24-6-2013

 

 

Fr. Valentim da Luz (1524 - 1562)

 

 

Ao contrário das páginas que tenho escrito sobre a Inquisição, esta não se vai basear no processo n.º 8352, de Valentim da Luz, pela simples razão que este se encontra transcrito fielmente e na totalidade no livro “O erasmismo e a Inquisição em Portugal”, de José Sebastião da Silva Dias. Será, pois,  a esse livro que me vou referir, sobretudo à interpretação dos factos ou à falta dela. Apesar de ele seguir fielmente os passos do processo, e criticar os Inquisidores aqui e ali, acho, no entanto, que deveria ter sido muito mais severo e apontar a perversidade e a prepotência com que trataram o pobre frade.

Na realidade, o processo não tinha razão de ser: Erasmo não foi herege, Fr. Valentim também o não era e os Inquisidores arranjaram um rosário de falsas acusações para o tramarem, não se percebe com que intenção. Depois, não podiam já recuar e prosseguiram nas acusações sem fundamento até à condenação à morte. Quando o réu se capacitou disso, fez uma confissão em que se acusou do que não tinha dito nem feito, mesmo de coisas para além do que tinha sido acusado, mas disseram-lhe que o arrependimento era falso e ignoraram a confissão. Esta era o único recurso possível para ele salvar a vida, mas a cartilha dos Inquisidores é que lho não permitiu.

Claro que Fr. Valentim estava verdadeiramente arrependido do que tinha dito, não que fosse mentira, mas porque tendo-o dito, deu ocasião à Inquisição e seus esbirros, de o acusarem de heresias que ele não professava. Nesse sentido, a confissão tinha toda a razão de ser, era uma tentativa (que se gorou) de salvar a vida.

 

Fr. Valentim da Luz, cujo nome de baptismo se desconhece, nasceu em Vila Nova de Foz Coa, no ano de 1524.  Ingressou na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho e tomou o hábito no Convento da Graça de Lisboa, possivelmente aos 16 anos, como era costume nessa altura, tal como diz Silva Dias. Foi depois estudar para Coimbra, com um grupo de frades da Ordem, conduzidos pelo Padre Luis de Montoya, espanhol, encarregado de reformar a Ordem em Portugal. Diz Silva Dias que ali estudou apenas dois anos e meio, interrompendo os estudos por motivos que se desconhecem. Sendo já presbítero, iniciou a actividade de pregador em 1551.

Deveria ter caído nas graças do Padre Luis de Montoya, pois este  levou-o como adjunto e secretário na viagem que fez a Roma e Itália  em 1551, para assistir ao capítulo geral da Ordem realizado em Bolonha. A ida, estadia e regresso preencheram oito meses, que, na vida dele, se revestiram da maior importância. Tinha-se iniciado o Concílio de Trento em 1545, mas ainda não havia conclusões; mas já estava consumada a separação de Roma, de luteranos e calvinistas.  Nessa viagem, Fr. Valentim deverá ter contactado com muita gente, discutido muito sobre a prática da fé, terá mesmo lido algum livro de Erasmo (mas, no seu processo, não referiu os livros de Erasmo que tinha lido).

Note-se, porém, que acho que Silva Dias dá demasiada importância às ideias apreendidas por Fr. Valentim nesta sua viagem. É que as etapas quase constantes, no curto espaço de oito meses, não permitiam certamente um estudo aturado das questões; as suas ideias progressistas, mais que baseadas num estudo sistemático, foram-lhe sopradas por variadas pessoas que ele foi encontrando no seu  caminho, junto com Montoya, note-se.

Certamente ainda sob a protecção de Montoya,  foi ocupando cargos importantes, apesar de ser muito novo . A chegar aos 30 anos, foi Mestre de Noviços  no Convento da Graça em Lisboa e em 1558 foi por dois anos, Prior Conventual do Convento da Graça de Tavira.

Nesta altura, já andavam a tramá-lo. O chefe de fila dos seus críticos era um confrade agostiniano, Fr. Duarte, que aparece no processo apenas com este nome, e que assina Doctor Parisiensis. Tinha deixado cair o nome que usava, quando em Outubro de 1549, investigara em Paris por ordem do Cardeal D. Henrique, os doutores “luteranos” Buchanan, João da Costa e Diogo de Teive; nessa altura, assinava Fr. Duarte da Apresentação, em Latim, Eduardus Presentatus.

Lendo o processo, verifica-se que o réu era de facto um bom pedaço desbocado, pois não conseguia medir o que dizia e a quem o dizia. Não foi difícil encontrar uma viúva beata D. Maria de Menezes que morava em Tavira, mas se encontrava agora doente em Lisboa, a quem Fr. Valentim da Luz tinha dito:
- não se deve rezar aos santos, mas sim a Deus;

- que mais valia dar esmola aos pobres do que às Igrejas;

- que o Evangelho deveria ser entendido à letra.

E logo a mesma senhora indicou como testemunha a sua criada, Isabel Correia.

A estas seguiram-se inúmeras testemunhas, que foram repetindo os ditos do Padre.

A 2 de Outubro de 1560, foi chamado à Inquisição de Lisboa, onde o mandaram pôr de joelhos para ser interrogado. Disse “que ele vinha aqui como filho da obediência e com conhecimento de suas culpas, por falar e dizer algumas coisas mal ditas e delas pedir perdão e misericórdia”. Foi longo o interrogatório e prosseguiu no dia seguinte. Referiu praticamente todos os factos e ditos de que era acusado. Pois, apesar disso, disseram-lhe os Inquisidores “que, acerca das coisas que lhe haviam perguntado e por ele confessadas, que ele não satisfazia nelas a informação que contra ele havia tão inteiramente para que os que isso houvessem de determinar, ficassem satisfeitos. Que lhe encomendavam que nisso tivesse consideração e procurasse de satisfazer ao que lhe convém e é obrigado”.

Foi interrogado ainda antes de ser preso a 12 e 21 de Outubro de1560 e ainda 18 de Abril de 1561. Nesta última sessão disse “que confessa que as proposições que ele declarou nas ditas perguntas que disse são escandalosas e mal ditas e desatentadamente, e de as ter dito pede perdão e misericórdia, como já tem pedido e que cumprirá a penitência que lhe derem.” Pensava ele que o despachariam apenas com uma penitência. Afinal, tinha já confessado o que dissera às testemunhas. Enganou-se redondamente. No dia 1 de Agosto de 1561, foi preso na Inquisição de Lisboa.  

Aqui, o processo é misterioso. Não se percebe o que é que os Inquisidores queriam que o pobre frade confessasse, se ele já tinha contado dos seus ditos que não se harmonizavam com a mentalidade do clero do Reino. Aqui, Prof. Silva Dias não me parece esclarecer o caso, quando diz “De um modo ou de outro, procurava-se desencadear os mecanismos da confissão e da conversão. Destes mecanismos faziam parte não só a revelação das conexões heréticas das palavras e atitudes, mas a declaração dos locais onde os erros correram e dos aderentes ou cúmplices que tiveram” e “Inquisidores e réu não se entenderam, porém. O frade tinha boa consciência teológica e tomou as delongas inquisitoriais como sinal de lacunas insuperáveis de prova. Os seus juízes convenceram-se de que o arrastar do processo levaria o réu à fadiga e, portanto, à confissão” (pag. 29). Não posso concordar. O réu não tinha mais que confessar. A não ser… que os Inquisidores pretendessem por seu intermédio tramar mais alguém. Mas isso não se consegue inferir do processo.

Antes de ser novamente interrogado a 23 de Agosto de 1561, disseram-lhe “que soubesse que as respostas que tinha dado aos erros e coisas por que foi perguntado atrás não satisfaziam aos autos e à larga informação da justiça que contra ele havia no Santo Ofício; por isso que era necessário abrir os olhos da alma e declarar sua intenção sem pejo nem receio algum, porque com isso salvaria sua alma e seria muito consolado.” Que é que eles quereriam mais?

Uma constante do processo é que tanto os ditos das testemunhas como as confissões do réu ficam no âmbito de proposições atrevidas ou escandalosas, mas não heréticas. Porém, quando são transcritas pelo Promotor ou pelos Inquisidores ganham já nova redacção com o carácter de heresias verdadeiras e próprias. Isso acontece mesmo na transcrição feita no processo dos depoimentos das testemunhas. E é também o caso das proposições submetidas às consultas dos teólogos para as qualificarem. Típicos métodos inquisitoriais.

Outro truque inquisitorial foi o de, ao reperguntar as testemunhas, lhes ler antes o testemunho para dizerem se o confirmam. Isso era o mesmo que nada fazer, nunca se iriam desdizer.

Em 28 de Fevereiro de 1562, foi feita a publicação da prova da justiça. O réu disse que não tinha mais que dizer ou que confessar. Foi-lhe dado como Procurador o Licenciado Manuel Bacias. Este redigiu dias depois contraditas indicando inimigos do réu, mas foram rejeitadas por despacho notificado em 5 de Março: “Não recebemos as contraditas do réu Frei Valentim ex causa, vista a matéria delas com os autos e o que por eles se mostra”. Pura prepotência.

A fls. 163, está um texto do réu entregue a 6 de Março, que intitulou “Propositiones erroneae falso mihi impositae”, isto é, Proposições erróneas que me foram atribuídas falsamente.  Este documento é sintomático para revelar o que se passou no processo. O réu não se humilha, fala claro e de peito levantado, diz o que tem a dizer. A leitura de muitos processos da Inquisição diz-me que este tipo de réus era o que mais desagradava aos Inquisidores. Para terem alguma clemência para com eles, queriam os réus humilhados, compungidos, rastejando aos pés deles. Fr. Valentim não era desses. Diz ele: “Louvo a Erasmo, não estou mal com Erasmo. Se tem erros, será nos livros que eu não li nem vi, que são defesos” e “Castigam os Inquisidores aos que comem carne na Quaresma , que é contra o preceito da Igreja, e não aos sacerdotes amancebados, que é contra o preceito de Deus.

Este papel foi ao Promotor de Justiça para ver se queria responder, mas este disse: “Magnifici Domini, In claris non est opus conjecturis. O R. está convencido pelas provas da justiça e assim pelos papéis que acresceram e livros do Réu que aqui dou em prova da justiça. Pelo que não quero arrazoar. Fiat ius et iustitia et petto ipsum relaxari.” É pena não termos os “livros” manuscritos da autoria do réu que foram na altura juntos ao processo.

Outro procedimento inquisitorial à margem do Regimento era a colocação de espiões dentro do cárcere. Foram companheiros do réu, Gaspar Gonçalves, alfaiate, acusado por bigamia, de 35 anos (Pr. n.º 2942) e Rui Gomes, cristão novo, boticário, de 25 anos, acusado por judaísmo (Pr. n.º 13046).

O frade foi verdadeiramente destemperado a falar à frente deles. Depôs Rui Gomes: “E é muito solto no falar. Ouvindo tanger a campainha do cárcere esta Semana Santa, disse o dito Padre Frei Valentim: lobos caçadores, ainda esta Semana Santa, não cessais! dizendo isto pelos oficiais da Inquisição. E que dizendo-lhe ele confessante que era necessário aos homens terem conta com a língua nesta casa, principalmente porque se perguntavam os companheiros, disse o dito Padre Frei Valentim: tal sou qual sou, o que digo aqui direi no rosto; bem sei que hei-de morrer, morro mártir de Jesus Cristo; assim morreram muitos pelo verdade, e assim morreu Isaías e Jeremias; um tostão tenho para dar ao algoz como fez São Cipriano.”

A 7 de Abril de 1562, depôs Pedro Fernandes, alcaide do cárcere. Disse que na Semana Santa, à porta da cela, onde estavam o Frade e os dois referidos companheiros, disse em conversa Fr. Valentim “como Caifas era perdido a Mafamede e que estava no Inferno, e assim Anás. E ele denunciante lhe disse: também lá está Martim Lutero. E o dito Frei Valentim se riu, virando o rosto para outra parte. E ele denunciante lhe disse: não sentenciais este luterano? O dito Frei Valentim respondeu: que o visse ele declarante. E isto por muitas vezes lho disse, sem nunca o dito frade Frei Valentim o querer declarar. E dizendo-lhe ele denunciante que como sentenciava estes e não sentenciava a Martim Lutero, o dito Frei Valentim respondeu que o Evangelho declarava os outros por perdidos. E então ele declarante, de paixão que houve por lhe ouvir isto, fechou a porta e se foi (…)

Estes depoimentos do que se passou no cárcere sugerem outra faceta do frade: havia nele uma boa dose de desfasamento das realidades, o que poderia significar um certo desequilíbrio.  De facto, poderia ter mais tento, e pensar que tudo o que se passasse no cárcere iria ter ao ouvido dos Inquisidores.

A 10 de Abril de 1562, foi de novo interrogado e admoestado. Disse então que ficaria muito contente se a Inquisição acabasse já hoje e que nunca mais houvesse Inquisição, “e que antes que o prendessem já lhe não tinha amor” (à Inquisição).

A fls. 200 do processo, as proposições suspeitas que foram submetidas à apreciação dos teólogos, D. António Pinheiro, Dr. Francisco de Monzón, Dr. Diogo de Gouveia, D. Jerónimo Osório,  Dr. Álvaro da Fonseca:

 

 1-Que não havemos de rogar nada aos santos se não a Deus, porque a Cananeia alcançou por si o que não alcançou pelos Apóstolos

 2-Que o Evangelho se há-de entender ao pé da letra, sem lhe darem entendimentos

 3-Que não há-de haver mais que duas Missas, uma pro vivis, outra pro defunctis.

 4-Que em nenhuma maneira se hão-de rogar os santos, nem como dadores da mercê, nem como intercessores dela; porque, como quer que Deus nos esteja convidando com a graça, são desnecessárias orações

 5-Que não acha na Sagrada Escritura lugar que menifestamente diga que devemos obediência a homens

 6-Que mais quer uma conta de prata que uma benta de indulgências

 7-Que não é melhor obra com voto que sem ele

 8-Que onde tem o Papa o carácter, seno dedo, ou na unha, ou no cotovelo

 9-Que em nenhuma maneira se podia jurar na lei evangélica

10-Que as demandas na lei evangélica não são lícitas

11-Que o artigo do Purgatório se tirou de um corno da mitra do Papa e que não achava lugar na Sagrada Escritura que o provasse.

 

Em 15 de Abril de 1562 (fls. 216) o assento para o relaxamento do réu que, escrevem os 8 subscritores, “foi examinado particularmente sobre os ditos autos, e muito exortado que tornasse sobre si e fizesse confissão digna de reconciliação, sem mais ele querer manifestar a verdade das ditas culpas, nem declarar sua intenção, nem menos satisfazer aos autos, nem mostrar sinal algum de conhecimento e arrependimento dos ditos erros e culpas. Antes mostrou sinais de impenitente e negativo pertinaz em algumas coisas.”

Um despacho do Inquisidor-Geral de 7 de Maio de 1562 (fls. 218) autoriza que o réu seja sentenciado como herege.

Fr. Valentim da Luz acordou então. A 9 de Maio (fls. 219 v.) redigiu uma longa confissão que é um absurdo como todo este processo. Na ânsia de fugir à morte confessa-se de todos os pecados possíveis, diz que acreditou em todas as proposições luteranas, condenadas pela Igreja Católica. Até negou a confissão auricular, coisa que nenhuma testemunha nem ele tinham referido no processo.  “Soa a falso esta confissão”, escreve o Prof. Silva Dias (pag. 13). É verdade. Soa a falso porque ele não era herege; apenas dissera o que lhe parecia mal e fazia-o desafrontadamente.  Mas o mesmo autor acrescenta “Soa ao desespero de um espírito ingénuo que supõe poder convencer os julgadores sem ir até às do cabo que eles pretendem  e desse modo ficar vivo para algum dia, fora do cárcere do Santo Ofício, testemunhar a verdade das suas doutrinas e do processo em que se viu envolvido. Enganou-se porém. Os inquisidores não eram ingénuos e detectaram à simples leitura a falta de autenticidade nas confissões e retractações constantes do papel. Não lhe receberam pois a confissão e entregaram-no sem mais delongas ao suplício”.  Eu gostaria que o autor tivesse dito como é que o réu poderia ir “até às do cabo” e o que é que ele quer dizer com isso.

Se tudo na Inquisição era falso, também uma confissão deveria ser considerada, por mais falsa que parecesse.

Foi redigida a sentença (que, nesta época ainda o era), sendo-lhe feito este aditamento a final (fls. 225 v.):

O que assim julgam, sem embargo da sua confissão e reconciliação última, que fez depois de lhe ser publicado que estava relaxado e o mandavam entregar à justiça secular, a qual reconciliação não recebem por não ser de receber nem ter as partes que se requerem, antes ser ficta, simulada, e isso mesmo não satisfatória nem digna de misericórdia, vista a qualidade dela e do caso com a disposição do direito nele e o mais que dos ditos autos consta.”

A sentença foi publicada no auto da fé que se realizou na Ribeira de Lisboa, em 10 de Maio de 1562.

O traslado da sentença foi entregue ao Doutor Manuel de Almeida, Corregedor da Corte, junto com o réu. Aparentemente, nessa altura, a Relação ainda não redigia sentença autónoma para os relaxados.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

José Sebastião da Silva Dias, O Erasmismo e a Inquisição em Portugal. O Processo de Frei Valentim da Luz, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, 1975, XVIII+317 p.

 

Eduardo Javier Alonso Romo, Luis de Montoya, un reformador castellano en Portugal, Editorial Agostiniana, Guadarrama - Madrid, 2008, ISBN 978-84-9574572-9

 

António Rosa Mendes, Frei Valentim da Luz, Prior do Colégio da Graça de Tavira, queimado pela inquisição in I Jornadas de História de Tavira, org. do Clube de Tavira, 1992, pags. 96-99

 

António Rosa Mendes, O drama de Frei Valentim da Luz", in SUL (Vila Nova de Cacela), Associação Cultural Amigos de Cacela, n.º 0, 1998, pp. 23-28,

 

Fr. Luis de Montoya, Obras de los que aman a Dios - Vendese em casa de Christouão Lopez liureiro a See - Com preuilegio Real. 1565.- Foy impresso em Lixboa em casa de Ioam da Barreyra, impressor delRey nosso Senhor, aos quinze de Ianeyro de M.D.LXIIIII.

 

Vida i virtudes del Santo P. Frai Luis de Montoya, escrita por el P. M.ro Fr. Sebastián Portillo, Augustinos de Salamanca – Historia del Observantissimo Convento de S. Augustin Nuestro Padre, de dicha ciudad, Primer Tomo, por Eugenio Garcia de Honorato i San Miguel, Impressor de esta ciudad i Universidad, 1751.

 

Sentença da Inquisição de Lisboa contra Fr. Valentim da Luz, Eremita de S.to Agostinho, do Convento da Graça desta Cidade, que morreu queimado vivo por herege Luterano, no auto de fé celebrado na Ribeira em domingo, dia 10 de Maio de 1562, in Sentenças da Inquisição, de António Joaquim Moreira, Tomo I, 1.ª parte, pags. 81 a 85 (numeração do software) . Porém, a lista do auto da fé do mesmo senhor tem estas notas: "Confesso e diminuto, por herege apóstata sequaz de Lutero, Calvino e outros heresiarcas. Morreu de garrote mui catolicamente, fazendo grandes imprecações ao Rei e ao povo."

Online: http://purl.pt/15392/2/

 

 

ADENDA – 30-12-2013

Vou transcrever alguns passos do processo da Inquisição que se referem ao Padre Fr. Luis de Montoya.

 

O Prof. Silva Dias, no seu livro, refere logo a pags. 3

Obras de los que aman a Dios (um livro, se não erramos, suspeito à Inquisição).

Não analisa nem explica esta afirmação.  Porém, o choque entre Montoya e a Inquisição aparece várias vezes ao longo do processo. Diz o Padre Fr. João de Jesus, quando interrogado na Inquisição:

Pag. 83 (fls. 17 v) – Perguntado [Frei João de Jesus] por que não veio dizer estas coisas que sabia do dito Frei Valentim mais cedo a este Santo Ofício, pois sabia serem contra nossa Santa Fé Católica e proposições escandalosas e temerárias contra o que tem e cré na Santa Madre Igreja de Roma, disse que ele o não viera dizer a este Santo Ofício porque, tanto que veio de Tavira, deu conta de todas estas coisas que tem dito ao padre Frei Luis de Montoya, seu prelado, e lhe deu um assinado seu em que dizia e protestava ficar desobrigado de vir denunciar as ditas coisas a este Santo Ofício, pois lhas dizia a ele, como prelado que era, que por virtude de seus privilégios podia castigar o dito padre Frei Valentim e prover no caso como lhe parecesse serviço de Nosso Senhor. E o dito padre Montoya lhe disse que bastava dizê-lo a ele, pois por virtude dos seus privilégios podia nisso entender, e com isso ficava desobrigado de o vir dizer à Santa Inquisição, e o mesmo lhe disseram alguns padres letrados da casa, com quem o comunicou, e por esta causa o não veio dizer a este Santo Ofício, senão agora que o mandaram chamar.

Foi-lhe mandado, sob cargo do juramento que tem recebido, que tenha segredo no caso e o não diga a nenhuma pessoa, e ele assim o prometeu.

 

O Padre Fr. Luis de Montoya não queria depor no processo. Disseram-lhe, porém, que para isso teria de pedir dispensa ao Cardeal D. Henrique e ele acabou por ceder. Fê-lo, porém, com manifesta má vontade pois até não respondeu à maior parte das perguntas:

pag. 191 – (fls. 147)

Testemunho do Padre Fr. Luis de Montoya

Aos 17 de Fevereiro de1562, em Lisboa, na casa do despacho da Santa Inquisição, estando aí os Senhores Inquisidores, mandaram vir perante si ao padre Montoya, provincial da Ordem de Santo Agostinho em estes reinos. E, dando-lhe juramento dos Santos Evangelhos para dizer verdade do que sabia do contido no libelo da justiça autora, disse que era provincial da dita Ordem e superior do dito padre, e também era inquisidor e juiz dos seus frades, por privilégios que disse tem do Santo Padre, e nenhuma coisa sabia que ouvisse dizer ao dito Padre Frei Valentim, mas que algumas coisas lhe disseram dele.  E mandou sobre isso a Tavira ao padre Frei João de Jesus admoesta-lo fraternalmente, o qual trouxe recado disso que lhe parecia que ficava emendado, ao qual ele padre se remete. E depois o mandou vir a esta cidade e o repreenderam em capítulo e lhe deram a pena que lhe pareceu a ele e aos definidores da dita Ordem, conforme a sua regra. E que ele tem agora grande escrúpulo para testemunhar nisso; que lhes pede que o escusem disso por amor de Nosso Senhor. E lhe foi dito que o promotor fiscal o nomeava por testemunha para ajuda de seu libelo, que era necessário testemunhar em forma, e se não que se socorresse a Sua Alteza para o escusar disso, porque eles o não podiam fazer. E logo ele reverendo padre disse que testemunharia, pois que assim era.

E lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão e prometeu dizer verdade.

E foi perguntado por o segundo apontamento do libelo. Disse que ouviu dizer a Frei João de Jesus ou a alguma outra pessoa, não se lembra a quem, que ouvira dizer a outra pessoa que o dito padre Frei Valentim dissera o contido no dito apontamento, e porém não tão exagerado, como no dito capítulo está, senão de maneira que soem dizer os pregadores para encomendar as esmolas aos pobres.

Item, perguntado por o 3.º artigo do libelo da justiça disse que ouviu dizer o contido no dito artigo que o padre Frei Valentim o dissera, e porém que lhe não lembra a quem .

Item, perguntado por o terceiro artigo do dito libelo, e quarto e quinto artigos do dito libelo, e sexto artigos, disse nada.

Item, perguntado por o sétimo artigo do dito libelo, disse que lhe não ouviu nada, somente o ouviu dizer a Frei João de Jesus que lho ouvira.

Item, perguntado por o oitavo artigo do dito libelo, disse nada.

Item, perguntado por o nono artigo do dito libelo, disse que ele viu um livro que fez o padre Frei Valentim em linguagem, e que no proémio dele, segundo sua lembrança, quer persuadir que a Sagrada Escritura devia de andar em linguagem. E quanto ao mais contido no dito artigo acerca das obras que se hão-de fazer com voto e sem voto, disse que ele visitou a Frei Miguel de Todos os Santos, o qual é religioso da sua Ordem, e em sua visitação disse, respondendo às perguntas de sua visitação, o seguinte: é verdade que o padre Frei Valentim me disse, depois de ter feito profissão, que se ele viera aí antes de sua profissão lhe aconselhara que não fizesse profissão senão ore tanto non autem intentione et animo, porque melhor era servir a Deus de própria vontade que de obrigação. E que o dito padre Frei Miguel está de caminho para Coimbra. e al não disse do artigo.

Item, perguntado por o décimo artigo, disse nada.

Item, perguntado por o undécimo e duodécimo artigos, disse nada e que o ouviu ao dito padre Frei João que o ouvira ao réu Frei Valentim.

Item, perguntado por o quarto décimo artigo, disse nada.

Item, perguntado por os mais artigos do dito libelo, disse nada.

E que outra coisa não sabia do dito réu.

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Os artigos do libelo que são citados podem ser consultados a seguir:

 

Pag. 128 (fls. 72)

2.º Provará que o R., por palavras claras e manifestas, afirmava e persuadia que se não haviam de fazer esmolas às igrejas para ornamentos e outras necessidades que as igrejas têm, porque dizia ele R. que para que era tanta igreja e tantos ornamentos e tantos concertos, estranhando as esmolas que se fazem às igrejas, de sedas, brocados e outras coisas preciosas, e que era melhor darem-se a pobres, porque o santo santórum estava coberto de peles de cabras, e que ele R. que ia pela letra do Evangelho, dando a entender que a Igreja nisto errava e era contrária não que o Evangelho nos manda e aconselha, a qual proposição, por ser contra o comum uso e universal tradição da Santa Igreja Católica, redargue e convence o R. de herege.

3.º Provará que o R. publicamente, no púlpito, pregava, ensinava e persuadia que não havia de haver mais que duas Missas, uma pro vivis e outra pro defunctis, e que para que era tanto clérigo, e que é outrossim contra a comum observância da Igreja Católica.

4.º Provará que o R dizia que desejava de ver uma Igreja em que os sacerdotes fossem poucos e casados, e que o enfadavam tantos frades e tantas religiões, e que pouco lhe daria ver Espanha como Alemanha, o que assim o R. dizia como pessoa que desejava persuadir e imprimir os próprios desejos que em si mostrava, nas pessoas com quem assim comunicava, que é outrossim contrário ao costume e universal observância da Igreja Católica.

5.º Provará que o R. sentia mal do poder do Santo Padre, porque falando nele dizia que onde tinha o papa o carácter, se no dedo, se na unha, se no cotovelo, e que assim perguntava rindo-se e fazendo zombaria do dito carácter e do poder do papa, a qual proposição é herética e luterana.

6.º Provará que o R. sentia mal das indulgências e perdões do Santo Padre, porque, falando em contas bentas, por que se concedem certas indulgências a quem por elas reza tantas orações, ele R. dizia que antes queria uma conta de prata, que uma benta, pelo que está claro sentir mal das ditas indulgências e do poder que o Santo Padre tem por as conceder.

7.º Provará que o R. dizia e afirmava que não achava na Sagrada Escritura lugar que manifestamente dissesse que devíamos obediência a homens e, sendo-lhe alegada uma autoridade que o provava, o R. dizia que por isso arrenegava ele, porque aqueles ligares se não entendiam, e sendo-lhe replicado do entendimento da dita autoridade, o R. ficava sempre em sua opinião.

8.º Provará que o R. dizia, afirmava e persuadia que as demandas não eram lícitas na lei evangélica, e que em nenhuma maneira se havia de jurar na dita lei evangélica,  e sendo-lhe alegada uma autoridade do profeta Jeremias que diz jurabis vivit Dominus in veritate et judicio et justitia, o R. respondeu que isso permitia Deus na Lei Velha aos judeus.

9.º Provará que o R. dizia, afirmava e persuadia que a Sagrada Escritura havia de andar em linguagem, e que a Missa se havia de dizer na própria linguagem de cada um, para que todos a entendessem e assim dizia ele R. que a obra com voto não era melhor que sem ele, e que nisto não errara Erasmo, nem lhe achava nenhum error, e que era outro Santo Agostinho, a qual proposição é outrossim contra a comum observância da Igreja Católica.

10.º Provará que o R. dizia, afirmava e persuadia que a Paixão de Cristo se não havia de chorar, que é outrossim contra a comum observância e tradição da Igreja Católica.

11.º Provará que sendo o R. perguntado se uma pessoa se podia vingar por justiça de quem lhe tivesse ofendido, ele respondeu que pois o Evangelho dizia que, dando-se uma bofetada em uma queixada se havia de aparar a outra, que assim se havia de entender; porque o Evangelho se havia de entender ao pé da letra, sem lhe darem entendimentos, e que os letrados o danaram e que ele não havia de deixar de pregar a verdade; e que os teólogos escolásticos eram rãs do Egipto e que nos tiraram a fé, esperança e caridade e que era profecia de Jerónimo Savonarola, profeta de Deus, que se havia de acabar a teologia, como a sofistaria.

12.º Provará que o R. sentia mal do Purgatório, e dizia que se tirara de um corno da mitra do papa, e que ele R. não achava autoridade em toda a Sagrada Escritura que lhe provasse o Purgatório, a qual proposição é herética e luterana.

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14.º Provará que o R. sentia mal das imagens dos santos que se pintam nas igrejas e dizia que ele fizera tirar uma imagem de Nossa Senhora de um certo lugar da Igreja, e que onde estava Deus que para que era rogar aos santos, e que se nós tivéssemos verdadeiro lume e conhecimento de Deus que nós nos iríamos encomendar a Ele e não às imagens do altar, a qual proposição é herética e luterana e damnada pela Santa Madre Igreja.

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Por outro lado alguns passos do processo revelam de certo modo alguma falta de consideração de Fr. Valentim da Luz pelo seu superior, como, por exemplo:

pag. 236 (fls. 191)

E que ontem deu o alcaide do cárcere uma carta ao dito Frei Valentim, dizendo-lhe que era de Montoya, que a lesse e que lhe amolentaria o coração. O dito Frei Valentim respondeu, tomando a carta: muito me amolenta assim agora isso! E, indo-se o alcaide e fechando a porta, ficou o dito Frei Valentim rindo, dizendo a ele [Gaspar Gonçalves, companheiro de cela] testemunha: venha cá o alcaide apalpar e, apalpando-se uma mão com a outra dizendo: apalpai, alcaide que já estou mais mole! Dizendo mais que viesse o padre Montoya a dar-lhe a disciplina, como dizia na carta, que cumpriria o que São Paulo dizia, dizendo isto por via de zombaria e rindo-se.

O mistério do processo do Padre Fr. Valentim da Luz poderia assim ter uma solução que resolve tudo: os Inquisidores quereriam que ele contasse a sua ida a Roma com o Superior Geral ao Capitulo Geral realizado em Bolonha em 1551, de modo a verem as probabilidades de por qualquer modo o tramarem. Assim se compreenderia a insistência dos Inquisidores com o réu dizendo-lhe que era “necessário abrir os olhos da alma”.

 

ADENDA – 11-6-2014

Num texto do Prof. Giuseppe Marcocci, encontrei uma referência a uma freira de nome Inês Veiga, que ele diz ter tirado do Prof. Paulo César Drumond Braga. Seria ela uma discípula de Fr. Valentim da Luz e como tal foi condenada pela Inquisição. Convém pôr os pontos nos ii. O nome correcto é Inês Viegas  e figura ela no processo n.º 3137, da Inquisição de Lisboa. Foi presa em 25 de Junho de 1567 e abjurou de facto no auto da fé de 14 de Novembro de 1568.  Note-se que o texto do Prof. Drumond Braga está correcto, o Prof. Marcocci é que deverá ter citado de cor.

As acusações são ridículas. A freira teria sido muito amiga de Fr. Valentim da Luz e este ter-lhe-ia dado alguns livros e cadernos escritos à mão, dizendo-lhe que os queimasse se lhe acontecesse algum mal. Ela disse isso mesmo a algumas “amigas” e estas foram dizer à Inquisição que ela os tinha de facto queimado. No processo dela, Fr. Valentim é indicado como herege, quando o processo dele não prova que o seja. Estou plenamente convencido que a prisão de  Fr. Valentim se destinava basicamente a tramar Fr. Luis de Montoya.

Para salvar a vida, Soror Inês Viegas teve de confessar e disse que Fr. Valentim lhe dizia que de nada serve orar aos Santos porque eles não têm poderes. E que seria uma boa coisa ter a Bíblia em linguagem, e não apenas em Latim. Esta afirmação era considerada uma heresia pela Inquisição Portuguesa.  Mas é preciso notar que, na Inquisição, os réus tinham de confessar não o que tinha acontecido ou aquilo que pensavam, mas sim aquilo que os Inquisidores queriam que confessasse. Só assim conseguiam salvar a vida. Foi o que fez a freira Inês Viegas.