20-9-2008

 

 

O Marquês de Pombal e os Cristãos Novos

 

 

O Marquês de Pombal foi dos poucos políticos que conseguiu dominar a máquina da Inquisição. Logo no início da sua campanha contra os jesuítas imolou no auto-da-fé de 21 de Setembro de 1761, o pobre P.e Gabriel Malagrida, já de 72 anos de idade, por ele ter tido o atrevimento de pregar que o terramoto tinha sido um castigo de Deus.

Transformada a Inquisição em instrumento politico, pouco lhe interessava já a absurda distinção entre Cristãos Velhos e Cristãos Novos, que as gentes cultivadas lhe pediam para eliminar.  Foi então promulgada a Lei de 25 de Maio de 1773, que acabava com essa distinção, pondo todos em pé de igualdade, independentemente dos seus antepassados. Exceptuavam-se os descendentes de quem tinha sido condenado pela Inquisição. Iam-se buscar duas Leis do tempo de D. Manuel I e de D. João III que afirmavam tal igualdade, que tinha sido afastada por D. Sebastião.

Depois disto, no ano seguinte, foi ainda ampliada a lei emancipadora, com a abolição da infâmia, até aí atribuída aos que prevaricavam na fé. Pela nova disposição, os apóstatas que, confessando o delito, eram reconciliados no Santo Ofício, não ficavam com mácula nem inábeis para as dignidades e ofícios, e muito menos seus descendentes. A infâmia abrangia somente os condenados à morte, impenitentes, sobre os quais, unicamente, recaía a pena de confiscação, preceitos um e outro estatuído na lei civil.” (*)

Pela primeira vez, viu-se o Rei dar o hábito de Cristo a quem já tinha trazido o sambenito, o traje dos judaizantes confessos: António Soares de Mendonça que fora ao auto-da-fé de 16 de Outubro de 1746 (Processo n.º 7991, da Inq. de Lisboa), foi agraciado com o nome de António Soares de Mendonça Brandão, em 8 de Maio de 1775.

Foi depois publicado o último Regimento da Inquisição que vigorou até à sua extinção em 1821, e que pode ser consultado online aqui.

A Lei de 25 de Maio de 1773 teve um enorme impacto no País, como se pode ver pela admiração que demonstra o texto de Simão da Luz Soriano a seguir transcrito. A “má língua” da época disse logo que os cristãos novos tinham comprado a Lei por 500 000 cruzados, como é referido num soneto de António Lobo de Carvalho:

 

Soneto à lei de 25 de Maio de 1773, que aboliu a distinção de cristãos velhos e cristãos novos, pela qual se disse terem dado os Judeus 500 mil cruzados.

 

Quem diz mal dos Judeus nega a Escritura

E não sabe o que leu, co’a lei alego,

Pois não distingue Deus judeu nem grego

Para lhes dar no céu alta ventura.

 

Se a Igreja, que é do céu clara figura,

Lhes não denega todo o honesto emprego,

Como intenta de alguns o furor cego

Avivar-lhe outra vez a mancha impura?

 

Se eles, por lei de Deus, são atendidos,

E pela lei real habilitados,

Sem dúvida que estão bem admitidos.

 

Ninguém se lembre já dos seus pecados,

Que eles estão de todos arrependidos,

Mas é de dar quinhentos mil cruzados!

 

(*) J. Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Clássica, Lisboa, 1975, pag. 352

 

 

Pags. 27 a 36 de

Simão José da Luz Soriano, Historia de reinado de el-rei D. José e da administração do marquez de Pombal: precedida de uma breve notícia dos antecedentes reinados, a começar no de el-rei D. João IV, em 1640, 2 vols.

Publicado por Typographia Universal de T. Quintino Antunes, 1867

 

 

A inquisição, que no século dezassete tão pavorosamente usara da sua omnipotência na península, chamara contra si a animadversão geral de todos os que não eram dominados pelo mais exaltado fanatismo e intolerância religiosa. Durante a dominação dos três Filipes entre nós tinha este tribunal obtido o mais amplo favor das leis, aumentando-lhe a sua jurisdição. Diferentes bens e dotações lhe haviam sido concedidas, mandando-se respeitar e dar á execução com toda a pontualidade as penas que ele impusesse. E porque el-rei D. João IV se lembrou de iludir a confiscação, outorgando os bens confiscados ás famílias dos que pela inquisição fossem penitenciados, o seu cadáver teve de passar pelo desacato de uma solene absolvição para obter sepultura eclesiástica. Tão frequentes foram os autos da fé, que até ao ano de 1732 apareceram nos cadafalsos em hábitos de infâmia 23:068 réus, sendo condenados ao fogo 1:454.

A este colossal e arbitrário poder da inquisição resolveu o marquês de Pombal pôr cobro, e posto que lhe conservasse o conhecimento das causas sobre a fé e a religião, vedou-lhe todavia não somente os autos da fé, mas igualmente a impressão das listas penitenciárias, determinando mais que no futuro nenhuma execução por ela ordenada pudesse ter lugar sem prévio conhecimento de el-rei e da sua aprovação. Por este modo todas as sentenças da inquisição deviam ser primeiramente submetidas ao conselho de estado, e nele decidida a sua confirmação, ou anulação. Assim se restringiu a autoridade da mesma inquisição aos seus justos limites, sendo por fim elevada ao carácter de tribunal régio, por alvará de 30 de Maio de 1769, com que de algum modo se lhe tirou o seu antigo carácter eclesiástico, e a influência pontifícia, particularmente depois do regulamento, que se lhe deu por alvará de 1 de Setembro de 1774. Verdade é que ainda lhe ficou privativo o conhecimento das causas sobre a fé e a religião, como já notámos, mas pelo novo regulamento caducaram as fórmulas odiosas dos antigos processos 1. Constituída desde então como instrumento politico nas mãos do marquês de Pombal, ele a empregou para mais firmar o absolutismo da sua omnipotência, e perseguir, com o pretexto de Jacobéus e Sigilistas, aqueles que reprovavam a sua politica 2 . Cem anos depois da morte de D. João IV o prestígio do clero e o poder do papa tinham já decaído por maneira tal, ou o marquês de Pombal tinha feito respeitar por tal modo o poder temporal sobre o espiritual, que não só pode reformar a inquisição, como já dissemos, sujeitando as suas sentenças á intervenção do rei, mas até determinar que a privação dos bens dos condenados se não levasse a efeito sem um processo feito primeiramente diante do conselho, e uma ordem assinada pelo monarca, e tudo isto sem que o papa, nem o clero fizessem reclamação alguma. Semelhantes modificações foram outros tantos actos de alivio para as perseguições e vexames com que até ali eram oprimidos os chamados cristãos-novos; e para que de todo desaparecessem os registos dos que sobre si tinham o anátema desta denominação infame, ordenou, por alvará de 2 de Maio de 1768, que ficassem cassados e anulados, como se nunca houvessem existido, os róis de fintas, que pagavam os mesmos cristãos-novos, bem como os seus traslados e copias, proibindo com severas penas o uso e retenção de semelhantes róis, ou cópias, por ser constante que nos séculos passados as famílias de origem rabínica eram obrigadas a pagar certas fintas ás câmaras municipais das terras onde residiam. A estas medidas, por assim dizer preparatórias do acabamento da odiosa distinção entre cristãos-velhos e novos, distinção que tão divididas trazia estas duas classes, e tão radicada estava em Portugal, seguiu-se a publicação da carta de lei, essencialmente libérrima, datada de 25 de Maio de 1773, pela qual se deu por extinta a sobredita distinção, habilitando a todos quantos mostrassem por si, seus pais e primeiros avós, não haverem sido penitenciados pela lei de Moisés, para os empregos públicos, honras, e dignidades civis, bem como para o ingresso nas ordens militares, incluindo o próprio estado eclesiástico e religioso, quando por suas qualidades pessoais se tornassem beneméritos e dignos disso. E porque as disposições da citada carta de lei ainda não eram profícuas aos filhos e netos dos que haviam sido penitenciados, outra veio ainda mais ampla e liberal, na data de 15 de Dezembro de 1774, pela qual, desterrando os abusos de que algumas pessoas se mostravam ainda dominadas, entendendo incursos nas penas de infâmia e confiscação de seus bens os verdadeiros confitentes, reconciliados com a Igreja, e por ela recebidos no seu legitimo grémio, se declarou e ordenou que as referidas penas só tivessem lugar contra os réus impenitentes, e que fossem condenados à morte e ao fogo, na forma da ordenação do livro 5.º titulo 1.°, e do § 3.° da carta de lei acima referida, ficando portanto habilitados para os fins nela mencionados, não só os filhos e netos dos penitenciados, mas até os próprios delinquentes, ou confitentes, nas circunstâncias acima referidas de se mostrarem reconciliados com a Igreja, e de terem satisfeito a pena temporal, que lhes fora imposta. Eis aqui pois estabelecidos debaixo de certo ponto de vista pelo marquês de Pombal mais dois dogmas do sistema liberal : 1 .° que todo o cidadão de qualquer classe, origem, ou hierarquia pode aspirar aos empregos públicos, tendo mérito para os desempenhar; 2.° que os crimes e penas infamantes de um réu não passam além da sua pessoa. Pena foi que, tendo-se esta doutrina aplicado aos crimes contra a fé e a religião, se não aplicassem também aos crimes civis e políticos, como hoje sucede no regime liberal.

Portentosa foi a transformação, resultante da observância das duas citadas cartas de lei: por causa delas se alteraram logo os interrogatórios para as habilitações do sacerdócio, das ordens militares, e para todas as mais provanças da pureza do sangue. Seguiu-se a isto verem-se também desde logo nas classes de familiares do santo oficio, de clérigos, de religiosos e de cavaleiros muitos indivíduos, que anteriormente não tinham podido entrar nelas, e nem mesmo os seus antepassados. Mais se viu em Lisboa, como consequência das precedentes medidas, agraciado com o habito de Cristo um negociante da praça de Lisboa, chamado António Soares de Mendonça, bem conhecido por todos como cristão-novo, havendo como tal saído com sambenito e vela amarela na mão, na forma costumada, pelas ruas da capital no auto público da fé, que nela se tinha feito aos 16 de Outubro de 1746, quando apenas contava vinte e dois anos de idade: a sua sentença ouviu ele na Igreja de S. Domingos, onde fez pública abjuração das culpas do judaísmo, como se viu da lista impressa do referido auto. E não só foi feito cavaleiro professo na ordem de Cristo, mas até mesmo irmão da Santa Casa da Misericórdia, onde já também estava um mulato, não obstante ser aquela irmandade destinada somente para fidalgos e homens de sangue puro. Todas estas inovações escandalizaram no mais alto grau os chamados cristãos-velhos, ou homens de antigas crenças, puritanos de fina tempera, e que jamais queriam transacção, ou contacto com cristãos de sangue impuro. Daqui vieram em grande parte as acusações, que semelhantes homens fizeram ao marquês de Pombal, assacando-lhe também a culpa de ter nas suas veias porção de sangue judaico, diziam uns, tendo-se como tal circuncidado em Holanda, e outros que por estes beneplácitos, feitos aos homens de raça judaica, o haviam eles presenteado com quinhentos mil cruzados, não admitindo que também fossem gratuitas as mercês feitas ao dito António Soares de Mendonça. Seja porém como for, certo é que enquanto os mais escrupulosos por esta forma murmuravam, outros de mais livre pensar igualmente houve que de pronto aplaudiram as supraditas medidas, ou este nivelamento politico, sustentando a justiça, a razão e a filantropia com que elas se ordenavam, apoiando-as na autoridade do nosso grande estadista, D. Luis da Cunha, numa sua obra intitulada Instituições de Marco António 3 e de outros mais escritos de reputação e credito.

«Faz-se reparo, dizia um contemporâneo do facto acima narrado, de que um cristão-novo, e depois de ter saído num auto publico da fé, passasse a ser cavaleiro professo na ordem de Cristo, por se dizer ter seguido os ritos judaicos. Este reparo tem uma bem pronta resposta. Pouco importa que o homem fosse judeu, grego, ou maometano, se ele por uma vez abjurou todas estas seitas, e passou a abraçar a religião católica romana. Jesus Cristo era natural da Judeia, bem como sua mãe, Maria Santíssima e toda a família sagrada. Já mostrámos com a autoridade dos maiores homens do mundo ser isto um prejuízo, filho dos séculos bárbaros e obscuros, em que a razão vivia eclipsada; porém graças ao céu,  que os homens abriram os olhos, e viram a verdade e a « razão. Ninguém no mundo se poderá jactar da pureza do  seu sangue. Bovadilha o mostrou ao mundo na sua excelente obra El Tisson de Hespanha, por meio do seguinte caso. Luis XIV, sendo um monarca tão iluminado, e que fez um governo de estampido e brado em toda a Europa, e que será eterno na memória dos homens, enquanto no mundo durar a recordação dos seus imortais feitos, este príncipe pois, como dizia, apesar de tão iluminado, deixou-se um dia alucinar com a pureza do seu sangue, pretendendo mostrar aos reis da Europa, que a sua genealogia era puríssima, e que excedia a todas as do mundo. Levado deste erro, fez ajuntar um grande número de genealógicos, e que sem lisonja, ou respeitos alguns humanos, lhe fossem comunicando quanto lhe fossem descobrindo. Fizeram-se as primeiras sessões, e a poucos passos comunicaram ao soberano haver um ministro de estado de quem sua majestade descendia. Ouvindo isto, ordenou que prosseguissem, e tornando-se-lhe em breves dias a dizer que se encontrava em uma linha transversal um capitão de cavalos seu ascendente, respondeu, despido de todo o abuso, (palavras formais), basta, antes que topemos com algum almocreve. Ora se Luiz XIV, que blasonava descender dos Capelos, e de outros antigos reis de França, era mesclado de parentes humildes; se numa palavra as gerações dos príncipes têm defeitos visíveis, como os não terão, por uma boa lógica, os fidalgos, e por consequência os particulares? »

Eis aqui como já no tempo do marquês de Pombal as doutrinas e dogmas do sistema liberal, que mais tarde se instaurou no País, de facto tinham panegiristas e sectários, como consequência das suas medidas e do nivelamento politico do seu sistema de governo.

Tendo até aqui mostrado como o marquês de Pombal buscou firme e sistematicamente elevar as classes mais desprezíveis ao pundonoroso grau de cidadãos activos, habilitando todos os que a elas pertenciam a poderem ser providos nos empregos públicos, e agraciados com mercês honoríficas, vejamos agora como também tentou rebaixar, ou abater as classes mais elevadas, diligenciando assim fazer com que a sociedade se compusesse só de cidadãos, todos eles iguais perante a lei, salvas as inevitáveis desigualdades, que a mesma sociedade e a própria natureza oferecem, tais como a dos ricos e pobres, a dos sábios e ignorantes, a dos de talento e sem ele, etc. Já mais atrás se via a dura severidade com que puniu a fatal conjuração de 3 de Setembro de I758, sem nada lhe embaraçar de que nela fossem envolvidas duas das mais ilustres casas de Portugal, se é que uma delas não foi por bárbara e atroz política tida como conjurada, para humilhação da fidalguia, dando-se como de caso pensado para el-rei os tiros, que só eram destinados para o seu criado particular e valido, o celebre Pedro Teixeira, como alguns querem, segundo o que já vimos; e a outra por miserável vingança das censuras, que abertamente lhe fazia á sua administração, ou por espírito de se apropriar do que a ela pertencia, como também é crença em outros. Mas ou com verdade, ou sem ela, ambas as ditas famílias foram crua e tiranamente executadas no ignominioso patíbulo da praça de Belém, ao passo que outros, não menos ilustres fidalgos, foram também perseguidos e despoticamente encerrados em imundos e insalubres cárceres, onde uns deles morreram miseravelmente, e outros jazeram por dezoito e mais anos, talvez que somente por infundadas suspeitas, ou desejos de vingança pessoal, transformando o omnipotente ministro as referidas suspeitas cm verdadeiros crimes, só para fazer ver à classe aristocrata, e demonstrar igualmente á nação, depois da punição dos membros da mesa do bem comum, e da revolta do Porto contra a companhia dos vinhos do Alto Douro, que ninguém, quer fosse fidalgo ou plebeu, deixava jamais de estar sujeito ás determinações da lei, nem ás penas por ela impostas aos que as transgrediam, quando até ali os fidalgos se reputaram sempre ou superiores a elas, ou delas exceptuados. Além desta espécie de efectiva humilhação e abatimento das classes mais aristocratas, o mesmo marquês de Pombal recorreu ainda para com elas a uma outra forma de as humilhar e abater, que apesar de mais suave, nem por isso foi menos profícua para os seus fins políticos de nivelamento social, ou aproximação daquelas mesmas classes das outras mais inferiores na ordem da fidalguia. Foi esta segunda forma a de confundir, ou cruzar por meio de recíprocos casamentos as famílias da primeira nobreza com outras, que por si não tinham a reputação de tão nobres, destruindo por este modo o antigo costume, que havia entre as casas puritanas, de efectuarem só entre si as alianças matrimoniais, para assim se conservarem sempre isentas da suposta mácula do impuro sangue plebeu, pouco mais considerado por elas que o da raça judaica. E como no estado de abatimento a que a alta nobreza do País tinha chegado, nenhuma das ditas famílias puritanas podia já resistir ao preceito, que o marquês de Pombal lhes impunha em nome, ou da parte de el-rei, sob pena de se exporem ao desagrado do monarca, e ao ódio do seu omnipotente ministro e particular valido, que terminantemente assim lho ordenava para os fins que tinha em vista, não houve uma só daquelas famílias que deixasse de se submeter docilmente aos impostos casamentos de amalgama politico. Daqui veio pois a grande vantagem social de acabar entre as mesmas classes aristocratas com a distinção, que entre elas efectivamente havia, de casas de sangue puro e impuro, podendo com verdade dizer-se, que desde então para cá não houve uma só família entre nós, por mais ilustre que fosse no seu sangue, que pudesse dizer-se isenta da mescla do chamado sangue impuro. O acabamento pois desta distinção de famílias, ou destes prejuízos sociais, para que tão eficazmente trabalhou o marquês de Pombal, e o conseguiu obter por meio do seu grande despotismo, não podia deixar de também concorrer pela sua parte para cimentar na nação as primeiras ideias de uma igualdade politica, que é a primeira e fundamental base do sistema liberal, e portanto de impelir a opinião publica do País para este mesmo sistema, fossem quaisquer que fossem as vistas e as intenções particulares do ministro, que tais medidas ordenou, e a tais meios recorreu para conseguir os seus fins.

É bem fácil de ver quão grande numero de abusos e violências se não praticaria no arranjo de casamentos, feitos por semelhante modo, porque se muitas vezes os negociados pelos próprios pais têm feito a desgraça dos filhos, o que não seria nos que o marquês de Pombal arranjava, violentando os pais e os contraentes, como homem estranho aos sentimentos do coração e aos interesses da família? Mas este procedimento era tanto mais cruel e injusto, quanto que ele mesmo marquês tinha por uma lei proibido, que se pudessem efectuar casamentos, quando para eles os contraentes não tivessem primeiramente obtido o consentimento, ou aprovação de pais, tutores, ou superiores. Se portanto a lei, que ele mesmo promulgara, exigia tal consentimento, ou aprovação, claro estava que todos os casamentos por ele determinados com violência de pais, tutores, ou superiores, era um acto ilegal, e sobre ilegal, filho do mais atroz e insuportável despotismo, e em que frequentes vezes se viu ter sido o fim de tais casamentos enriquecer, ou nobilitar os partidistas do ministro, o qual, além de os gratificar com os empregos públicos que quis, também deste meio se serviu para mais lhes premiar o zelo e dedicação, que mostravam pela sua pessoa e politica. E com efeito logo que à sua noticia chegava haver em certa parte do reino um homem, ou mulher, que linha bom património, de pronto lhe destinava o consorte, que muito bem lhe parecia, sempre pessoa da sua particular protecção: para isto mandava chamar esse tal individuo, de qualquer sexo que fosse, ou o superior, se o linha, e, sem discurso algum persuasivo, lhe declarava por surpresa o matrimónio, que lhe determinava, e muitas vezes o fez, designando-lhes o dia para a sua consumação, sendo a pronta execução do que a tal respeito lhes ordenava a prova da sua obediência, mas não da aprovação, pois que o temor da total ruína não deixava de abraçar o proposto destino, que a vontade própria rejeitava. A este cerimonial de casamento se submeteram muitos grandes e ricos da corte, de que resultou verem-se desagradavelmente casados muitos títulos nobres, e pessoas opulentas, que depois se separaram por politico divórcio. Alguns houve sem legitima sucessão, por falta de coabitação conjugal, pela mutua aversão dos contraentes, outros que, apesar dessa sucessão, mais a deveram aos estímulos naturais, do que á afeição, ou sentimentos amorosos de um para com outro. Foi por este modo que se efectuou o enlace de muitas famílias, que a não ser por efeito do mais inaudito despotismo, jamais pensariam em semelhante aliança.

 

1 No relatório que o inquisidor geral, o cardeal da Cunha, fez ao governo, com relação os gravíssimos abusos, que se davam no antigo regimento da inquisição, vem relatado o modo bárbaro e atroz dos antigos julgamentos, contrários aliás ás disposições contidas no Génesis, e no Deuteronómio, segundo expõe o mesmo cardeal. Foi sobre este relatório que se fundou o regulamento, que no 1. de Setembro de 1774 foi dado e ordenado para a mesma inquisição por el-rei D. José.

 

2 Na época liberal de 1820 foi extinto este terrível tribunal por lei das Cortes de 5 de Abril de 1821, medida que toda a nação aplaudiu, sem que os mais furiosos absolutistas se atrevessem a condená-la, nem a restabelecê-la durante a restauração do absolutismo, que àquela época se seguiu.

 

3 É hoje obra desconhecida, que nem sequer vem apontada no Dicionário Bibliográfico, de Inocêncio Francisco da Silva.

 

 

INDICE

 

Lei de 25 de Maio de 1773

Aviso de 11 de Março de 1774

Lei de 15 de Dezembro de 1774

 

L E I

 

 

Dom José por graça de Deus, Rei de Portugal, e dos Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África Senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc. Aos Vassalos de todos os Estados dos Meus Reinos, e Senhorios, saúde. Em Consultas da Mesa do Desembargo do Paço, e do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição,  e da Mesa de Consciência, e Ordens, Me foi presente: Que havendo a Igreja na sua primitiva Fundação; no seu sucessivo progresso; e na propagação dos Fiéis, que a ela se uniram; recebido no seu regaço, como Mãe Universal, Gentios e Judeus convertidos; sem distinção alguma, que fizesse diferentes uns dos outros por uma separação contrária à Unidade do Cristianismo, que é indivídua por sua natureza: Sendo o sangue dos Hebreus o mesmo idêntico sangue dos Apóstolos, dos Diáconos, dos Presbíteros, e dos Bispos por eles ordenados, e consagrados: Sendo este sempre o constante , e inalterável espírito da mesma Igreja, e da Doutrina, e Disciplina, que dele, e delas emanaram em todos os Dezoito Séculos da sua duração; sem outras modificações, que não fossem; a de que os Neófitos baptizados depois de adultos, como recentemente  convertidos à Fé, se reputavam por Cristãos Novos; e por Cristãos Velhos os que por muito tempo perseveraram na Fé por Eles professada, quando recebiam o Sacramento do Baptismo; para se suspender aos Primeiros a Colação das Honras, e Dignidades Eclesiásticas, enquanto não excluíam com a sua firmeza a presunção de voltarem ao Vómito; e para os Segundos não só ficarem pela sua perseverança inteiramente hábeis nas suas pessoas para tudo o referido; mas também para transmitirem esta Canónica habilidade, e legitimidade a todos os seus Descendentes, que como Eles viveram na mesma santa crença de seus Pais, e Avós convertidos: Sendo este sempre o mesmo constante espírito, e a mesma sucessiva, e inalterável Doutrina, com que a Sede Apostólica, e os Sumos Pontífices, Cabeças Visíveis da mesma Igreja, honraram os Filhos, Netos, e mais Descendentes dos próprios Judeus,  que do Gueto da Cidade de Roma, e de outras Sinagogas, se converteram à Santa Fé Católica; conferindo-lhes todos os Ofícios Civis, todos os Benefícios, e Dignidades Eclesiásticas; os Bispados, Arcebispados, e Púrpuras Cardinalícias; sem excepção, ou reserva alguma: Sendo este espírito, e esta Doutrina da Igreja Universal, o mesmo espírito, e a mesma Doutrina das outras Igrejas Particulares de todas as Nações mais pias, e ortodoxas da Cristandade: Sendo este Direito, e estes factos, que nele se estabelecem, de uma demonstrativa certeza por si mesma notória: E vendo a referida Mesa do Desembargo do Paço, que aos sobreditos respeitos se achava a Igreja Lusitana de mais de cento e cinquenta anos a esta parte em uma diametral contradição, não só com as referidas Igrejas Particulares das Nações mais Católicas; mas também até com a mesma Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as outras Igrejas Particulares, que dela não podem separar-se  sem abuso, e ofensa da União Cristã: Não pôde deixar de fazer as mais assíduas indagações para investigar, e descobrir a causa com que nos meus Reinos, e Domínios, se introduziu, e fez grassar a dita distinção de Cristãos Novos e Cristãos Velhos; não como a Igreja Universal, e as Particulares o têm praticado, para provarem a firmeza da Fé dos convertidos; mas sim para daquela distinção se deduzir a perpétua inabilidade, que por aquele longo período de tempo tem infamado, e oprimido um tão grande número dos Meus fiéis Vassalos: Ponderando a mesma Mesa por uma parte, que em efeitos das suas aplicações, viera a verificar pela notoriedade de factos históricos da mais qualificada certeza, cronologicamente deduzidos; e por Documentos autênticos, e dignos do mais inteiro crédito; que desde o glorioso Governo do Venerável Rei Dom Afonso Henriques até o Governo do Senhor Rei Dom Manuel, nem ainda os mesmos Judeus das Sinagogas destes Reinos tiveram neles a exclusiva  dos Ofícios Políticos, e Civis, que depois se maquinou contra os Novos Convertidos: Em tal forma, que no Reinado do Senhor Rei Dom Fernando, o Hebreu Dom David foi seu grande Privado; o outro Judeu Dom Judas Tesoureiro Mor do seu Real Erário: No Reinado do Senhor Rei Dom João I consta, que não só dera privilégios aos Hebreus convertidos, por mercê do ano de mil quatrocentos vinte e dois; mas também; que havendo-lhe apresentado o seu Físico Mor Moisés uma Bula do Santo Padre Bonifácio Nono, datada em Roma a dois de Julho de mil trezentos oitenta e nove, em que veio inserta outra de Clemente VI, dada em Avinhão a cinco de Julho de mil duzentos quarenta e sete; e determinando ambas as referidas Bulas: Que nenhum Cristão violentasse os Judeus a receberem o Baptismo: Que lhes não impedissem as suas festas, e solenidades: Que lhes não violassem os seus cemitérios: E que se lhes não impusessem tributos diferentes, e maiores daqueles, que pagassem os Cristãos das respectivas Províncias: Ordenou aquele grande Monarca em Provisão de dezassete de Julho de mil trezentos noventa e dois: Que aos mesmos Hebreus fossem pontualmente observados todos os referidos Privilégios, seguindo nisto o exemplo da Cabeça Visível da Igreja; com o mesmo fim de afeiçoar, e atrair a Ela os referidos Hebreus: No Reinado do dito Senhor Rei Dom Manuel, quando (depois da expulsão dos mesmos Judeus, ordenada no ano de mil quatrocentos noventa e seis) a irrisão, com que a plebe de Lisboa chamava Cristãos Novos aos Conversos que tinham ficado neste Reino, causou o horroroso motim, que padeceu a cidade de Lisboa no ano de mil quinhentos e seis; ocorreu logo o mesmo Pio, e Iluminado Monarca, que tinha ordenado a dita expulsão dos Hebreus Profitentes, a obviar as divisões, e os estragos, que aquela perniciosa denominação tinha feito nos seus Vassalos; não só naturalizando todos os ditos Novos Convertidos pela sábia Lei do primeiro de Março do ano próximo seguinte de mil quinhentos e sete; mas também passando a constituir nela a favor dos mesmos Novos Convertidos o título oneroso, que lhes foi concedido nas palavras: “Item lhes prometemos, e Nos apraz, que daqui em diante não faremos contra eles nenhuma Ordenação, nem defesa, como sobre Gente distinta, e apartada; mas assim nos apraz, que em tudo sejam havidos, favorecidos, e tratados como próprios Cristãos Velhos, sem deles serem distintos, e apartados em coisa alguma.” Lei, e Título, que no Reinado próximo seguinte se repetiram pela outra igual Lei de dezasseis de Dezembro do ano de mil quinhentos vinte e quatro: Ponderando por outra parte, que pelo exame, que fizera nos Estatutos de todas as Dioceses, nas Constituições de todas as Ordens Regulares, e nos Regimentos de todos os Tribunais destes Reinos, tinha verificado, que contra a disposição das referidas Leis, não houvera distinção de Cristãos Novos e Cristãos Velhos, nem Inquirições a elas respectivas, antes da funesta maquinação abaixo declarada: Ponderando por outra parte, que sendo o sobredito estado o que constituía o Sistema de todas as Leis Eclesiásticas, e Seculares, e dos louváveis, e nunca alterados costumes de Portugal; quando no Governo infeliz de El-Rei Dom Henrique se tratou da Sucessão da Coroa Vacilante destes Reinos; sendo um dos Opositores a Ela o Prior do Crato Dom António, com um forte Partido; e tendo maquinado os denominados Jesuítas; não só fazerem passar a mesma Coroa a domínio estranho com a colusão, que foi manifesta por todas as Histórias; mas  também dividirem, e dilacerarem todas as Classes, Ordens, e Grémios do mesmo Reino; com o outro objectivo de assim lhes tirarem as forças, com que viram que haviam de procurar resistir aos seus enormíssimos atentados; não houve estratagema, que não maquinassem com aqueles dois fins; já suscitando aquela sediciosa distinção de Cristãos Novos, e Cristãos Velhos reprovada pelas sobreditas Leis dos Senhores Reis Dom Manuel, e Dom João III; por se ter visto pelo caso do motim do ano de mil quinhentos e seis, que era o Estratagema mais adaptado para causar divisões populares, e tumultos; já indo escogitar no então novo Estatuto da Sé de Toledo (que nela fora poucos anos antes sugerido, e introduzido com os semelhantes fins particulares, e carnais, que causaram em Espanha as controvérsias mais ardentes) um pretexto para autorizarem , e introduzirem nestes Reinos aquela Reprovada Distinção; já inventando que D. Violante Gomes, Mãe do sobredito Dom Antonio, tinha sangue dos ditos Novos Convertidos, para inabilitá-lo por Cristão Novo ; já  trabalhando para exclui-lo (como excluíram) com o referido pretexto pelo despotismo, com que naquele tempo obravam nas Três Cortes de Lisboa, de Madrid, e de Roma; já prosseguindo na mesma Cúria em Causa comum com os Ministros Espanhóis daquele crítico tempo (e com o mesmo objecto da divisão, e dilaceração dos meus Vassalos) em fazer valer a dita sediciosa distinção com o clandestino, e extorquido Breve, que se dirigiu à Universidade de Coimbra em Nome do Santo Padre Xisto V, para que os chamados Cristãos Novos não fossem providos nos Benefícios dela ; com o outro Breve expedido em Nome do Santo Padre Clemente VIII a dezoito de Outubro do ano de mil e seiscentos, para ampliar a dita proibição a todas as Dignidades, Canonicatos, e Prebendas das Catedrais, Colegiadas, e até as Paróquias, e Vigairarias com Cura de Almas; com o outro Breve expedido em nome do Santo Padre Paulo V em dez de Janeiro de mil seiscentos e doze; já tomando por pretextos os referidos Breves, (obreptícios, subreptícios, e extorquidos com as narrativas de falsas causas) a fim de que por efeito da mesma conhecida Prepotência, com que obraram naquelas calamitosas conjunturas, estabelecessem com as suas irresistíveis intrigas, até por Alvarás, e Cartas do mesmo Governo estranho (por Eles introduzido neste Reino) a dita exclusiva dos chamados Cristãos Novos para não entrarem nos empregos, e Ofícios de Justiça, ou Fazenda Real; e para constrangerem os Prelados Diocesanos, os seus respectivos Cabidos, as Ordens Regulares (que sempre oprimiram), e ultimamente mesmo as Ordens Militares, a fazerem Estatutos Exclusivos dos ditos chamados Cristãos Novos; e a impetrarem na Cúria de Roma as Confirmações deles; em que os Curialistas, que expediram os referidos Breves, ficaram tão inconciliavelmente  contrários a si mesmos, que os Irmãos, e Primos com Irmãos dos mesmos, que em Portugal faziam Cristãos Novos, inábeis, e infames, eram com o seu mesmo sangue ingénuos, e hábeis na Corte de Roma, e seus Estados, para todas as Dignidades, e Honras Eclesiásticas, Políticas e Civis acima indicadas; além de laborarem os mesmos breves nas obrepções, e notórias subrepções, que desde o princípio se manifestaram ineficazes por sua natureza; como diametralmente contrários ao Espírito da Santa Igreja Universal; ao dos Cânones Sagrados; ao de todas as Igrejas Particulares; e ao do Sistema das Leis, e dos louváveis costumes destes Reinos: Ponderando, por outra parte, que havendo sempre a Igreja procurado atrair com prémios os Catecúmenos, e Novos Convertidos; e tendo-o assim praticado os Apóstolos, e os Seus Sucessores, desde a Primitiva Igreja até o dia de hoje; de sorte que os Cânones até os chegaram a absolver das soluções dos Dízimos; era fácil de ver, que se o prémio das Conversões em Portugal houvesse de continuar a ser uma perpétua infâmia, uma perpétua segregação, e uma perpétua inabilidade de todas as pessoas dos Novos Convertidos, e dos seus Descendentes; seria impossível que houvesse Conversões verdadeiras, enquanto a Divina Providência não obrasse um milagre superior a todas as causas naturais, para suspender os efeitos delas nas vocações dos mesmos Convertidos. A Mesa da Consciência, e Ordens, depois de concordar com todo o referido, acrescentou, que naquele Tribunal se não conheceram Inquirições de genere até o tempo dos sobreditos Breves introduzidos nas Ordens Militares com a sobredita Prepotência. E finalmente o Conselho Geral, guiado pelas luzes da Consulta da Mesa do Desembargo do Paço, que nele mandei ver, e também com ela conforme igualmente; Me representou: Que fazendo examinar, e combinar, por uma parte nos seus Arquivos, se tinha havido as referidas Inquirições de genere anteriores aos ditos Breves; lhe constou por um completo exame, que tais Inquirições não tinha havido; quando aliás lhe constara legalmente, que no período de tempo, que decorreu desde a Fundação daquele Tribunal pelo Santo Padre Paulo III no ano de mil quinhentos trinta e seis, até o Primeiro Breve De Puritate do outro Santo Padre Xisto V, foram providos muitos Inquisidores, muitos Familiares, e muitos Oficiais, cujos Provimentos se acham nos mesmos Arquivos; como neles se achariam as suas respectivas Inquirições, se na realidade houvessem existido; assim como existem todas as que se processaram depois do sobredito Breve De Puritate: E que fazendo examinar igualmente o número de Penitenciados, que se processaram naquele Primeiro período de tempo, em que nunca houve habilitações de genere; e o número de Réus penitenciados no Segundo período, que decorreu desde o tempo das Introduções das referidas habilitações até este presente; achara, que os Apóstatas naquele Primeiro período mais feliz, e conforme aos Espírito da Igreja, e aos louváveis costumes de todas as Nações (que são os mesmos destes Reinos), foram sempre muito raros, e em pequeno número; quando pelo contrário depois do Segundo período triste, e lutuoso, foram os mesmos Réus de ano em ano sendo cada vez mais numerosos, com uma desproporção incomparável.

E porque como Rei, e Senhor Soberano, que na temporalidade não reconhece na Terra Superior: Como Protector da Igreja, e Cânones Sagrados nos meus Reinos, e Domínios, para os fazer conservar na sua pureza: Como outrossim Protector da reputação, e honra de todos os Meus Fiéis Vassalos de qualquer Estado, e condição que sejam, para remover deles tudo  o que lhes é injurioso: e como Supremo Magistrado para manter a tranquilidade pública da mesma Igreja, e dos mesmos Reinos, e Domínios, e a conservação dos mesmos Vassalos em paz, e em sossego; removendo dela, e deles tudo o que é opressão, e violência; e tudo o que os pode dividir, e perturbar neles a uniformidade de sentimentos, que constituem a união Cristã, e a Sociedade Civil, que à sombra do Trono devem gozar de uma inteira, e perpétua segurança: Conformando-me não só com os uniformes Pareceres das sobreditas Consultas; mas também com a dos outros concordes Pareceres dos Ministros dos Meus Conselhos de Estado, e de Gabinete, que ultimamente ouvi sobre todo o conteúdo nelas: E usando no mesmo tempo de todo o Pleno, e Supremo Poder, que nas sobreditas matérias da manutenção da tranquilidade pública da Igreja; dos Meus Reinos, Povos, e Vassalos deles; e da sua honra, e reputação; Recebi imediatamente de Deus Todo Poderoso: Quero, Mando, Ordeno, e é Minha Vontade que daqui em diante se observe aos ditos respeitos o seguinte:

I.                    Mando que a Lei do Senhor Rei Dom Manuel, expedida no Primeiro de Março do Ano de mil quinhentos e sete; e a outra Lei do Senhor Rei  Dom João o III. dada em dezasseis de Dezembro do Ano de mil quinhentos vinte e quatro, em que proibiram a sediciosa, e ímpia distinção de Cristãos Novos e Cristãos Velhos, sejam logo extraídas do Meu Real Arquivo da Torre do Tombo, e de novo publicadas, e impressas com esta; para fazerem parte dela, como se nela fossem inteiramente incorporadas.

II.                  Item: Mando, que as mesmas duas saudáveis Leis; não só fiquem por esta reintegradas na sobredita forma; mas também que sejam inteiramente restituídas, contra o dolo, com que foram suprimidas na última compilação das Ordenações, como se nela houvessem sido incorporadas: Removendo por efeito desta retroacção o malicioso e visível atentado, com que a referida Compilação se maquinou, com o sinistro fim de postergar, e fazer esquecidas as mesmas saudáveis Leis; pois que sem  o referido mau fim, e sem os outros da mesma natureza, que hoje são notórios; seria impraticável que no Ano de mil seiscentos e dois se publicasse um novo Corpo de Leis, desnecessário, e intempestivo, havendo poucos anos antes precedido a publicação dos que contêm as Sábias Leis dos Senhores Reis Dom Manuel, e Dom João o III; tanto mais decorosas, e providentes, como é manifesto.

III.                Item: Mando, que as sobreditas duas Leis, e as que à semelhança delas Tenho Mandado publicar sobre as outras inabilidades que nestes Reinos se maquinaram, e introduziram com os mesmos sinistros objectos de sedições e de discórdias; fiquem constituindo desde o dia, em que esta passar pela Chancelaria, em diante as únicas Regras da ingenuidade, ou inabilidade de todos os meus Vassalos, de qualquer Estado, e condição que sejam:  Para se terem por inábeis, e infames os que desgraçadamente incorrerem nos abomináveis crimes de Lesa Majestade, Divina, ou Humana; e por eles forem sentenciados, e condenados nas penas estabelecidas pelas Ordenações do Livro Quinto, Título Primeiro, e Título Sexto, com os Filhos, e Netos, que deles procederem; sem que contudo a referida infâmia haja de influir de alguma sorte nem nos Bisnetos; nem nos que deles procederem: E para se terem por ingénuos, e hábeis todos, e quaisquer dos outros Vassalos Naturais dos Meus Reinos, e seus Domínios, cujos Avós não houverem sido sentenciados pelos sobreditos abomináveis crimes.

IV.                Item: Mando, que restituindo-se todas as habilitações, e Inquirições ao feliz, e devido estado, em que (com tanto benefício da paz da Igreja Lusitana, do sossego público, e da honra, e reputação dos Povos destes Reinos, e seus Domínios) estiveram por todos os Séculos, que precederam às sobreditas sediciosas maquinações; não haja para os Habilitandos daqui em diante outros Interrogatórios, que não sejam os que se dirigem às provas da vida, e costumes, quando os Habilitandos ou nas suas próprias pessoas; ou nas de seus Pais, e Avós não tiverem inabilidade, ou infâmia de Direito: Servindo para as mesmas Inquirições, e Habilitações de Regras invariáveis os mesmos Interrogatórios, que se continham nas Constituições anteriores aos referidos Breves chamados De Puritate; e os mesmos, que se ficaram conservando nas Constituições do Bispado da Guarda, cujos Prelados Diocesanos prevaleceram sempre com a sua Apostólica constância contra as sugestões, coacções, e violências, a que alguns dos outros Prelados cederam por Colusões, e a que outros, depois de grandes resistências, vieram por fim a sucumbir, oprimidos das invencíveis forças, que contra Eles se empregaram naqueles calamitosos tempos.

V.                  Item: Mando, que todos os Alvarás, Cartas, Ordens, e mais Disposições, maquinadas, e introduzidas para separar, desunir, e armar os Estados, e Vassalos destes Reinos, uns contra os outros em sucessivas, e perpétuas discórdias, com o pernicioso fomento da sobredita distinção de Cristãos Novos e Cristãos Velhos, fiquem desde a publicação desta abolidos, e extintos, como se nunca houvessem existido, e que os registos deles sejam trancados, cancelados e riscados em forma, que mais não possam ler-se: Para que assim fique inteiramente abolida até a memória de um atentado cometido contra o Espírito, e Cânones da Igreja Universal; de todas as Igrejas Particulares; e contra as Leis, e louváveis costumes destes Meus Reinos; oprimidos com tantos, tão funestos, e tão deploráveis estragos por mais de Século e meio, pelas sobreditas maquinações maliciosas.

VI.                Item: Mando, que todas as Pessoas de qualquer Estado, qualidade, ou condição que sejam, que depois do dia da publicação desta Minha Carta de Lei; de Constituição Geral; e Edito perpétuo; ou usarem da dita reprovada distinção, seja de palavra, ou seja por escrito; ou a favor dela fizerem, e sustentarem discursos em conversações, ou argumentos: Sendo Eclesiásticas, sejam desnaturalizadas, e perpetuamente exterminadas dos Meus Reinos, e Domínios, como revoltosas, e perturbadoras do sossego público; para neles mais não poderem entrar: Sendo Seculares Nobres, percam pelo mesmo facto (contra Eles provado) todos os Graus da Nobreza, que tiverem, e todos os empregos, Ofícios, e bens da Minha Coroa, e Ordens, de que forem providos, sem remissão alguma: E sendo Peões sejam publicamente açoitados, e degradados para o Reino de Angola por toda a sua vida.

 

E esta se cumprirá tão inteiramente, como nela se contém, sem dúvida ou embargo algum, qualquer que ele seja. Para o que Mando à Mesa do Desembargo do Paço; Conselho Geral do Santo Ofício; Mesa da Consciência, e Ordens; Regedor da Casa da Suplicação; Junta da Inconfidência; Conselhos da Minha Real Fazenda, e dos Meus Domínios Ultramarinos; Governador da Relação, e Casa do Porto; Presidente do Senado da Câmara; Governadores das Armas; Capitães Generais; Desembargadores; Corregedores; Ouvidores; Juízes; Magistrados Civis, e Criminais destes Reinos, e seus Domínios, a quem, e aos quais o conhecimento desta em quaisquer casos pertencer, que a cumpram, guardem, e façam inteira, e literalmente cumprir, e guardar, como nela se contém, sem hesitações, ou interpretações, que alterem as Disposições dela; não obstante quaisquer Leis, Alvarás, Cartas Régias, Assentos intitulados das Cortes, Disposições, ou Estilos que em contrário se tenham passado ou introduzido; porque todos, e todas de Meu Motu próprio, Certa Ciência, Poder Real, Pelo, e Supremo, Derrogo, e Hei por Derrogados como se deles fizesse especial menção em todas as suas partes, não obstante a Ordenação, que o contrário determina, a qual também derrogo para este efeito somente, ficando aliás sempre em seu vigor. E ao Doutor João Pacheco Pereira, Desembargador do Paço, do Meu Conselho, que serve de Chanceler Mor destes Reinos, Mando, que a faça publicar na Chancelaria, e que dela se remetam cópias a todos os Tribunais, Cabeças de Comarcas e Vilas destes Reinos, e seus Domínios; registando-se em todos os lugares, onde se costumam registar semelhantes Leis; e mandando-se o Original dela para o Meu Real Arquivo da Torre do Tombo.

Dada no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, aos vinte e cinco de Maio de mil setecentos setenta e três.

 

EL-REI Com Guarda

Carta de Lei, Constituição Geral, e Edito perpétuo por que Vossa Majestade conformando-se com as Consultas, e pareceres da Mesa do Desembargo do Paço; do Conselho Geral do Santo Ofício; e da Mesa da Consciência, e Ordens: E Tendo sobre Elas ouvido os seus Conselhos, de Estado, e de Gabinete:  É servido restituir a todos os Estados dos seus Reinos, e Senhorios a Paz, e Concórdia, que contra o Espírito da Igreja Universal; das Igrejas Particulares de toda a Cristandade; e contra a sucessiva, e constante Disposição das Leis, e dos louváveis costumes da Monarquia Portuguesa; se tinham alterado, e perturbado com sinistros intentos pelo Estratagema da inaudita Distinção de Cristãos Novos e Cristãos Velhos, maquinado para a ruína da União Cristã, e da Sociedade Civil da mesma Monarquia: Tudo na forma acima declarada.

 

                                                                                            Para Vossa Majestade ver.

 

João Pacheco Pereira                                       António José de Affonseca Lemos

 

 

João Pacheco Pereira

Foi publicada esta Carta de Lei na Chancelaria Mor da Corte, e Reino. Lisboa, 26 de Maio de 1773.

                                                                                  Dom Sebastião Maldonado

Registada na Chancelaria Mor da Corte, e Reino no Livro das Leis a fol. 147. Lisboa, 26 de Maio de 1773.

                                                                                   António José de Moura

João Anastácio Guerreiro a fez.

 

Na Régia Oficina Tipográfica.

 

 

Dom José por graça de Deus, Rei de Portugal, e dos Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África Senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc.  Faço saber, que por parte do Procurador da Minha Coroa foi pedido ao Guarda Mor da Torre do Tombo, que em virtude do Alvará de quatorze de Agosto de mil setecentos sessenta e seis, e Aviso de vinte e sete de Abril de mil setecentos sessenta e sete, lhe mandasse dar por Certidão os Documentos, que apontasse: E visto seu Requerimento, se buscou o Livro trinta e oito da Chancelaria do Senhor Rei Dom Manoel, e nele a folhas quarenta e sete se achou uma Carta, a qual está também transcrita no Livro Quinto de Místicos da Leitura Nova a folhas cento e trinta, cujo teor é o seguinte:

 

Aos Christãos Novos privilégio, per que ElRey lhe concede, que se possam ir pêra onde quizerem, com outras mais graças nelle contheudas.

 

Dom Manoel por graça de Deus, &c. A quantos esta Carta virem: Fazemos saber, que depois do Convertimento dos Judeos de nossos Regnos e a nossa Sancta Fée, por avermos que era mais bem pêra sua salvaçam, fizemos Ordenaçaõ, per a qual defendemos sob certas penas, que nenhuns dos Christãos Novos se não fossem de nossos Regnos sem nossa licença; e posto que a dita Ordenação, e defeza fosse feita sem limitaçaõ de tempo, nossa tenção porém foi se aver de guardar em quanto nos parecesse, que convinha pêra mais seu bem; e por agora nos parecer, que pera a sobredita cousa naõ é necessário a dita defeza mais se haver de guardar, ante avemos por cousa mais proveitosa naõ se usar mais della por tal, que aquelles, que boõs quizerem ser, e estar em nossos Regnos, seraõ por taes conhecidos, e favorecidos, e bem tractados, e recebam de Nós mercês, e favor, como é razam, que lhe seja feita; e aqueles que boõs nam forem, e se quizerem hir, e em nossos Regnos nam estar; pois taes desejos tem, he melhor serem fora delles que nelles estarem; e por sermos nesta cousa requeridos pelos dictos Christãos Novos, e querendo-lhes fazer graça, e mercê, por esta presente Carta lhe outorgamos, e queremos, e nos praz, que daqui em diante a dita Ordenaçam, e defeza, que lhe tínhamos posta pêra dos nossos Regnos, e Senhorios se nam irem sem nossa licença, nam haja mais lugar, e a revogamos, e havemos por nenhuma, e de nenhum vigor, e força; e nos praz, que aquelles, que de nossos Regnos, e Senhorios se quizerem hir pêra terra de Christãos, o possam livremente fazer, e cada vez que lhe aprouver, assi por mar, como por terra, com suas molheres, e filhos, e todas suas fazendas, sem por ello lhe serem feitos a elles, nem aquelles, que os levarem em suas Naus, e Navios, e assi por terra, costrangimento algum, nem encorrerem em pena algũa. E aquelle, que se forem, poderaõ tornar a nossos Regnos, e Senhorios livremente quando quizerem, e lhes bem vier, e nelles estare quizerem; e em suas ydas, e vindas nam receberam oppressam, costrangimento, nem sem razam alguma, e seram assi hos que ficarem, como hos que se forem, e despois tornarem, favorecidos, e bem tractados, e em todas suas cousas assi como próprios Christãos Velhos nossos naturaes. Item revogamos, e havemos por revogada assi mesmo a Ordenaçam defeza, que tínhamos posta, pela qual defendemos, e mandamos, que os ditos Christãos Novos nam podessem vender seus bens de raiz, e queremos, que naõ haja a dita Ordenaçam, e defeza mais lugar, e livremente poderem vender, trocar, escambar todos seus beens de raiz, de qualquer calidade de que forem, e fazer delles ho que lhes aprouver, sem por ello encorrerem nas penas da nossa Ordenaçam, e defeza: porque Nós a havemos por nenhũa, e de nenhum vigor, e força, como dito he. Item nos praz revogar, e havemos assi meesmo por revogada a Ordenaçam, e mandado, porque defendemos, que se não fizesse com elles Caimbos nenhũs, e praz-nos, que os pssam fazer com quaesquer pessoas, que lhes bem vier, e passar por elle seus dinheiros em quaesquer lugares, que hos ouverem mester pêra seus contractos, e para qualquer outra necessidade, pêra que lhe sejam necessários, sem elles, nem hás partes, com que hos fizerem, encorrerem por ello nas penas da nossa Ordenaçam, e defeza, que sobrello temos feita. Item nos praz relevar, e defeito relevamos a todos aquelles Christãos Novos, que destes Regnos se foram contra nossa defeza, e mandado, todalas penas Cives, e Crimes, em que tem encorrido por se hirem contra nossa defeza, e mandado, assi no que tocar a suas pessoas, como fazendas. E estes mesmos, querendo-se tornar para nossos Regnos, e Senhorios, o poderam livremente fazer sem serem costrangidos pelas dictas penas, em que tem encorrido; e querendo nelles assentar, e viver, ho poderam fazer, e seram avidos como se agora à feitura desta Carta em nossos Regnos estevessem para gouvirem, e husarem de todolo, o que esta nossa Carta podem gouvir, e husar hos que agora nestes Regnos estam. Porém declaramos, quando a a pena Civees dos taes, que por quanto poderá seer, que Nós temos feitas mercês dalguns beens, e fazendas dos sobredictos a alguũas pessoas, que nesta parte se fará comprimento de justiça a as partes, e aquelles, a que hás ditas mercês tiverem feitas, usaram por ellas do dereito, que teverem,ou hos sobredictos se concertarão com elles, como lhes melhor vier. Item nos praz desobrigar, e avemos por desobrigados todos aquelles, que temos mandado, que dem fianças pêra se nam hirem fora destes Regnos sem nossa licença; e a aquelles, que hás tiverem dadas, nos praz, que sejam desobrigados das dictas fianças, e assi todos seus fiadores, e livremente poderem fazer de si o que lhes prouver, e de suas fazendas, e em sua edstada, ou partida, ho que lhes milhor vier no modo, que acima lho outorgamos; e de todas, e de cada huma das cousas sobredictas os fazemos livres, e hos desobrigamos, e queremos, e nos praz, que por bem das dictas obrigaçoens, e defezas, que sobre as ditas cousas eraõ feitas, lhe nom seja feicto costrangimento alguũ.  Item lhe promettemos, e nos praz que daqui em diante naõ faremos contra eles nenhũa Ordenaçam, nem defezas como sobre gente distincta, e apartada; mas assi nos praz, que em todos sejam avidos, favorecidos e tractados como próprios Christãos Velhos, sem delles serem distinctos, e apartados em cousa alguma. Porém o notificamos assi a todos nossos Corregedores, Juizes, Justiças, Alcaides, Meirinhos, e todos outros Officiaes, e pessoas, a que esta nossa Carta for mostrada, e ho conhecimento della pertencer, e lhe mandamos, que em todo lhe cumpraõ, e guardem, e façam inteiramente cumprir, guardar, como nella he conteúdo, sem lhe irem, nem consentirem hir contracousa alguma do que por esta lhe outorgamos, ou parte della, porque assi é nossa mercê. Dada em Tomar a primeiro dia de Março. António Carneiro a fez. Anno de mil quinhentos e sete. E esta mercê lhe assi fazemos, para se poderem hir fora destes nossos Regnos, aquelles que ho quizerem fazer, se entenderá, que elles naõ vaõ, nem se passem em outros Navios, salvo nos dos nossos regnos, e de nossos naturaes, e não destrangeiros, e com esta limitaçaõ lho outorgamos.

 

E não se continha mais em a dita Carta, que aqui foi trasladada a pedimento do sobredito, que lhe mandei dar nesta com o Sello de Minhas Armas, à qual se dará tanta fé, e credito, como a mesma Original, de que foi extrhida, e esta com ella concertada. Dada nesta Cidade de Lisboa aos vinte e hum dias do mez de Maio. El-Rei Nosso  Senhor o mandou por José Seabra da Silva, Ministro, e Secretario de Estado, e Guarda Mor da Torre do Tombo. José António Rodrigues a fez. Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos setenta e três. José da Silveira Moraes Barbarica, Oficial da Reformação do mesmo Arquivo, a fez escrever.

                                                                    José de Seabra da Silva

 

 

Lugar do Sello

 

Foi publicada esta Lei na Chancelaria Mor da Corte, e Reino. Lisboa, 27 de Maio de 1773.

                                                                                  Dom Sebastião Maldonado

Registada na Chancelaria Mor da Corte, e Reino no Livro das Leis a fol. 155. Lisboa, 27 de Maio de 1773.

                                                                                   António José de Moura

 

 

 

 

Dom José por graça de Deus, Rei de Portugal, e dos Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África Senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc.  Faço saber, que por parte do Procurador da Minha Coroa foi pedido ao Guarda Mor da Torre do Tombo, que em virtude do Alvará de quatorze de Agosto de mil setecentos sessenta e seis, e Aviso de vinte e sete de Abril de mil setecentos sessenta e sete, lhe mandasse dar por Certidão os Documentos, que apontasse: E visto seu Requerimento, se buscou o Livro Quarto da Chancelaria do Senhor Rei Dom João III, e nele a folhas oitenta e seis verso se achou a Carta do teor seguinte:

 

Aos Christãos Novos destes Reyhos licença que se quizerem ir para Terra de Christãos, o possaõ fazer.

 

Dom Joaõ por graça de Deus, Rey de Portugal, e dos Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África Senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc.  Faço saber, que por parte dos Christãos Novos destes Meus Reynos me foi apresentada huma Carta em porgaminho de ElRey Meu Senhor, e Padre, que santa Gloria haja, de que o theor tal he:

“Dom Manoel por graça de Deus, Rey de Portugal, e dos Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África Senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia.  A quantos esta Minha Carta virem: Fazemos saber, que depois do Convertimento dos Judeos de nossos Reynos e a nossa Sancta Fée, por avermos que era mais bem para sua salvaçam, fizemos Ordenaçam, pola qual defendemos sob certas penas, que nenhuns dos Christãos Novos se não fossem de nossos Reynos sem nossa licença; e posto que a dita Ordenação, e Defeza fosse feita sem limitaçaõ do tempo, nossa tenção porém foi se aver de guardar em quanto nos parecesse, que convinha para mais seu bem; e por agora nos parecer, que para a sobredita cousa naõ é necessário a dita Defeza mais se haver de guardar, antes avemos por cousa mais proveitosa naõ se usar mais della por tal, que aquelles, que bons quizerem ser, e estar em nossos Reynos, seraõ por taes conhecidos, e favorecidos, e bem tractados, e recebam de Nós mercês, e favor, como é razam, que lhe seja feita; e aqueles que bons nam forem, e se quizerem hir, e em nossos Reynos nam estar; pois taes desejos tem, he melhor serem fora delles que nelles estarem; e por sermos nesta cousa requeridos pelos dictos Christãos Novos, e querendo-lhes fazer graça, e mercê, por esta presente Carta lhe outorgamos, e queremos, e nos praz, que daqui em diante a dita Ordenaçam, e Defeza, que lhe tínhamos posta para dos nossos Reynos, e Senhorios se nam irem sem nossa licença, nam haja mais lugar, e arrevogamos, e havemos por nenhuma, e de nenhum vigor, e força; e nos praz, que aquelles, que de nossos Reynos, e Senhorios se quizerem hir para terra de Christãos, o possam livremente fazer, e cada vez que lhe aprouver, assi por mar, como por terra, com suas molheres, e filhos, e todas suas fazendas, sem por ello lhe serem feitos a elles, nem aquelles, que os levarem em suas Naus, e Navios, e assi por terra, costrangimento algum, nem encorrerem em pena alguma. E aquelles, que se forem, poderaõ tornar a nossos Reynos, e Senhorios livremente quando quizerem, e lhes bem vier, e nelles estare quizerem; e em suas ydas, e vindas nam receberam oppressam, costrangimento, nem sem razam alguma, e seram assi hos que ficarem, como hos que se forem, e despois tornarem, favorecidos, e bem tractados, e em todas suas cousas assi como próprios Christãos Velhos nossos naturaes. Item revogamos, e havemos por revogada assi mesmo a Ordenaçam Defeza, que tínhamos posta, pela qual defendemos, e mandamos, que os ditos Christãos Novos nam podessem vender seus bens de raiz, e queremos, que naõ haja a dita Ordenaçam, e Defeza mais lugar, e livremente poderem vender, trocar, escambar todos seus bens de raiz, de qualquer calidade de que forem, e fazer delles ho que lhes aprouver, sem por ello encorrerem nas penas da nossa Ordenaçam, e Defeza: porque Nós a havemos por nenhũa, e de nenhum vigor, e força, como dito he. Item nos praz revogar, e havemos assi mesmo por revogada a Ordenaçam, e mandado, porque defendemos, que se não fizesse com elles Caimbos nenhuns, e praz-nos, que os pssam fazer com quaesquer pessoas, que lhes bem vier, e passar por elle seus dinheiros em quaesquer lugares, que hos ouverem mester para seus contractos, e para qualquer outra necessidade, para que lhe sejam necessários, sem elles, nem hás partes, com que hos fizerem, encorrerem por ello nas penas da nossa Ordenaçam, e Defeza, que sobrello temos feita. Item nos praz relevar, e defeito relevamos a todos aquelles Christãos Novos, que destes Reynos se foram contra nossa Defeza, e mandado, todalas penas Cives, e Crimes, em que tem encorrido por se hirem contra nossa Defeza, e mandado, assi no que tocar a suas pessoas, como fazendas. E estes mesmos, querendo-se tornar para nossos Reynos, e Senhorios, o poderam livremente fazer sem serem costrangidos pelas dictas penas, em que tem encorrido; e querendo nelles assentar, e viver, ho poderam fazer, e seram avidos como se agora à feitura desta Carta em nossos Reynos estevessem para gouvirem, e husarem de todolo, o que esta nossa Carta podem gouvir, e husar hos que agora nestes Reynos estam. Porém declaramos, quando a a pena Civees dos taes, que por quanto poderá seer, que Nós temos feitas mercês dalguns bens, e fazendas dos sobredictos a algumas pessoas, que nesta parte se fará comprimento de justiça a as partes, e aquelles, a que hás ditas mercês tiverem feitas, usaram por ellas do dereito, que teverem,ou hos sobredictos se concertarão com elles, como lhes melhor vier. Item nos praz desobrigar, e avemos por desobrigados todos aquelles, que temos mandado, que dem fianças para se nam hirem fora destes Reynos sem nossa licença; e a aquelles, que hás tiverem dadas, nos praz, que sejam desobrigados das dictas fianças, e assi todos seus fiadores, e livremente poderem fazer de si o que lhes prouver, e de suas fazendas, e em sua estada, ou partida, ho que lhes milhor vier no modo, que acima lho outorgamos; e de todas, e de cada huma das cousas sobredictas os fazemos livres, e hos desobrigamos, e queremos, e nos praz, que por bem das dictas obrigaçoens, e Defezas, que sobre as ditas cousas eraõ feitas, lhe nom seja feicto costrangimento alguũ.  Item lhe promettemos, e nos praz que daqui em diante naõ faremos contra eles nenhũa Ordenaçam, nem Defezas como sobre gente distincta, e apartada; mas assi nos praz, que em todos sejam avidos, favorecidos e tractados como próprios Christãos Velhos, sem delles serem distinctos, e apartados em cousa alguma. Porém o notificamos assi a todos nossos Corregedores, Juizes, Justiças, Alcaides, Meirinhos, e todos outros Officiaes, e pessoas, a que esta nossa Carta for mostrada, e ho conhecimento della pertencer, e lhe mandamos, que em todo lhe cumpraõ, e guardem, e façam inteiramente cumprir, guardar, como nella he conteúdo, sem lhe irem, nem consentirem hir contracousa alguma do que por esta lhe outorgamos, ou parte della, porque assi é nossa mercê. Dada em Tomar a primeiro dia de Março. António Carneiro a fez. Anno de mil quinhentos e sete. E esta mercê lhe assi fazemos, para se poderem hir fora destes nossos Reynos, aquelles que ho quizerem fazer, se entenderá, que elles naõ vaõ, nem se passem em outros Navios, salvo nos dos nossos Reynos, e de nossos naturaes, e não destrangeiros, e com esta limitaçaõ lho outorgamos.”

Pedindo-me os ditos Christãos Novos por mercê que confirmasse a dita Carta; e visto por Mim seu requerimento, querendo-lhe fazer graça, e mercê, tenho por bem de lha confirmar, e hey por confirmada assy, e da maneira que se nella contém: E assim Mandamos que se cumpra, e guarde sem dúvida, nem embargo algum que a ello seja posto, porque assy é Minha mercê. Dada em a minha Cidade de Évora a dezasseis dias de Dezembro. Jorge da Fonseca a fez Anno de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos vinte e quatro.

 

E não se continha mais em a dita Carta, que aqui foi trasladada a pedimento do sobredito, lhe mandei dar nesta com o Sello de Minhas Armas, à qual se dará tanta fé, e credito, como a mesma Original, de que foi extrahida, e esta com ella concertada. Dada nesta Cidade de Lisboa aos vinte e hum dias do mez de Maio. El-Rei Nosso  Senhor o mandou por José Seabra da Silva, Ministro, e Secretario de Estado, e Guarda Mor da Torre do Tombo. Sebastião da Costa Ferrão fez. Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos setenta e três. José da Silveira Moraes Barbarica, Oficial da Reformação do mesmo Arquivo, a fez escrever.

                                                                    José de Seabra da Silva

 

 

Lugar do Sello

 

 

Na Régia Officina Typografica.

João Pacheco Pereira

 

Foi publicada esta Lei na Chancelaria Mor da Corte, e Reino. Lisboa, 27 de Maio de 1773.

                                                                                  Dom Sebastião Maldonado

Registada na Chancelaria Mor da Corte, e Reino no Livro das Leis a fol. 158. Lisboa, 27 de Maio de 1773.

                                                                                   António José de Moura

 

 

 

AVISO

 

A El-Rei meu Senhor foi presente que depois da Santa, Saudável, e Religiosíssima Lei de 25 de Maio do ano próximo passado tem havido nas Confrarias, Irmandades, e outras semelhantes Corporações, Câmaras das Vilas, e moradores delas homens tão cegos, e de tão corrompidos corações, e pensamentos tão bárbaros, que rebelando-se contra todos os princípios de racionalidade, de Caridade Cristã, e do inviolável respeito que devem às Leis de Sua Majestade, se atrevam a escogitar meios, e modos para fraudarem, e transgredirem com cavilações a Religiosa observância da sobredita Lei, para conservarem a discórdia contrária à Sociedade Civil, e à união Cristã, que a mesma Lei reprovou, já pondo por despachos dos antes barbara e irreligiosamente chamados Cristãos Novos – que sejam assentados e recebidos na forma das Leis, e Ordens de Sua Majestade para assim os deixarem maculados com a nota de uma indirecta dispensa, já escrevendo, e mandando escrever os assentos dos sobreditos em folhas diversas das em que fazem assentar os outros chamados Cristãos Velhos; já excluindo-os nas eleições dos Cargos públicos por um modo tácito e negativo, que cause escândalo a todos os moradores das respectivas terras, que claramente conhecem o malicioso fim das ditas exclusões; já enfim dirigindo semelhantes meios ao mesmo objecto de impedir a paz, a cometer a desunião contra o espírito da Cristandade, que animou a dita Paternal, e Santíssima Lei de 25 de Maio de 1773.

E porque uns atestados tão infames, e tão abomináveis desafiam todo o rigor da Leis para os coibir de sorte que não fiquem os menores motivos de tão perniciosa peste: É Sua Majestade servido que V. Mercê  logo que receber esta, por uma parte autuando-a para servir de corpo de delito, proceda a uma exacta devassa, e a um geral exame em todos os livros das Misericórdias, Irmandades, Confrarias, e Corporações, e que achando nelas qualquer das referidas notas maliciosas, proceda a prisão, e remessa dos Provedores, Juízes, ou Cabeças das Irmandades, que achar incursos nos referidos crimes para as Cadeias da Cabeça de Comarca, nas quais se entregarão, e ficarão à ordem do mesmo Senhor, dando-me logo conta das ditas prisões para esta Secretaria de Estado dos Negócios do Reino: Por outra parte mandará logo a todas as sobreditas Misericórdias, Irmandades, Confrarias, e Corporações que lhe apresentem os seus respectivos Estatutos, e Compromissos por que se regem, e achando que neles se conserva algum antigo interrogatório, disposição ou cláusula, pela qual não possa ser admitido às ditas Corporações sem que primeiro pelos Oficiais deles se lhes tirem inquirições sobre a limpeza do sangue, e sem que por meio delas conste não serem os que nele pretendem ser recebidos dos referidos antes chamados Cristãos Novos: Fará V. Mercê imediatamente riscar, e abolir os referidos artigos de tal sorte que mais não possam ler-se nem perceber-se de modo algum as palavras, que forem abolidas; e por outra parte que V. Mercê inquirirá os que nos ditos arrolamentos, e eleições têm omitido os ditos chamados Cristãos Novos, que a referida Lei igualou com todos os outros moradores, para V. Mercê deixar estabelecida a mesma igualdade por modo que mais não fique subsistindo distintivo algum da sobredita reprovada diferença prevenindo V. Mercê que, vindo à presença do dito Senhor coisa que verifique aquele iníqua exclusão, mandará proceder contra os ditos eleitores das Pautas com prisão, e com perpétua inabilidade para entrarem nos Cargos e Ofícios públicos: o que tudo V. Mercê executará na Cabeça da sua Comarca, e nas vilas que jazem ao redor dela na distância de 5 léguas, mandando aos Juízes de Fora, e Ordinários das outras Vilas mais distantes as cópias autênticas desta Real Ordem com a de executarem na forma que nela se contém, e de remeterem a V. Mercê a que resultar das suas diligências para V. Mercê enviar todo o referido à Real Presença de Sua Majestade por esta Secretaria de Estado dos Negócios do Reino.

Deus guarde a V. Mercê.

Palácio de Nossa Senhora d’Ajuda, em 11 de Março de 1774

Marquês de Pombal.

- Para o Corregedor da Comarca de …….

 

L E I

 

Dom José por graça de Deus, Rei de Portugal, e dos Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África Senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc. Aos Vassalos de todos os Meus Reinos, e Senhorios, saúde. Em Consultas da Mesa do Desembargo do Paço, e do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição, me foi presente: Que depois que pela minha saudável Lei de vinte e cinco de Maio do ano próximo pretérito Houve por bem abolir , e extirpar a sediciosa distinção de Cristãos Novos, e Cristãos Velhos; restituindo as habilitações das Famílias ao estado em que se achavam nestes Reinos, enquanto neles não introduziu a malícia sediciosa aquela bárbara, e ímpia diferença; ponderavam ambas as sobreditas Mesas, que para se acabar de pôr o último selo a uma obra, que deu tanta glória à Igreja destes Reinos, como crédito à Nação Portuguesa, se fazia necessário, que eu ampliasse a referida Lei com duas Providências, que desterrem os dois abusos, com que, ainda depois da publicação dela, alguns espíritos alienados pelas antecedentes preocupações; ou ficaram entendendo; ou quiseram entender por uma parte, que os verdadeiros confitentes reconciliados com a Igreja, e por Ela recebidos no seu benigno grémio, podem ficar ainda assim infames, e inábeis nas suas pessoas, e nas dos seus filhos, e netos pela via Paterna; e pela outra parte, que ficam incursos na perda dos seus bens para o Meu Fisco, e Câmara Real; contendo-se nas referidas duas persuasões dois absurdos notórios, e tão intoleráveis, que são contrários a todos os Direitos: Que para excluírem o primeiro deles, consideravam primeiramente, que mandando a sobredita Lei reduzir o estado das Pessoas, e das Famílias aos termos do Direito Comum, não há Lei secular, ou Cânone da Igreja, que irrogue a pena de Infâmia mais do que aos Hereges, que são condenados nas penas de morte natural, e de fogo: Consideravam em segundo lugar, que nem verdadeiramente poderiam ser outras as legislações Eclesiástica, e Civil; porque depois que a Igreja, como benigna Mãe recebe na sua união aqueles verdadeiros, e arrependidos Penitentes; e estes cumprem as penitências, que lhes são impostas; ficam pelas mesmas Leis, e Cânones hábeis, e sem nota alguma nas suas Pessoas, e dos seus Descendentes; como fora expresso no Capítulo Statutum XV. de Hæreticis in Sexto; e como haviam terminantemente declarado os dois Santos Padres Alexandre IV, e Urbano IV às Inquisições de Espanha, sendo por elas consultados sobre este motivo: Consideravam em Terceiro lugar, que o mesmo se concluía pela Ordem da Providência Divina; pela benigna índole da Igreja; e até pela mesma legislação humana; porque pela Primeira, e Segunda os Pecadores verdadeiramente arrependidos, e perdoados ficam livres de toda a mácula dos pecados, e sem alguma nota, que por causa deles transmitam aos seus Descendentes; e porque pela Terceira os Delinquentes, depois de haverem cumprido as penas, em que são condenados, e de haverem por elas expiado os seus delitos, ficam reunidos à sociedade dos outros Cidadãos, sem diferença alguma: E consideravam em Quarto, e último lugar, que esta é a literal, e genuína Disposição do Parágrafo Terceiro da referida Lei de vinte e cinco de Maio do ano próximo precedente, no qual somente Declarei por infames os Filhos, e Netos dos sentenciados, e condenados nas penas estabelecidas nas Ordenações do Livro Quinto, Título Primeiro, e Título Sexto, sem estender de nenhuma sorte a mesma infâmia aos Descendentes dos recebidos, que em tais penas não fossem condenados: Que para excluírem o segundos dos referidos dois absurdos, qual é o da confiscação dos bens: Consideravam também que por uma parte, que sendo esta pena sempre concomitante  da pena capital, e da morte natural, ou Civil dos Réus a ela condenados; não podia ter lugar de nenhuma sorte contra os confitentes recebidos à união Cristã, e à sociedade Civil: Consideravam por outra parte, que sendo a confiscação uma consequência da morte natural, ou Civil; seria uma incompatibilidade contrária a toda a ordem Criminal, que subsistisse à consequência da confiscação dos bens, faltando o necessário antecedente da pena capital: Consideravam por outra parte, que achando-se  o Supremo Poder Eclesiástico, e a Suprema Jurisdição Temporal em cumulativa, e perpétua união no Tribunal do Santo Ofício pela Bula da sua Fundação, e pelos consequentes Alvarás, e Disposições dos Senhores Reis Meus Predecessores; sendo o referido Tribunal privativo, e exclusivo de todos, e quaisquer outros Tribunais para as causas da Fé e da Religião; seria um absurdo ver-se que o mesmo Tribunal pela parte, que representa a Igreja, recebesse os verdadeiros confitentes com o amor, doçura e caridade, que a caracterizam; e pela outra parte que representa a Soberania Temporal, fosse buscar a pena de confiscação imposta somente pelas Leis seculares aos condenados em pena capital, para condenar nela os que são recebidos; vendo-se tudo isto na mesma Sentença, a qual conforme o Direito é indivídua por sua natureza: Consideravam pela outra parte, que esta errónea dissonância, durando por mais tempo, apartaria do Foro da Penitência, e removeria da conversão muitos dos que se achassem a elas inclinados, sendo retidos pelo temor de perderem depois com a fama todos os Patrimónios das suas casas e Famílias: Consideravam pela outra parte, que não podia obstar ao referido o Texto do Capítulo cum Secundum XIX. de Hæreticis in Sexto, que até agora pretextou o referido absurdo , por haver especificado no Preâmbulo dele o Santo Padre Bonifácio VIII alguns crimes, nos quais segundo as Leis Civis se incorre ipso jure na confiscação dos bens: Não só porque a referida pena Temporal de confiscação de bens não era do Foro Espiritual do mesmo Santo Padre, além dos seus Estados; e não só porque as Leis seculares, e dos Meus Reinos, não sujeitam a ela senão os condenados em pena capital na sobredita forma; mas também porque na cláusula final do referido Texto concluiu o mesmo Santo Padre, dizendo, que posto que os bens se entendam confiscados ipso jure, os não deve contudo ocupar o Fisco, enquanto se não publicar a Sentença final sobre o mesmo crime; Sentença, que juridicamente não podia ser outra, senão a condenatória em pena capital, de que a confiscação dos bens é consequência; mas de nenhuma sorte à outra Sentença, que benigna, e misericordiosamente manda receber os bons confitentes ao grémio da Santa Madre Igreja; porque se outra fosse a mente deste Capítulo  cum Secundum XIX ficaria  inconciliavelmente contraditório com o outro Capítulo Statutum XV. do mesmo Título, que só sujeita a infâmia os Réus, que são condenados em pena capital; quando é certo, que conforme o Direito ambos os referidos Textos se devem concordar, e entender conformes nas suas Decisões. E porque como Rei, e Senhor Soberano, que na Temporalidade não reconhece na Terra Superior: Como Protector da Igreja, e Cânones Sagrados nos meus Reinos, e Domínios para os fazer conservar na sua pureza: Como outrossim Protector da reputação, e honra de todos os Meus Fieis Vassalos, de qualquer estado, e condição que sejam, para remover deles tudo o que lhes é injurioso, e nocivo: E como Supremo Magistrado para manter a tranquilidade pública da mesma Igreja, e dos mesmos Reinos, e Domínios, e a conservação dos mesmos Vassalos em paz, e em sossego; removendo dela, e deles tudo o que é opressão, e violência, e tudo o que os pode dividir, e perturbar neles a uniformidade de sentimentos, que constituem a união Cristã, e a sociedade civil, que à sombra do Trono devem gozar de uma inteira, e perpétua segurança nas suas honras, e fazendas: Conformando-me não só com os uniformes Pareceres das sobreditas Consultas; mas também com os outros concordes Pareceres dos Ministros dos Meus Conselhos de Estado, e de Gabinete, que ultimamente ouvi sobre o conteúdo nelas:  E usando no mesmo tempo de todo o Pleno, e Supremo Poder, que nas sobreditas matérias da manutenção da tranquilidade pública da Igreja, e dos Meus Reinos, Povos, e Vassalos deles, recebi imediatamente de Deus todo Poderoso: Quero, Mando, Ordeno, e é minha Vontade se observe inviolavelmente aos ditos respeitos o seguinte.

I.                    Mando, que as razões de decidir dos referidos dois textos Statutum XV e cum Secundum XIX. de Hæreticis in Sextyo, entre si  concordados na sobredita forma; o universal sentimento, e praxe da Igreja com eles em tudo conforme; e o Parágrfo Terceiro da minha referida Lei de vinte e cinco de Maio do ano próximo passado; constituam Perpétuas, e Impreteríveis Regras para nunca jamais se questionar, e muito menos decidir em Juízo, ou fora dele, que os arrependidos, e verdadeiros confitentes, que a Igreja recebe no seu benigno grémio, depois de cumprirem, ou se fazerem prontos a cumprir as saudáveis penitências, que lhes forem impostas, devem ficar, nem ainda nas suas mesmas pessoas, e muito menos nas dos seus Descendentes, ou maculados com as notas de Infâmia, e inabilidade de facto, ou de Direito; ou devem ficar incursos na outra pena de perderem os seus bens para o Meu Fisco, e Câmara Real: Tendo só lugar estas duas penas contra os Impenitentes, que forem condenados à morte, e ao fogo, na conformidade da Ordenação do Livro Quinto no Título Primeiro, e Parágrafo Terceiro da Minha dita Lei de vinte e cinco de Maio do ano próximo precedente.

II.                  Item: Mando, que todas as Pessoas, de qualquer estado, ou condição que sejam, que disputarem, ou alegarem contra o referido particular, ou Judicialmente, incorram nas penas do perdimento dos seus bens; a metade para o Meu Fisco e Câmara Real; e a outra metade a benefício dos que os delatarem, provando legalmente os factos das Denúncias, com que se apresentarem. Sendo porém Juízes, além de ficarem as suas Sentenças reduzidas aos termos da Ordenação do Livro Terceiro, Título Setenta e cinco, como proferidas contra Direito expresso; e de não poderem, como nenhumas, produzir algum efeito, ou prestar algum impedimento; ficarão os que as proferirem privados de todos os cargos, que de Mim tiverem; e ficarão inabilitados para entrar m outros; além das mais penas, que reservo ao Meu Real Arbítrio em quaisquer casos extraordinários, que façam necessárias maiores Providências.

 

E esta se cumprirá tão inteiramente, como nela se contém, sem dúvida ou embargo algum, qualquer que ele seja. Para o que Mando à Mesa do Desembargo do Paço; Conselho Geral do Santo Ofício; Mesa da Consciência, e Ordens; Regedor da Casa da Suplicação; Junta da Inconfidência; Conselhos da Minha Real Fazenda, e dos Meus Domínios Ultramarinos; Governador da Relação, e Casa do Porto; Presidente do Senado da Câmara; Governadores das Armas; Capitães Generais; Desembargadores; Corregedores; Ouvidores; Juízes; Magistrados Civis, e Criminais destes Reinos, e seus Domínios, a quem, e aos quais o conhecimento desta em quaisquer casos pertencer, que a cumpram, guardem, e façam inteira, e literalmente cumprir, e guardar, como nela se contém, sem hesitações, ou interpretações, que alterem as Disposições dela; não obstante os obreptícios, subreptícios, nulos e ilusórios Alvarás de seis de Fevereiro de mil seiscentos quarenta e nove, e dois de Fevereiro de mil seiscentos cinquenta e sete, notoriamente extorquidos naqueles escuros, e escabrosos tempos, com manifestos, e intoleráveis erros de facto, e de Direito; e não obstante outrossim quaisquer opiniões de Doutores, estilos, ou práticas, que em contrário tenha havido; porque todos, e todas, de Meu Motu Próprio, Certa Ciência, Poder Real, Pleno, e Supremo, Derrogo, e Hei por derrogados como se deles fizesse especial menção em todas as suas partes, sem embargo da Ordenação, que o contrário determina, a qual também derrogo para este efeito somente, ficando aliás sempre em seu vigor. E ao Doutor João Pacheco Pereira, Desembargador do Paço, do Meu Conselho, que serve de Chanceler Mor destes Reinos, Mando, que a faça publicar na Chancelaria, e que dela se remetam cópias a todos os Tribunais, Cabeças de Comarcas e Vilas destes Reinos, e seus Domínios; registando-se em todos os Lugares, onde se costumam registar semelhantes Leis; e mandando-se o Original dela para o Meu Real Arquivo da Torre do Tombo.

Dada na Cidade de Lisboa aos quinze de Dezembro do ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos setenta e quatro.

 

EL-REI

Carta de Lei, por que Vossa Majestade: Desterrando os dois absurdos, com que depois da sua Piíssima Lei de vinte e cinco de Maio de mil setecentos setenta e três, houve Pessoas, que quiseram persuadir incursos nas penas de Infâmia, e confiscação dos seus bens os verdadeiros confitentes reconciliados com a Igreja, e por ela recebidos no seu benigno grémio: É servido declarar, e ordenar, que as referidas penas só devem ter lugar contra os Réus Impenitentes, que forem condenados à morte, e ao fogo, na forma da Ordenação do Livro Quinto, Título Primeiro, e do Parágrafo Terceiro da referida Lei de vinte e cinco de Maio do ano próximo precedente; tudo na forma acima declarada.

                                                                                        Para Vossa Majestade ver.

 

Por Resolução de Sua Majestade de doze de Dezembro de mil setecentos setenta e quatro, tomada em Consulta do Desembargo do Paço.

António José da Fonseca Lemos. José Ricalde Pereira de Castro.

António Pedro Virgulino a fez escrever.

José Anastácio Guerreiro a fez.

 

Registada na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino no Livro IV das Cartas, Alvarás, e Patentes a fol. 116, vers. Nossa Senhora da Ajuda em 19 de Dezembro de 1774.

                                                                                  João Baptista de Araújo

 

João Pacheco Pereira

Foi publicada esta Carta de Lei na Chancelaria Mor da Corte, e Reino. Lisboa, 20 de Dezembro de 1774.

                                                                                  Dom Sebastião Maldonado

Registada na Chancelaria Mor da Corte, e Reino no Livro das Leis a fol. 89. Lisboa, 20 de Dezembro de 1774.

                                                                                   António José de Moura

 

Na Régia Oficina Tipográfica.