25-9-2000

 

ALEXANDRE O'NEILL

 (1924-1986)

 

POEMAS:

 

 

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM            

SONETO A DUAS MÃOS

FALA

INVENTÁRIO

UM ADEUS PORTUGUÊS

SONETO

VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA

GAIVOTA

A MEU FAVOR

PORTUGAL

O TEMPO DUM CORISCO

DUAS MOSCAS OU A MESMA?

A SACA DE ORELHAS

 

 

 

 

Há Palavras Que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca,

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

 

 

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto,

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

 

 

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas, inesperadas

Como a poesia ou o amor.

 

 

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído,

No papel abandonado)

 

 

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

 

 

 

 

Soneto a duas mãos

 

 

A mão que me sustenta e eu sustento

é mão capaz das vinte e cinco linhas

e do selado azul de um requerimento

ou doutras diligências comesinhas...

 

 

Habituada por secretarias,

esperta, decidiu de um grave acento,

a vírgulas guindou torpes cedilhas

e mastigou papel, seu alimento...

 

 

Contraiu calos, revoltou-se às vezes,

contra certos despachos, tão soezes

que até o dedo auricular se ria...

 

 

Com dois dedos de aumento se curvava

e logo, altiva, à esquerda se mostrava... Agora?

Estão as duas na poesia...

 

 

 Abandono Vigiado (1960)

 

 

Fala

 

Fala a sério e fala no gozo

Fá-la pela calada e fala claro

Fala deveras saboroso

Fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração

Falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem

Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala francês fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso

Desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar

Fala com elegância - muito e devagar.

 

 

 

Inventário

 

 

Um dente d'ouro a rir dos panfletos

Um marido afinal ignorante

Dois corvos mesmo muito pretos

Um polícia que diz que garante

 

 

A costureira muito desgraçada

Uma máquina infernal de fazer fumo

Um professor que não sabe quase nada

Um colossalmente bom aluno

 

 

Um revolver já desiludido

Uma criança doida de alegria

Um imenso tempo perdido

Um adepto da simetria

 

 

Um conde que cora ao ser condecorado

Um homem que ri de tristeza

Um amante perdido encontrado

Um gafanhoto chamado surpresa

 

 

O desertor cantando no coreto

Um malandrão que vem pe-ante-pé

Um senhor vestidíssimo de preto

Um organista que perde a fé

 

 

Um sujeito enganando os amorosos

Um cachimbo cantando a marselhesa

Dois detidos de fato perigosos

Um instantinho de beleza

 

 

Um octogenário divertido

Um menino coleccionando estampas

Um congressista que diz Eu não prossigo

Uma velha que morre a páginas tantas

 

 

 

 

Um Adeus Português

 

 

Nos teus olhos altamente perigosos 

vigora ainda o mais rigoroso amor 

a luz dos ombros pura e a sombra 

duma angústia já purificada

 

 

Não tu não podias ficar presa comigo 

à roda em que apodreço 

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila 

quase medita

e avança mugindo pelo túnel 

de uma velha dor

 

 

Não podias ficar nesta cadeira 

onde passo o dia burocrático 

o dia-a-dia da miséria 

que sobe aos olhos vem às mãos 

aos sorrisos

ao amor mal soletrado 

à estupidez ao desespero sem boca 

ao medo perfilado 

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 

do modo funcionário de viver

 

 

Não podias ficar nesta casa comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido 

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa 

puríssima da madrugada 

mas da miséria de uma noite gerada 

por um dia igual

 

 

Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós 

traz docemente pela mão 

a esta pequena dor à portuguesa 

tão mansa quase vegetal

 

 

Mas tu não mereces esta cidade não mereces 

esta roda de náusea em que giramos 

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual 

esta nossa razão absurda de ser

 

 

Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas 

e o cemitério ardente 

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio 

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia 

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal

 

 

Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento 

digo-te adeus 

e como um adolescente 

tropeço de ternura 

por ti

 

 

 

 

Soneto

 

Sonetos garantidos por dois anos.

E é muito já, leitor que mos compraste

Para encontrar a alma, que trocaste

Por rádios, frigoríficos, enganos ...

 

Essa tristeza sobre pernas faz-te

Temeroso e cruel e tonto e traste.

Nem pior nem melhor que outros fulanos,

Não vês a Bomba e crês nos marcianos   ...

 

 

E é para ti que escrevo, é para ti

Que um verso lanço - O mão! - como o destino,

e nele ponho mesura, desatino,

 

 

Rasgo, invenção, lugar-comum, protesto?

Antes para soldado ou para resto,

Escroto de velho, ronco de suíno ...

 

 

Velha Fábula em Bossa Nova

 

 

Minuciosa formiga

não tem que se lhe diga:

leva a sua palhinha

asinha, asinha.

 

 

Assim devera eu ser

e não esta cigarra

que se põe a cantar

e me deita a perder.

 

 

Assim devera eu ser:

de patinhas no chão,

formiguinha ao trabalho

e ao tostão.

 

 

Assim devera eu ser

se não fora

não querer.

 

 

(-Obrigado, formiga!

Mas a palha não cabe

onde você sabe...)

 

 

 

Gaivota

 

Se uma gaivota viesse

trazer-me o céu de Lisboa

no desenho que fizesse,

nesse céu onde o olhar

é uma asa que não voa,

esmorece e cai no mar.

 

Que perfeito coração

no meu peito bateria,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde cabia

perfeito o meu coração.

 

Se um português marinheiro,

dos sete mares andarilho,

fosse quem sabe o primeiro

a contar-me o que inventasse,

se um olhar de novo brilho

no meu olhar se enlaçasse.

 

Que perfeito coração

no meu peito bateria,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde cabia

perfeito o meu coração.

 

Se ao dizer adeus à vida

as aves todas do céu,

me dessem na despedida

o teu olhar derradeiro,

esse olhar que era só teu,

amor que foste o primeiro.

 

Que perfeito coração

no meu peito morreria,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde perfeito

bateu o meu coração.

 

              

 

 

A meu favor

 

A meu favor

Tenho o verde secreto dos teus olhos

Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor

O tapete que vai partir para o infinito

Esta noite ou uma noite qualquer

 

A meu favor

As paredes que insultam devagar

Certo refúgio acima do murmúrio

Que da vida corrente teime em vir

O barco escondido pela folhagem

O jardim onde a aventura recomeça.

 

No Reino da Dinamarca

 

 

 

Portugal

 

 

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,

linda vista para o mar,

Minho verde, Algarve de cal,

jerico rapando o espinhaço da terra,

surdo e miudinho,

moinho a braços com um vento

testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,

se fosses só o sal, o sol, o sul,

o ladino pardal,

o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,

a desancada varina,

o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,

a muda queixa amendoada

duns olhos pestanítidos,

se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,

o ferrugento cão asmático das praias,

o grilo engaiolado, a grila no lábio,

o calendário na parede, o emblema na lapela,

ó Portugal, se fosses só três sílabas

de plástico, que era mais barato!

 

*

 

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,

rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,

não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,

galo que cante a cores na minha prateleira,

alvura arrendada para ó meu devaneio,

bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

 

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós...

 

 

Feira Cabisbaixa

 

 

O tempo dum corisco

 

Dos turcos desce a palavra

e aqui entreluz, naufraga.

 

A palavra a ninguém salva.

 

Melhor metê-la, sem esperança,

sem recado, na garrafa.

 

Sempre é da minha lavra.

 

 

Feira Cabisbaixa

 

 

 

 

Duas moscas ou a mesma? 

 

1

 

- Onde já vi esta mosca?

- Mas em toda a parte, filha,

desde o bolo de noivado

à minha tépida v'rilha!

 

2

 

Eis a mosca popular

aferroada aos miúdos,

avioneta escolar

para fugir aos estudos!

 

 

Feira Cabisbaixa

 

 

A saca de orelhas

 

 

Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes

 

1

Não te ataques com os atacadores dos outros.

Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.

0 mesmo deves fazer com os açaimos.

E com os botões.

 

2

Não te candidates, nem te demitas. Assiste.

Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.

Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

 

3

Tira as rodas ao peixe congelado,

mas sempre na tua mão.

 

Depois, faz um berreiro.

Quando tiveres bastante gente à tua volta,

descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

 

4

Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre

um caixote com serradura à tua espera.

Pode haver. Se houver, melhor...

 

Esta deve ser a tua filosofia.

 

5

Tudo tem os seus trâmites, meu filho!

Não faças brincos de cerejas

sem te darem, primeiro, as orelhas.

 

Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

 

6

Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que

te puseram em cima da cabeça?

Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

 

É provável que te sintas logo muito melhor.

 

Sai, então, de baixo da pedra.

 

7

Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.

Poderias atrapalhar os trabalhos.

Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

 

Mas dá sempre um "Bom dia!" ao pessoal do estaleiro.

Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.

 

8

Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre

com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo

a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.

Oxalá o consigas!

 

(...)

 

11

Resume todas estas sentenças delirantes numa única

sentença:

Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa

 

 

A Saca de Orelhas  

 

 

 

Outras páginas com poesia de Alexandre O'Neill, aqui e aqui