AS DEPRESSÕES VISÍVEIS

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SYLVIA PLATH: LADY LAZARUS

   

 

Helena Vasconcelos

 

Uma neurótica, deprimida e instável, que na adolescência saltava pelas janelas para ir “dormir com rapazes”, como dizem os que a conheceram em Cambridge? Uma mártir nas mãos de um marido que a invejava como escritora? Sylvia Plath sempre suscitou as reacções mais extremas. É uma heroína trágica. Entrou para a galeria dos mitos do nosso século.

 

“Soon, soon the flesh

The grave cave ate will be

At home on me” (1)

   

 Sylvia Plath escreveu um poema terrivelmente poderoso sobre a morte e, em seguida, matou-se. Esse acto, que ensaiara várias vezes sem resultado (a sua vida foi um namoro constante com a morte), coroou-se de êxito, numa gelada manhã de Inverno, a 11 de Fevereiro de 1963. Enquanto os filhos, de um e dois anos, dormiam no andar superior da casa, enfiou a cabeça no forno e ligou o gás. “Era louca”, foi o veredicto. “Louca de ciúmes, louca de frustração, louca de amor, louca de paixão”. O suicídio tornou-a famosa em poucas semanas e a sua vida ganhou o estatuto de lenda.  O marido, o poeta Ted Hughes, que herdou o seu espólio literário, publicou-lhe os poemas mas destruiu-lhe o diário e outros escritos (há manuscritos dela selados em bibliotecas que só poderão ser abertos no ano 2013).

  A “grande sacerdotisa” da poesia contemporânea entrava para a galeria de mitos do sec. XX, ao lado de Janis Joplin e Jim Morrison, Virginia Woolf e Hemingway. A “Marilyn Monroe dos literati”, como lhe chamou Jacqueline Rose, autora de um recente estudo, “The Haunting of Sylvia Plath”, tinha, à partida, (quase) tudo para “ser feliz”. Um dos detalhes mais fascinantes da sua personalidade, que sempre irritou os seus detractores, era o contraste entre uma aparente frivolidade e a “seriedade” apaixonada com que se dedicava à escrita. Superficialmente, era um produto típico da sociedade americana dos anos cinquenta, uma combinação de “vulgarity, sef-promotion and hustle”, como diziam os seus “amigos” ingleses. Essa imagem do “slick chick” perdurou ao ponto de haver muita gente que só reteve dela a imagem da jovem audaciosa que chegou a Cambridge armada de um “set” de bagagem dourado e branco da Samsonite, roupas e “make-up” extravagantes, que bebia um pouco demais e trepava pelas janelas para ir dormir com rapazes.

 

Soquettes e bâton vermelho vivo

 

A escritora   A. S. Byatt, que se lembra de Plath em Cambridge, declara num ensaio de “Passions of the Mind”: “Conheci-a no tempo em que ela escrevia principalmente para revistas de moda, como a Mademoiselle e a McCall’s. Usava soquettes e um bâton vermelho vivo totalmente artificial. O cabelo era louro, platinado, também o mais artificial possível. Recordo-a assim, como uma pessoa totalmente artificial e produzida, sem qualquer realidade intrínseca, sempre a articular conselhos como se tratasse de uma coluna de beleza de uma dessas revistecas de moda. Admito que escreveu belas palavras. Mas não condiziam em nada com o vazio da sua personalidade”.

Sylvia Plath sempre teve o condão de suscitar as reacções mais extremas. Por um lado, o clã ligado a Ted Hughes, onde se inclui a irmã e agente literária para o espólio de Plath, Olwyn Hughes, dão-nos repetidamente a imagem de uma mulher neurótica e instável, incapaz de conciliar uma domesticidade aceitável, moral e socialmente, com uma sexualidade desbragada e uma histeria permanente. Este grupo, onde se inclui Anne Stevenson, autora de “Bitter Fame: A Life of Sylvia Plath” (1989), (Linda Wagner-Martin, autora de uma biografia publicada em 1987, teve disputas terríveis com os Hughes que lhe interditaram o acesso a muitos dos documentos), coloca Ted na posição de vítima de uma mulher desequilibrada e psicologicamente afectada. Por outro lado, há a construção do mito da “santa Sylvia”, a mártir nas mãos de um marido machista e marialva, que a invejava como escritora, e a destruiu física e psicologicamente. (Há trinta anos que o nome Hughes é raspado sistematicamente da pedra tumular de Sylvia Plath, supõe-se que por feministas militantes.

 

Comprimidos e electrochoques

 

Na realidade, Plath sempre tentou viver por parâmetros excessivos. Filha de um professor de biologia da Universidade de Boston, era uma menina de ouro fadada para o sucesso. Publicou o primeiro poema com oito anos e, estudante do Smith College em Massachusetts, ganhou todos os prémios e bolsas de estudo possíveis. “O mundo abre-se aos meus pés como uma melancia madura e sumarenta”, escreveu ela à mãe, Aurélia. Aos dezanove anos, em 1952, a revista “Mademoiselle” escolheu-a como a jovem mais promissora e durante um mês ela foi festejada, admirada e fotografada por toda a cidade de Nova Iorque. Foi também por esta altura que Plath se tentou suicidar pela primeira vez com comprimidos.

Seguiu-se um tratamento de electrochoques e uma prolongada convalescença. (O romance autobiográfico, “The Bell Jar”, descreve detalhadamente todas estas experiências). Em 1953, recomposta e a escrever, acumulava namorados e desejava uma imagem de si própria mais “aventurosa e divertida”. Em Fevereiro de 1956 ganhou uma bolsa Fullbright para a Universidade de Cambridge, em Inglaterra, e conheceu numa festa Ted Hughes, um jovem “leão” das letras. Ambos tinham já lido os escritos um do outro e admiravam-se mutuamente. Sylvia descreveu o primeiro encontro, singularmente intenso e apaixonado: “Beijou-me na boca, subitamente e com violência, arrancando-me o lenço que eu atara à cabeça, o meu belo lenço vermelho que eu adorava, usado e descolorido pelo sol, impossível de substituir, e os meus brincos favoritos de prata, ah, eu guardo-os, rosnou ele, e eu mordi-o longa e cruelmente na face quando ele me beijou no pescoço e, quando saímos do quarto, o sangue escorria-lhe pelo rosto e dentro de mim subia um grito, oh, entregar-me nas tuas mãos, estilhaçar-me lutando contra ti...” (1956, “Diários”). Em Junho desse mesmo ano, estavam casados. “Tudo o que faço com e para Ted comporta em si uma radiação celestial, mesmo até actos banais como passar a ferro e cozinhar... A nossa escrita baseia-se na inspiração um do outro.”

Durante algum tempo assim foi, uma combinação de “amor ardente”, vida social (Ted Hughes estava a ganhar importância no mundo literário) e as obrigações e alegrias da maternidade: Frieda nasceu em 1961 e Nicholas em 1962.

Mas a depressão que perseguia Sylvia desde a morte do pai, quando ela tinha oito anos, agravada pelas repetidas infidelidades de Ted, acelerou o processo de auto-destruição.

O golpe de misericórdia chegou sob a forma de uma alemã de 34 anos, Asia Wevill. Ela e o marido, um poeta canadiano dez anos mais novo, foram convidados dos Hughes durante um fim de semana. Assia era uma devoradora de homens que resolveu conquistar Ted, o que conseguiu sem aparente dificuldade e sem esconder as suas intenções. “Here she comes, her perfumes before her”, escreveu Hughes a propósito desta mulher-fatal.

 

Quando alguém nos despreza…

 

A partir daí, ferida e chocada com a audácia e despudor de Assia, com a docilidade e cobardia de Hughes, o mundo desabou para Sylvia. Estava casada há seis anos e o homem que fora o seu “salvador”, a “sua musa inspiradora, um Deus na terra”, transformava-se aos seus olhos num “monstro”, um “carrasco e carcereiro que a traía”. “Ted mente-me, mente todo o tempo, tornou-se um homenzinho mesquinho e insignificante. Quando se dá a alguém o coração todo inteiro e esse alguém o despreza, nunca mais o podemos ter de volta, perdemo-lo para sempre”, confidenciou Sylvia desesperada, a uma amiga, Elizabeth Compton. Uma noite, depois de andar de carro sem destino, voltou a casa e destruiu cartas e manuscritos de Ted, rasgando-os e cortando-os com uma faca, para os queimar em seguida numa enorme fogueira, enquanto articulava palavras encantatórias. Nos meses seguintes escreveu todos os poemas que iriam constituir o livro “Ariel” publicado postumamente. (“Poppies in July”, “The Other”, “The Rival” são todos dirigidos a Assia que, curiosamente, também se suicidou em 1969, depois de matar Shura, a filha que tivera de Ted Hughes).

A figura radiosa da estudante aplicada, da jovem apaixonada e da mãe realizada dava lugar a uma mulher presa de violentas crises de ódio e ciúme, uma mulher dada a pesadelos, carregada de complexos de culpa, aterrorizada pelos seus bloqueios de escrita e debilitada por contínuas depressões.

Os poemas tornaram-se cada vez mais dilacerantes. Em “Daddy”, um dos mais fortes que jamais escreveu, a figura do pai-homem-marido aparece como a de um nazi que a espezinha:

Every woman adores a Fascist,
 The boot in the face, the brute
 Brute heart of a brute like you…  (who)

 Bit my pretty red heart in two.“

 

Ela tinha-se tornado um vampiro, uma Electra amaldiçoada, uma Dido, Fedra ou Medeia”, segundo as palavras de Robert Lowell. A morte, tantas vezes procurada, chegava finalmente, aos trinta anos. Para uns, Sylvia Plath é um caso típico da neurose feminina e da culpa freudiana, para outros, é a vítima de uma sociedade dominada pelo machismo, uma heroína trágica, o símbolo da angústia do nosso tempo.

“Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.


I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.”  (1)

 

 

 

 

Nota: As citações (1) pertencem ao poema “Lady Lazarus”, que faz parte da colectânea “Ariel”, edição da Faber, 1965.

 

 

Artigo publicado na secção “LEITURAS” do jornal “PÚBLICO”, de 10 de Janeiro de 1992