CESÁRIA ÉVORA

 

 

Cesária Évora, voz de Cabo Verde

 

E Cesária, como dizia, deambula por entre as nuvens. O seu corpo pesado está instalado no sofá do hotel, não no sofá rente à janela para onde, a seguir, o deposita, o instala, para uma sumária sessão fotográfica. Há uma parte da entrevista em que se fala do fotógrafo Pedro Loureiro. A sua história com Cize é incontornável por ser demasiado bela e por dizer uma parte, que é uma grande parte, da forma como ela conduz o espírito independentemente do corpo depositado. Talvez estivesse depositado na soleira da porta, como as velhas perdidas para o mundo, esquecidas do mundo, da sua casa em Cabo Verde. Tinha as chaves mergulhadas no regaço e sentenciou: "Entrevista não dou, mas se quiser entrar e comer cachupa, pode comer".

Evidentemente, ao cabo destes anos, que não são muitos mas que são alguns numa contabilidade atabalhoada pela vida incerta e pelo álcool, já não lembrava se tinha falado ou não; tinha apenas a certeza de ter tratado bem, porque herdou isso da mãe e da avó.

Cesária podia ser mais uma dessas velhas que não contam para o mundo importante, dessas velhas que se esquecem do mundo enquanto baralham as chaves na soleira da porta. É estranho pensar na vida que foi a sua, quedada pela ilha de S. Vicente, sem outro porto sequer para a imaginação. Já era mulher madura a quem se prenunciavam os calores menopáusicos, quando o acaso a trouxe a Lisboa e lhe marcou encontro com José da Silva. Ou Djô Silva, se preferirem, produtor e empresária da boa causa que é Cesária Évora.

Foi também por essa altura que entrou em cena o instrumentista Paulino Vieira que, digo eu do alto da minha autoridade musical (que por acaso é inexistente, mas não interessa), reformulou a sonoridade africana e se tornou numa peça fundamental dos discos de Cesária.

Como sabem, a coisa explodiu primeiro em França, encharcada de africanos até à medula, e resvalou a seguir para a Europa toda, os Estados Unidos logo depois. No Mindelo já todos a conheciam, das serenatas e da paródia, animadas pelo grogue e por outras bebidas tocantes. Sabiam-na filha de um homem que se perdia no violão e sobrinha de um tal de B.Leza que lhe haveria de escrever parte das grandes canções. O que não poderiam imaginar é que aquela voz seria a voz de Cabo Verde e que o mundo inteiro a reconheceria no princípio de cada morna.

Numa tarde em Lisboa, fumou sucessivos cigarros e embriagou-se na conversa da história da sua vida. Ao seu lado, jaziam copos altos para o leite e chávenas para o café. Os pés descansavam fora dos chinelos, os pulsos e o pescoço enrodilhavam-se no ouro. Por acaso, prescindiu na quase totalidade da entrevista da assistente que lhe verte o discurso de creoulo para português. Nessa tarde Cesária estava deveras animada e apenas contou com ela para o riso solto que acompanhou as conversas. Foi assim antes de nós, assim foi depois de nós.

 

                Entrevista a Cesária Évora

 

 

Cesária Évora canta desde que se lembra de si, e é também desde que se lembra de si que canta descalça. Para as unhas gosta do azul petróleo, do preto que lhe tinge o cabelo em canudos arrumados, do castanho achocolatado que é o castanho da sua voz. Com a voz paga o ouro que lhe aparece enredado no pescoço ou as casas abençoadas pelo sol do Mindelo. Cesária, longe da terra, mas nem por isso longe do céu. A diva dos pés descalços revela a essência de Cabo Verde numa tarde lisboeta.

Entrevista de Anabela Mota Ribeiro,  publicada no suplemento DNa do Diário de Notícias.

 

 

 

Anabela Mota Ribeiro: Algum dos seus colares tem um significado especial?
Cesária Évora:
Nem por isso. Compro qualquer coisa em ouro, primeiro, por gostar. Ou primeiro é por ter dinheiro para comprar, depois é por gostar. Amanhã, se tiver qualquer necessidade, posso tirar e vender.

Um investimento, portanto.
Concerteza. Ou para vender ou para ficar, as duas coisas.

Os brincos parecem mais antigos. Foram herdados?
Tudo aqui foi comprado, não tem nada oferecido. Ofereceram outras coisas, mas ouro... Ah, em Argentina deram-me um fiozinho. Dei para a minha neta.

Quantos netos tem?
Dois, um rapaz e uma menina. O Adilson tem 15 anos, a Janete tem 8.

Acompanham de perto a sua carreira? Assistem aos concertos?
Quando são em Cabo Verde, eles vão. A Janete tem a mania de ser modelo; gosta de fazer passagens de modelo, gosta de cantar e de dançar. Não sei se vai continuar amanhã quando for de mais idade; agora é muito criança, e gosta. O Adilson gosta é de futebol. Disse que quer vir jogar no Porto. Eu sou Porto e ele também. Disse-lhe: "Um dia vais jogar lá, ainda és muito novo".

O Adilson é filho da Fernanda que nasceu de uma relação que a Cesária teve com um jogador de futebol.
É isso. Pode ser que saia ao avô.

Mantém alguma relação com os pais dos seus filhos?
Com o pai do Eduardo não; é um português que nunca mais vi. Fiquei à espera de bebé, e ele veio para Portugal. Não sei se é vivo ou morto. E não me interessa saber.

Que idade tinha? Era uma menina.
Era muito nova. Nasceu a 5 de Agosto e fiz 18 anos a 27 de Agosto. Eu, a minha filha, o meu filho e o meu neto somos do mesmo mês, tudo de Agosto.

Deve ter sido difícil ser uma mãe sozinha há quase 40 anos.
Não. Era nova, desenrascava-me muito bem. A minha mãe ajudava-me com os meus filhos. Era uma pobreza, mas assim não muito.

Viviam de quê?
Minha mãe era cozinheira. E eu cantava, tinha sempre algum troquinho. Troquinho é quando o dinheiro não é muito. Quando é um dinheiro bastante razoável a gente chama de dinheiro.

Quando é que passou a ter dinheiro?
A partir de 88 quando comecei a minha carreira na França. Ia para Cabo Verde, começava a contar tanto franco, quando cansava dizia: "Depois vou contar o resto".

Como é que lhe pagavam, entregavam-lhe uma maço de notas ou faziam um depósito bancário?
As duas coisas. Levo uma parte comigo e depois fazem uma transferência e levanto lá no banco. Não posso levar muita quantidade comigo porque pode ser perigoso. José (Djô da Silva) disse que a gente não deve andar com muito dinheiro. Se perder uma parte, tenho a outra parte. Sempre foi assim.

Como pagou esse ouro, por exemplo?
Tenho mais (ouro). Tenho coisas que nunca usei, porque são mais volumosas, etc, e não gosto muito.

A primeira peça que pôde comprar, deve ter sido uma espécie de concretização de um sonho.
Havia muita loja portuguesa em S.Vicente. Então, eu comprava. Anel, fio, brinco, tudo. Agora também vendem, mesmo que não seja mais a época colonial.

Em Portugal há quem venda ouro em pacotes de 6 ou 12 cheques pré-datados.
Que significa cheques pré-datados?

O comprador passa ao vendedor a totalidade dos cheques que vão sendo descontados mensalmente.
Comprar em prestações?

Sim.
Em Cabo Verde, no tempo colonial, usava-se isso: a pessoa marcava uma peça qualquer, depois dava um tanto e ia levando conforme pudesse.

Usam-se cheques?
Usam-se sempre, mas não está enraizado esse sistema dos cheques pré-datados. Compra-se aos poucos, quando der todo o dinheiro, leva-se a coisa. Vivemos muito isso, em Cabo Verde. Mas agora gosto mais de pagar à vista porque tenho dinheiro para comprar. Não vou guardar o dinheiro em casa e dizer "Venho logo, ou venho amanhã". A pessoa fica sempre a ver e nunca leva. Eu não vivo assim. Prefiro comprar e pagar logo, fico sem a chatice.

Tentam impingir-lhe coisas, por saberem que pode comprar?
São pessoas amigas que não desconfiam. Querem deixar e eu é que digo que não. Quando estou interessada compro logo com o dinheiro à vista.

Além do ouro, quais são os seus gastos?
Compro em qualquer parte, em qualquer país. Hoje já fiz uma comprinha, não foi muito, mas. Três blusas, duas saias.

Alguma dessas peças é para usar nos espectáculos?
Tenho roupa de espectáculo. A roupa é minha; se a quiser vestir. Mas a roupa dos espectáculos tenho-a à parte: têm algum brilhante, ou um tecido que não dá para vestir todos os dias. Então, eu ponho de lado.

Gosta de comprar sozinha ou tem alguém que a aconselhe?
Não gosto muito do conselho de ninguém. Eu é que sei o que quero e o que não quero. Não vou tomar opinião.

Sempre foi assim?
Desde que era verde anos, antes de voltar madura. Hoje um moço que trabalha ali disse: "Ó Cesária Verde, queria um autógrafo". Eu disse: "Já não estou verde, estou madura!; e não é Verde, é Évora" (gargalhada).

Houve um momento em que tivesse deixado de ser verde e inocente e passasse a ser uma mulher madura?
Já estou madura, já tenho 57 anos. Uma pessoa vai apanhando idade, é nesse sentido que digo verde e madura. Sempre vivi da maneira que fosse o meu pensar. Desde criança, tive decisão sobre mim própria. Minha mãe dizia que eu não era de brincadeira. Era a filha que fazia a minha mãe mais coisas: saía de casa, o meu irmão mais velho ía à minha procura e levava uma boa sova; no dia seguinte, saía mais cedo! A minha mãe acabou por me pôr num orfanato! Mandei um recado à minha avó a dizer que todos os dias via fantasmas.

E via?
Tudo mentira! Minha avó falou com minha mãe. Ela era cozinheira do doutor e a mulher era directora do orfanato. Falou com a directora que não podia ficar lá por causa dessas coisas. Foi assim que consegui safar-me das freiras e padres e chatice. Eu queria ser qualquer coisa, queria fazer da minha vida o que bem entendesse!

Quanto tempo se aguentou?
Entrei com 10 e saí com 13. Saí do orfanato, dei mulher, aos 17, 18 tive filhos, etc, etc, a minha vida foi assim. Não tive paciência para estudar.

Foi uma má aluna?
Não era das piores, mas também não era assim muito boa! (risos) A minha avó e a Dona Maria Amélia (professora) eram muito amigas; tentavam pôr-me no caminho certo, mas eu não queria. Antes de entrar para o orfanato, tinha andado na segunda classe. No exame de passagem para a terceira, nunca mais peguei num livro.

Sabe ler e escrever correctamente?
Muito pouco. Escrevo Cesária Évora, sei fazer uma conta de dinheiros.

Havia alguém que tinha mão em si?
O meu pai morreu tinha eu sete anos. A mãe do meu pai era muito nossa amiga, respeitava-a muito. Mas não me estorvava de sair de casa. O meu irmão era militar, quando saía do quartel ía pela casa da avó cumprimentar e ver se a gente se tinha comportado bem. Levei uma sova do meu irmão que nunca mais levei na vida, de cinturão! Ele foi para Dakar e eu fiquei contente! (risos) Depois a pessoa vai apanhando idade e tomando juízo.

O seu pai tocava violão e a Cesária cantava no colo dele.
Conheci bem o meu pai e lembro do dia em que morreu. Ele era estudante; deixou os liceus para se meter na paródia, para tocar violão. Deve ser o caso, herdei isso do meu pai.

Como é que soube que ele tinha morrido?
Estava na casa da minha avó na altura em que ele morreu. A minha mãe ia trabalhar e iamos para casa da mãe do meu pai. (Canta a estrofe: A minha vida foi sempre assim) Mas eu nunca chorei lágrimas de muita tristeza, só a morte, que é uma coisa à parte. Agora, chorar por um homem? Não, tenho um espírito muito forte, um espírito de combate. Quando um homem me deixa vou logo à procura de outro, não há tempo a perder! Se não, ainda cria teia de aranha! (gargalhada) Compreende? Não há tempo para teia de aranha!

A única coisa que a abala é a morte?
Se for disparate e coisa do mundo, não abala. Conhece as duas viúvas que se encontram no cemitério? Uma está de chichi na cova do marido, a outra chora e visita o marido morto. Um dia, a que estava a chorar, chamou a atenção e disse: "Todas as vezes que lhe encontro no cemitério, em vez de você chorar você faz chichi"; e a outra: "Cada um chora por onde sente mais saudade!" (gargalhada)

É uma história inventada.
Aconteceu com duas viúvas. Ela não tinha nada que tomar satisfação, aquela que chorava!

É assim tão namoradeira?
Sou viva, não sou morta! Quando era mais nova, sim; mas agora... Às vezes faço um casamento à espanhola. Depende do meu estado de espírito.

Casamento à espanhola?
Casar hoje, divorciar amanhã.

Houve algum homem de que tivesse gostado muito? Teve um amor da sua vida?
Gostei do pai da Fernanda. Ele veio para Lisboa e nos princípios escrevia e mandava para a filha. Deixou de escrever e deixou de mandar e a Fernanda cresceu sem a ajuda dele. Como não deu, paciência, nunca mais pensei. Eu gostava dele. Era bom futebolista, tinha bom físico, parecia o tronco de uma árvore. Quando veio, foi jogar para o Caldas da Rainha.

Desde aí nunca pensou casar?
Nem pensar nisso. Casar é bom, mas não casar é melhor! Sempre gostei de mandar em mim mesma.

Quando menina, não teve o sonho de casar e ter filhos?
Como, casamento é sonho? Vou ficar sem casar porque não acredito em sonhos.

Sonhava pelo menos ser cantora? Era menina e já fazia serenatas.
Ia para as serenatas, cantava em todos os cantos de S. Vicente. Mais tarde fui convidada para ir para a rádio gravar e disse que não, que não ia. Acabei por ir, para a Rádio Barlavento e para a Rádio Clube do Mindelo. Depois, comecei a cantar para os portugueses, na casa deles e nos navios de guerra. Foi assim, foi o meu começo.

Cantava para ganhar uns trocos?
Eu queria ser cantora, só que não tinha recursos. Quando cantava nos bares, davam-me dinheiro; mas os donos dos sítios não me davam nada. Uma pessoa para viver tem que ter dinheiro.

Porque é que tinha receio em ir à rádio gravar?
Não era questão de receio. Não queria ir. Quando comecei a pensar melhor, fui.

Não sentia que era um passo importante para a sua carreira?
Para a minha carreira não; em S.Vicente já toda a gente me conhecia.

Sentiu uma emoção particular quando se ouviu na rádio pela primeira vez?
Já tinha ouvido a minha voz a cantar para as pessoas. É igual.

Fala como se tudo isto lhe fosse indiferente. Sente um genuíno prazer quando canta?
A minha maneira de expressar é assim. Sempre gostei da música. Quanto mais agora, que a música dá tutu (remexe o médio e o polegar em sinal de dinheiro). Eu canto com prazer. Estou num outro meio em que quem canta tem sempre dinheiro. Tenho que ter um troquinho, ou não? Então, é isso.

Um dinheiro, aliás. Já concretizou o sonho de ter uma casa no Mindelo.
Não é questão de sonhar. É preocupação de qualquer cabo verdiano ter uma casa para deixar de pagar renda. Comprei a primeira casa em 94, a segunda em 95.

Quem é que vive consigo?
A Fernanda mora numa casa que o Estado me deu para morar; nunca morei lá porque a casa era pequenina. A família são nove cabeças, nove pessoas. O meu filho ainda está comigo. Já disse para ele levar nem que fosse um mongol para casa, que eu aceito! Sabe o que é um mongol?

Não.
Mongoloide. Como mais velho, já devia ter filhos.

Qual é a profissão dele?
Ele é um pé descalço como a mãe, cozinha bem porque aprendeu com a avó. Chegou ao segundo ano de liceu, disse que não queria estudar mais, eu disse que era um problema dele. E assim ficou.

É verdade que a Cesária faz sempre comida a mais para as pessoas que vão chegando?
É uma tradição da minha avó. A minha avó era uma proprietária, tinha quintas fora da cidade. Na altura chovia, agora é que não há chuva em Cabo Verde. No meu crescimento havia muita chuva.

Trata-se mesmo de uma outra maneira de estar. Confia-se abertamente nas pessoas.
Concerteza. Não preciso saber quem é o pai ou a mãe para tratar bem.

Quando o Pedro Loureiro (fotógrafo) esteve em sua casa disse-lhe que entrevista não dava, mas que se quisesse podia entrar para comer.
Dei entrevista?

Deu.
Falámos muito ou pouco?

Muito. Mostrou os discos de ouro que estavam debaixo do sofá.
Agora tenho numa parede. Tenho um outro disco que foi sucesso na América, daquela música "Besame Mucho", sabe? Jaqueline, explica como é que o "Besame Mucho" foi feito! (Jaqueline, a tradutora, conta: "Besame Mucho" foi feito para a banda sonora de "Great Expectations". Atingiu o disco de ouro nos EUA) Disco de ouro na América, sabe quanto é? 500 mil.

Sente-se muito orgulhosa quando pensa no sucesso?
Sou uma pessoa simples. Não acho que seja estranho. Era qualquer coisa que estava à minha espera.

Acredita no destino?
Não, destino é cair da rocha! Foi uma porta que se abriu para mim e para mais artistas africanos. Estive parada dez anos: não cantava, não ia para sítio nenhum. Saturei de tanto cantar que disse: "Vou parar". Em 1985 a Associação de Mulheres Cabo Verdianas convidaram-me para cantar na festa, dia oito de Março. E cantei no cinco de Julho, naquele pátio grande que eles têm. Então o primeiro ministro Pedro Pires disse que íamos para Portugal gravar um disco (Cesária, Zenaide, Celina Pereira, Ana Emília).

Foi a primeira vez que saiu da sua terra.
Primeira vez, mesmo para qualquer ilha. Não gostava de ir para sítio nenhum. Tinha vontade era de estar lá. Não há ilha mais saborosa que S. Vicente. (começa a cantar "Mindelo Pequenino") Conhece essa morna?

Conheço. Deve ter sido difícil estar dez anos sem cantar?
Era também um capricho que estava a manter. Muita gente cá fora pensava que estava morta, outros pensavam que estava doente. O povo pensava o que queria pensar e eu cantava em casa. Às vezes as pessoas passavam e paravam a ver; e eu escondia a cabeça.

Foi nesse período que deixou de beber?
Foi. Cigarro, nunca consegui. Deixei de beber porque deixei de frequentar bares, de ir para casas particulares ou não particulares.

Não foi particularmente difícil?
Não. Nem naquela época, nem agora que deixei também. Vai fazer cinco anos. As pessoas ficavam com dúvida: se era por motivo de doença, qualquer coisa.

Como é que começou a beber?
Nos bares, na influência de uma coisa e outra, uma pessoa aprende muitos vícios.

Parou de cantar, parou de beber.
Isso. Parei em 75, comecei em 85.

Porque é que parou há cinco anos? Problemas de saúde?
Se tivesse com problemas de saúde não estaria com uma carreira dessas. Vou sempre ao médico saber se estou a funcionar bem de dentro e de fora, principalmente de dentro. Tenho tensão normal e não tenho problemas de coração.

Então?
Deixei por uma questão de fastio. Bebi muito, nesse 85 até 94. Disse: "Vou parar". E parei.

Nunca mais bebeu?
Até hoje não. Pode ser que resolva de hoje para amanhã, não é? Não disse "Nunca mais"; disse "Vou pôr stop". Em minha casa tenho toda a espécie de bebidas para os meus amigos.

Agora bebe leite e café.
Café, água, de vez em quando um refrigerante.

Fumar e cantar são os seus prazeres?
E perder a noite, na paródia. No entanto, sem alcool.

Já não se fazem serenatas nas noites de Cabo Verde?
Muita coisa desapareceu, é verdade.

Tendo o estatuto que tem, se um amigo lhe pedir ainda faz uma serenata?
Claro que sim, se estou bem disposta eu canto.

É a Cesária que escolhe os músicos que a acompanham?
É o Djô Silva (José da Silva, o produtor). Nós temos de chegar a um acordo, se quero ou não quero. Às vezes, pode haver uma pessoa que não me agrade e a pessoa não vem. A atitude ou qualquer coisa que não vai bem comigo. Foi o que aconteceu com o grupo do Bau.

O encontro com o Djô Silva mudou a sua vida.
A segunda vez que o Bana me trouxe para Portugal, em 87, cantava no restaurante dele. Na altura, o Djô estava com a mulher e disse que quando terminasse de cantar queria falar comigo. Em 88 podia tomar compromisso com ele. De 88 até agora estamos juntos, tudo corre lindamente.

O Djô Silva era agulheiro dos Caminhos de Ferro. Tinha experiência como músico?
Trabalhava nos Caminhos de Ferro e já antes tinha um grupo na França. Era manager dos Cabo Verde Show.

Foi na mesma altura que se cruzou com o Paulino Vieira (instrumentista)?
Eu e o Paulino já tínhamos tocado juntos em Lisboa. Ele formou o grupo que foi para França acompanhar a Cesária. Estivemos algum tempo; como ele tinha trabalho, tinha o disco que fez dedicado ao pai, teve que deixar. Depois foi o Bau e agora é outro grupo. Este grupo não tem nome, é o grupo de Cesária. (risos) São pessoas abertas: tem três cubanos e sete cabo verdianos, dois técnicos de som e um de luz. Ah, a Jaqueline também trabalha connosco.

É a sua assistente pessoal?
Sim. A Jaqueline, conheço os pais antes dela.

Tem um orgulho patriótico?
Da minha parte, nem vou dar nem vou vender! A parte que me toca é minha. E cada um tem sempre um bocadinho lá, um bocadinho de chão de Cabo Verde.

É-lhe indiferente estar em França ou em Portugal?
Sou a mesma pessoa, nunca mudei. Simples, como estou aqui.

Conhece a Amália?
Pessoalmente não conheço, mas sou uma grande fã há muitos anos. Também gostava do Alberto Ribeiro. O Rui Veloso, Vitorino, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho, Carlos do Carmo, também conheço.

Gosta especialmente do fado?
Para falar verdade, gosto de Carlos do Carmo e Amália Rodrigues.

Também Amália era de uma família humilde e começou a cantar nas ruas.
É como o meu caso: comecei a cantar nos bares e em todos os cantos de S. Vicente. Tudo tem um começo.

É verdade que vai fazer uma pausa na sua carreira e pode mesmo deixar de cantar?
(Para Jaqueline) Diz lá, ao menos faz uma vezinha! (Jaqueline responde: Ela não tem planos para parar. Em Dezembro vai descansar seis ou sete meses porque os últimos anos têm sido extenuantes. Jaqueline prossegue: Vou ter que lhe pedir que avancemos para as fotos)

Gosta de pintar as unhas?
Sim. Gosto de azul não muito claro, de preto, de castanho, são três cores que gosto no verniz.

Vai à manicure?
Arranjo a mim mesma. Quando calha gosto de ir para limpar os pés e fazer as minhas mãozinhas. Quando não dá para ir, tenho lima, tesoura, até lâmina para tirar calos nos pés, e tenho acetona e algodão.

Canta sempre descalça?
Sempre fui uma cantora descalça.

Sente-se mais confortável?
Não é questão de estar confortável. Gosto, gosto de estar descalça, como sempre.

Em Cabo Verde, passa os dias na soleira da porta com as chaves depositadas no regaço. De onde são as chaves?
Das minhas coisas importantes! Tenho dinheiro, tenho uma joia, vou deixar ali em cima da mesa, em qualquer sítio?

Quem é a pessoa de quem mais gosta?
É a minha mãe, ela já morreu. Depois, os meus filhos. Depois, irmãos; e pessoa que não seja família que me trate bem, eu trato bem também.

Das suas canções, tem uma de que goste mais?
"Mar Azul" e "Miss Perfumado" são duas mornas que ficam escritas na história. Foi o pontapé de saída na França. Com o pé direito.

 

 

S. Vicente no coração

Ainda que o último disco reforce a voz de Cize como artista do mundo. Ainda que o último disco enlace pontas do Atlântico à volta da voz de Cize. Ainda que a Terra inteira clame pela sua presença, imponente Cize. O coração se Cize pertence a São Vicente.

No calor da ilha e a morna a insinuar-se, a entranhar-se, ela deixa de ser a Cesária que o mundo aplaude como Diva dos Pés Descalços, e outros epítetos vários; e passa a ser a Cize que a ilha viu crescer e distender-se na modorra dos dias.

Num tempo que parece infinitamente distante, mas que aconteceu já quando a vida lhe ia para mais de metade, uma França ávida de novas sonoridades descobriu uma musa provinda de um distante Cabo Verde. Expiravam os anos 80 e ela, como conta em entrevista anexa, tinha já passado muito...

Passaram-se os anos e somaram-se os discos. "São Vicente di longe" é o mais recente, e é o que Cesária traz a Lisboa. Gravado em Paris, Havana e Rio de Janeiro, o disco faz emergir o carácter eminentemente étnico da sua música e traduz a sucesso que grassa no espaço atlântico. Na esteira de "Café Atlântico", o álbum anterior que já promovia os encontros culturais com Cabo Verde, Brasil e Cuba, este disco insiste nas participações várias, preciosas, de gente como Caetano Veloso, (que Cesária conheceu juntamente com Sakamoto num prodigioso "É preciso perdoar" integrado na compilação Red Hot and Rio) ou Jacques Morelenbaum, (produtor de primeiríssima água à escala planetária, indispensável a Caetano como, antes, para Jobim). O tema que traz Cesária e Caetano, "Regresso", parte de um poema de Amilcar Cabral, e não é amostra única de inspiração brasileira; a cantora refaz ainda "Negue", parte integrante do repertório de Maria Bethânia. De Cuba chegam percussões impressionantes em "Esperança Irisada". De Cabo Verde e do Mundo chegam Cabo Verde e o Mundo para o disco de Cesária.

De mornas e coladeras, e ritmos adjacentes, se faz "São Vicente di longe". E assim será o concerto aprazado para 7 de Abril no Pavilhão Atlântico. À parte a revisitação obrigatória dos sucessos da diva, o espectáculo viverá da exploração deste novo disco, contando para isso com um elenco de peso: Ildo Lobo, Luís morais, Bau, Maria Alice, Teófilo Chantre, Lura, Albertino, Ferro Gaita.

No cartaz que se espalha pela cidade, a promoção assegura "Um concerto memorável". Alguém duvida?

Cesária Évora
Pavilhão Atântico
Lisboa 7 de Abril (2001)

 

 

 

Discografia (até 2001)

 

1988 - La Diva Aux Pieds Nus

1989 - Distino di Belta

1991 - Mar Azul 1993 - Miss Perfumado

1994 - Sodade, O Melhor de Cesária Évora

1995 - Cesária Évora À l`Olympia

1995 - Cesária

1996 - Festas

1997 - Cabo Verde

1998 - Best of Cesária Évora 1999 - Café Atlântico

2001 - São Vicente di Longe