havana e Rio de
Janeiro, o disco faz emergir o carácter eminentemente étnico da sua música e
traduz a sucesso que grassa no espaço atlântico. Na esteira de "Café Atlântico",
o álbum anterior que já promovia os encontros culturais com Cabo Verde, Brasil
e Cuba, este disco insiste nas participações várias, preciosas, de gente como
Caetano Veloso, (que Cesária conheceu juntamente com Sakamoto num prodigioso
"É preciso perdoar" integrado na compilação Red Hot and Rio) ou
Jacques Morelenbaum, (produtor de primeiríssima água à escala planetária,
indispensável a Caetano como, antes, para Jobim). O tema que traz Cesária e
Caetano, "Regresso", parte de um poema de Amilcar Cabral, e não é
amostra única de inspiração brasileira; a cantora refaz ainda
"Negue", parte integrante do repertório de Maria Bethânia. De Cuba
chegam percussões impressionantes em "Esperança Irisada". De Cabo
Verde e do Mundo chegam Cabo Verde e o Mundo para o disco de Cesária.
De
mornas e coladeras, e ritmos adjacentes, se faz "São Vicente di
longe". E assim será o concerto aprazado para 7 de Abril no Pavilhão Atlântico.
À parte a revisitação obrigatória dos sucessos da diva, o espectáculo viverá
da exploração deste novo disco, contando para isso com um elenco de peso: Ildo
Lobo, Luís morais, Bau, Maria Alice, Teófilo Chantre, Lura, Albertino, Ferro
Gaita.
No
cartaz que se espalha pela cidade, a promoção assegura "Um concerto memorável".
Alguém duvida?
Cesária
Évora
Pavilhão Atântico
Lisboa 7 de Abril (2001)
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