20-10-2005

 

Poemas ultra-românticos

ou

"de fazer chorar as pedras da calçada"

 

A Lua de Londres

Balada de Neve

O noivado do sepulcro

A Judia

Pobre Tísica

Fiel

O menino da sua mãe

Calçada de Carriche

 

João de Lemos

Augusto Gil

Soares de Passos

Tomás Ribeiro

António Nobre

Guerra Junqueiro

Fernando Pessoa

António Gedeão

 

 

 

 

A LUA DE LONDRES


É noite. O astro saudoso

rompe a custo um plúmbeo céu,

tolda-lhe o rosto formoso

alvacento, húmido véu,

traz perdida a cor de prata,

nas águas não se retrata,

não beija no campo a flor,

não traz cortejo de estrelas,

não fala de amor às belas,

não fala aos homens de amor.


Meiga Lua! Os teus segredos

onde os deixaste ficar?

Deixaste-os nos arvoredos

das praias de além do mar?

Foi na terra tua amada,

nessa terra tão banhada

por teu límpido clarão?

Foi na terra dos verdores,

na pátria dos meus amores,

pátria do meu coração!


Oh! que foi!... Deixaste o brilho

nos montes de Portugal,

lá onde nasce o tomilho,

onde há fontes de cristal;

lá onde viceja a rosa,

onde a leve mariposa

se espaneja à luz do Sol;

lá onde Deus concedera

que em noite de Primavera

se escutasse o rouxinol.


Tu vens, ó Lua, tu deixas

talvez há pouco o país

onde do bosque as madeixas

já têm um flóreo matiz;

amaste do ar a doçura,

do azul e formosura,

das águas o suspirar.

Como hás-de agora entre gelos

dardejar teus raios belos,

fumo e névoa aqui amar?


Quem viu as margens do Lima,

do Mondego os salgueirais;

quem andou por Tejo acima,

por cima dos seus cristais;

quem foi ao meu pátrio Douro

sobre fina areia de ouro

raios de prata esparzir

não pode amar outra terra

nem sob o céu de Inglaterra

doces sorrisos sorrir.


Das cidades a princesa

tens aqui; mas Deus igual

não quis dar-lhe essa lindeza

do teu e meu Portugal.

Aqui, a indústria e as artes;

além, de todas as partes,

a natureza sem véu;

aqui, ouro e pedrarias,

ruas mil, mil arcarias;

além, a terra e o céu!


Vastas serras de tijolo,

estátuas, praças sem fim

retalham, cobrem o solo,

mas não me encantam a mim.

Na minha pátria, uma aldeia,

por noites de lua cheia,

é tão bela e tão feliz!...

Amo as casinhas da serra

coa Lua da minha terra,

nas terras do meu país.


Eu e tu, casta deidade,

padecemos igual dor;

temos a mesma saudade,

sentimos o mesmo amor.

Em Portugal, o teu rosto

de riso e luz é composto;

aqui, triste e sem clarão.

Eu, lá, sinto-me contente;

aqui, lembrança pungente

faz-me negro o coração.


Eia, pois, ó astro amigo,

voltemos aos puros céus.

Leva-me, ó Lua, contigo,

preso num raio dos teus.

Voltemos ambos, voltemos,

que nem eu nem tu podemos

aqui ser quais Deus nos fez;

terás brilho, eu terei vida,

eu já livre e tu despida

das nuvens do céu inglês.


JOÃO DE LEMOS

   (1819 - 1890)

 

 

 

A VICENTE ARNOSO

 

Il pleure dans mon coeur

Comme il pleut sur la ville.

VERLAINE.

 

BALADA DA NEVE

 

Batem leve, levemente,

Como quem chama por mim...

Será chuva? Será gente?

Gente não é certamente

E a chuva não bate assim...

 

É talvez a ventania

Mas há pouco, há poucochinho,

Nem uma agulha bulia

Na quieta melancolia

Dos pinheiros do caminho...

 

Quem bate assim levemente,

Com tão estranha leveza

Que mal se ouve, mal se sente?

Não é chuva, nem é gente,

Nem é vento, com certeza.

 

Fui ver. A neve caía

Do azul cinzento do céu,

Branca e leve, branca e fria...

– Há quanto tempo a não via!

E que saudade, Deus meu!

 

Olho-a através da vidraça.

Pôs tudo da cor do linho.

Passa gente e, quando passa,

Os passos imprime e traça

Na brancura do caminho...

 

Fico olhando esses sinais

Da pobre gente que avança

E noto, por entre os mais,

Os traços miniaturais

Duns pezitos de criança..

 

E descalcinhos, doridos...

A neve deixa inda vê-los

Primeiro bem definidos,

– Depois em sulcos compridos,

Porque não podia erguê-los!...

 

Que quem já é pecador

Sofra tormentos, enfim!

Mas as crianças, Senhor,

Porque lhes dais tanta dor?!...

Porque padecem assim?!...

 

E uma infinita tristeza,

Uma funda turbação

Entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na natureza..

– E cai no meu coração.

 

 AUGUSTO GIL (Luar de Janeiro)

 (1873 - 1929)
 

 
 

A Judia

 

Recitada

pela actriz Emília Adelaide Pimentel no teatro de D. Maria II

na noite de seu benefício

  

 

Corria a branda noite; o Tejo era sereno;

a riba, silenciosa; a viração subtil;

a lua, em pleno azul erguia o rosto ameno

no céu, inteira paz; na terra, pleno Abril.

 

 

Tardo rumor longínquo; airoso barco ao largo

bordava áureo listão do Tejo ao manto azul;

cedia a natureza ao celestial letargo;

traziam meigos sons as virações do sul.

 

 

Ó noites de Lisboa! Ó noites de poesia!
auras cheias de aromas! esplêndido luar!
vastos jardins em flor! Suavíssima harmonia!
transparente, profundo, infindo, o céu e o mar...

 

Se a triste da judia ousasse ter desejo
de pátria sobre a terra, aqui prendera o seu
um bosque sobre a praia, um barco sobre o Tejo,
o eleito da minh’alma um coração só meu!...

 

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Corria branda a noite; imersa em funda mágoa

fui assentar-me triste e só no meu jardim:

ouvi um canto ameno! e um barco ao lume d’água

vogava brandamente. A voz dizia assim:

 

 

“Dormes? e eu velo, sedutora imagem,
grata miragem que no ermo vi:
dorme  - Impossível -  que encontrei na vida!
dorme, querida, que eu descanto aqui!

 

 

Dorme! eu descarto a acalentar-te os sonhos,

virgens, risonhos, que te vêm dos céus:

dorme, e não vejas o martírio, as mágoas

que eu digo às águas e não conto a Deus!

 

 

Anjo sem pátria, branca fada errante,

perto ou distante que de mim tu vás,

há-de seguir-te uma saudade infinda,

hebreia linda, que dormindo estás.

 

 

Onde nasceste? onde brincaste, ó bela;
rosa singela que não tens jardim?
Em Jafa? em Malta? em Nazareth? no Egito?...

mundo infinito, e tu sem berço?! oh! sim,
 

 

folha que o vento da fortuna impele,
vitima imbele que um tufão roubou!

flor que num vaso se alimenta, cresce,

ri, desaparece, e nunca mais voltou!

 

 

Filha dum povo perseguido e nobre,

que ao mundo encobre o seu martírio, e crê:

sempre Ashevero a percorrer a esfera!

desgraça austera! inabalável fé!

 

 

porque há-de o lume de teus olhos belos,

mostrar-me anelos d’infinito ardor?

porque esta chama a consumir-me o seio?

Deus de permeio nos maldiz o amor!..

 

 

Peito! meu peito, porque anseias tanto?

pranto! meu pranto, basta já, não mais!

é sina, é sina! remador voltemos;
não n’a acordemos... para quê, meus ais?...

 

 

Dorme, que eu velo, sedutora imagem,
grata  miragem que no ermo vi:
dorme -  Impossível -  que encontrei na vida!
dorme, querida,  que eu não volto aqui!” -

 

 

Sumiu-se a barca e eu chorava

debruçada sobre o Tejo:

a aragem trouxe-me um beijo

que nos meus lábios tomei…

ergui-me cheia d’afecto;

vi cintilar ainda a esteira

da barquinha feiticeira,

e disse às auras: “Correi!

trazei-mo! quero contar lhe

o fundo tormento enorme

da judia que não dorme

a penar d’ignoto amor!

Voai! trazei-me o seu nome,

o seu retrato, o seu canto,

uma baga do seu pranto

que venha o meu trovador!…

 

 

Ai, não! que há na minha história

que lhe suavize a tristeza?

Nasci na triste Veneza,

onde perdi minha mãe;

acalentaram-me lágrimas

que derramava a saudade,

na desgraçada cidade

que não tem pátria também

Cresci; meu pai uma noite

Disse-me: “É já tempo agora;

 

 

ergue-te ao romper da aurora

vamos partir amanhã;

vamos ver as terras santas,

sepulcros de teus monarcas;

a pátria dos patriarcas,

desde o Egipto ao Chanaan,,

Fui; corri o mapa imenso

das montanhas da Judeia;

ai pátria da raça hebreia!

ai, desditosa Sião!

que extensos montes sem relva!

que paragens sem conforto,

onde se estende o Mar-Morto

e onde serpeia o Jordão!…

 

 

Aqui, de Hemor os vestígios;

de Sife, além o deserto,

longe, o Sinai encoberto;

d’Horeb o morro, ainda além;

deste lado, o Mar Vermelho;

daquele... nada! uns destroços:

ruínas, campas sem ossos,

e, ao fundo, Jerusalém.

 

 

Meu pai chorava, e eu chorava,

vendo morta e sem prestígio,

terra de tanto prodígio,

maldita agora de Deus.

Tudo silencioso, estéril

tudo vastos cemitérios

onde ruínas d’impérios

ficaram por mausoléus!

 

 

- “Meu pai - disse eu - tenho sede…

-“Vê , filha, a aridez do monte:

só Deus dava ao ermo a fonte

em que bebia Ismael.”

 “Pai, cansei; mostra-me a pátria

quero dormir sem receio…,

“Filha, encosta-te ao meu seio,

que não tem pátria Israel….

 

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Em rodo o mundo estrangeiro,

toda a vida peregrina!

Vede se há mais triste sina:

Ser rica e não ter um lar!

Sempre a lenda do Ashevero!

sempre o decreto divino!

sempre a expulsar-me o destino,

como Abraão à pobre Agar!

 

 

Que pode valer à hebreia

sentir n’alma chama infinda,

como a linda Ester ser linda

e amada como Raquel?

Se o coração da judia

se entreabre do amor aos lumes

não lhe dá tempo aos perfumes

o seu destino cruel.

 

 

Ai, trovador nazareno,

não voltes! tenho receio.

Dizes que é Deus de permeio?

não, blasfemaste: Deus, não.

Pôs o mundo esse impossível

entre o desejo e a ventura;

o amor chama-lhe loucura,

e o preconceito razão

 

 

Deus é Deus, e um só existe;

cego é o mundo, e vária a crença;

mas esta cúpula imensa

é tecto de todos nós:

este ambiente que respiro,

da lua e do sol os brilhos,

hão-de ser de nossos filhos,

foram de nossos avos.

 

  

Mas se a crença nos separa

e o mundo exige o suplício,

dê-se o amor em sacrifício,

deixando se o pranto à dor;

eu, cerro o peito à ventura;

tu, esmaga o teu desejo;

não mais virei junto ao Tejo...

não voltes mais, trovador!

 

                                              Lisboa, Abril de 1864

 

TOMÁS RIBEIRO

(1831 - 1901)

 

 

Pobre tísica

Quando ela passa à minha porta,
Magra, lívida, quase morta,
E vai até à beira-mar,
Lábios brancos, olhos pisados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração põe-se a chorar.

Perpassa leve como a folha,
E, suspirando, às vezes olha
Para as gaivotas, para o Ar:
E, assim, as suas pupilas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as asas para voar!

Veste um hábito cor de leite,
Saiinha lisa, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
«Noiva feliz, que vais casar...»

Triste, acompanha-a um "Terra Nova"
Que, dentro em pouco, à fria cova
A irá de vez acompanhar...
O chão desnuda com cautela,
Que "Boy" conhece o estado dela:
Quando ela tosse, põe-se a uivar!

E, assim, sozinha com a aia,
Ao Sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bebés, que é o seu lugar.
E o Oceano, trémulo avozinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vai ter com ela a conversar.

Falam de sonhos, de anjos, e ele
Fala d'amor, fala daquele
Que tanto e tanto a faz penar...
E o coração parte-se todo,
Quando a sorrir, com tão bom modo,
O Mar lhe diz: «Há-de sarar...»

Sarar? Misérrima esperança!
Padres! ungi essa criança,
Podeis sua alma encomendar:
Corpinho d'anjo, casto e inerme,
Vai ser amada pelo verme,
Os bichos vão-na desfrutar.

Sarar? Da cor dos alvos linhos,
Parecem fusos seus dedinhos,
Seu corpo é roca de fiar...
E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,
Eu julgo ouvir numa oficina
Tábuas do seu caixão pregar!

Sarar? Magrita como o junco,
O seu nariz (que é grego e adunco)
Começa aos poucos de afilar,
Seus olhos lançam ígneas chamas:
Ó pobre mãe, que tanto a amas,
Cautela! O Outono está a chegar...
 

António Nobre,

      (1867 - 1900)

FIEL

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,

        Havia o que quer que fosse

        D’um íntimo desgosto:

Era um cão ordinário, um pobre cão vadio

Que não tinha coleira e não pagava imposto.

Acostumado ao vento e acostumado ao frio,

Percorria de noite os bairros da miséria

        Á busca dum jantar. 

E ao ver surgir da lua a palidez etérea,

O velho cão uivava uma canção funérea,

Triste como a tristeza ossiânica do mar.

Quando a chuva era grande e o frio inclemente,

Ele ia-se abrigar às vezes nos portais;

E mandando-o partir, partia humildemente,

Com a resignação nos olhos virginais.

Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas; 

Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada:

E, como não mordia as tímidas crianças,

As crianças então corriam-no a pedrada.

 

Uma vez casualmente, um mísero pintor

        Um boémio, um sonhador,

Encontrara na rua o solitário cão;

O artista era uma alma heróica e desgraçada,

Vivendo num escura e pobre água furtada,

Onde sobrava o génio e onde faltava o pão.

Era desses que tem o rubro amor da glória, 

        O grande amor fatal,

Que umas vezes conduz às pompas da vitória,

E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

 

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,

Disse-lhe: - “O teu destino é quase igual ao meu:

Eu sou como tu és, um proletário roto,

Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo;

E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,

Eu não irei achar o meu primeiro amigo!...”

 

No céu azul brilhava a lua etérea e calma;

E do rafeiro vil no misterioso olhar

Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,

Que está encarcerada, e sem poder falar.

O artista soube ler naquele olhar em brasa

A eloquente mudez dum grande coração;

E disse-lhe: - “Fiel, partamos para casa:

Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. –“

 

E viveram depois assim por longos anos,

Companheiros leais, heróicos puritanos,

Dividindo igualmente as privações e as dores.

Quando o artista infeliz, exausto e miserável,

Sentia esmorecer o génio inquebrantável

            Dos fortes lutadores;

Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança

Partir com uma bala a derradeira esp’rança,

Por um ponto final no seu destino atroz;

Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,

Murmura-lhe: - Eu sofro, e a gente sofre menos,

Quando se vê sofrer também alguém por nós. –

 

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,

Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente:

“Um génio como tu, vivendo como um pária,

Agrilhoado da fome à lúgubre corrente!

Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,

Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar;

Mas moravas tão alto! E digo-o com franqueza

Custava-me subir até ao sexto andar.

Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés!...”

E foi; e ao outro dia as bocas das Frinés

Abriram para ele um riso encantador;

A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida

Como bela alvorada esplêndida, nascida

A toques de clarim e a rufos de tambor!

 

            Era feliz. O cão

Dormia na alcatifa à borda do seu leito,

E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,

Ganindo com um ar alegre e satisfeito.

Mas aí! O dono ingrato, o ingrato companheiro,

Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,

Já pouco tolerava as festivas carícias

            Do seu leal rafeiro.

 

Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado,

        Já velho e no abandono,

Muitas vezes se viu batido e castigado

Pela simples razão de acompanhar seu dono.

Como andava nojento e lhe caíra o pelo,

Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,

E mandava fechar-lhe a porta do salão.

Meteram-no depois num frio quarto escuro,

E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,

Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.

 

E ele era como um roto, ignóbil assassino,

Condenado à enxovia, aos ferros, às galés:

Se se punha a ganir, chorando o seu destino,

Os exibia ao sol as podridões obscenas,

Poisava-lhe no dorso o causticante enxame

criados brutais davam-lhe pontapés.

Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.

Quando exibia ao sol as podridões obscenas,

Poisava-lhe no dorso o causticante enxame

            Das moscas das gangrenas.

 

Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,

Disse ”Não morrerei ainda sem o ver;

A seus pés quero dar meu último gemido...”

Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.

E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,

            E bradou com violência:

“Ainda por aqui o sórdido animal!

É preciso acabar com tanta impertinência,

Que esta besta está podre, e vai cheirando mal!”

E, pousando-lhe a mão cariciosamente,

Disse-lhe com um ar de muito bom amigo:

“Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,

Ainda que te custe anda daí comigo.”

 

E partiram os dois. Tudo estava deserto.

A noite era sombria; o cais ficava perto;

E o velho condenado, o pobre lazarento,

            Cheio de imensas mágoas

Sentiu junto de si um pressentimento

O fundo soluçar monótono das águas.

 

Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira

            Da corrente. E o pintor,

Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,

Friamente cantando uma canção d’amor.

 

E o rafeiro sublime, impassível, sereno,

Lançava o grande olhar às negras trevas mudas

Com aquela amargura ideal do Nazareno

Recebendo na face o ósculo de Judas.

Dizia para si: “È o mesmo, pouco importa.

Cumprir o seu desejo é esse o meu dever:

Foi ele que me abriu um dia a sua porta:

Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer.”

 

            Depois, subitamente

O artista arremessou o cão na água fria.

E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente

            O gorro que trazia

Era uma saudosa, adorada lembrança

            Outrora concedida

Pela mais caprichosa e mais gentil criança,

Que amara, como se ama uma só vez na vida.

 

E ao recolher à casa ele exclamava irado:

“E por causa do cão perdi o meu tesouro!

Andava bem melhor se o tenho envenenado!

Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,

Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,

Para tornar a ver o precioso objecto,

Doce recordação daquele amor tão puro.”

E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.

            Não podia dormir.

Até nascer da manhã o vivido clarão,

Sentiu bater à porta! Ergueu-se e foi abrir.

Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão,

Que voltava arquejante, exânime, encharcado,

A tremer e a uivar no último estertor,

 

Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,

            O gorro do pintor!

 

 

GUERRA JUNQUEIRO (1850 - 1923)

A Musa em Férias (Idílios e Sátiras)

 

O Menino da sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mão. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece")
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

1926

Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.

 (1888 - 1935)

Calçada de Carriche

Luísa sobe,

sobe a calçada,

sobe e não pode

que vai cansada.

Sobe, Luísa,

Luísa, sobe,

sobe que sobe

sobe a calçada..

 

Saiu de casa

de madrugada;

regressa a casa

é já noite fechada.

Na mão grosseira,

de pele queimada,

leva a lancheira

desengonçada.

Anda, Luísa,

Luísa, sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

 

Luísa é nova,

desenxovalhada,

tem perna gorda,

bem torneada.

Ferve-lhe o sangue

de afogueada;

saltam-lhe os peitos

na caminhada.

Anda, Luísa.

Luísa, sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

 

Passam magalas,

rapaziada,

palpam-lhe as coxas

não dá por nada.

Anda, Luísa,

Luísa, sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

 

Chegou a casa

não disse nada.

Pegou na filha,

deu-lhe a mamada;

bebeu a sopa

numa golada;

lavou a loiça,

varreu a escada;

deu jeito à casa

desarranjada;

coseu a roupa

já remendada;

despiu-se à pressa,

desinteressada;

caiu na cama

de uma assentada;

chegou o homem,

viu-a deitada;

serviu-se dela,

não deu por nada.

Anda, Luísa.

Luísa, sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

 

Na manhã débil,

sem alvorada,

salta da cama,

desembestada;

puxa da filha,

dá-lhe a mamada;

veste-se à pressa,

desengonçada;

anda, ciranda,

desaustinada;

range o soalho

a cada passada,

salta para a rua,

corre açodada,

galga o passeio,

desce o passeio,

desce a calçada,

chega à oficina

à hora marcada,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga;

toca a sineta

na hora aprazada,

corre à cantina,

volta à toada,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga.

Regressa a casa

é já noite fechada.

Luísa arqueja

pela calçada.

Anda, Luísa,

Luísa, sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada,

sobe que sobe,

sobe a calçada,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

Anda, Luísa,

Luísa, sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

 

ANTÓNIO GEDEÃO (*) (1906 - 1997)

Poesias Completas (1956-1967)

 

(*) Pseudónimo do Professor do liceu Rómulo de Carvalho (1906 – 1997)

Continua aqui