20-2-2018
Francisco Pinto Balsemão, por Joaquim Vieira - Edições Planeta
NOTA DE LEITURA
Gostei
muito deste livro e tive imenso prazer com sua leitura. O autor
demonstra ter respeito por Francisco Pinto Balsemão,
apesar de este ter sido severo para com ele.
Não
acho que o autor tenha espreitado demais pelos buracos das fechaduras,
como disso foi acusado.
Parece-me
que
certamente
não
inseriu no livro todas as aventuras galantes
do biografado.
Um
grande mérito
do livro
é
referir as pessoas que contaram para acção
política
nas
“jogadas”
em que também
entrava Balsemão.
É
assim que o livro tem
óptimos
retratos de figuras essenciais como foram Marcelo Rebelo de Sousa e
Cavaco Silva. Possivelmente um certo respeito
à
actual
primeira figura da Nação
coibiu o autor de ir muito longe no que toca
a Marcelo. Já
em relação
a Cavaco Silva, há
lá
um bom número
de pontos nos ii. Escalpeliza as Memórias
“políticas”,
sobretudo as convenientes omissões,
o que
é
bom porque a Imprensa continua a adular a figura como fez o próprio
Expresso com a entrevista publicada no número
de
17-2-2018. Já
era tempo para que se deixassem disso e se dedicassem a enumerar as
fraquezas do personagem, um trabalho começado
por Fernando Lima, mas ainda com luvas brancas.
Mas
muitas outras personalidades são
mencionadas como se verifica facilmente pelo
Índice
Onomástico.
Quanto
aos seus méritos
como
“patrão”
do jornal Expresso seria
algo difícil
apreciar todos os jornalistas, colegas do autor, pelo melindre que isso
representaria. Mas constata-se que algumas escolhas representaram um
grande falhanço. No entanto, o cômputo global da vida do Expresso é realmente muito positivo. |
29/08/2017
Joaquim Vieira: Balsemão achava que Marcelo era menos perigoso dentro do Governo do que como director do Expresso
JOANA MARQUES ALVES E VÍTOR RAINHO
Saiu em rutura com o Expresso há anos e agora desafiaram-no a fazer uma
biografia de Francisco Pinto Balsemão. Aceitou e fez um retrato de ‘corpo
inteiro’.
Por que se
lembrou de escrever esta biografia?
Não me
lembrei, foi a editora que me convidou. Não me teria ocorrido fazer a biografia
de Balsemão, mas foi-me lançado o desafio. Ainda hesitei um bocado, de certa
forma, sou protagonista desta história – estive no Expresso, saí em conflito.
Mas após alguma reflexão achei que poderia ter o distanciamento e a isenção
necessárias para fazer a biografia.
As outras
biografias que fez foram ideia sua ou também surgiram a partir de convites?
A do Mário
Soares também foi proposta pela editora. A do Álvaro Cunhal, que é mais uma
fotobiografia, também foi, se bem me recordo, uma proposta. O que fiz pela minha
iniciativa foi uma fotobiografia do Salazar – propus ao Círculo de Leitores em
2000 ou 2001, no seguimento de um trabalho que estava a fazer, a História de
Portugal do século XX através da imagem. Depois decidiram fazer 10
fotobiografias e dirigi essa coleção. Dirigi ainda mais oito fotobiografias. A
partir daí, fiquei uma espécie de biógrafo encartado. As editoras como reparam
nisso vão-me convidando para fazer biografias, mas não sou eu que as proponho.
Quais são as
parecenças entre Balsemão, Soares e Cunhal?
Balsemão tem
mais coisas parecidas com Soares do que com Cunhal. O líder comunista tinha
aquela visão espartana do exercício da vida pública, enquanto Balsemão e Soares
tinham uma visão mais hedonista – a política é para exercer, mas não como uma
obrigação ou um dever, mas com gozo. Se não der gozo, não vale a pena exercer a
política. Além disso, tinham uma tolerância e um espírito de abertura que Cunhal
não tinha, era muito mais inflexível em tudo. Soares e Balsemão também
partilhavam o sentido da negociação do compromisso. Isso é um elemento muito
importante para chegarem a acordo para a revisão constitucional de 1982, que é o
contributo mais importante que Balsemão dá à política em toda a sua carreira.
Esta revisão abre o caminho para a organização do Estado português como um
estado moderno, numa Europa comunitária. Se essa revisão constitucional não
tivesse ocorrido, Portugal não tinha condições para entrar na União Europeia.
E ambos se
dedicavam aos prazeres da vida…
Isso todos
têm, o Cunhal também tinha. Se esmiuçarmos, arranjamos sempre histórias que
fogem um bocado àquilo que é a visão convencional do casamento. O Cunhal nunca
se casou, mas separou-se da mãe da filha para ir viver com a cunhada, uma
história que foi escondida no meio do partido durante muito tempo, mas que
acabou por vir a público. Balsemão namorou com a futura cunhada antes de casar
com a irmã dela. Ou seja, ambos tiveram relações com duas irmãs.
Nesta
biografia, o que vamos ficar a saber sobre Balsemão que ainda não sabíamos?
Além da vida
profissional, são abordados aspetos da vida privada. Quando faço uma biografia
faço um retrato de corpo inteiro, escrevo sobre tudo e não falo apenas sobre a
vida pública. Balsemão tinha um estilo playboy, teve relações com inúmeras
mulheres dentro e fora do casamento. Um amigo dele disse-me que Balsemão não é
uma pessoa imoral, mas sim ‘amoral’, que não tem moral. Nas relações com as
mulheres não havia limites. Mas a história mais complicada e que mais o afeta é
a do filho que nasceu fora do casamento, que ele enjeitou. Primeiro quis que a
mulher abortasse, mandou-a para a Suíça com as coisas todas pagas, mas ela não
fez o aborto e voltou a Portugal para ter a criança. Ele ainda quis que ela
fosse a Londres fazer o aborto e colocou a hipótese de arranjar uma médica para
o fazer em Portugal, mas ela quis ter o filho. Esta mulher ainda tinha uma
relação familiar com o Balsemão, eram primos em segundo ou terceiro grau. Ela
teve o filho e Balsemão não quis que dissesse que era filho dele, não quis que
ele se chamasse Francisco, fez uma grande pressão e negou sempre que fosse filho
dele. Meteu o caso em tribunal e foi perdendo: perdeu primeiro no tribunal de
menores, depois na 1.ª instância, depois na Relação, depois recorreu para o
Supremo e perdeu. No Supremo ainda recorreu para o Pleno do Supremo. Este
processo demorou cerca de sete anos.
A sentença do
Supremo é muito posterior ao 25 de Abril, embora se tenha iniciado antes deste
momento. É condenado e obrigado a aceitar a paternidade, mas só vê o filho pela
primeira vez quando ele tem 17 ou 18 anos.
Como foi o
primeiro encontro?
Escrevo sobre
isso, mas não sei pormenores. Sei que a conciliação foi instigada pela Tita
[mulher de Balsemão] e que acabou por existir um bom ambiente familiar – o rapaz
passou a fazer parte do seio familiar [mais tarde viria a ser administrador do
grupo Impresa].
Não existe
muito a tradição das biografias em Portugal. Acha que será bem recebida?
Quando
escrevi a de Mário Soares ele ficou zangado comigo, telefonou-me a insultar-me
praticamente, a perguntar se eu não sabia que ele era um homem casado. Isto é
como as biografias dos reis e das rainhas, as biografias também falam dos amores
vividos. A diferença é que ele não foi um rei, mas um Presidente.
Estamos a
falar de figuras públicas e estas, sobretudo quando tiveram cargos notórios,
estão sujeitas a um grau de escrutínio que quem não exerceu esses cargos não
tem. É o que acontece também no jornalismo – a própria jurisprudência quando
recebe queixas por invasão da vida íntima de figuras públicas por parte de
jornalistas, esses processos esbarram nos tribunais dos direitos do Homem,
porque a jurisprudência vai no sentido de dar o direito à opinião pública de
conhecer esses aspetos mais privados das figuras públicas. E aqui é o mesmo
caso. Esta situação está amplamente documentada nos tribunais, está lá tudo
escrito, incluindo o facto de ele querer que a mulher com quem teve uma relação
abortasse. Está até documentado que ele arranjou outros homens para tentar
provar que ela era promíscua e que o rapaz podia ser filho de outro – na altura
não havia testes de ADN, por isso não se podia provar cientificamente a
paternidade. Sabe-se também que Francisco Sá Carneiro foi testemunha de defesa
de Balsemão e foi a tribunal depor.
Nesta
biografia fala sobre as mulheres de Balsemão?
Não me refiro
a elas em particular, acho que estaria a expor demais estas pessoas. Embora ele
seja uma figura pública, elas continuam a ter direito à sua vida íntima. A não
ser que tenham sido casos públicos, não faz sentido estar a mencionar nomes.
Falo sobre as secretárias, o Balsemão era especialista em secretárias.
Mas quando
fala em secretárias está a colocar todas em causa...
Estão todas
sob suspeição, mas não acho que tenham sido todas (risos).
Após o
lançamento do livro, está preparado para um processo?
Porquê? Não
vejo razão para isso. O livro foi lido pelos advogados da editora e não
encontraram matéria que pudesse levar a isso. Na altura houve coisas que vieram
a público. Houve até uma notícia sobre uma secretária que era para ser publicada
no Tal & Qual.
Como foi a
infância e a adolescência de Balsemão?
Era um menino
bem, vem de uma família rica, estava num liceu de famílias mais ou menos bem do
ponto de vista material, no Pedro Nunes, em Lisboa. A certa altura, entraram
naquele liceu pessoas que vinham do Gil Vicente, que pertenciam a outro meio
social. Falei com alguns desses antigos alunos, que me disseram que havia uma
distinção de classes, uma certa casta não assumida.
Era uma
pessoa que, desde muito cedo, gostava de ir para a praia do Tamariz meter-se com
as jovens estrangeiras. Quando foi para a Faculdade de Direito, era dos poucos
que ia de carro para as aulas. Antes de ter carro teve uma scooter, com a qual
sofreu um acidente e, por causa disso, esteve preso durante um dia.
Porquê?
Porque
provavelmente foi considerado culpado do acidente e foi detido. Aquilo meteu
advogados e a prisão foi considerada ilegal e foi solto no fim desse mesmo dia.
O acidente ocorreu em frente ao Hospital de São José, perto do local onde era a
Faculdade de Direito naquela altura. Ia ele e um amigo à pendura.
O que o
surpreendeu mais no início de vida de Balsemão?
A
transformação que ele faz a partir da esfera salazarista, muito conservadora,
para uma área mais liberal. Essa evolução dá-se a partir dos anos 60. Tem muito
a ver com a sua passagem no Diário Popular. Ele não era o diretor, mas na
prática era como se fosse, era ele que dirigia o jornal, e por isso tinha uma
luta diária com a censura. Além disso, convivia com jornalistas que eram da
oposição, que partilhavam novos pontos de vista. Creio que isso terá sido muito
importante para a sua evolução.
Depois
aceitou o desafio de Marcelo Caetano: pertencer a um grupo que procurava fazer
com que o regime evoluísse para algo democrático.
A primeira
namorada teve importância na vida de Balsemão?
Foi Helena
Vaz da Silva, uma mulher com quem, segundo um amigo da altura, teve uma relação
que não durou muito tempo. O Balsemão mais tarde dirá, sem dizer o nome da
pessoa, que teve uma namorada que contribuiu um pouco para o início da formação
da consciência política dele. Eu presumo que se estivesse a referir a ela. No
entanto, acho que a consciência política apareceu muito mais tarde.
Essa
consciência surge em que altura?
Ele passou
pela tropa, foi para a Força Aérea e torna-se ajudante do Kaúlza de Arriaga, que
era coronel na altura, secretário de Estado da Aeronáutica, e era um salazarista
convicto. Quando está na Força Aérea torna-se chefe de redação do jornal que
funciona ao serviço dos interesses daquela instituição. Isto acontece quando
começa a guerra colonial em Angola e eram publicados textos totalmente a favor
do regime. Depois de sair da Força Aérea, faz um estágio em advocacia com outro
grande apoiante do regime, que foi seu professor em Direito, Pedro Soares
Martinez. Só depois é que vai para o Diário Popular, onde se dá uma grande
transformação.
E nessa
altura começa a defender a abertura do regime?
Ele era pouco
interventivo. Só depois é que Marcello Caetano o convida para deputado. Ele
estava no Diário Popular e o Marcello estava consciente de que era importante
ter apoios nos media. Ele achava que o Balsemão podia apoiar a política que
defendia. Marcello encarrega o Melo e Castro de criar a lista daquilo que mais
tarde deu origem à Ala Liberal. Quando a lista foi apresentada a Marcello, este
propôs mais dois nomes: o de Balsemão e o de Mota Amaral. Era importante ter o
apoio da comunicação social, mas a verdade é que, nessa altura, Marcello Caetano
enganou-se, porque Balsemão acabou por virar-se contra ele.
Em 1973 forma
o Expresso, mais um sinal de oposição.
Sim, muito
forte. Até porque o Expresso tem uma luta constante contra a censura e o
Marcello fica furioso com a abordagem do jornal. Ao ter criado o Expresso – e
mais tarde a SIC –, Balsemão ganha um papel muito importante na história dos
media. São dois órgãos de informação fundamentais. Por estas vias, Balsemão
contribui para a formação da opinião pública em Portugal, que era uma coisa que
não existia: as pessoas viviam em carneirada, não tinham pensamento próprio, e o
Expresso contribuiu muito para acabar com isso, daí ter tido muito sucesso na
altura. Mais do que as expectativas que o próprio Balsemão tinha.
Com a SIC
aconteceu a mesma coisa: na altura, a opinião era condicionada pela RTP. [A
criação da estação privada] acaba por estar relacionada com a ideia de
‘libertação da sociedade civil’, uma expressão que Balsemão estava sempre a
usar.
E o que
acontece após o 25 de Abril?
Balsemão não
tem um grande papel. Não sei se é por causa disso, mas ele está muito envolvido
no processo de paternidade e acaba por assumir um certo low profile. Ele está
envolvido no lançamento do PPD, futuro PSD, mas o líder é claramente Sá
Carneiro. Mesmo quando há contestações internas, ele nunca ambicionou assumir a
liderança. Chegou a subscrever as Opções Inadiáveis, um grupo de oposição
a Sá Carneiro, que contava com Sousa Franco e Magalhães Mota. No entanto, ao fim
de dois meses, não sei que volta lhe deram mas acabou por sair.
As Opções
Inadiáveis, que começou por ser só uma contestação interna às políticas de Sá
Carneiro, tornou-se a partir de certa altura mesmo um grupo – tinham mais de
metade do grupo parlamentar do PSD. Acabaram por dar origem à ASDI – Ação Social
Democrata Independente – e concorreram às eleições de 80 contra Sá Carneiro em
aliança com Mário Soares – chamava-se Frente Republicana e Socialista. Balsemão
conseguiu tirar o cavalinho da chuva, ficou muito discretamente ao lado de Sá
Carneiro e quando este ganhou as primeiras eleições com a coligação AD (Aliança
Democrática), em 1979, pôs Balsemão no Governo.
Ele tinha uma
legitimidade histórica, era um dos três fundadores do partido, em 74. Sá
Carneiro decidiu ir buscá-lo porque, como Ângelo Correia lhe disse, essa união
era importante: ‘Você tem ali pelo menos uns 7% de votos de Cascais, Estoril até
Lisboa. Isso pode fazer a diferença para ganhar as eleições’. Sá Carneiro foi
mesmo buscá-lo, mas Balsemão não estava muito satisfeito. Esteve no único
Governo de Sá Carneiro, mas houve eleições no fim desse ano – as eleições tinham
sido intercalares e, ao fim de um ano, tinha sempre de haver as gerais – e,
nessa altura, Balsemão disse que não queria ficar no Governo, queria dedicar-se
outra vez ao Expresso.
O Joaquim
Vieira entrou no jornal nessa altura?
Entrei quando
ele era primeiro-ministro, em 1981.
Como é a
ascensão de Balsemão a primeiro-ministro?
Foi um acaso
histórico. Ele não estava talhado para ser primeiro-ministro. Sá Carneiro morre
no acidente de Camarate e Balsemão é o número 2 do PSD. O número 2 do Governo
era Freitas do Amaral, só que este último dirigia o partido minoritário da
coligação AD, por isso coloca-se a questão de quem deveria suceder a Sá
Carneiro. Faria sentido que fosse o líder do partido maioritário. Balsemão
ascende assim a líder do PSD e torna-se automaticamente primeiro-ministro.
Como avalia o
seu papel como primeiro-ministro?
O mais
importante foi mesmo a revisão constitucional. E esta nem sequer compete ao
primeiro-ministro, mas sim aos líderes partidários – a revisão constitucional
deve ser feita no Parlamento, mas a verdade é que aquilo foi combinado. Houve
ligações partidárias e Balsemão participou nas negociações com Mário Soares e
Freitas do Amaral. No fundo, são eles que fazem a revisão.
Como
primeiro-ministro, penso que se diria que se tratou de um governo de gestão. Não
foi um governo muito complicado, não trouxe grandes problemas. Criou um ambiente
do ponto de vista financeiro e económico, que é certo que já vinha do tempo de
Sá Carneiro, que levou ao resgate financeiro do FMI com o Governo do Bloco
Central.
Há quem diga
que Balsemão teve um papel muito importante ao ir buscar os portugueses que
estavam no Brasil para investirem em Portugal.
Mas ainda não
se podia investir nessa altura. Balsemão quis abrir a economia ao investimento
privado, mas teve dificuldade em fazê-lo porque existia uma lei de delimitação
dos setores público e privado. Ele quis alterá-la, mas essa alteração não
passava no Conselho da Revolução (formado por militares), nem no Presidente da
República (Eanes). Essa lei só é alterada mais tarde, após a revisão
constitucional, mas Balsemão sai pouco tempo depois disso. Na prática, esse
investimento só veio mais tarde.
Teve
discussões com Balsemão enquanto primeiro-ministro por causa do Expresso?
Não, mas sei
quem teve – o Augusto Carvalho (antigo diretor-adjunto). Marcelo Rebelo de Sousa
fica como diretor do Expresso durante o primeiro Governo de Balsemão, mas esta
decisão acaba por ser terrível: Marcelo publica coisas que não agradam, faz
críticas e acaba por surgir uma instabilidade dentro do Governo. Ainda em 1981,
seis ou sete meses depois de o Governo ter tomado posse, Balsemão demite-se. Faz
uma jogada à Sá Carneiro – queria mais condições, queria acabar com a
contestação interna no PSD e queria carta branca para formar um Governo mais
forte. Mas Sá Carneiro é Sá Carneiro, Balsemão é Balsemão. São personalidades
completamente diferentes e a confusão continuou. Assim, nessa altura, foi buscar
Marcelo. Ele achava que Marcelo era menos perigoso dentro do Governo do que como
diretor do Expresso.
Regressando
aos problemas…
Pegando nessa
questão do Marcelo: o Augusto Carvalho fica como diretor interino a partir do
momento em que Marcelo é chamado para o Governo. A certa altura, é chamado à
presidência do Conselho de Ministros. Na reunião estavam Balsemão e Marcelo.
Balsemão começa a descarregar no Augusto, dizendo que o Expresso estava a
publicar o que se passava dentro do Conselho de Ministros, mostrando que tinha
informações privilegiadas. Balsemão queria que Augusto dissesse quem é que lhe
dava a informação e o então diretor respondia ‘mas quando era diretor dizia que
o Expresso tinha de ser sempre independente e agora está a ir contra os seus
próprios princípios…’. A certa altura, Balsemão é chamado pela secretária para
atender um telefonema urgente e Marcelo, que está sozinho com o Augusto, diz ‘Oh
Augustinho, ainda bem que você não disse que sou eu que dou as informações. Você
não diga nada!’.
Balsemão é um
jornalista com ambições políticas ou um político que viu no jornalismo um meio?
Acho que é
mais jornalista do que político. Ele torna-se político um bocado por acaso. Não
acho que existisse uma ambição política quer antes quer depois dos 25 de abril.
Claro que depois não se pode ser político a meio tempo, ele teve de assumir o
papel. A verdade é que o Expresso é um projeto político de contestação à
ditadura – não esquecer que o PPD sai de dentro do Expresso. É no gabinete de
Balsemão que o PPD é fundado, com telefonemas para Sá Carneiro, que estava no
Porto, a discutir programa, ideias, nome do partido. O Expresso nessa altura era
mais uma sede política do que um jornal. Depois havia lá uns jornalistas que
eram figuras decorativas. O fundamental era passar certos recados políticos,
certas notícias e as pessoas compravam o Expresso mais pelo noticiário político.
Mas, apesar disso, Balsemão sempre quis ficar na segunda linha, nunca quis
atirar-se para a liderança de nada. Ele aparece como líder em virtude de
circunstâncias que não foram criadas por ele.
Depois da
política, como foi o regresso ao Expresso?
Muito
pacífico. Houve alguma hesitação em relação ao seu regresso enquanto diretor do
jornal. Tinha o caminho aberto para isso, mas achava que não fazia sentido
voltar. Balsemão era amigo do Aga Khan e pediu-lhe conselhos. ‘Não volte ao
sítio onde já foi feliz’, disse-lhe. Mas Balsemão tinha uma costela jornalística
muito forte, deve ter sido um sacrifício muito grande tomar essa decisão
O que se
segue?
A criação da
SIC e a formação do grupo Impresa.
Como vê agora
o estado do grupo?
É quase uma
história de ascensão e queda. O grupo estava com uma dívida muito grande e não
estava a ter a rentabilidade necessária. É uma situação que não será nada fácil
de resolver, tendo em conta o quadro geral dos media, por causa da crise
que os meios convencionais vivem graças ao digital, o acesso livre aos
conteúdos, o Facebook, etc. E quanto maior é o grupo, maior o problema. O grupo
tem estado em crise praticamente todo o século XXI, as várias vagas de
reestruturações e despedimentos que já houve ilustram isso – a partir de certa
altura, Balsemão passou a enviar cartas internas aos trabalhadores que já davam
sinais muito preocupantes.
O que correu
mal?
O problema
aqui está na grande teimosia de Balsemão, que queria manter o grupo centrado no
núcleo familiar. Penso que isso foi a grande asneira. Foi por isso, aliás, que
Pedro Norton saiu do grupo – queria que Balsemão arranjasse um grupo estratégico
europeu, mas tinha de ceder a maioria. Balsemão queria controlar tudo –
despesas, o que se recebe ou não recebe, o que paga aos filhos... Não há nenhum
parceiro estratégico que aceite pôr dinheiro e que depois não controle. Tem de
haver pelo menos uma partilha. Balsemão teve oportunidade de fazer uma divisão
50/50 com a TV Globo e mesmo assim, à última hora, recuou, não quis ceder o
controlo.
A questão da
traição de Nuno Vasconcelos (presidente da Ongoing e afilhado de Balsemão) e
Ricardo Salgado (Grupo Espírito Santo) é abordada no livro?
Sim, falo
bastante disso.
Como reagiu
Balsemão ao aperceber-se dessa traição, já que ambos eram seus amigos e queriam
controlar a Impresa?
Não faço
ideia como reagiu, mas deve ter sido complicado. Quiseram tomar conta daquilo.
Entretanto surgem as investigações judiciais e há escutas de Ricardo Salgado,
nas quais este fala com o Zeinal Bava sobre as negociações que o Bava fazia com
o Balsemão por causa da plataforma de televisão por cabo. O Ricardo Salgado
achincalhava um bocado o Balsemão. Mais tarde, Vasconcelos manda um SMS a
Balsemão a dizer que gostava de se encontrar com ele, ao que Balsemão responde
dizendo que nunca mais o quer ver.
Acha que
Balsemão também não o vai querer ver mais depois da publicação do livro?
Não faço
ideia. A verdade é que já não nos víamos antes (risos). Mas não faço mesmo ideia
de como irá reagir.
Não receia
que as pessoas digam que este livro é uma vingança por ter saído do grupo?
Admito que há
quem diga isso, mas na introdução do livro explico que achei que estava em
condições para fazer a biografia de forma isenta. E nem acho que o livro seja
muito crítico. Quanto a mim, o livro enaltece aquilo que Balsemão fez de
positivo do ponto de vista político e na história dos media. E aponta também os
problemas, como a criação da SIC e 40% do capital que teve de ir buscar ao
estrangeiro, com recurso a um testa-de-ferro. Mas isso é tudo factual, está tudo
documentado.
40% do
dinheiro por detrás da criação da SIC entrou com recurso a um testa-de-ferro?
Sim, 40% do
capital para criar a SIC teve de vir de fora de Portugal com recurso a um
testa-de-ferro, que era um amigo de infância, Luís Correia de Sá. A lei só
permitia que os órgãos de comunicação na altura tivessem 10% de capital
estrangeiro. E Balsemão com 10% não ia a lado nenhum, não tinha dinheiro para a
SIC. Esse Correia de Sá tinha estatuto de emigrante, explorava o catering de
plataformas petrolíferas em vários pontos do mundo, principalmente em Angola.
Isso dava-lhe o estatuto de emigrante, estava registado em Luanda. E os
emigrantes, para poder facilitar a captação de capitais, podiam ter depósitos em
divisas cá dentro e o Banco de Portugal não inquiria de onde vinha o dinheiro.
Balsemão
combina que o grupo Pallas (um grupo de investimento internacional) dava o
dinheiro ao amigo. E assim aparece Luís Correia de Sá com uma empresa em nome
dele, a LCS, com os 40% na SIC. E até há uma comunicado interno do Balsemão a
dizer que a partir do dia seguinte o seu amigo de infância ia entrar com 40% na
empresa.
Mas a
história acaba por tornar-se complicada: Luís Correia de Sá ganhou muito pouco
com isto, uns 110 ou 115 mil euros, mas aparece na lista dos homens mais ricos
de Portugal feita pela revista Fortuna. Afinal, é um dos homens por detrás da
criação da SIC. Correia de Sá estava num processo de divórcio da mulher, que era
belga e tinha ido para Bruxelas com as duas filhas. Ela viu a revista e avançou
com um processo no tribunal de Bruxelas para ficar com metade de uma fortuna que
ele não tinha. Correia de Sá perde o processo e hoje em dia está completamente
falido, na miséria.
Balsemão não
o ajudou?
Que eu saiba
não.
Considera que
Balsemão foi o maior empresário na comunicação social portuguesa?
A título
singular foi, não estou a ver outro com quem se possa comparar. Não há um grupo
tão grande quanto este e não há órgãos de comunicação que tenham tido um peso
tão grande na história recente. Tínhamos de ir ao século XIX, à fundação do
Diário de Notícias, do Século, para encontrar algo que se assemelhasse.
Por que
cultivava a figura de homem austero, que só tinha três ou quatro fatos?
Porque é um
bocado aquilo que ele é. É uma pessoa poupada. É uma coisa que tem a ver, se
calhar, com o ambiente familiar em que cresceu. Há quem diga que ele não é
avarento, mas sim um bom administrador. Mas há aqui uma característica de uma
certa austeridade relativa. Disseram-me que vai comemorar os 80 anos numa
hamburgueria (risos).
Com quantas
pessoas falou para fazer este livro?
Cerca de 60
pessoas. Consultei bastantes arquivos e Balsemão deu-me autorização para
consultar todo o tipo de documentos que necessitassem da sua autorização, como a
ficha da PIDE, a ficha militar, as notas do liceu e da faculdade.
Acha que este
livro vai ter sucesso?
Não faço
ideia. Balsemão não é uma figura muito popular na sociedade portuguesa. O
sucesso que poderá ter estará relacionado eventualmente com a curiosidade que as
pessoas têm em relação às histórias que não conhecem.
Acha que
Balsemão já leu o livro?
Não deve ter
lido, dizem que está de férias no Algarve e o livro foi entregue na quarta-feira
no escritório dele. A não ser que alguém subrepticiamente lhe tenha feito chegar
o PDF…
Acha que
Balsemão vai perder tudo?
Não sei se
vai perder tudo, mas está numa situação muito complicada.Se ele pudesse ficar
apenas com uma coisa não ficava com a SIC, ficava com o Expresso. A SIC tinha de
ser vendida a um grupo internacional qualquer ou à NOS, que poderia contra
atacar a Altice (que comprou a TVI). Mas já ouvi dizer que a NOS não vai avançar
por causa da grande dívida da Impresa.
Futuros
projetos? Uma biografia de Proença de Carvalho?
A de Balsemão
ainda fiz porque me convidaram, mas mesmo que me convidassem, não havia razão
nenhuma para fazer a biografia do Proença de Carvalho (risos).
Marcelo
Rebelo de Sousa?
Já foi feita,
pelo Vítor Matos. Não há muito a acrescentar, a não ser a fase após ter sido
eleito Presidente da República.
E José
Sócrates?
Essa é uma
história que merece ser contada, mas não numa biografia (risos).
Expresso n.º 2340, de 2-9-2017
SEXO, PODER E ROCK’N’ROLL
Um ex-director-adjunto do Expresso lança uma
biografia de Francisco Pinto Balsemão. No pior estilo tablóide, espreita pelo
buraco da fechadura.
Texto: Rosa Pedroso Lima
A receita é conhecida: sexo, dinheiro e intriga
vendem. Se juntarmos a etiqueta “não autorizada” algures no lançamento do livro,
há um ar de interdição que acrescenta picante a um enredo que ganha audiência
garantida. E é disto que se trata. “Francisco Pinto Balsemão, o patrão dos media
que foi primeiro ministro”, da autoria de Joaquim Vieira, é
um
livro monótono e
uma fraca investigação jornalística (desde logo porque o contraditório não
existe e há demasiadas informações suportadas por fonte anónima). Nele perpassa
um
longo e penoso tom
de ajuste de contas, que tolda a leitura. O que não invalida que possa vir a ser
um sucesso de vendas. Será, sem dúvida. Os tablóides são, quase sempre, um
sucesso. Não ganham prémios Pulitzer nem Nobel da Literatura, mas pagam as
contas.
Vamos começar pelo principio. O biografado é
Francisco Pinto Balsemão, fundador do Expresso e do PSD, ex-deputado da ala
liberal, ex-primeiro-ministro, patrão dos media, milionário, figura pública
desde sempre. O biógrafo é Joaquim Vieira, jornalista, documentarista, autor de
várias obras. Trabalhou no Expresso durante 15 anos, quatro dos quais como
director. Saiu, como o próprio refere logo na primeira das mais de
500
páginas do livro, “por causa da elaboração de uma noticia que terá chocado com
os interesses do patrão”.
Joaquim Vieira
chama “declaração de interesses” a esta sua versão dos acontecimentos. Mas nem
por isso deixa de servir como uma espécie de garantia de que “agora” se sente
“capaz de manter o distanciamento necessário” para analisar a vida e as várias
obras do seu ex-boss
—
do “berço de ouro”
a “queda”, como designa alguns dos capítulos sobre os 80 anos de vida de
Balsemão. E, na verdade, talvez este seja o pecado capital desta obra. (Ou, se
analisarmos pelo lado dos resultados finais de vendas, o seu grande trunfo). O
autor é, sem dúvida, parte da obra que pretende relatar de fora. Está-lhe no
currículo pessoal e profissional, forma-lhe o olhar sobre o ‘alvo’ que é objecto
do seu trabalho. A objectividade não existe. Não mora, seguramente, aqui. E o
caso complica-se pelo facto de nem o próprio biografado nem ninguém do seu
círculo mais próximo, ter contribuído para a elaboração do livro. Joaquim Vieira
optou por avançar. Tem o mérito de assumir que correu esse risco, mas o risco
não deixa, por isso, de ser grande.
E foi. Oito décadas de vida não cabem em 500 páginas.
Sobretudo quando há tanta política, negócios e vida para contar, como é o caso
de Francisco Pinto Balsemão. Joaquim Vieira fez, naturalmente, uma selecção.
Tinha de ser. Mas foi na parte pessoal
— Intima
mesmo
— da
biografia do patrão da Impresa que o autor encontrou a principal novidade para
trazer ao prelo. Os romances, casamentos e divórcios tornam-se um ‘filão’.
Descascam-se pormenores sórdidos, citam—se fontes próximas para contar casos
privadíssimos, que, na verdade, só se podem conhecer a dois. Há um olhar de big
brother televisivo que inunda a biografia e que podia ser assumido. Mas nunca é.
Joaquim Vieira chafurda na vida privada de Francisco Pinto Balsemão, encontra lá
o sangue, suor e sexo necessários para aguçar o interesse do público, como se de
interesse público se tratasse. Como se os planos se confundissem. E o autor
confunde-os, propositadamente, com uma justificação hábil: Balsemão terá vivido
“o mais dramático período da sua carreira pública” quando lançou o Expresso.
Tinha saído pelo seu pé de deputado da Assembleia Nacional, com o odioso de
parte da ala liberal e a raiva do regime, para criar o semanário mais inovador
da imprensa da altura. Com isso, acicatou a censura fascista, que faz questão de
lhe trazer progressivas dificuldades a cada edição impressa que sai das antigas
instalações da Rua Duque de Palmela. Ao mesmo tempo, enfrenta na vida privada um
divórcio “escandaloso para a época” e um processo de reconhecimento de
paternidade sobre um filho nascido fora do casamento. O tempo faz cruzar os dois
lados da vida de Balsemão e, assim, de um só golpe, o público e o privado ganham
licença para avançar lado a lado. É uma espécie de mentiras, poder e atá um
pouquinho de rock’n’roll, que o patrão tocava nos tempos livres.
Pelo meio há um mundo de histórias dos bastidores da
política e, sobretudo, dos bastidores dos jornais. Marcelo Rebelo de Sousa é um
dos personagens que emergem no cruzamento destes dois mundos. Começou como jovem
jornalista no Expresso, passou a director do semanário e depois a secretário de
Estado e a ministro do último Governo de Balsemão. Tal como Joaquim Vieira, o
actual Presidente da República tem um passado com o patrão dos media, que o
livro deixa transparecer estar longe de ser pacífico. Marcelo, também ele, não
quis remexer no passado, mas deixou vários recados ao autor da biografia:
“Preferi poupá-lo ao meu testemunho sobre F.P.B. Que nem seria, necessariamente,
negativo”, lê-se na introdução. “É uma decisão minha, própria da velhice,
abstrair de factos e pessoas e suas circunstâncias pretéritas. Para que a
memória tenha capacidade de alojamento
(...) é
preciso que vá criando espaço para isso”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa. Fez
control
+ alt
+
delete, portanto.
Joaquim Vieira passou dois anos a fazer o contrário. A editora agradece.
Balsemão, um príncipe do
jornalismo. E da política
06 Março 2016
No dia em que Francisco Pinto Balsemão faz 80 anos, leia o perfil que Maria João
Avillez traçou do fundador do Expresso, da SIC e do PSD. "Fartei-me de
trabalhar, caramba!", disse-lhe ele um dia.
Francisco Pinto Balsemão, pai do Expresso e SIC, militante n.º 1 do PSD e
ex-primeiro-ministro faz esta sexta-feira 80 anos. Como político e, sobretudo,
como jornalista e empresário da comunicação social, Maria João Avillez
acompanhou de perto a sua vida e faz aqui o seu retrato. Este texto foi
publicado originalmente a 6 de março de 2016.
A rua Duque de Palmela
Hoje já não sorrimos assim. Mas nesta primavera de 1981, Francisco Balsemão
sorria para a jornalista do Expresso, que acabava de receber um prémio
internacional, devido a uma reportagem publicada nas suas páginas. E eu olhava
para o fundador do jornal e na altura primeiro-ministro, como se aquilo que me
ocorria fosse uma coisa a meias. E de certo modo era. O Expresso, ele, eu,
alguns colegas mais, tínhamos sido, por esses tempos, uma espécie de entidade
quase indesligável, tanto oficiáramos em conjunto: a revolução, os militares, o
Conselho da Revolução, Soares, Sá Carneiro, Cunhal, os partidos, o PREC, os
quartéis… Essa vida que vivemos entre dois mundos, duas realidades, balançando
entre o possível e o impossível.
Toda a grande imprensa internacional rumava ao Expresso. A rua Duque de Palmela
era um porto de abrigo para os incrédulos directores dos media que vinham
do estrangeiro e a quem Francisco Balsemão tentava explicar essa quadratura do
círculo que era um país ocidental (e da NATO) onde eleições ordeiras com
resultados que exprimiam uma saúde democrática, coexistiam, em excesso e
desconcerto, com um demencial processo revolucionário.
Sim, toda a imprensa estrangeira ali rumava e aportava. Dos directores do Le
Monde, L’Express e Le Nouvel Observateur, aos gigantes norte-americanos, aos
nossos vizinhos espanhóis, aos alemães, ingleses, italianos. (Como foi, por
exemplo, o caso de Oriana, não a fada mas a Fallaci, que lá foi expressamente
contar ao dr. Balsemão que Cunhal, dez minutos antes, acabara de lhe dizer que
nunca haveria em Portugal uma democracia burguesa). Sim, e essa grande plateia
internacional da comunicação pasmava ao ouvir aquele director suis generis, doublé de
proprietário, doublé de político… Ao mesmo tempo que abria a boca de
espanto face ao que fora daquele edifício de esquina, com vista para o Marquês
de Pombal, ia ocorrendo país fora: golpes, inventonas, prisões, a ocupação do
vespertino “A República”, o assalto à Rádio Renascença, o assalto à embaixada de
Espanha, greves diárias, um Parlamento sequestrado, a quase asfixia de Lisboa.
Enquanto isto, no Expresso, nós ouvíamos, reportávamos, contávamos,
entrevistávamos, 24 horas non stop. De tal forma que um dia até foi
preciso inventar o Expresso Extra que existiu no fogo de 1974/5 e “saía” às
quartas-feiras! Uma invenção do dr. Balsemão para escoar a prodigamente
vertiginosa informação que a Rua Duque de Palmela atraía como ninguém no país,
mas que não durava até ao sábado seguinte!
Mas agora, ao tempo da foto que abre esta história, a política levara-me um
excelente director que no dia em que ela foi tirada era um primeiro-ministro
feliz.
Expresso, que não era “o Scala de Milão”
Aprendi muito com ele. Respirava informação, possuía um agudo sentido da
notícia, sabia construí-la, tinha a boa percepção dos tempos e dos ritmos da
entrevista, uma curiosidade imparável, cheirava bem o ar, aspirava bem o tempo.
Tinha faro, intuição, talento. Tinha paixão. Sempre ofegante, apressado,
desorganizado, impontual — nunca o conheci de outra maneira — era por vezes
leve, por vezes ligeiro. Mas era um jornalista dos pés à cabeça que adorava o
que fazia e foi por isso um óptimo director do Expresso.
E era hábil. Ao conviver tão placidamente numa espécie de tácita “aliança” entre
um assanhado MRPP maioritário na redacção e o então PPD, que ele fundara com
Francisco Sá Carneiro em maio de 1974, tinha o Expresso pouco mais de um ano. Os
comunistas do PCP eram os odiados “revisionistas”, o PS um partido “fascista”, o
PSD não tinha direito de cidade, vomitava-se o CDS. Mas no número 37 da nossa
rua, o casamento de conveniência entre o maoismo militante e os patrões do PPD
vigorou com felicidade: espantando o mundo produzia-se o melhor jornal desse
tempo (e do seguinte).
Mas o patrão, sem nunca perder as boas maneiras, às vezes zangava-se. Era
ouvi-lo, clamando penosamente pelos corredores que “aquilo não era o Scala de
Milão”, quando de manhã deparava com salas semivazias e à tarde com estados de
alma variados — como porventura ele supusesse que sopranos e tenores
permanentemente praticassem… O certo é que tais estados de alma — reais, muitas
vezes e permanentes, quase sempre — atrasavam a saída, programada ao longo da
semana, das diversas prosas rumo à gráfica Mirandela, que era onde, nesses
tempos de glória, se imprimia o jornal. À sexta-feira à noite alguns de nós
esperavam no restaurante Pabe, na porta ao lado do Expresso, ou ali perto, em
mais modestas moradas, que o jornal se materializasse, como um pão que cozesse
no forno e era sempre assim: uma ânsia reeditada, edição, após edição.
Não sou da fundação do Expresso, entrei no primeiro dia de setembro de 1974.
Entrei, é como quem diz: “Vens fazer o mês de setembro, o mapa de férias foi mal
organizado mas depois não te encostas à nossa amizade, não preciso de mais
gente”, disse-me o director com moderado entusiasmo.
Não me encostei, o 28 de setembro é que se encostou a mim. A fatídica data
desabou-me sobre a cabeça como um bem vindo prémio e devo ser das raras pessoas
no país a ousar tal desabafo. Mas a verdade é que a minha conquista do Expresso
se fez à conta das aventuras vividas naquela indecente, armadilhada, longa
noite: o dr. Balsemão gostou do que fiz, reconsiderou e incluiu, coitado, mais
um (parco) ordenado na sua “pesada” (dizia ele) folha de pagamentos.
“Aqui escreve-se sempre dos dois lados do papel de máquina…”, disse-me um dia,
logo no início, no seu amplo gabinete, enquanto me “ditava” uma notícia com o
objectivo de testar os meus (sofríveis) conhecimentos na matéria. “É para
poupar”. O efeito era horrível, mas que importância tinha? Poupava-se.
Com o país a arder, mandava-me a todo lado: que reportasse o que visse e
ouvisse! Dos quartéis que eu frequentava como se fossem pastelarias, às noitadas
no Restelo, no prédio alto onde então habitava o Conselho da Revolução; do
COPCON, aos comandos militares do país; dos Passos Perdidos da Assembleia da
República às sedes dos partidos políticos onde entrevistava, um após outro,
Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal. Ou Zenha, ou
Almeida Santos, ou Amaro da Costa, ou Gama e… toda essa gente pronta a construir
o edifício da democracia civilista e pluripartidária que tão a custo se tentava
erguer.
Depois veio a segunda história: o voto democrático venceu a rua revolucionária,
Mário Soares ganhou as primeiras eleições de abril de 1975, haveria um
Parlamento, iria haver uma Constituição. No ano seguinte, 1976, nasceria o
primeiro governo constitucional. Socialista e presidido pelo mesmo Soares.
Em 1979, Francisco Sá Carneiro escreveria a terceira história. Contra ventos e
marés, o líder da primeira Aliança Democrática ganhou, governou, voltou a
ganhar. Mas, no momento da foto a que aludi acima, Francisco Sá Carneiro havia
morrido e só há pouco tempo é que Francisco Balsemão voltara a sorrir assim: não
lhe fora fácil convencer o seu partido de que seria ele o autor do resto da
terceira história. A bênção de que necessitava como “sucessor natural” não fora
nem rápida, nem unânime.
Mesmo apesar de Eanes ter feito saber ainda antes da sua reeleição para a
Presidência da República que o “sucessor” era Balsemão; ou mesmo apesar de os
(então) poderosos Alberto João Jardim, líder do Governo Regional da Madeira, e
Mota Amaral, presidente do Executivo dos Açores, lhe terem de imediato
manifestado o seu apoio, amparados nas principais estruturas do PSD
(Trabalhadores Social Democratas, JSD, etc.), o céu da AD estava coberto de
nuvens. E de obstáculos: as veleidades do próprio Freitas do Amaral, líder do
CDS que o grupo de ex-ministros do PSD, “fidelíssimos” a Sá Carneiro e coligado
com a oligarquia centrista, preferiria ver na chefia do futuro governo; ou o
influente Eurico de Melo que defendia — e não escondia — para o cargo o
ex-titular das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, opondo-se assim a qualquer outro
nome; havia ainda as “condições” — nunca totalmente esclarecidas — do também
ex-ministro Cardoso e Cunha, como moeda de troca do apoio de grupo mais alargado
que ele, Cardoso e Cunha, garantia representar.
Balsemão suava.
Um dia, estavam essas intricadas negociações em curso, lembro-me de ter podido
avistar-me com ele por breves momentos. Deparei com um político constrangido: as
coisas pareciam fugir-lhe da mão, o ar pesava, ocorreu-me que estivesse sitiado
pela intriga. Não entrou, longe disso, em confidências, mas fez perguntas: “Que
sabes ‘disto’? Que tens ouvido? Com quem tens falado?”.
Horas antes, Francisco Balsemão, que passara a chamar-se “Pinto Balsemão”,
dera-me uma curta entrevista. Ao Expresso, parecera impossível não “editar”
aquele corredor antes da sua mais importante corrida. Voei veloz para a Gomes
Teixeira: “Só tenho dez minutos” e “aquilo, não era uma entrevista!”, avisara o
ex-jornalista… já vestido de chefe do Governo. Vendo-me tomar notas, não
resistiu a si mesmo e perdeu tempo a indicar-me onde pôr virgulas ou fazer
parágrafos…
Mas foi uma entrevista, claro: “Sim, o seu governo fora feito em completa
harmonia com Freitas do Amaral e Ribeiro Telles”; “Sim, houvera alguns
’acidentes de percurso’ , normais na formação de qualquer governo” ; “Não, não
houvera qualquer tipo de pressão vinda de antigos ministros de Sá Carneiro”;
“Sim, fora um processo lento e cauteloso norteado pela preocupação de encontrar
pessoas competentes na AD e não pela mera distribuição de pastas pelos
partidos!”.
A verdade é que ele tentara desenvencilhar-se de quase todos os ex-governantes
do PSD – que melhor que ninguém sabia que conspiravam contra si – começando por
“auscultar” gente fora desse círculo. Como João Salgueiro (desafiado para
assumir as Finanças) ou Henrique Granadeiro (convidado para a Agricultura e
Pescas). Sendo a política a arte do possível, um contrafeito futuro
primeiro-ministro herdou afinal parte desse lote de que Cardoso e Cunha ou
Álvaro Barreto podem ser exemplos. Na contabilidade final havia dez ministérios
para o PSD e cinco para o CDS, entre os quais as Finanças e a Defesa.
E o Palácio das Necessidades fora entregue a um independente, André Goncalves
Pereira. (Relembremo-lo porque vale a pena, que tal desafio não surgira pela
primeira vez na vida do professor e célebre advogado lisboeta: Marcelo Caetano,
após a saída de Franco Nogueira do seu Governo, convidara Gonçalves Pereira,
tinha ele então 32 anos, para esta mesmíssima pasta. Anos depois, Sá Carneiro
sondara-o para outras duas.)
Se não foi só por amizade que desta feita, em janeiro de 1981, André Gonçalves
Pereira aceitou o repto de “um amigo íntimo”, a verdade é que a amizade não pode
ter deixado de pesar e muito. (A curiosidade faria o resto.)
Completado o governo, a posse ocorreu a 9 de janeiro de 1981. Mas o chefe do
Governo tomara boa nota de cada amargura sofrida. Uma talvez insuspeita
“capacidade de fogo” e o seu ancestral e renitente “nunca esquecer” fazem, por
exemplo, com que ainda hoje haja pessoas “vetadas” nos circuitos que comanda: no
mundo profissional, ou no seu círculo pessoal.
Fosse como fosse, nesse longínquo janeiro de 1981, Pinto Balsemão podia
continuar a escrever a terceira história. E voltar a sorrir.
A sua liderança foi o que pôde ser, numa governação que, além de sempre cercada,
lutava diariamente para lograr a delicada transição para uma democracia plena,
enquanto nunca descurava a frente europeia.
Sim, houve um cerco, dentro e fora do Governo. Abrilhantado pela soma de duras
críticas públicas atiradas com frequência e estridência e remetidas por uma
dupla de peso (Cavaco Silva e Eurico de Melo), acusando o então chefe do Governo
de ”incapacidade de liderança do governo, da AD, do próprio PSD”; o CDS
revelou-se mais padrasto que parceiro; a estrada governamental viria ser a
muitas vezes dinamitada pelas humilhações do Presidente Eanes, que a partir de
certa altura passou a receber em audiência o seu primeiro-ministro de gravador
ligado, porque “desconfiava” dele.
E, last but not least,
a tutela militar que ainda existia (e uma comunicação social pouco meiga)
fechavam o cerco.
Não consta igualmente que a “sociedade civil” tenha reagido com a vivacidade
esperada à chamada do então chefe do Governo. Fora uma expressão que o país de
abril ouviria pela primeira vez e a cuja “libertação” Balsemão apelou — e bem,
era um liberal — na sua tomada de posse. Posteriormente, fê-lo em diversas
outras ocasiões. Estava a ser fiel à sua matriz de sempre e, como tal,
ambicionara retirar o país das garras do Estado, almejara outra concepção da
sociedade, sonhara com um Portugal mais amadurecido na sua capacidade de
resposta. Muitos anos depois, ainda confessava alguma “desilusão” face à sua
inicial expectativa sobre o resultado dos seus apelos a uma sociedade civil mais
interventiva… (e provavelmente também mais forte).
Havia também quem estranhasse que a experiência acumulada como ministro de
Estado e número dois de Sá Carneiro, o gosto pela política, o jeito para
“diálogo”, uma genuína e permanente procura de consensos, a propensão natural
para o compromisso, as boas maneiras, não tivessem logrado um voo mais largo do
governo; ou que o talento, a energia, a intuição, a capacidade de trabalho do
jornalista/empresário, tivessem tido eco mais pálido no político.
Perguntar-se-á: o saldo deveria ter sido maior?
E quando se começar a desenrolar o anel de adversidades que rodeou estas duas
governações da Aliança Democrática e as circunstâncias em que elas ocorreram,
concluir-se-á que se colheram mais nozes que vozes, ou será o contrário?
Pesará, por exemplo, mais o êxito da revisão constitucional e uma boa velocidade
a caminho da Europa ou o agravamento do estado de saúde das Finanças que viria a
desaguar, meses depois, na segunda vinda do FMI a Portugal?
Entre os olhares apressados de ontem e o rigor que pautará amanhã o veredicto da
História, o “hoje” ainda não é claro.
Seja como for, o que me interessa, o que para mim corresponde ao cerne da
questão, é tentar definir a natureza do personagem, ainda hoje envolta pelo véu
da dúvida que divide as plateias: Pinto Balsemão politico ou… Francisco Balsemão
jornalista? Devemos distinguir entre cada uma das duas faces desta moeda?
Louvando mais a “coroa” onde está impresso o patrão da media,
do que a “cara” que contém inscrita o governante? Apreciando melhor o motor da
ambição do homem da imprensa, do que o engenho ou as façanhas do político?
Eis uma boa questão.
O sucessfull jornalista,
o poderoso empresário, o persistente homem de negócios, o gentleman civilizado
e cosmopolita que o país conhece substituíram o político, consolando-o assim da
nostalgia pelo que podia ter sido e não foi? Ou a vocação jornalística levou
sempre a melhor sobre a política porque era essa a idiossincrasia de Balsemão?
Essa a sua vontade vocacional mais antiga?
Julgo que era. Jornalista dos pés à cabeça, repito. Tinha em comum com Jean
Jacques Servan Schreiber o terem querido ambos fazer um jornal liberal em França
como em Portugal, onde não havia liberais, e fizeram-no, um e outro. Mas, ao
contrário de Servan Schreiber, que fundou o L’Express para com ele ir abrindo os
caminhos da política que contava vir a pisar (e não pisou), Balsemão inventou o
Expresso muito por paixão pelo jornalismo — e, por vezes, parecia que ela lhe
bastaria — apesar da política, que já experimentara anos antes, o vir a levar
mais tarde ao topo do Estado.
Voltando ao jornalista, julgo que se o país sempre o encaixou com naturalidade e
verosimilhança nessa sua vocação, olhando-o prioritariamente como um grande
patrão da imprensa, terei que lembrar que o mesmo não terá ocorrido com o olhar
de Francisco Sá Carneiro e importa aqui sublinhá-lo: quando ambos integram a Ala
Liberal; quando os dois, sentados lado a lado na Assembleia Nacional redigem
diversas propostas de lei a favor dos direitos fundamentais; quando discutem
intervenções e iniciativas comuns; quando trocam desabafos desalentados sobre o
regime de Caetano; quando concertadamente decidem abandonar o hemiciclo de S.
Bento, é evidentemente com o político que Sá Carneiro “está”. O jornalista tinha
nome, tarimba, era talentoso, mas ele, Sá Carneiro, sabia que iria precisar de
políticos. E foi com um político que na pessoa de Francisco Balsemão ele contou
para a aventura de um futuro político comum.
Só uma única vez vi Francisco Sá Carneiro “triste” com o seu amigo: como é que o
proprietário do Expresso consentia na “pouca vergonha” em que se encontrava
naquela altura? Tudo “tinha limites”… Subentendido: trabalhar mediaticamente a
política daquela forma enviesada mancharia de “indiferença” quem era suposto
estar em posição de não consentir – nem apreciar – tal estado de coisas.
Falava-me com um misto de espanto e pena. E tanto assim era que ele, Sá
Carneiro, decidira patrocinar um novo jornal (avisando-me de resto que eu iria
ser contactada para a empreitada e cheguei a sê-lo por um dos seus secretários
de Estado com quem, apercebi-me depois, muito o então chefe do governo já
discutira e detalhara tal projecto).
Em suma: para grandes males, grandes remédios.
Este extraordinário diálogo ocorreu em Viseu, num domingo de novembro, (dia 23,
mais exactamente) de 1980, em plena campanha eleitoral para as presidenciais. A
Aliança Democrática apoiava o general Soares Carneiro e Sá Carneiro, aos fins de
semana, “descia” ao terreno da campanha eleitoral que eu cobria para o Expresso,
justamente. Falávamos nessa noite numa sala do Hotel Grão Vasco e fiquei
siderada: um novo jornal? Como, com quem, quando? Mas era verdade. Ou melhor,
não fora o destino ter-se tão devastadoramente encarniçado contra Francisco Sá
Carneiro, e teria porventura sido verdade.
Voltando a Balsemão: política ou jornalismo? Um dia, respondeu-me assim: “A
minha carreira profissional foi sempre muito mais jornalística que política”.
Foi no início dos anos 90 do século passado e fiquei elucidada.
Abra-se, porém, agora um parêntesis pois entre a Duque de Palmela e o Palácio de
S. Bento houve sempre algo que muito o interpelava, dura até hoje e pude
testemunhar de perto: a política externa. E aí, não só sobrava talento como
alguma coisa de parecido senão com vocação, pelo menos, com “convocação”. Os
assuntos externos e os seus desafios e os seus complexos territórios; a
diplomacia e os seus segredos; as nuances
e subtilezas da sua condução, teriam tido aqui um protagonista à
part entière. Foi certamente por saber isso que Francisco Sá
Carneiro lhe entregou essa “pasta” no governo-sombra que constituiu, no final da
década de 70, do século passado.
“São matérias que sempre me interessaram e julgo conhecer alguma coisa neste
domínio”, disse-me um dia, numa entrevista. “É um desafio intelectual de que
gosto e onde me sinto à vontade”. Não se sabe se Ramalho Eanes gostava tanto
como ele mas sabe-se o essencial: o cerne da tensão e do conflito que veio a
opor o então Presidente Eanes e o então primeiro-ministro Francisco Pinto
Balsemão, radicavam justamente nas contrárias visões que ambos tinham sobre a
condução de alguns dos nossos dossiês externos. Uma área onde quase tudo veio a
opô-los e que azedou talvez irreversivelmente a relação institucional entre
ambos.
(Valerá, aliás, a pena enunciar brevemente algumas dessas mesmas áreas,
portadoras de conflito. É que pela sua variedade e natureza exibem à vista
desarmada como tantas delas seriam “utilizadas como pretexto de conflito mais
porventura do que real matéria de desacordo: invasão do Afeganistão; demissão e
nomeação de embaixadores; “caso Pintasilgo”, Congresso das Comunidades; visitas
a Portugal de Senghor, Karl Carstens e Jimmy Carter; visita de Eanes à Itália e
à Noruega; caso dos pescadores aprisionados pela Frente Polisário).
Dez anos após a saga governativa, novo encontro diante de um microfone.
Eu pedira-lhe que olhasse para trás e se revisse como chefe do Governo. Lesto e
leve como sempre, sem que nada nunca parecesse pesar-lhe, olhou de facto para
trás, reviu-se no seu gabinete do primeiro-ministro, e com desarmante franqueza,
gostou do que viu e de se ver: “A história faz-se com distância, leva tempo”.
E ei-lo, a recapitular-se: quando deixou o Governo “o país tinha
indubitavelmente ultrapassado o point
of no return na questão da CEE”; “só a partir de 1982, (com a “sua”
revisão constitucional que pusera termo à vigência do Conselho da Revolução) é
que Portugal se tornara uma democracia plena, de padrão ocidental”.
E, quanto a ele, “saíra quando quisera e não quando quiseram que ele saísse!”.
A diferença é que saíra de vez: exit política.
Tudo acabaria ali (mas certamente não como ele teria gostado).
Tinha porém razão no que, extra muros ou inter muros, elegera a seu favor, como ex-libris do
seu Governo: a caminhada da nossa integração europeia e a revisão
constitucional. A partir de meados de 1982, e dada “a boa aceleração negocial” e
o facto dos variados dossiês portugueses estarem em vias de serem fechados
tecnicamente, ficou claro para o seu Governo que seria possível concluir o
processo de adesão até ao início de 83. (O Presidente Mitterrand, numa visita a
Portugal, efectuada por essa altura, chegou a aludir a “une Europe
a onze”).
A ideia — e a meta — agradavam naturalmente ao então primeiro-ministro Pinto
Balsemão que percorria capital atrás de capital, avistando-se num corrupio com
os Helmut Schmidt, Mitterrand e Giscard deste mundo… Até se tornar evidente —
conforme de resto recordaria o próprio Balsemão em conferência produzida no
inverno de 2014, no Ministério dos Negócios Estrangeiros — que as posições da
Alemanha e França, desculpando-se com pretexto da Espanha não poder ser deixada
de fora, foram permanentemente inviabilizando a pretensão portuguesa. Uma
inconclusiva valsa dançada pela Alemanha e pela França, “culpando-se mutuamente”
pelo adiamento do ensejo português. Apesar de a meta da adesão ter sido afinal
só cortada em junho de 85, o que interessa é que quem governava o país “se dizia
pronto”, quase dois anos antes.
O segundo facto foi uma revisão constitucional promovida em 1982 pelo Governo e
acertada entre o PSD, o PS e o CDS. Era a chave que abria mais uma porta de
acesso a uma democracia civilista e civilizada, de matriz ocidental. Uma vida
“normal”, numa palavra. Reconhecê-lo hoje será talvez mais fácil do que tê-lo
feito ontem. Mérito do maestro que soube pôr instrumentos e músicos em boa
harmonia e grande mérito de Mário Soares: “Os debates vivos onde, como líder da
oposição, critiquei e interpelei o então primeiro-ministro não nos impediu, em
1982, que nos tivéssemos posto de acordo na necessidade de uma revisão
constitucional profunda. Essas negociações entre PS e PSD levaram a alterações
na Constituição que tornaram Portugal numa democracia plenamente civilista e
ocidental. Foi um período difícil de pressões e violentos ataques, vindos até do
interior dos nossos partidos. Quero por isso prestar homenagem à sua (de
Francisco Balsemão), determinação”. (Escrito de Soares em Fevereiro de 1991 no
jornal Público.)
E no entanto… convém que a memória seja séria, para além de viva: é também
verdade que essa harmonia que tornou possível a articulação política entre PSD,
CDS, PS não terá sido exclusivamente provocada pela bondade da AD ou os dotes
dos maestros Balsemão, Soares, Freitas do Amaral. Era já o ar do tempo, eram já
as sementes da nova era política que se anunciava, era sobretudo já uma viva
animosidade comum contra Eanes…
Tudo isto tinha um nome: chamou-se Bloco Central e nasceria politicamente meses
depois. Mas isso, quem sabe, o primeiro-ministro Pinto Balsemão possivelmente
ainda não lera nas estrelas.
Tudo destinava Francisco Manuel Castro Pereira Pinto Balsemão, nascido em Lisboa
a 1 de setembro de 1937 a uma vida diferente: o berço, a família, o meio, as
posses familiares. Filho único e tardio, foi criança protegida e adolescente
mimado. Era o “Francisquinho”. Mais crescido, jogava ténis com o futuro Rei de
Espanha (Juan Carlos), tinha dinheiro de bolso, guiava um carro desportivo,
namorava suecas loiras, frequentava as boites do Estoril e de Cascais e
sobressaltava as namoradas que não gostavam de indesejadas competições com
estrangeiras do norte da Europa.
Tinha 32 anos e decidira-se pela política, ocupando-se dela. A sério, uma vez
mais. E a recém-formada Ala Liberal é a melhor ponte para esse mundo novo: um
movimento político nascido em 1968 que pretendia uma moderada transição do
regime autoritário para a democracia liberal praticada na Europa ocidental.
Integrada por gente já algo politizada como José Pedro Pinto Leite, Miller
Guerra, Mota Amaral, Sá Carneiro, Balsemão, entre outros, tinham todos em comum
uma enorme vontade política de liberalizar o regime. Não era dizer pouco.
Consentida por Marcelo Caetano que via nela a melhor credibilização da sua
“abertura” e uma boa moldura para a então chamada “primavera marcelista”, a Ala
Liberal viria a concorrer às eleições de 1969, nas listas da União Nacional.
Fora pois com entusiasmo e empenho que Francisco Balsemão se sentara no
Parlamento, junto de gente que como ele escolhera lutar por duas ou três coisas
que lhes eram caras. Não conhecia Francisco Sá Carneiro. Mas como tinham o mesmo
nome, “o mesmo sentido de humor” e se sentavam lado a lado, nasceu uma
cumplicidade que cedo desaguou em sólida amizade. As posições vigorosas que
enquanto jornalista Balsemão assumira contra a censura no Diário Popular
tornam-no notado no Parlamento e fora dele. Marcelo Caetano, de quem fora aluno
no curso de Direito, apreciava-o. Tinham uma “boa relação”, conversavam,
Balsemão manifestava-lhe “preocupações”, era amigo dos filhos, frequentava por
vezes a Rua Rodrigues Lobo onde habitava o chefe do Governo. Em suma, era bem
visto e bem-vindo na casa.
A Ala Liberal acabou mal (aos poucos a desilusão ia provocando o abandono dos
deputados e a sua saída da Assembleia Nacional) mas deixou-lhe uma certeza: nada
ficaria por ali. E uma lição: a política dava trabalho.
Tempos depois, um segundo revés: a venda, pelo seu tio, da maioria do capital do
Diário Popular a um banco. “O Francisquinho pôs luto”, assim lembrava numa carta
um dos mais inesquecíveis colaboradores do jornal e amigo fraterno de Francisco
Balsemão, o (formidável) escritor Ruben A., participando também ele deste
“desgosto”. Esse mesmíssimo Ruben A. que um ano depois iria inventar o nome de
Partido Popular Democrático, para o novo partido fundado por Francisco Sá
Carneiro, Francisco Balsemão e Joaquim Magalhães Mota.
A nova formação partidária nasceu a 6 de maio de 1974, chamava-se “PêPêDê”, era
um partido que se queria reformista e de centro esquerda e marcou o país até
hoje. Não só pelas fortes lideranças de Sá Carneiro e Cavaco — e a conquista de
diversas maiorias absolutas — mas por ser feito de uma indefinível mistura entre
todos os extractos da população do Portugal que havia “antes” de abril de 1974,
e do “país” que veio a surgir depois. O que talvez seja afinal o seu segredo e
simultaneamente o seu exclusivo: uma espécie de Benfica, e tão transversal como
ele, na sociedade portuguesa.
Voltando ao nosso homem: o “luto” pela perda do Diário Popular não o submerge:
reagindo à morte da Ala Liberal e à venda do vespertino, inventa o Expresso.
Rodeia-se de gente, reflecte, escolhe, decide, reúne incansavelmente, manda
gente para Inglaterra “aprender”. Causando impacto e estrondo no meio português
de então, vai somando poder e ganhando influência. Duas décadas depois repete o
gesto, produzindo uma estação de televisão, baptizada SIC e não deixando nada
como estava antes: nas mentalidades, na política, nos costumes, no país. E, bem
entendido, no panorama audiovisual português.
Era de facto um liberal — num Portugal onde eles eram escassíssimos – que lutara
pela imprensa livre, sonhara com a “libertação” da sociedade civil, fizera um
jornal liberal e concretizara uma estação de televisão privada. Assinando desta
forma um feito raro ao produzir meios de comunicação que haveriam de marcar
determinantemente duas gerações muito distintas, filhas de dois países
radicalmente diferentes: o Portugal de 1973, acinzentado e sem velocidade, a
meio caminho entre os restos da ditadura e a democracia com que titubiantemente
sonhava; e a pátria desenvolta, aberta, cosmopolita e europeizada (e já
endividada) da década de 90, do século passado.
Poucos se poderão em Portugal gabar do mesmo.
A concretização da SIC em 1992, para além de o ter levado a aprofundar os
complexos segredos das novas tecnologias da informação e a aprimorar-se em
caminhos nunca dantes navegados como era para si a televisão, foi sobretudo um
acto de profissionalismo ao mais alto nível: muito tempo de maturação, boas
equipas, saber, trabalho, critério, suor, meios, acerto na escolha dos sócios,
visão na parceria com a RTL e a Globo. Mas se não se disser agora que uma das
coisas que mais o caracteriza — e sobretudo o identifica – é o saber criar
“espaços de liberdade” e que foi com essa “arte” que inventou o Expresso e com
ela que três décadas depois fez a SIC, (como entretanto também já fizera quando
presidiu ao Instituto Sá Carneiro) não se compreenderá tudo sobre este
personagem. Importância fulcral da liberdade e (sempre!) rigor nas contas.
“A SIC não pode ser para perder dinheiro, tem de se iniciar modestamente… O
Expresso começou em meio andar da Duque de Palmela, hoje ocupa quatro andares…”,
disse-me uma vez, na véspera do nascimento da “sua” televisão.
A verdade é que a credibilidade do seu grupo empresarial é directamente
proporcional ao seu prestígio no país. E fora de portas – insisto — ainda mais.
Não sendo indiferente às honras deste mundo — tem recebido distinções e
condecorações – pouco lhe subiu porém à cabeça: não se exibe, nunca foi
pretensioso: confessou-me um dia numa entrevista que tinha “só um blaser e um
único fato” (e um deles “já velho”, não me lembro qual). Não ostenta marcas,
lida com simplicidade com o dinheiro. E, sobretudo, trabalha no duro. Uma vez,
há muito tempo, era um escaldante dia de agosto, fui dar com ele, sob um sol
avassalador, sentado a uma mesa debaixo de uma árvore, na casa que alugava na
Quinta do Lago, no Algarve. Apesar de se encontrar de férias, trabalhava, desde
cedo, afogado em papéis. Com gosto. O gosto pela vida, o espírito de festa, o
sucesso, nunca lhe impediram que multiplicasse por mil o dom do trabalho. Nem a
sua desorganizada gestão do tempo ou a sua impontualidade o tornaram infiel face
aos compromissos assumidos e foram centenas e de natureza diversa. (Era
raríssimo faltar a uma aula nas universidades onde leccionou durante anos mas,
quando tal ocorria, apresentava-se aos alunos aos sábados de manhã, para
substituir a ausência forçada).
“Fartei-me de trabalhar, caramba!”, ouvi-lhe eu, num jantar em casa de amigos
comuns, no dia em que o Expresso celebrou os seus 35 anos. Fora convidado pelo
jornal como guest star para
inspirar e fazer essa edição de aniversário. Tinham sido cinco dias intensos de
labor para produzir um “resultado” com a sua assinatura e inspirado por si.
Mas este cavalheiro que vivia com saudades das redacções era, nessa noite, o
mais feliz dos convivas e um jornalista felicíssimo.
O prestígio e a influência alimentaram rumores de ambições presidenciais. Belém
passou-lhe pela cabeça. Não avançou preferindo apoiar Mário Soares, de quem
sempre gostou e mais tarde — a contra gosto — Cavaco Silva, a quem nunca perdoou
alguns gestos do passado (e de quem foi conselheiro de Estado.) Mas preferindo,
isso sim, consagrar-se ao seu grupo de comunicação. E à vida, para a qual nunca
teve o tempo que gostaria.
Tempos atrás, decorria o ano de 2014, ouvi Pedro Passos Coelho referir-me o
“gosto” que teria numa candidatura presidencial de Francisco Balsemão. Em 2015
voltei a ouvir o mesmo ao então primeiro-ministro. Tinha razão. Teria sido — com
Jaime Gama, e escrevi-o mais de uma vez – a mais sólida, séria e prestigiada
“dupla” que a direita e a esquerda poderiam ter oferecido ao país, em janeiro de
2015.
Deus às vezes dorme.
Quanto ao mais, a vida segue. E o trabalho também, claro. Além disso, Francisco
Balsemão continua a jogar golfe, a tocar bateria (às vezes piano), a dançar, a
“divertir-se”. Viaja incansavelmente, mima os netos, aprende coisas, descobre
outras, retém todas. É isso, a vida continua. E sobretudo, ele também.
O artigo original foi ligeiramente editado para reflectir alterações temporais e
de contexto.