18-11-2011

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Francisco Joaquim Bingre (1763-1856)

 

 

 

Esta página pretende contribuir para a divulgação da figura do esquecido poeta beirão, Francisco Joaquim Bingre (1763-1856). Transcreve-se a biografia escrita por Inocêncio Francisco da Silva em 1861, bem como alguns poemas. No entanto, é importante referir que outra biografia mais completa se encontra no 1.º volume das Obras Completas do poeta, publicadas entre 2000 e 2005, ao cuidado da Prof. Doutora Vanda Anastácio, na Lello Editores, do Porto. É uma obra monumental em 6 volumes e 2 904 páginas, que merece ser mais conhecida:

Obras de Francisco Joaquim Bingre; edição de Vanda Anastácio. - [Porto]: Lello Editores, [2000-2005]. - vol.;  24 cm.  

Colecção: Obras clássicas da literatura portuguesa; 

1º vol.: Obras dramáticas. - 2000. - LXXVIII, 330 p. - ISBN 972-48-1797-0; 

2º vol.: Poemas heróicos;  Obras várias. - 2000. - XLIX, 394 p. - ISBN 972-48-1805-5; 

3º vol.: Epístolas;  Odes. - 2002. - XXXVII, 568 p. - 972-48-1814-4; 

4º vol.: Hino;  Genetlíaco e ditirambo;  Sátira;  Elegias;  Epitáfio;  Nénias;  Poemas fúnebres diversos;  Poemas epitalâmicos;  Cantatas;  Canções;  Cançonetas;  Cantilenas;  Idílios;  Éclogas;  Alegorias;  Parábolas. - 2002. - LIII, 528 p. - ISBN 972-48-1826-8; 

5º vol.: Apólogos ou fábulas morais;  Apotegmas;  Anfiguris;  Poemas de morte e glosa;  Décima;  Madrigais;  Poemas Religiosos;  Hinos;  Sonetos. - 2003. - XXVIII, 552 p. - ISBN 972-48-1834-9; 

6º vol.: Sonetos. - 2005. - X, 532 p. - ISBN 972-48-1847-0

O poeta Francisco Joaquim Bingre  
   

Francisco Joaquim Bingre (Francélio Vouguense) – Desenho de Nogueira da Silva – Gravura de Pedroso

 

 

Do Archivo Pittoresco, 1861, pags. 129-131, 143-144 e 150-152:

 

 

“Bom poeta e judicioso homem, que não sei se ainda vive, no qual a capacidade natural supria todos os estudos”. José Agostinho de Macedo, Considerações mansas, pag. 18.

I

 

A empresa do Archivo Pittoresco, solícita, como se mostrara desde o seu começo, em mesclar o útil com o agradável na comemoração de tudo o que possa interessar ao lustre e glória do nome português, prossegue cada dia mais desassombrada no desempenho de tão assisado propósito. À proporção que vê coroado o seu zelo pela aceitação e aplauso, sempre crescentes, do público ilustrado, cobra novos incentivos, sente aviventarem-se-lhe os brios, e continua fervorosa e incansável em superar obstáculos, redobrando fadigas e sacrifícios para enriquecer suas paginas com as recordações, por qualquer titulo honrosas e importantes para a nossa historia política, literária e artística dos tempos que passaram. Nem são escassos cm número, nem inferiores em qualidade os documentos quo o comprovam, espargidos a flux por essas formosas páginas nos três tomos concluídos, e na parte já publicada do quarto. Mais avultariam contudo, se em algumas o espaço que bem pudera aplicar-se a espécies de maior proveito, se não achara obstruído com os toscos e desenxabidos ensaios, que uma animadora benevolência tem querido exigir por vezes da nossa mal aparada pena!

Em transunto reproduzido habilmente pelo buril do artista, o Archivo expõe hoje por primeira vez à consideração dos seus leitores a face ainda expressiva e simpática, posto que já enrugada pelos anos, de um nosso estimável e ameníssimo poeta, cujo nome lhes não será, cremos, desconhecido: do ancião venerando, a quem na mocidade os contemporâneos cognominaram com a significativa denominação de Cisne do Vouga; aluno distinto, e último representante entre nós da outrora florente escola arcádico-bocagiana; daquele, enfim, que um destino providencial reservara para ver sumirem-se ante si na voragem dos tempos os despojos de três gerações sucessivas, até que o sopro da morte veio também apagar-lhe de todo a luz da vida caduca, abrindo-lhe as portas para o repouso eterno a 6 de Março de 1856, quando próximo a completar noventa e três anos de cansada peregrinação sobre a terra.

Dois retratos de Bingre existem, que nos conste, em mão de particulares que os conservam em grande apreço, como recordações saudosas do finado. Possui um deles o sr. dr. Francisco Antonio de Resende, outro o sr. Calixto Luiz de Abreu, da vila de Eixo, que à qualidade de amigo pessoal do poeta reúne a de ser um dos seus mais entusiásticos admiradores. Do primeiro, facilitado generosamente a empresa por graça do ilustre proprietário, é copia mui fiel a gravura que hoje se oferece ao publico. Podemos afirmar com aprazimento, que mostrada ainda nas primeiras provas a pessoa que convivera em íntimo trato com o poeta há mais de quarenta anos, sem que nem ao menos lhe déssemos indícios de cuja era, para logo lhe acudiu a reminiscência ao observá-la, reconhecendo as feições características de Bingre, e notando apenas no composto da fisionomia tal qual alteração, que de força devera produzir o lapso dos quinze ou vinte anos desde aquela época até ao tempo em que se presume ser sido tirado o retrato.

 

II

 

Prometêramos escrever a biografia do poeta, que nos foi pedida para acompanhar o retrato; porém, apertado agora pela satisfação da promessa, confessamos que de todo nos falta a tranquilidade de ânimo, e a folga indispensável para dar, mediocremente que seja, conta do encargo cometido. Vergando sob o peso de sofrimentos morais e de incómodos físicos, mal podemos desempenhá-lo, não já como desejáramos, mas nem ainda como a nossa deficiência o consentiria, em circunstâncias menos desvantajosas.

Acresce que, pela natureza do sujeito, a narrativa tem de ser necessariamente algum tanto monótona. Passando na província mais da metade da sua longuíssima carreira, em uma pequena vila a quarenta léguas da capital, se não de todo concentrado no retiro doméstico, circunscrito ao exercício das funções de um emprego subalterno de justiça, e ao trato familiar de alguns amigos; arrastando daí em diante uma existência mais ou menos angustiada e dolorosa, tendo por única distracção e consolo em seus pesares o cultivo das musas; sem que jamais interviesse, ou figurasse activamente nas lutas que acompanharam as transformações políticas e sociais do país, ocorridas no decurso do último meio século - Bingre tem uma vida assaz pobre de incidentes, de aventuras, de peripécias variadas, que possam excitar a curiosidade dos leitores ávidos de sensações, ou fornecer assunto à pena do biógrafo.

O próprio poeta como que nos deixou resumidamente esboçada a sua história, no soneto que em seguida transcreveremos. Parto de uma musa octogenária, fruto do estro já amortecido,  não ousaremos propô-lo aos principiantes por modelo no sen género, nem quiséramos que os entendidos aferissem por ele as posses poéticas do autor. Julgamo-lo contudo digno de atenção como documento, em vista das particularidades que encerra: e é sob esse aspecto e nesse sentido que o apresentamos.

 

Na aldeia de Canelas fui gerado,

E nela também tive o nascimento;

Na corte de Lisboa, a meu contento,

Longo tempo fui afortunado:

 

Por génio natural às musas dado,

Numa Arcádia do um sábio ajuntamento,

Cultivei na poesia o meu talento,

E por Cisne do Vouga fui cantado:

 

A Fortuna, que às cegas sempre gira

Dando-me um encontrão daquela altura,

Nos vergéis me lançou da areenta Mira:

 

Aqui sem fausto algum, e sem ventura,

Quarenta anos pulsei eu inda a lira,

E aqui me abriu a morte a sepultura.

 

No tomo II do nosso Dicionário Bibliográfico Português, impresso em 1859, de pag. 396 a 399 demos urna notícia biográfica de Bingre, extraída de alguns documentos, e informações que a seu respeito possuíamos, e conquanto breve, talvez menos sucinta do que o comportava a índole da obra. Como a tenuidade dos nossos recursos não nos permite possuir todas as folhas periódicas que se imprimem no País, falecendo-nos por outra parte tempo e meios para procura-las in Biblioteca Nacional, onde nem sempre se encontram, não é de estranhar que ainda então ignorássemos que outra notícia mais ampla e minuciosa existia já, escrita e publicada pelo citado amigo sr. C. L. de Abreu, no Campeão do Vouga n.º 451, de 10 de Setembro de 1856. Só há poucos dias se nos facilitou de empréstimo esse jornal; e confrontando o que aí se diz com o que escrevêramos, e com o resto das informações que conservámos, tivemos ocasião de notar algumas divergências e discrepâncias de pequena monta, as quais de bom grado trataremos de rectificar, levados do amor e respeito que tributamos à verdade, nos pontos em que julgamos haver caído em erro. Não assim em todos; que alguns há em que se nos afigura que as asserções do ilustre biógrafo não estão de perfeito acordo com a exacção dos factos.

Reproduzindo, pois, com algumas alterações de forma, corrigidos em parte, e mais ampliados os nossos primeiros apontamentos, apraz-nos confessar como dívida a obrigação contraída para com o benemérito autor da notícia, pelo que do seu trabalho aproveitámos. Só sentimos que ela não viesse ao nosso conhecimento, mais a tempo de evitar as faltas em que involuntariamente incorremos.

 

III

 

No lugar e freguesia de S. Tomé de Canelas [1], situado na margem direita do Vouga, entre as vilas de Angeja e Estarreja, a duas léguas de distância da cidade de Aveiro, nasceu Francisco Joaquim Bingre a 9 de Julho de 1763; e foi baptizado a 17 do dito mês, data que pelo tempo adiante ele parece haver confundido com a própria do nascimento [2], nas composições com que costumava solenizar o seu aniversário. Teve por pais Manuel Fernandes (a quem alguns, não sabemos se com razão, acrescentaram o apelido “Dias”) natural do mesmo lugar de Canelas, e D. Ana Maria Clara Hybingre [3], nascida em Viena d’Áustria. O pai desta senhora, por nome Gaspar Hybingre, foi, segundo se afirma, um valoroso oficial, que muito se distinguira, pelejando nas guerras do Império, sendo capitão do um regimento de hussares no reinado da Imperatriz Maria Teresa. Como estivesse já viúvo, tendo de partir para uma campanha, onde desgraçadamente veio a perecer, deixara sua filha única, então de tenra idade, em um convento de Viena.

Reduzida à orfandade, talvez desamparada, ou falta de parentes que por ela se desvelassem, a menina teve de abandonar a pátria; saiu do convento, e veio para Lisboa buscar protecção e abrigo em uma tia materna, que era ou fora, dama ou criada do paço da rainha D. Maria Ana de Áustria, esposa d’El-Rei D. João V. Em casa desta e de seu marido Philippe Ballestri se conservou Ana Maria por alguns anos, tratada e educada como filha, e com a perspectiva de ficar única herdeira, pois que os dois cônjuges não haviam tido fruto do seu matrimónio.

 As esperanças eram risonhas e bem fundadas; mas a Providencia, que tantas vezes se apraz de aniquilar os projectos humanos, havia-o decretado de outra sorte. O memorável terramoto do 1.º de Novembro de 1755, que destruiu Lisboa, sepultou nas suas ruinas os esposos Ballestri, e com eles a sua casa e fortuna, ficando a infeliz sobrinha destituída de todo o socorro e sem meios de subsistência.

Foi nesta deplorável situação que Manuel Fernandes, criado que fora de seus tios (ao que nos afirmaram) se apressou a enxugar as lágrimas da abandonada órfã, persuadindo-a com boas razões a que o acompanhasse para Canelas, sua pátria; e para aí partiram efectivamente, sob promessa de casamento, a qual veio depois a realizar-se. Desta união foi único fruto o nosso poeta.

Possuía Manuel Fernandes alguns bens rurais, herdados talvez em parte de seus maiores; e que ele provavelmente aumentara com o resultado de suas economias. Cultivava-os por conta própria; porém as colheitas eram tão escassas, que mal lhe forneciam com que sustentar-se parcamente e a sua mulher e filho. Eis porque ao fim de alguns anos tomou a deliberação de transportar-se com a família para a corte, em busca de melhor fortuna.

 

IV

 

Era naquele tempo (e continuou a sê-lo por muitos anos), considerável e assaz lucrativo o comércio feito em Lisboa com géneros e manufacturas de procedência estrangeira, para cuja introdução, a despeito das leis proibitivas, serviam principalmente de veículo os paquetes britânicos, isentos de toda a sorte de fiscalização por virtude de tratados existentes entre as duas nações. Neste tráfico clandestino, exercido na maior parte por especuladores adventícios que, acobertados com seus privilégios e imunidades, podiam arrostar mais ousadamente, e com menor perigo, os riscos das penas pecuniárias e corporais impostas aos contrabandistas, muitos se enriqueceram, tornando-se poderosos e legando a seus descendentes grossas fortunas, por tal meio adquiridas.

D. Ana Hybingre, que é de presumir tivesse tomado em casa de seus tios as primeiras noções desta espécie de negócio, deu-se a experimentá-lo; e vendo coroados de bom êxito os seus ensaios, resolveu prosseguir na via encetada, ficando de permanência em Lisboa com o filho, entretanto que o marido voltava para a província, preferindo aos gozos matrimoniais os cuidados da lavoura e amanho de suas pequenas propriedades, que provavelmente aumentaria com o andar do tempo.

V

 

À conta de sua mãe corria, pois, a educação do futuro poeta e vê-se do que nos diz o seu biógrafo, que ela fora, no sentido literário, menos esmerada do que o acreditara alguém, que a esse respeito nos transmitiu as informações deque em outro lugar nos servimos. Aprendidos os rudimentos das primeiras letras, parece que, longe de complementar o curso de estudos regulares que lhe supúnhamos, toda a sua instrução ficara circunscrita  ao conhecimento da gramática e língua latinas, cujas lições ouviu de Manuel Pereira da Costa, professor régio em Lisboa, tido aliás por homem erudito, mui hábil nessas disciplinas, e já então encanecido no longo exercício do magistério [4]. Como julgar, em verdade, que de outras luzes necessitasse quem ia, como ele, destinado a seguir a vida e trato comercial, em que, por via de regra, a fortuna supera a inteligência, não sendo ordinariamente os mais rudes em letras os que menos nele prosperam?

O talento natural e a capacidade reflexiva supriram contudo no mancebo a míngua de maiores estudos. Dele se apoderou, entrado apenas na quadra da adolescência, a paixão dos versos, que tinha de acompanhá-lo até aos últimos dias da decrepitude. É circunstância atestada pelo próprio, no trecho que da citada biografia para aqui copiamos:

 

              Inda três lustros perfeitos

               Eu d’idade não contava,

               Quando já a amor, e às musas

               Como um doido me atirava!

 

Alternando com as lidas mercantis em que tinha de ocupar-se na casa materna, o cultivo, para ele mais agradável, da poesia; dando as sobras do tempo à leitura e meditação dos bons autores latinos, entremeada com a dos nossos quinhentistas, que os tomaram por modelos, e a quem ele se esforçava por imitar com discernimento e boa escolha: recebido com prazer nos salões, cujas portas lhe franqueava o dom de repentista em que se mostrava insigne, e que os contemporâneos tão altamente festejavam: finalmente, benquisto na sociedade por seu trato urbano e jovial, e ainda mais estimado dos amigos que de perto conheciam a singeleza e ingenuidade do seu carácter, brando por natureza, oposto igualmente aos excessos da lisonja e da detracção, e tão incapaz de rebaixar o mérito alheio, como de nutrir sentimentos de inveja ou emulação caprichosa: foi assim que Francisco Joaquim Bingre viu correr afortunadamente, como ele diz, os anos da sua virente mocidade.

VI

 

Cremos que a instâncias da mãe, e porventura mais cedo (se não nos enganamos) do que parece coligir-se da citada biografia, ele acordara em mudar de estado, desposando-se com uma sua patrícia, da mesma freguesia de Canelas. Esta senhora, chamada também D. Ana Maria soube, ao que se afirma, com as suas graças e amabilidade conquistar a afeição e ternura do esposo, presenteando-o sucessivamente com quatro filhos  [5], e sendo-lhe companheira extremosa, tanto na próspera como adversa fortuna, até que a morte a levou do seu lado.  

Parece que a celebração deste consórcio, cuja data precisa não ousamos assinar, precedera ou seguira de muito perto a organização da sociedade poética , a que no ano de 1790 Francisco Joaquim Bingre, de acordo com o beneficiado Caldas Barbosa, Joaquim Severino, e Curvo Semedo, traçaram os fundamentos, sob o título de Academia de Belas Letras, hoje mais conhecida pelo de Nova Arcádia, associação que viu de princípio reunidos no seu grémio os melhores engenhos da época [6], e que, prometendo larga duração, poderia dar de si resultados mais vantajosos e conformes ao seu instituto, se a discórdia não se ateasse depressa entre os seus membros, por motivo das desavenças entre Bocage de uma parte, e da outra Curvo Semedo e José Agostinho, a que se seguiram divisões, ódios e parcialidades e por fim, a aniquilação total em 1795. 

Enquanto estas contendas tomavam corpo, e já talvez ao romper das primeiras hostilidades, negócios de interesse doméstico haviam arredado Bingre para longe de Lisboa, como diremos. A ausência em tais circunstâncias foi para ele de proveito. Poupou-lhe não só o dissabor de ver inimistarem-se entre si, agredindo-se mutuamente  em renhida peleja, os que eram seus amigos comuns, mas ainda a dura necessidade de declarar-se por uns com ofensa de outros. Guardando ao contrário estrita neutralidade, se foram ineficazes as diligências que por vezes tentou, no sentido de congraçá-los, pôde ao menos conseguir que as suas relações de amizade para com todos se conservassem inalteráveis.

 

VII

 

Por efeitos da instabilidade e inconstância, que andam anexas às coisas humanas, a fortuna que durante um longo período favorecera os negócios de D. Ana Hybingre, começou a dar-lhe costas, cansada de protegê-la. Além das perdas consideráveis que lhe sobrevieram no seu tráfico, viu-se na impossibilidade de realizar, como havia mister, o embolso de somas não pequenas, de que era credora por fazendas vendidas a crédito às casas de alguns fidalgos, que se mostravam remissos no pagamento. E como se estes infortúnios não bastassem, ou talvez em consequência deles, achou-se acometida dos primeiros sintomas de alienação mental, cujos sintomas se manifestaram, agravando-se de dia para dia.

Bingre, que nas auras da bonança, aprendera a suportar com resignação as tormentas da adversidade, portou-se nesta conjuntura com a coragem de um verdadeiro filósofo. Deu a sua mãe os cuidados que o seu estado requeria; e vendo a ineficácia de outros meios experimentados para debelar a moléstia, ocorreu-lhe, não sabemos se por arbítrio próprio, se por indicação de peritos, buscar na mudança local um recurso que muitas vezes tem sido nestes casos aplicado com reconhecida utilidade. Determinou, pois, transferir-se para a província, levando consigo toda a família; esperançado em que a Providência lhe depararia talvez, na casa paterna o remédio que em vão procurara para a mãe enferma, e para si um abrigo contra as vicissitudes da sorte.

Desgraçadamente, as esperanças incertas de melhoria ficaram de todo frustradas, ou antes, converteram-se em tristes realidades. Pouco tempo havia decorrido depois que chegara a Canelas, quando veio cobri-lo de luto a morte de seu pai; e a mãe, piorando a olhos vistos, não tardou em ir reunir-se ao marido no seio da eternidade. Estes óbitos ocorreram, segundo consta, em 1793.

Ao tomar posse da herança que lhe ficara, viu Bingre que, a conservar-se em Canelas, dificilmente poderiam subsistir, ele e os seus, do mesquinho rendimento de tais propriedades. Julgou portanto que de preferência lhe convinha voltar para a corte, onde lhe seria mais fácil solicitar algum emprego público, e tratar juntamente da cobrança das dívidas de que sua mãe era credora. Adoptada esta deliberação, foi pronto em executá-la, pois o sabemos já em Lisboa nos princípios de 1794.

As felicitações jubilosas da cordialidade, patenteadas à chegada de Bingre por amigos  e admiradores, foram provas nada equívocas do muito que a todos contristara o seu apartamento, e da alegria que sentiam em ter de novo junto a si aquele que lhes era duplamente caro, pelas qualidades do coração e pelos dotes do espírito. A própria Arcádia, que em sua ausência, tocara de perto os últimos paroxismos, como que viu reanimados por um pouco os brios amortecidos, e apressou-se a celebrar uma sessão gratulatória por tão plausível motivo. Aí se recitaram várias composições, bem expressivas do prazer que a todos inspirava o regresso de tão amável consócio.

Oito ou nove anos viveu desta vez na capital o poeta, com a esposa e filhos. Formado pela natureza e adestrado pelo estudo da arte, brilhando sobretudo no campo do improviso, em que levava a palma aos outros competidores (excepção feita de Bocage, cuja superioridade no género era mais que reconhecida para que consentisse rivais), pudera julgar-se feliz, se os aplausos prodigamente distribuídos ao seu estro, e as coroas apolíneas com que não poucas vezes se recolhia vitorioso dos certames, bastassem a suprir as necessidades instantes da vida real.

Porém de feito, os meios de existência escasseavam em progressão decrescente, ao passo que iam multiplicando-se os triunfos ideais;  e enquanto o nome do Cisne do Vouga se espalhava honrado e glorioso sobre as asas da fama, o estado da sua fortuna encaminhava-se rapidamente da decadência para a ruina total. Teve enfim de atentar por si, procurando na estabilidade de alguma situação menos precária o refúgio que havia mister contra a miséria que o ameaçava.

Não podendo obter em Lisboa emprego acomodado à sua índole e circunstâncias, houve de contentar-se após longas diligências, com uns ofícios subalternos de justiça, que a final lhe foram conferidos em Vila Nova de Anços, povoação pouco arredada da sua pátria. Não chegou contudo a servi-los por ter sido transferido para o de escrivão de órfãos no julgado de Ílhavo. Aí estava em 1804, quando foi destituído por motivos que o seu biógrafo não soube dizer-nos.  Parece que, determinado então a vir à corte, com o desígnio de entrar de novo nas lides de requerente, fora dissuadido desse intento pelo Corregedor de Aveiro, Florêncio de Abreu Perada, seu afeiçoado amigo, que lhe ofereceu investi-lo nos lugares de escrivão do juízo, câmara e tabelião de notas da vila de Mira. Aceita e realizada a oferta, o poeta tomou efectivamente posse destes cargos no ano seguinte, dando-se por despedido de Lisboa para sempre.

 

VIII

 

Entrado no exercício de tais empregos, que seriam para outros, se não de todo antipáticos, ao menos difíceis de conciliar com o comércio das musas, entregou-se o nosso poeta ao desempenho das respectivas funções com todo o zelo e inteireza próprios do seu carácter honrado. Não lhe faltavam aptidão e inteligência; e para realçar estas qualidades, soube ainda aliar-lhes a prudência e brandura necessárias para atrair a si os ânimos discordes de gentes, na maior parte grosseiras, de rude trato, e o que mais é, divididas por ódios e malquerenças, como tantas vezes acontece nas pequenas povoações. Assim conseguiu estime, afeição e benevolência de todos, granjeando, não obstante a sua probidade e desinteresse, com que sustentar-se  decentemente, e prover à educação de seus filhos.

Bingre propendera desde a mocidade para as ideias liberais, disseminadas mais ou menos em toda a parte pela revolução de 1789. Não é pois de admirar, que saudasse com alvoroço entusiástico o primeiro grito de liberdade proclamado no Porto em 24 de Agosto de 1820. Muitas poesias compôs por esse tempo, e depois no curto período do regime constitucional, das quais umas se imprimiram, e outras correram manuscritas. Em todas preconizava os princípios de reforma, pintava com expressivas cores os abusos e desconcertos do governo passado, e encarecia os benefícios e vantagens que deviam resultar das novas instituições.

Fazendo assim profissão pública dos seus sentimentos, incorreu no desagrado dos fautores do antigo sistema, e ficou necessariamente mal visto quando, pela restauração da monarquia absoluta, retrogradaram as coisas ao estado anterior. Se ainda houve para com ele tal qual indulgência no intervalo  que mediou entre a queda da constituição  e a outorga da carta em 1826, não pôde escapar às resultas da época de intolerância e perseguição inaugurada dois anos depois. Ao fim de vinte e quatro de serviço efectivo, e contando para mais de sessenta e cinco anos de idade, foi expulso dos ofícios, no tempo em que eles se reputavam de propriedade vitalícia; e deveu talvez o não ser preso e tratado mais rigorosamente à influência dos numerosos amigos que sempre conservara, e à impossibilidade de achar sombras de culpa no seu procedimento irrepreensível.

Em tais circunstâncias era mister que a resignação lhe servisse de conforto, ajudando-o a suportar com paciência os golpes da adversidade. Privado dos meios de adquirir a subsistência, quando os anos e os achaques precursores da velhice o impediam de procurar para a vida novos esteios, e baldadas as diligências que empregou para obter a sua reintegração, Bingre teve de socorrer-se ao pouco que lhe restava. Vendeu sucessivamente os bens que possuía em Canelas, e por fim os próprios móveis da casa. Exauridos todos os recursos, entre as privações angustiosas do presente, e as esperanças e incertezas do futuro, viu correr dias amargurados, até que os acontecimentos deram nova face às coisas políticas em 1834.

 

IX

 

Restabelecido o governo liberal, e consolidado o trono da senhora D. Maria II, parece que devia haver para com o pobre poeta, já nesse tempo septuagenário, alguma contemplação, a que decerto lhe conferiam direito o seu talento, honradez e bons serviços, e mais que tudo a penúria e padecimentos, que lhe acarretara a sua dedicação à causa que acabava de triunfar. Não aconteceu assim; nem lhe foram restituídos os ofícios, nem se lhe fez graça ou ressarcimento. Se por ventura o requereu, é de supor que obtivesse do ministro resposta semelhante à que outro em caso análogo dera ainda há pouco (segundo ouvimos) a um pretendente, expressa em bom português, ou ao menos no que ele fala: “Que o governo não lhe encomendara o sermão!”

Uma larga vida é muitas vezes uma grande desgraça; e Francisco Joaquim Bingre, cuja existência devia transpor a meta ordinária do viver humano, estava fadado para deixar mais um nome inscrito no catálogo, já tão numeroso, dos homens ilustres, vítimas do desamor e ingratidão da pátria a quem serviram. Se não lhe valessem na última quadra os socorros com que caritativamente lhe acudiam alguns devotados amigos, teria sem dúvida findado mais cedo os seus dias, a braços com a miséria, e talvez perecendo à necessidade!

Eis aqui como ele próprio se lastimava em uma carta que vimos de seu punho, escrita a José Maria da Costa em 1848, respondendo a outra em que este amigo lhe pedia notícias adequadas para preencher o capítulo, em que o seu nome tinha de figurar no Ensaio-biographico-critico dos poetas portugueses:

“Aqui estou viúvo há vinte e cinco anos [7]; tenho enterrado muitos filhos e netos; aqui findarei os tristes dias de oitenta e cinco invernos, vítima da fome e da penúria, com uma filha viúva e cinco netos, sem abrigo, senão o das carcomidas asas deste desditoso velho!”

Neste estado aflitivo, em que a lâmpada da vida se ia gradualmente extinguindo, rodeado de pesares e atormentado pelas dores de gota, que nos últimos anos redobraram a intensidade, nem por isso abandonou jamais o comércio das musas, que lhe serviam de consolo e distracção em seus padecimentos. “Quando não podia escrever (copiámos aqui as palavras do seu biógrafo, já por vezes citado), chamava para o pé de si seu neto, o sr. Padre Francisco Cardoso Bingre, para lhe escrever não só os versos que tinha já meditado, mas também os que lhe ia ditando; tomando ordinariamente por assunto, ou qual David deplorar os erros da mocidade, ou qual Jeremias lamentar os males da pátria, que contemplava desolada.”

Conservou sempre perfeitas as suas faculdades intelectuais, sendo inteiramente falso (segundo afirma o se. Abreu) o boato que em contrário se espalhou. Diz-se contudo, que nos últimos anos, “chorava como uma criança quando via os amigos que o visitavam: repetia-lhe os versos que de fresco havia composto, e estimava conversar com eles em matérias poéticas; dizia que isto lhe aliviava as suas mágoas”.

Uma queda, que em 28 de Dezembro de 1855 deu ao descer da cama, o advertiu que o seu fim estava próximo. Ditou várias cartas, e escreveu ainda algumas de mão própria, despedindo-se dos amigos e rogando-lhes que não se esquecessem da sua alma. Em Março de 1856, foi atacado de uma febre intermitente, que a medicina se esforçou em vão por debelar. Recebidos os socorros espirituais, que ele mesmo pedira com instância, perdeu de todo o conhecimento, e expirou passados três dias a 26 do referido mês, quando contava 92 anos, 8 meses e 17 dias de idade.

Era de estatura mediana, reforçado de corpo, testa espaçosa, olhos azuis bem assombrados, e presença agradável e simpática. Afirmam testemunhas de vista, que nas ocasiões em que improvisava os seus versos, aparecia completamente mudado. Tal era a alteração produzida nas feições por efeito do entusiasmo que nesses momentos o dominava!

X

 

Quem pretendesse avaliar o mérito poético de Bingre pelas poucas poesias que dele existem até agora impressas [8], quer dispersas em colecções de jornais, e nas obras de outros autores, quer em separado (sendo destas a mais importante a escolha feita de algumas sob o titulo: O moribundo Cysne do Vouga, que se publicou seis anos antes da sua morte, no de 1850) achar-se-ia talvez embaraçado para justificar a fama e o crédito de que ele gozou, atestada pelos louvores não suspeitos de parcialidade dos seus mais distintos contemporâneos. Cumpre porém saber, que essas constituem apenas a mínima parte das que deixara manuscritas e de que, na biografia citada, nos dá notícia o sr. C.L. de Abreu, em cujo poder se conservam. Da resenha apresentada, vê-se que podem preencher nove tomos regulares em via de publicação, afora as muitas que têm de ser postas de parte por diversas e especiais considerações. Naquelas compreendem-se mais de mil sonetos; odes em todos os géneros; salmos; ditirambos; canções; epístolas; elegias; idílios; apólogos; contos; epigramas; madrigais; sátiras; metamorfoses, etc.  Há também um poema herói-cómico, intitulado Momo; outro, apologético, que se intitula As mulheres; As sombras, passeio fantástico; O Demócrito Mirense; Aventuras e cartas sentimentais; vários dramas heróicos e alegóricos; farsas, entremeses, etc., etc. Se chegar a realizar-se a edição destas obras, já tentada por vezes, e que (segundo nos constou há três ou quatro anos) estava a final em caminho de vir à luz a expensas do sr. Sebastião de Carvalho e Lima, patrício do poeta, e zeloso da sua glória, então poderão ser cabalmente apreciadas a vastidão do talento, e ainda mais a maravilhosa fecundidade do Cisne do Vouga.

 

 

[1] Não menos de doze diversas povoações com esta denominação nos apresenta o Dicionário Geográfico do P. Cardoso no tomo II, pag. 415 a 419, espalhadas nas províncias do Douro, Beira-Alta, e Trás-os-Montes.

[2] Em confirmação do que levamos dito, aqui damos por cópia o assento do baptismo, que parece documento irrecusável:

Aos dezassete dias do mês de Julho de mil setecentos sessenta e três, baptizei a Francisco Joaquim, filho legítimo de Manuel Fernandes, e de Ana Maria Hybingre, da Pedregosa, desta freguesia de S. Tomé de Canelas, bispado de Coimbra: neto paterno de Manuel Fernandes, e de sua mulher Joana Dias, desta freguesia de Canelas e materno de capitão Gaspar Hybingre, e de Maria Catarina Hybingre. da cidade de Viena de Áustria. Nasceu aos nove do dito mês e ano. Foram padrinhos Francisco da Silva Martins, e Maria, donzela, filha de Manuel João Figueiredo, da mesma freguesia e testemunhas o M.R.P. António da Trindade, e Domingos Dias Henriques: do que tudo fiz este assento que assinei. Era ut supra.

- O cura, José dos Santos Barbosa Carrancho. P. Antonio da Trindade. –Domingos Dias Henriques.

[3] Provavelmente em obséquio à eufonia, da qual foi grandemente afeiçoado. E pela figura aférese, o poeta mudou este apelido no de Bingre, que para si adoptou.

[4] Deixou impressas várias obras em prosa e em verso, mencionadas na Bibliotheca Lusitana; e mais algumas que em aditamento teremos de acusar no artigo competente do Diccionario Bibliographico, se chegarem a ser porventura removidas as causas que de presentenos forçam a sobrestar na publicação da parte restante deste nosso trabalho, conduzida à custa de penosos sacrifícios até ao tomo V, que demos à luz em Abril deste ano.

[5] Posto que o sr. C. L. de Abreu acusa a existência de seis filhos, todavia apenas nos dá razão de quatro, a saber: D. Raimunda Mariana, a quem faltou a vida no estado de viúva, pouco tempo antes do óbito de seu pai; Nuno Maria, que morreu sendo já formado bacharel em direito; Francisco Lourenço de Assis e D. Perpétua Clara, colhida pela morte em anos mui tenros. Pelo que conjecturamos, somente da primeira nomeada se conserva descendência.

[6] Duas equivocações notámos no sr. C. L. de Abreu, as quais lhe pedimos  licença para rectificar em graça da verdade. A primeira é contar ele, entre os membros da Nova Arcádia, Nuno Alvares Pereira Pato Moniz, que no período da duração deste corpo (170-1795), tinha apenas de nove a quatorze anos de idade, pois nascera indubitavelmente a 18 de Setembro de 1781. A outra é supor que Bingre fora também membro de uma Academia Real de Belas Letras, que jamais existiu, sendo ela, como acima dissemos, a verdadeira denominação da chamada Nova Arcádia, sal contudo o epíteto “Real”, que neste caso se torna puramente imaginário, porque nunca foi conferido a tal associação.

[7] Por esta carta é de crer que sua esposa faleceu no de 1823.

[8] A relação de todas que vieram ao nosso conhecimento pode ver-se no Diccionario Bibliographico, tom. II, a pag. 398 e 399.

Pela nossa parte, damos por terminada a tarefa que nos propusemos, Não suspenderemos, contudo, a pena sem deixar aqui registado o sincero desejo de que por falta de favor e incentivo se não malogre uma empresa quanto a nós altamente patriótica, e na qual julgamos ver um valioso presente feito às letras portuguesas.

 

 

                                                                                                                                                               I.F. DA SILVA

 

 

Obras de Francisco Joaquim Bingre, segundo o Diccionario Bibliográphico de I. F. da Siva:

 

 

1)     Os Lagareiros, idílio – Inserto no Almanak das Musas, parte III, pag. 35 a 49

2)     Cançoneta ditirâmbica – Idem a pag. 52

3)     Soneto ao amor – No mesmo Almanak, parte IV, pag. 29. Transcrito nesta página.

4)     Ode aos plausíveis anos do Ex.mo Conde de Pombeiro, Idem, pag. 70

5)     Epístola “A vós, augusto príncipe sob’rano,etc “- Saiu na Colecção de poesias ao nascimento do príncipe da Beira

6)     Epístola a Joaquim Severino Ferraz de Campos em resposta a outra sua. Saiu nas Rimas de Joaquim Severino, a pag. 193.

7)     Drama alegórico representado no Teatro do Salitre no dia 13 de Novembro de 1801… na plausível publicação da paz. Lisboa, na Offic. De Simão Thadeu Ferreira, 1802. 8.º, de 14 pags.

8)     Epístola a Sua Alteza Real o Príncipe Regente, etc. Saiu no folheto: Tributo de gratidão que a pátria consagra, etc.

9)     Elogia à morte do Marquês de Ponte de Lima – Impressa a pag. 99 do tomo XXIII, da Livraria Clássica dos srs. Castilhos.

10)  Soneto “Caiu Memfis soberba e Tiro altiva, etc.”- Saiu no Telégrapho Português de 16 de Março de 1809, com as iniciais A.R.Q.; mas é realmente de Bingre, segundo este declarou no Jornal de Coimbra, vol II, a pag. 300, onde vem reproduzido o mesmo soneto. Transcrito nesta página.

11)  Soneto a Lord Wellington – No mesmo Jornal, vol. dito., a pag. 378. Transcrito nesta página.

12)  Nénias, ou sentimentos paternais no sepulcro de Perpétua, em três noutes. Lisboa, 1815. 8.º, de 24 pags.

13)  Décima, glosando o mote “Para amar não tenho tempo”. Na Mnemosine Lusitana, tomo I, n.º 7, sem o seu nome. Transcrita nesta página.

14)  Proclamação do Douro aos Portuenses… 1820 – Anunciada no Portuguez Constitucional de 1 de Outubro de 1820.

15)   Elegia na sentida morte do senhor doutor Manuel Joaquim Borges de Paiva, insigne poeta trágico. Porto, 1824. 4.º de 8 pags.

16)  Elegia na sentidíssima morte de S.M.I. e R. o Sr. D. João VI, etc. Porto. Imp. De Gandra 1826. 4.º de 11 pags.

17)  Odes de Sapho a Phaon – Foram inseridas no Ramalhete, jornal de instrucção e recreio, 1839, vol II, a pag. 104, 128, 144, 175, 183, 192, 200 e 208.

18)  Odes anacreônticas a Márcia – São ao todo onze, e foram impressas no referido Jornal, a pag. 112, 152, 160, 168, 175 184, 192 e 200.

19)  Epigrammas sobre diversos assuntos Saíram no dito Jornal e volume referido, espalhados por diversos números.

20)  Soneto ao sr. José Maria da Costa e Silva – No dito Jornal, vol. I, 1838, pag. 359.

21)  Sonetos à Saudade – No mesmo Jornal, vol.I, pag. 402 e no vol. II, a pag. 24.

22)  Sonetos à morte de Manuel Maria Barbosa du Bocage – Impressos pela primeira vez na Livraria Clássica Portugueza, tomo XXIII, pag. 99 e seguintes.

23)  Ode no seu dia natalício – Inserta no Panorama de 14 de Outubro de 1843. Transcrito nesta página.

24)  Ode “A grande barca da Romana Igreja” – na Revista Universal Lisbonense, tomo III, da 1.ª Série, pag. 290

25)  Ide aos seus beneficentes amigos, que formam a comissão charitativa de Aveiro, Eixo, Ílhavo e Vagos, para socorro do auctor. – Saiu no Periódico dos Pobres do Porto, n.º 106, de 5 de Maio de 1848.

26)  O moribundo Cysne do Vouga: colecção de algumas peças mais importantes, extraída das obras poéticas do sr. Francisco Joaquim Bingre, nos últimos momentos da sua vida. Porto Typ. Commercial 1850, 8.º gr. de 100 pags.

Estas são as obras impressas em vida de Bingre, elencadas por I. F. da Silva no Diccionario Bibliographico. Vanda Anastácio junta-lhes muitas mais na lista que figura na Introdução, 1.º volume, pags. LXXII a LXXVI.

 

 

 

 

Soneto n.º 2082 – pag. 469 do 6.º volume das Obras Completas:

 

A meus netos, filhos de minha filha Raimunda

Soneto de Despedida

 

Filhos de minha filha, amados Netos,

Duas vezes meus filhos tão queridos:

Recebei os meus últimos gemidos,

Recolhei meus recônditos afectos!...

 

Vós sois os meus amados mais dilectos,

Em que sempre empreguei os meus sentidos;

Queira o Céu que sejais dos escolhidos

Que Deus escritos tem nos seus decretos.

 

Vai o foro pagar à Natureza

O vosso velho avô que assaz vos ama!...

Envolvido nas mantas da pobreza.

 

Abrasado de amor na viva chama,

Nada tem que deixar-vos, de riqueza,

Mais que o triste pregão da sua fama.

 

 

 

Ditado em 20 de Janeiro de 1856, segundo Teófilo Braga, que o transcreveu (pag. 175):

 

Pobre, velho, caduco e entrevado

Está o pobre Bingre em pobre cama,

É maior a penúria do que a fama,

Que lhe deu sem razão seu negro fado.

 

Imitou a Camões no desgraçado,

Não que cingisse na sua fronte a rama

Como cingiu o grão Cantor do Gama,

Que no mundo ficou eternizado.

 

Do tristonho caduco que seria,

Se um neto seu não fora capelão

Da missa d’alva em sua freguesia?

 

Ele com a sua esmoler pensão

Sustenta a velha mãe e companhia,

E seu pobrinho Avô, triste ancião.

 

 

 

 

Jornal de Coimbra: Vol. 2, nº 10 (Out. 1812) pag. 300

 

SONETO

Por Francisco Joaquim Bingre (*)

 

Caiu Memfis soberba, e Tiro altiva

Babilónia caiu, caiu Cartago,

Troia em chamas ardeu, sentiu o estrago

Do ataque pertinaz da mão Argiva.

 

Macedónia expirou, sofreu cativa

Tebas, a de cem portas, mortal trago;

Roma o nome perdeu, no Stigio lago

Submersas todas são, nenhuma é viva.

 

Sesostris, Alexandre, Alcides fero,

Jazem todos no pó; Dario ufano,

E o filho de Peleo, o Herói de Homero.

 

Baixou do Trono ao Reino do Sumano

Júlio César audaz, sumiu-se Nero.

Resta cair Paris, e o seu tirano.

 

(*) Este Soneto imprimiu-se em um dos Periódicos de Lisboa de 16 de Março de 1809: assinando-se com as letras iniciais do seu nome outrem por Autor. Bom ou mau, este Soneto é meu. F.J.B.

 

 

Jornal de Coimbra:  Vol. 2, nº 11 (Nov. 1812) pag. 378

 

SONETO

Por Francisco Joaquim Bingre

 

Quem há-de encher o vácuo sobre a Terra

Do espaço imenso, Invicto Herói, que abranges!

Se no meio das ínclitas Falanges

Raio de Jove és, trovão da guerra!

 

Quem as portas do Olimpo em par descerra

À testa de seus púnicos alfanges!

Semideuses, Heróis do Nilo e Ganges,

Seu nome da memória vos desterra!

 

O famoso Weleslei, que Aquiles teme,

Filho de Marte, de Minerva filho,

Da Nau peninsular governa o leme.

 

Dos Imortais, na estrada, segue o trilho,

Imitador de Jove, quando freme,

Satélite do Sol, igual no brilho.

  

Online: https://bdigital.sib.uc.pt/bg4/UCBG-RP-2-1-1812-1_16/UCBG-RP-2-1-1812-1_16_master/UCBG-RP-2-1-1812-2/UCBG-RP-2-1-1812-2_item1/P392.html

 

 

Mnemosine Lusitana, I, n.º 7, pag. 117

Jornal de Bellas Artes ou Mnemosine Lusitana, Redacção Patriótica

Lisboa, na Impressão Régia, 1816

É singular o artificio , com que foi glosado o seguinte mote, pela dificuldade dos consoantes. Neste género pode servir de modelo.

 

MOTE.

Para amar não tenho tempo.

 

GLOSA

Eu com as moças do campo

Nem um par de solas rompo.

Bem basta quantas estrompo

À caça c'o meu Melampo:

Meto nos toneis, que tampo,

Vinho das vinhas, que eu empo;

Às vezes por passatempo

Do jardim as ruas limpo,

Depois a dormir me chimpo,

Para amar não tenho tempo.

 

 

Almanak das Musas, parte IV, pag. 29

 

A  AMOR

 

Que seta é esta Amor qu’inda escorrendo

Trazes em roxo sangue? Se não erro,

Me parece que vi já este ferro

Em mais valente mão almas vencendo.

 

Pela ponta subtil, que lhe estou vendo

Imagens dele na memória encerro;

De o ter visto as espécies não desterro,

Somente estou no sítio discorrendo.

 

Mas tu perdes a cor, tu ficas mudo!

Tu me escondes a farpa ensanguentada!

Já me lembra seu dono; ah! Já sei tudo.

 

Larga ladrão a seta que é furtada.

Bem conheço esse ferro pontiagudo,

É dos olhos gentis da minha amada.

 

Por Francélio Vouguense

 

 

 

O Panorama,n.º 94, de 14 de Outubro de 1843, pags. 326 a 328:

 

POESIA

 

N.B. Um amigo do Snr. Francisco Joaquim Bingre nos ofereceu uma cópia da seguinte ode, manifestando desejos de que fosse impressa no Panorama. É notável esta composição lírica, por pertencer a um poeta da escola, meio-arcádica, meio-elmanista, que entre nós floresceu no reinado sa Senhora D. Maria I e regência de D. João VI; e ainda o é mais por mostrar que a veia da metrificação não se exauriu na provecta idade do cantor do Vouga.

 

 

Fazendo oitenta nos de idade em 17 de Julho 1843.

ÚLTIMO CANTO DO CISNE

 

ODE

 

 

1

 

Pátrio Vouga ancião, o cantor vosso

Hoje fixou o círculo da vida;

           Marcou o seu destroço

           Octogenária lida.

No bronze o tempo deu co’a mão pesada

           A última pancada.

 

2

 

Seu relógio fugaz o derradeiro

Natalício apontou da longa era;

           Emperrou o ponteiro

           No oitenta que numera.

Lachesis pôs na roca com fadiga

           A derradeira estriga.

 

 

 
 

 

3

 

O fuso torto tem, já mal o trilha

[Cansada de fiar] nos dedos gastos,

           Clotho, que ensarilha,

           Traz a meada a rastos,

Atropos fera co’a tesoura aberta

           Quase os anéis lhe aperta.

  

4

 

Ninfas patrícias, não touqueis com rosas

O seu tristonho natalício dia…

           Com as flores saudosas

           Cingi-lhe a fonte fria.

Só lhe competem nas extremas horas

           Saudades [1], passi-floras [2].

 

 

 

 
 

5

 

Não mais, ninfas, não mais finde o festejo

Das sonoras canções ao natalício

           Do Vate, que no Tejo,

           Teve às vezes propício

O refulgente Apolo com espanto

           No trovão do seu canto.

  

6

 

Hoje, em vez de canções, só elegias

Deveis cantar a seus longevos anos…

           Com endeixas sombrias

           Nénias de desenganos.

Louvai, ó ninfas, um Natal tristonho

           De tão comprido sonho!...

 

   
 

7

 

Novos vates do Vouga, o rouco canto

Do vosso velho companheiro expira…

           S’ele tem jus ao pranto,

           Honrai-lhe a antiga lira,

Onde outra hora cantou versos sem pejo,

           Que aprendera no Tejo.

  

8

 

Em tempos mais feliz, nas praias lusas,

Salitrosas, da ínclita Ulisseia,

           Teve a estima das Musas;

           Da Cítara Febeia,

Alguns sons aprendeu; teve louvores

           D’afamados cantores.

 

 

 

 
 

9

 

Em seu sábio Ateneu, ali com eles

Em tarefas poéticas cantava.

           Francélio [3] era um daqueles

           Que as asas despregava,

Seguindo o rasto de seus grandes sócios,

           Alvos cisnes beócios.

  

10

 

Dali subia ao cume do alto Pindo

Pelo trilho do grão cantor Elmano [4]

           Quantas vezes subindo

           Belmiro [5] Transtagano

Do alto lhe bradou: Sobe sem susto

           Pós mim… afronta o susto.

 

 

 
 

11

 

Outras vezes nas asas o tomava

O mélico cantor, cisne sadino,

           E tanto o remontava

           O épico Thomino [6],

Que nos raios de Febo, onde voava,

           A fronte lhe escaldava.

  

12

 

A ver estranhos ares o levavam

O assombroso Elmiro [7], o sábio Oleno [8],

           E os rumos lhe ensinavam

           Que o grão cantor Ismeno [9]

Imitador de Píndaro e d’Horácio,

           Descobrira no Lácio.

 

 

 
 

13

 

Assim tomando força, audaz subia

Entre os cisnes do Tejo ao piério monte;

           A lítica Thalia

           Muitas vezes a fronte

Ali lhe engrinaldou de verde louro

           Ao som da lira d’ouro.

 

14

 

Por taças de cristal o estilo puro

Bebeu dos grandes vates quinhentistas;

           Nunca o caminho escuro

           Seguiu dos seiscentistas.

Foi por isso que ao Vouga o fez glorioso

           Bocage luminoso [10].

 

 
 

15

 

Que lições lhe não deu do canto agrário

O seu dilecto amigo, o doce Alcino!...

           Com que fogachos, Clário [12]

           D’alto fogo divino

O estro lhe acendeu, e o grão Jacindo [13]

           Nas tarefas do Pindo!...

  

16

 

Mas ah! De tantos cisnes portentosos

Só o rouco do Vouga agora resta!...

           De todos seus famosos

           Sócios viu a funesta

Passagem do Aqueronte em fusca barca,

           Onde ele agora embarca.

 

 

 

 
 

17

 

Ficou só o cantor do Vouga anoso

Para as portas fechar da Academia!...

           Ele chorou saudoso

           A nobre companhia,

À qual a fama ind’hoje erige altares

           Nos lusitanos lares.

  

18

 

Quem pode hoje carpir amor tal queda

De Francélio Vouguense octogenário?...

           Findou a labareda

           Do facho incendiário,

Que no estro acendia altas fogueiras

           Aos Camões, aos Ferreiras!...

 

 

 

 
 

19

 

Labirintos românticos, charadas,

Frases hieroglíficas do Nilo

           São as francesadas

           Canções do novo estilo…

Já se não cantam nénias lacrimosas,

           Elegias saudosas!...

 

 20

 

‘Té vós, ninfas gentis, desaprendido

Tendes aquelas ternas cantilenas,

           Que fizeram florido

           O jardim das Camenas;

Do doce Anacreonte os sons divinos,

           De Teócrito os hinos!...

 

 

 
 

21

 

Em vez do ledo canto d’artifício,

Com lágrimas d’amor, do triste vate

           Honrai o natalício

           Decrépito, que bate

As portas da tremenda eternidade

           Com susto e saudade!...

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] A roxa flor da saudade.

[2] A triste flor do martírio.

[3] Francélio Vouguense era o nome pastoril de Francisco Joaquim Bingre.

[4] Elmano Sadino era o nome pastoril de M.M.B. du Bocage.

[5] Era Belchior Curvo Semedo Torres de Sequeira.

[6] Tomás António dos Santos e Silva.

[7] P.e José Agostinho de Macedo

[8] Nuno Ávares Pereira Pato Moniz.

[9] João Vicente Pimentel Maldonado.

[10] Vid. nota de Bocage do seu Soneto nos seus últimos momentos em que numera alguns sócios; e vid. no seu Prólogo do poema – As plantas – os dois últimos versos:

           Ferve no audaz Francélio, e rompe os astros,

           Sacro delírio, destemida insânia.

[11] Joaquim Severino Ferraz de Campos

[12] Sebastião Xavier Botelho

[13] Joaquim Inácio da Costa Quintela

[14] A Academia de Belas Letras, erecta no Castelo de S. Jorge de Lisboa por vários curiosos, debaixo dos auspícios de S.M. a Sr.ª D. Maria 1.ª, e dirigida pelo intendente geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique; teve bastante nome em Lisboa, e fez no Paço da Ajudauma sessão ao nascimento da Sr.ª D. Maria Teresa, primeira filha do sr. D. João VI.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Obras de Francisco Joaquim Bingre, 6 vols., ed. lit. de Vanda Anastácio, Lello & Irmão, Porto 2000-2005

 

O moribundo cisne do Vouga, livro de poesias editado em 1850

Online: http://books.google.pt

 

Biografia por Inocêncio Francisco da Silva, in Archivo Pittoresco, IV, de 1861, pags. 129-131, 143-144 e 150-152

Online: http://books.google.pt

 

Teófilo Braga, Bocage, sua vida e obra literária, Livraria Chardron, 1902

Online: www.archive.org

 

Vanda Anastácio, Da história literária e de alguns dos seus problemas. In COLÓQUIO LITERATURA E HISTÓRIA : PARA UMA PRÁTICA INTERDISCIPLINAR, 1, Lisboa, 2005 - "Literatura e história : para uma prática interdisciplinar : actas". Lisboa : Universidade Aberta, 2005, p. 43-59.

Online: http://repositorioaberto.univ-ab.pt/bitstream/10400.2/299/1/ACTAS-Literatura%20e%20Hist%c3%b3ria43-59.pdf.pdf

  

O Panorama

Online: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

 

Mnémosine Lusitana

Online: http://books.google.com

 

Almanak das Musas

Online: www.archive.org

 

Genealogia: http://bingres.blogspot.com/

  

 

Adenda: Acho que será boa ideia inserir aqui um poema de uma poeta contemporânea de Bingre, de muita valia, mas pouco conhecida,  Maria Felicidade do Couto Browne (1797-1861):

 

  AO CISNE DO VOUGA

 

 

De quase um século oprimido,

E dos homens esquecido,

Jaz no leito da agonia,

Sofrendo miséria e dor,

Um infeliz trovador,

Que esta pátria enobrecia.

 

Nas cordas da sua lira,

Tal o cisne quando expira

O seu mal inda pranteia;

E da Arcádia a luz final,

Que já pálida e mortal,

Sobre a campa bruxeleia.

 

Neste abandono da sorte

Revive o quadro da morte,

Do – grande desventurado (*)! –

Ir morrer ao hospital

Será do génio em Portugal

o forçoso duro fado!

 

Como o Jao por caridade

Invoco a vossa piedade,

Valei-lhe que pouco basta;

Ao seu génio c’roas dai,

C’um óbolo confortai

Aquela vida tão gasta.

 

Que seu pranto, anjo de graça

Lá no céu, em áurea taça,

Para vós terá guardado,

Que o pranto da gratidão

Unge a dor do coração

De quem o pranto há causado.

 

 

(*)  Camões

 

 

Maria Felicidade do Couto Browne, Virações da Madrugada, 1854, s.l.,s.n., pag. 232