19-2-2017

 

 

O Regimento de 1640 e a justiça inquisitorial portuguesa: “conforme a melhor e mais segura opinião e estilo do Sancto Officio

 

Tese de Mestrado de Ana Caldeira Cabral Santiago de Faria, defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 25 de Outubro de 2016

Orientador: Doutor José Pedro de Matos Paiva

Classificação: 19 valores

 

 

 

No mês de Outubro passado, foi defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra a tese de Mestrado em História acima referida.

O título da Tese só o posso aceitar se se colocar a palavra “justiça” entre aspas. Na Inquisição, não havia justiça, apenas se faziam condenações. Como é meu hábito, apenas discuto a Inquisição no que respeita ao tratamento que dava aos cristãos novos ou considerados pela instituição como tais. Eles representavam mais de 80 % da sua actividade e certamente não haveria Inquisição se não fosse por causa deles.

Após o 25 de Abril, a Universidade continuou a tratar a Inquisição, tal e qual como dantes. Parecia-me a mim que o ensino deveria ter evoluído tendo em conta a saída de um regime ditatorial, onde era coarctada toda e qualquer liberdade de expressão. Esperava também que o mesmo acontecesse com o estudo da colonização portuguesa e da escravatura. Mas, nada! Continuou tudo na mesma.

Dos lados de Itália veio depois a ideia de que a Inquisição Portuguesa tinha morto pouca gente (não terá chegado a 3 000), o que até era verdade, mas esqueciam-se do sofrimento e perseguição dos 60 000 penitenciados. Aos relaxados, acabava-se-lhes  o sofrimento com a morte, mas os penitenciados saíam doentes, ou mesmo aleijados para toda a vida pelo tormento e continuavam a sofrer perseguições, miséria, fome e o opróbrio da sociedade até à morte.

Infelizmente, o estudo da Inquisição é dificultado desde logo pela política cega dos Arquivos que não deixam consultar os documentos, esquecendo-se que estes não têm qualquer valor se não forem estudados. Felizmente alguém com visão mandou digitalizar e pôr na Internet todos os processos da Inquisição de Lisboa, o que facilita o estudo destes, e é já quase suficiente pois a Inquisição de Lisboa era apesar de tudo mais racional do que as de Coimbra e Évora.

Outra pecha que distorce o estudo da Inquisição é a aliança contranatura entre a direita católica e os meios judaicos: ambos defendem a razoabilidade da Inquisição por motivos opostos, os últimos contentes pela persistência (!) do credo judaico (seja lá o que isto for) e os primeiros porque na ideia deles, a Inquisição punia mesmo a crença judaica.

A tese de Ana Caldeira Cabral Santiago de Faria tem bastante investigação subjacente, mas é claro que não posso concordar com a sua conclusão de ter havido uma justiça inquisitorial.

Desde logo, ela tem inerentes duas conclusões com que não concordo:

1-     O Regimento de 1640 é muito mais completo que o de 1613. Eu acho que pelo contrário, o  Regimento de 1640 não inovou grande coisa. Fez uma organização sistemática mais perfeita que a de Regimento de 1613, onde já estava tudo ou quase tudo.

2-     Os textos do Inquisidor António Portocarrero permitem interpretar melhor o Regimento de 1640 e conhecer a prática das Inquisições no seu tempo.

António Portocarrero, Doutor em Cânones, foi nomeado Deputado da Inquisição de Coimbra em 1698, Promotor em 1699, Inquisidor da mesma em 1704, Deputado do Conselho Geral em 1717 e faleceu depois em 1718.  Os escritos dele têm um interesse muito relativo, todos os Inquisidores gostavam de escrever muito para se distinguirem, mas não tinham autoridade para dar regras para a actuação dos outros Inquisidores.

No início do séc. XVIII, a Inquisição estava já em decadência. Uma boa parte da população portuguesa tinha sangue judeu entre os seus antepassados, era impossível prendê-los todos. Para continuar a arranjar clientela, a Inquisição desenvolveu a caça aos cristãos novos do Brasil, perseguiu os desgraçados que eram acusados de novo depois de penitenciados e considerou-os relapsos. Por acaso, deixou de condenar estes automaticamente à morte, de outro modo seria uma carnificina. Há nesta época centenas de processos com a numeração -1, segundos processos contra as mesma pessoas.

Autores respeitados que escreveram sobre a Inquisição sublinham a especial crueldade inquisitorial desta época. Assim Fortunato de Almeida, na História da Igreja, vol. II:

Derivou talvez da sua (de Nuno da Cunha e Ataíde) influência a exacerbação do rigor inquisitorial no seu tempo, facto que de outra forma não sabemos explicar” .

Noutro passo:

 “Na Inquisição de Lisboa nota-se o máximo de rigor no segundo quartel do século XVIII. Era então inquisidor-mor em Lisboa o cardeal D. Nuno da Cunha e Ataíde, personagem que mais de uma vez revelou zelo indiscreto e critério estreito”.

e

João Lúcio de Azevedo – História dos Cristãos Novos Portugueses (pag. 322)

Com isto coincidiu entrar a perseguição em uma das suas fases mais violentas... 

 

A figura de Nuno da Cunha de Ataíde é importante para esta apreciação. Foi ele Deputado em Coimbra em 1691 e em Lisboa em 1693; Inquisidor em Lisboa em 1700 e Inquisidor-Geral de 1707 a 1750, ano em que faleceu. Foi Bispo em 1706 e Cardeal em 1712.  D. Luis da Cunha sublinha o facto de ele ter sido educador de D. João V, quando este era ainda Príncipe e ele Deputado da Inquisição. Terá sido ele que imprimiu no Rei a apreciação favorável do Tribunal da Inquisição. O seu reinado, de 1707 a 1750, coincidiu com a época em que ele foi Inquisidor Geral. Para ver o que o Rei pensava da Inquisição, basta ler o relato das suas visitas à Inquisição de Évora – http://arlindo-correia.com/030415.html .

D. Luis da Cunha não hesitou em reprovar o comportamento do Rei que se interessava pessoalmente pelas coisas da Inquisição e assistia aos autos da fé.

Na tese em apreciação, outra figura que não está completamente estudada é a figura de D. Francisco de Castro, apresentado como uma grande figura da Inquisição. Pois eu tenho a certeza que era pessoa muito susceptível de ser corrupta. Tendo sido Bispo da Guarda, ficou muito ligado aos cristãos novos capitalistas da cidade (existem documentos a prová-lo) e praticamente, não deixou a Inquisição entrar na cidade. Quando ficou velho e doente e depois morreu, a Inquisição entrou ali a sério e fartou-se de prender, condenar e relaxar.

 

 

Sobre o Regulamento

 

Defesa

A Autora da tese não sublinhou o truque usado pela Inquisição para condenar os Réus. E este era que, se o Réu negava a acusação, era considerado negativo. Notificado do libelo, poderia defender-se e apresentar testemunhas, ou seja, contestava por negação, mas isso apenas lhe servia para ser considerado negativo. A semelhança dos dois termos , negação e negativo, acentua ainda mais a confusão. Ora há muitos processos, onde as testemunhas de defesa provam que o Réu nenhuma actividade tinha que se ligasse a cerimónias judaicas. Mas isso nunca servia de nada. Pedro Serrão de Castro (1650 – 1682) – Pr. n.º 9797, de Lisboa -  provou que era católico fervoroso. Mas isso de nada lhe valeu e foi relaxado na mesma.

A única defesa possível na Inquisição era confessar e acusar, mais nada. E era preciso bastante imaginação para conjecturar o que os Inquisidores gostavam de ouvir. Para além disso era preciso serem muito convincentes em mostrar o arrependimento que tinham por aquilo que não tinham feito.  Os Inquisidores queriam, exigiam que os réus se mostrassem humildes, e tinham mesmo de o fazer ou porque assim se sentiam, ou porque representavam bem.

Nunca encontrei um processo em que a defesa do Réu fosse aceite, por mais convincentes que fossem as testemunhas.

Tal como o Regimento, também a autora passa num instante à frente, deixando para trás e ignorando toda a possibilidade de defesa pela negação dos factos da acusação. Nem sequer refere a audição das testemunhas de defesa.

Fá-lo com tanta pressa que nem sequer explica o ponto II, VIII, XI, e o sentido da expressão arcaica “lançado da defesa com que pudera vir”, que é essencial no estudo dos processos em que aparece. Só nos Dicionários da época é que se encontra a definição da frase. É essencial por exemplo para compreender o processo de Isaac de Castro – Pr. n.º 11550 – onde os Inquisidores encerram a fase da defesa, quando ele lhes diz que quer tempo para a estudar.

Porque a defesa nunca era aceite (quando é apreciada, termina-se sempre com “não provou”), a Inquisição dava alguma importância, gastava tinta e papel com as contraditas.

É preciso cuidado com a palavra. Contraditar é uma coisa, apresentar contraditas é outra. Uma simples consulta ao dicionário e ao Código de Processo Civil teria evitado algumas confusões sobre as contraditas. Na Inquisição, o réu não contradita, apresenta contraditas em relação a certas testemunhas da acusação que o pobre tem de adivinhar quem são.  Contraditar em sentido largo é contestar, no processo civil e na Inquisição referem-se só as contraditas das testemunhas.

As contraditas eram um truque da Inquisição para mostrar uma defesa que nunca existia no processo ou se existia nunca era aceite. Era muito raro que as contraditas servissem para alguma coisa. Mas é verdade que de vez em quando os inquisidores as utilizavam para favorecer o Réu, se o julgavam inocente ou tinham pena dele.

Um exemplo interessante é o do Dr. Simão Lopes Samuda  - Pr. n.º 2784 - que apresentou contraditas para desvalorizar o depoimento de seu primo por afinidade com quem não se dava por ele ter violado e engravidado uma sua escrava. Foi levado a tormento que foi bem puxado (durou meia hora), mas poupou-lhe a morte.

 

 

Tormento

 A autora não compreendeu o disposto em II, XIII, XIII, sobre o tormento. Diz ela que o tormento não purgava as faltas dos Réus. A verdade é que o tormento tinha também essa função. É o Manual de Inquisidores de Nicolao Eymerico no Cap. V, “de la tortura”, que refere a utilização do tormento para purgar os crimes na Inquisição. Ora, ainda que não exista norma claramente expressa no Regimento do poder do tormento de purgar, tem de se ir buscar a este Manual que está subjacente e é mesmo referido indirectamente nesta norma, II, XIII, XIII. Que diz a norma? Que em termos práticos, ainda que o tormento tenha purgado as faltas, o Réu tem de ter uma pena, nem que seja a abjuração. Aliás, diz duas coisas:

- que na sentença do tormento não se pode decidir logo que pelo tormento se purgue toda a suspeita;

- que apesar de purgada a falta muito ou pouco, deve ter lugar sempre a abjuração.

É que esta é a única norma que fala de purgar as suspeitas pelo tormento.

Na prática, quando o tormento tinha a função de purgar as faltas, entendo eu que o Réu era despachado sem ir à presença dos Inquisidores já que as consequências do potro o impediam de assinar por uns bons três meses ou mais - os próprios processos o dizem. Foi o caso do Dr. Samuda antes referido e de Mariana Morales Penso – Pr. n.º 8413 - a filha de Fernão Rodrigues Penso – Pr. n.º 2332.

O processo do Dr. Samuda tem ainda uma característica interessante: o processo não foi decidido em Assento da Mesa que não existe; em vez disso, é a sentença que regula o destino do Réu, certamente porque não se entenderam todos (inquisidores, deputados e Ordinário ou seu representante) sobre a decisão.

 

 

Sentença

A propósito, a Autora, dizendo embora que a sentença não é decisiva para o processo, não a desvaloriza como deveria. A sentença no processo da Inquisição não é sentença nenhuma porque não é ela quem decide o processo: é um texto de propaganda da acção da Inquisição, pois nem sequer é secreto. As sentenças estão cheias de inexactidões e falsidades. Por isso mesmo, não tinha sentido o que faziam muitos autores que no processo se limitavam a estudar a sentença.

 

 

Curadores de Menores

A tese não me resolve o mistério do II, V, VI onde está o título “Quem hão de ser os curadores dos menores”. Não tem numeração. Quando e como foi acrescentado? A solução de colocar funcionários da Inquisição como curadores dos menores  é horrível e foi condenada pelo Breve de 1681 , mas afinal… era até mais favorável a solução anterior porque os funcionários do S.to Ofício aconselhavam muitas vezes os presos menores seus tutelados dizendo-lhes o modo de escaparem à morte. Alterada a situação, ficavam ainda mais desamparados sem saber o que dizer ou fazer. No processo n.º 8271, a ré Maria Lopes ou Maria de Sequeira esteve dois anos sem dizer uma palavra. Quando "confessou" durante toda a noite no cadafalso (e um escriba bondoso escreveu dezenas de páginas), já não lhe aceitaram as "confissões" e foi garroteada.

 

 

Presença do Ordinário nas votações: nota 151, pag. 38 da Tese

Com o tempo, tornou-se uma mera formalidade, sem importância. Os Bispos passavam uma procuração a determinado Inquisidor ou ao mais antigo e desinteressavam-se do assunto. No Conselho Geral, que passou a decidir os relaxes, não havia nenhum representante dos Bispos. Para além disso, a justificação de Portocarrero para ele não estar no Conselho Geral não colhe de maneira nenhuma. São inúmeras as decisões do Conselho Geral que se afastaram do assento da Mesa da Inquisição.

 

 

Re-inquirições

Tem razão a autora quando refere que os Inquisidores não deram importância ao Breve do Papa Inocêncio XI de 22 de Agosto de 1681, considerando que o Breve não inovava.…

Começaram de facto a fazer re-inquirições, mas de um modo perfeitamente anódino: liam o primeiro depoimento escrito e perguntavam ao deponente se estava certo. Claro que estava… certíssimo!

 

Justiça inquisitorial? Não, nunca existiu: A Inquisição só condenava, nunca absolvia.