18-9-2006

 

Ars Amatoria - Publius Ovidius Naso

Arte de Amar, de Ovídio

 

Livros:

Ovídio, Arte de Amar, tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André, Cotovia, Lisboa, ISBN 972-795-153-8

Ovídio, Amores, tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André, Cotovia, Lisboa, ISBN 972-795-176-7

Carlos Ascenso André, Caminhos do Amor em Roma: Sexo, amor e paixão na poesia latina do séc. I. a.C., Livros Cotovia, Lisboa, 2006, ISBN 972-795-155-4

 

(Alguns) links:

P. OVIDI NASONIS OPERA

The Latin Library

Internet Sacred Texts Archive

Intra Text Edition

Perseus Digital Library

Perseus

Wikipedia em latim

Wikipedia in English

Kirjasto

University of Virginia

Directorio - Ferdy Hanssen

Forum: The Greenspun family server

L'art d'aimer - traduction française

 

Excertos da "ARTE DE AMAR"

(Transcreve-se a tradução do Prof. Doutor Carlos Ascenso André, cuja autorização para a sua reprodução se agradece)

 

 

 

 

 

 

Dant etiam positis aditum convivia mensis:
     est aliquid praeter vina, quod inde petas.               
230
Saepe illic positi teneris adducta lacertis
     purpureus Bacchi cornua pressit Amor:
vinaque cum bibulas sparsere Cupidinis alas,
     permanet et capto stat gravis ille loco.
Ille quidem pennas velociter excutit udas:               
235
     sed tamen et spargi pectus amore nocet.
Vina parant animos faciuntque caloribus aptos:
     cura fugit multo diluiturque mero.
Tunc veniunt risus, tum pauper cornua sumit,
     tum dolor et curae rugaque frontis abit.               240
Tunc aperit mentes aevo rarissima nostro
     simplicitas, artes excutiente deo.
Illic saepe animos iuvenum rapuere puellae,
     et Venus in vinis ignis in igne fuit.
Hic tu fallaci nimium ne crede lucernae:               245
     iudicio formae noxque merumque nocent.
Luce deas caeloque Paris spectavit aperto,
     cum dixit Veneri 'vincis utramque, Venus.'
Nocte latent mendae, vitioque ignoscitur omni,
     horaque formosam quamlibet illa facit.               250
Consule de gemmis, de tincta murice lana,
     consule de facie corporibusque diem.
 

LIVRO I

Os lugares de sedução

……….

O banquete

 

229

Facilitam, também a aproximação os banquetes, à mesa;

   há qualquer coisa mais, além do vinho, que aí deves buscar.

Muitas vezes, braços delicados, os lançou o Amor, de rosto afoguedada,

   sobre os chifres apertados de Baco, bem bebido;

e quando o vinho se espalhou sobre as asas esponjosas de Cupido,

   ali fica e permanece prostrado do peso no lugar onde estava;

e logo sacode, à pressa, as penas encharcadas,

   mas as próprias gotas sacudidas pelo amor são danosas ao coração.

O vinho põe o coração a jeito e torna-o pronto para a fogueira;

   os cuidados desvanecem-se e diluem-se numa boa dose de vinho puro;

chega, então, o riso, então o pobre ganha coragem,

   então a dor e os cuidados e as rugas desaparecem do rosto,

então a simplicidade, tão rara no nosso tempo, abre os

   corações, sacudidos que foram os artifícios pelo deus.

Ali, muitas vezes as moças arrebataram os corações dos rapazes,

   e Vénus, no vinho, tornou-se fogo no fogo.

Aqui, não te fies tu em demasia nas luzes enganadoras;

   na apreciação da formosura, são danosos a noite e o vinho.

Foi à luz do dia e com céu desanuviado que Páris contemplou as deusas,

   quando disse a Vénus: “és tu quem leva de vencida as outras duas”.

De noite, ficam disfarçados os defeitos e desculpam-se todos os vícios;

   essa é a hora que torna famosa qualquer uma;

consulta, antes, a luz do dia a respeito das gemas, da lã tingida de púrpura,

   consulta-a a respeito do rosto e do corpo.

252

 

 

 

 

 

 

 

 

Si nec blanda satis, nec erit tibi comis amanti,
     perfer et obdura: postmodo mitis erit.
Flectitur obsequio curvatus ab arbore ramus:
     frangis, si vires experiere tuas.               180
Obsequio tranantur aquae: nec vincere possis
     flumina, si contra, quam rapit unda, nates.
Obsequium tigresque domat Numidasque leones;
     rustica paulatim taurus aratra subit.
Quid fuit asperius Nonacrina Atalanta?               185
     Succubuit meritis trux tamen illa viri.
Saepe suos casus nec mitia facta puellae
     flesse sub arboribus Milaniona ferunt;
saepe tulit iusso fallacia retia collo,
     saepe fera torvos cuspide fixit apros:               190
sensit et Hylaei contentum saucius arcum:
     sed tamen hoc arcu notior alter erat.
Non te Maenalias armatum scandere silvas,
     nec iubeo collo retia ferre tuo:
pectora nec missis iubeo praebere sagittis;               195
     artis erunt cauto mollia iussa meae.
 

 

LIVRO II

Conservar o amor

………………..

Persistência

 

177

Se não for meiga quanto baste nem corresponder ao teu amor,

   porfia e persiste. Acabará por tornar-se carinhosa.

Dobra-se, quando vergado com jeito, o ramo da árvore;

   vais parti-lo, se puseres à prova a tua força;

com jeito, a nado se passam as águas, mas não serás capaz de vencer

   o rio, se nadares contra a corrente que com as águas se arrasta;

o jeito doma os tigres e os leões da Numídia;

   no campo, o boi acaba por subjugar-se, pouco a pouco, ao peso do arado.

Que houve de mais agreste que Atalante, da Nonácria?

   Sucumbiu, no entanto, por feroz que fosse, aos feitos de um homem;

chorou, muitas vezes, a sua ruína e os gestos nada brandos de sua amada,

   dizem, Milánion, no meio dos bosques;

muitas vezes, às ordens dela, trouxe às costas as redes traiçoeiras,

   muitas vezes atingiu com sua lança implacável os ferozes javalis;

e sentiu, também, a ferida causada pelo arco retesado de Hileu;

   mas era dele mais conhecido que este um outro arco.

Não te ordeno que atravesses, de armas em punho, os bosques de Ménalo,

   nem que carregues redes às costas,

nem te ordeno que ofereças o peito às setas que contra ti desferem;

   brandas e cautelosas serão as ordens da minha arte.

196

 

 

 

 

 

 

 

 

Sed vitate viros cultum formamque professos,
     quique suas ponunt in statione comas.
Quae vobis dicunt, dixerunt mille puellis:               435
     errat et in nulla sede moratur amor.
Femina quid faciat, cum sit vir levior ipsa,
     forsitan et plures possit habere viros?
Vix mihi credetis, sed credite: Troia maneret,
     praeceptis Priamo si foret usa satae.               440
Sunt qui mendaci specie grassentur amoris,
     perque aditus talis lucra pudenda petant.
Nec coma vos fallat liquido nitidissima nardo,
     nec brevis in rugas lingula pressa suas:
nec toga decipiat filo tenuissima, nec si               445
     anulus in digitis alter et alter erit.
Forsitan ex horum numero cultissimus ille
     fur sit, et uratur vestis amore tuae.
'Redde meum!' clamant spoliatae saepe puellae,
     'redde meum!' toto voce boante foro.               450
Has, Venus, e templis multo radiantibus auro
     lenta vides lites Appiadesque tuae.
Sunt quoque non dubia quaedam mala nomina fama:
     deceptae multi crimen amantis habent.
Discite ab alterius vestras timuisse querellis;               455
     ianua fallaci ne sit aperta viro.
Parcite, Cecropides, iuranti credere Theseo:
     quos faciet testes, fecit et ante, deos.
Et tibi, Demophoon, Thesei criminis heres,
     phyllide decepta nulla relicta fides.               460
Si bene promittent, totidem promittite verbis:
     si dederint, et vos gaudia pacta date.
Illa potest vigiles flammas extinguere Vestae,
     et rapere e templis, Inachi, sacra tuis,
et dare mixta viro tritis aconita cicutis,               465
     accepto venerem munere siqua negat.
 

 

 

 

 

 

Lusus habet finem: cygnis descendere tempus,
     duxerunt collo qui iuga nostra suo.               810
Ut quondam iuvenes, ita nunc, mea turba, puellae
     inscribant spoliis 'Naso magister erat.'

 

LIVRO III

Às mulheres

…………..

Homens a evitar

 

433

Mas evitai os homens preocupados com a elegância e a beleza

   e que têm o cabelo bem penteado;

o que vos dizem a vós, disseram-no já a mil mulheres;

   vai deambulando e não se fixa em sítio algum o seu amor.

Que há-de fazer uma mulher, quando o homem é mais instável que ela

   e pode, até, possuir, quem sabe?, mais homens?

Custa-vos acreditar, mas acreditai: Tróia ter-se-ia aguentado,

   Se tivesse posto em prática os preceitos de Príamo.

Há os que avançam a coberto de uma espécie enganosa de amor

   e, por tais caminhos, são ganhos indecentes que buscam.

E não vos iluda a cabeleira a brilhar, resplandecente, de perfume de nardo,

   nem a pinça elegante a apertar as pregas da roupa,

nem vos engane a toga de um tecido finíssimo, nem os anéis,

   por mais e mais que tenha nos dedos.

Talvez o mais elegante de entre todos eles

   seja um ladrão e esteja a arder por amor do que trazes vestido.

“Devolve o que é meu!”, gritam, muitas vezes, depois de roubadas, as mulheres,

   “devolve o que é meu!”, gritam, com gritos que ecoam em todo o foro;

Tais contendas, ó Vénus, de teus templos resplandecentes de tanto ouro,

   tu as observas, impávida, na companhia das tuas Apíades.

Há ainda, uns quantos, de mau nome e fama duvidosa;

   as que foram enganadas por muitos desses comungam dos vícios do seu amante.

Aprendei com as desgraças das outras a temer as vossas;

   não se abra a vossa porta a um homem falso.

Guardai-vos, ó filhas de Cécrops, de confiar nas juras de Teseu;

   os deuses que ele toma por testemunhas, já antes os tomou.

E tu, Demofoonte, herdeiro do perjúrio de Teseu,

   Depois de enganares Fílis, nenhuma confiança em ti pode restar.

Se boas promessas vos fizeram, com outras tantas palavras haveis de prometer;

   se cumprirem, o prazer acordado, haveis de cumpri-lo.

É capaz de apagar as chamas eternas de Vesta

   e arrebatar de teu templo, ó filha de Ínaco, teus objectos sagrados

e servir ao marido acónito misturado com pó de cicuta

   toda aquela que, depois de receber o presente, negar os prazeres de Vénus.

466

 

 

Conclusão

 

809

A brincadeira está a chegar ao fim; é tempo de me apear dos cisnes

   que ao seu pescoço trouxeram atrelado o meu carro.

Tal como, antes, os jovens, assim agora, esta minha corte, as mulheres

   gravem nos seus despojos: “Foi Nasão o nosso mestre!”

812

 

 

Expresso – Actual n.º 1751, de 20-5-2006

Textos de Helena Barbas

Como apropriado, o primeiro poeta português a tentar traduzir a Arte de Amar de Ovídio terá sido Bocage, que deixa o projecto inacabado.

Publicada no Rio de Janeiro, em 1862, sai a Arte de Amar de Públio Ovídio Nasão; traducção em numero egual de versos por A. Feliciano de Castilho, seguida pela Grinalda da "Arte de Amar» por José Feliciano de Castilho, provavelmente feita em 1826, ano em que morre seu pai.

Em 1890, João Félix Pereira (1822-1891), médico, letrado, engenheiro e poliglota, também tradutor do Pro Arquias, de Cícero, publica em Lisboa o seu treslado da Ars Amandi.

A versão de António Borges Coelho, o prestigiado historiador, feita para a Presença, tem duas edições, em 1965 e 1972. Célia Pestana traduz a obra para a colecção dos livros de bolso da Europa-América em 1974, reeditada em 1998.

Em 1970 é publicada a versão que mais brado deu, por ser trabalho conjunto de dois poetas de renome — Natália Correia e David Mourão-Ferreira. Inesperadamente, o desejo de dar mais poeticidade ao texto, de explorar as musicalidades da rima, acaba por mitigar em parte algumas das ousadias de Ovídio. O livro é reeditado em 1990 e depois em 1994, já com as ilustrações de Luis Alves da Costa, que servem de contraponto à tendência anterior.

 

   

 

 

Desterro e desespero

 

"O sulmonense Ovídio, desterrado / na aspereza do Ponto, imaginando / ver-se de seus parentes apartado..." — assim fala Camões (elegia III) de Públio Ovídio Nasão. Nasceu Ovídio de uma família antiga e respeitável, em Sulmona, em 43 a.C. É o ano do segundo triunvirato de Marco António, Octávio e Lépido -— e do assassínio de Cícero. Os pais enviam-no a estudar em Roma. Frequenta os melhores professores de retórica, - Aurélio Fusco e Pórcio Lato. Termina a sua educação em Atenas, viajando ainda pela Ásia Menor e pela Sicília. Autodescreve-se como pálido, de meia estatura, magro, forte e nervoso. Da classe dos cavaleiros, Ovídio ambiciona uma carreira pública, mas ao receber a herança por morte do pai e do irmão mais velho, Lúcio, troca as aspirações a magistrado pelo ócio da escrita. O primeiro dos seus cinco livros de elegias – Amores - contemporâneo da Eneida de Virgílio, alcança enorme sucesso. Ingressa no círculo de Messalia (Corvinus), convivendo com os poetas Tibulo, Horácio, Propércio, Sulpícia (I), o gramático Higino. Escreve as cartas de amantes famosas (Herodíades), uma "arte da beleza" sobre o uso de cosméticos e a famosa Arte de Amar (c. 1 d.C.). Consta que terá sido este seu livro que o fez cair em desgraça junto do imperador Augusto (27 a.C.-14 d.C.), que o exila no ano 8 da nossa era, os 15 livros das famosas Metamorfoses já terminados. Um desterro polémico, pois só o próprio fala dele, sugerindo como motivo uma "indiscrição" que nunca é esclarecida. Por tal, estudiosos como J.J. Hartmann propõem que se possa tratar de um mero estratagema poético. O castigo real ou fictício não implica a perda da cidadania nem o confisco de propriedades. Atribuem-se. porem, a esta fase final os textos mais sombrios - Trístia e as Epístolas do Ponto. Ovídio morre em Tomos, a 17 ou 18 d.C. sem colher o fruto dos esforços de Perilla, a sua terceira mulher, que se mantém fiel em Roma a interceder por ele.

 

 

 

Artesão do amor e do sexo

A arte de Ovídio em nova versão e um óptimo ensaio sobre amores romanos no século I

Textos de Helena Barbas

Ovídio, Arte de Amar

Trad., introdução e notas de Carlos Ascenso André

Cotovia, 2006, 126 págs., € 18

 

Caminhos do Amor em Roma – Sexo, Amor e Paixão na Poesia Latina do Séc. I. a.C.,

de Carlos Ascenso André

Cotovia, 2006, 364 págs., € 25

 

Escrita no início da nossa era, a Arte de Amar de Ovídio nasceu como um texto incómodo. Estará na origem do hipotético exílio do autor (8 d.C.) e seus subsequentes dissabores. Foi queimada em Florença, em 1497, junto com obras de Dante, Propércio, Botticellli, na "Fogueira das Vaidades" acendida por Savonarola. Em Portugal, aparece nos índices dos livros proibidos pela Inquisição, em 1581, também a par de Dante. Tão perto quanto 1928, a alfândega dos Estados Unidos impede a importação do livro, que no ano seguinte é banido em São Francisco.

O volume amaldiçoado é composto por três livros, o primeiro destinado a ensinar os homens a conquistar as mulheres, o segundo a adestrá-los a conservá-las e o terceiro a explicar, agora às leitoras, com que habilidades podem fascinar m homens. Terá sido seguido por um outro volume - Remédios do Amor -,com o objectivo de explicar aos seus prévios leitores (e vítimas) como se libertar de sujeições.

O termo "arte", no título, deverá ser lido no seu sentido mais prosaico, recordando a origem grega de técnica: "Se alguém das nossas gentes não conhece a arte de amar / leia este canto; e, depois de o ter lido entregue se com sabedoria ao amor. / E a arte e as velas e os remos que fazem mover as naus, / é a arte que faz mover, ligeira, a quadriga. É a arte que deve reger o Amor./ ... / a mim Vénus me designou o artesão do Amor" (1, vv. 1-7). O artesão, que é um muito concreto cocheiro, um piloto, um mestre nos exercícios da sedução - caça, guerra, conquista -, que partilha com o seu público: " o que quiseres amar, trata de procurá-lo, / tu que acabas de entrar, feito soldado, em novo exército;/ logo depois hás-de empenhar te em fazer ceder aquela que te agradou; / em terceiro lugar, farás por que dure longo tempo o amor. / Estas são as fronteiras’> (I, vv. 35-39): O amor é um território a ser tomado activamente por meio de comportamentos físicos, encenações, mentiras, disfarces e rituais. Tem os seus lugares próprios - os recintos públicos, o circo, os jogos, os cortejos e, principalmente, os banquetes com o vinho por grande aliado. O alvo é a mulher e todas querem namorar: "mesmo aquela que podes supor que não quer... quer" (I, vv. 274). Usando exemplos mitológicos para ilustrar as suas propostas ou para elucidar momentos em que um (pseudo) pudor não lhe permite entrar em por menores - aqui Pasífae e o Minotauro —, Ovídio conclui que a paixão feminina "é mais intensa que a nossa e possui fúria bem maior" (I, vv. 342). A encenação é preparada também e acordo com as regras mais elementares da retórica, pois o primeiro objectivo do amante é persuadir. Encontra-se a sugestão do recurso às lágrimas, como em O Orador, de Cícero, para comover e suscitar os afectos. Após instruções concretas - como seduzir a criada, enviar cartas, bem falar —, chega aos preceitos de higiene: "as unhas não devem dar nas vistas de compridas e devem estar limpas,/ e no nariz não deve haver qualquer pêlo / nem saia mau hálito de uma boca mal-cheirosa, nem atinja o nariz dos outros o fedor do macho e do pai do rebanho. / Quanto ao resto, deixa-o por conta das mulheres dadas ao prazer / ou de qualquer homem que tenha o vicio de possuir outro homem" (I, vv. 517-22). No livro II expendem-se mais conselhos do mesmo teor com o objectivo de ensinar a amar com sabedoria - uma sageza igualmente pragmática, que ultrapassa o registo dos costumes e entra psicologia adentro. No livro III – talvez um pouco mais tardio – Ovídio oferece às mulheres, as "amazonas" do amor, armas para que possam partir para a batalha em igualdade de circunstâncias. Os preceitos tornam-se mais próximos da encenação teatral, onde não faltam a marcação dos actores, indicação de gestualidades e falas, figurinos, adereços e maquilhagem. É necessário disfarçar os defeitos e exaltar as qualidades: "que cada uma se conheça bem a si mesma. A postura adequada ao corpo / essa é a que deveis assumir; não fica bem a todas a mesma atitude. / A que possui um rosto de especial beleza deve deitar-se de rosto para baixo; façam-se olhar de costas aquelas cujas costas são apetecíveis" (III, vv. 771-4), E simular, dissimular sempre: "mesmo tu, a quem a natureza negou sensibilidade a Vénus / finge doces prazeres com suspiros enganosos" (III, vv. 797-8).

A arte de Amar de Ovídio tem um peso enorme durante toda a Idade Média, sendo lida no original e considerada matéria de ética. Compulsado em claustros e escolas episcopais, e também divulgada cm segundas e terceiras mãos por traduções, como a (perdida) de Chrétien de Troyes, e/ou resumos e paráfrases. De mistura com as regras da cavalaria vai inspirar as cortes e tribunais de Amor. Os conselhos sobre a simulação dos sinais exteriores do estado amoroso acabam por se transformar nos sintomas fisiológicos da paixão trovadores ca. Por outro lado, as suas componentes mais brejeiras sobrevivem nas narrativas ele Chaucer ou Boccaccio.

A tradução agora editada pela Cotovia é de Carlos Ascenso André, também ele autor de um livro - resultado das suas provas de agregação - sobre os Caminhos do Amor em Roma - Sexo, Amor e Paixão na Poesia Latina do Séc. I a.C. E desafia-nos logo na introdução: "Aparentemente, Virgílio, o poeta maior da literatura latina, o poeta que celebrou Roma, nas suas grandezas e nas suas frustrações, nas suas glórias e nos seus desenganos, Virgílio, o autor do canto épico dos romanos e de uma das maiores epopeias de sempre, não gostava de mulheres» (pág. 13). Decorre que a Eneida, a epopeia que inspirou toda a tradição europeia, será um texto tão misógino quanto o seu autor? Carlos Ascenso André justifica as suas afirmações contextualizando-as e explorando de uma forma brilhante as obras, os clarins históricos, inserindo-os no direito, usos e costumes do respectivo tempo. Os capítulos dividem-se por todos os temas subsidiários do amor. O casamento, como um contrato negocial, que aceita algumas "facadas". Sobre o corpo, o sexo e o prazer fala-os de Ovídio e dos poetas do obsceno. Refere depois as artes da sedução, o amor homossexual para encerrar com os "escravos da paixão", abordando amor e morte, amor e ódio, depois da humilhação do amante. Os motivos são ilustrados por poemas e citações dos variados autores estudados - dos já referidos Virgílio e Ovídio, passando por Catulo, Tibulo, Propércio. E diz: "nem sempre a leitura mais linear será a mais ajustada à realidade. Os poetas que assim cantam a sua própria escravidão no amor e as sevícias que vão passando às mãos das suas amadas podem muitas vezes estar, apenas, em seu canto a dar corpo às suas próprias fantasias eróticas, o mesmo é dizer, a fazer uso elo seu domínio. A verdade é que são eles que constroem essas personalidades femininas que a literatura celebrizou, como Lésbia, Cíntia, Délia, Némesis, Corina, mestras elas mesmas na arte ele amar, ou melhor, na arte de subjugar pelo amor. Se é que se não passa exactamente o inverso, ou seja, a mestria é da parte do homem, que assim vai construindo o cenário da sua fantasiada subjugação (pág. 350). Um longo excerto que leva a muito reflectir, se recordarmos figuras como a socrática Diótima, Lauras e Beatrizes, Catarinas e outras personae literárias mais recentes.

Nesta perspectiva, mais uma vez se pode salientar a modernidade de Ovídio e da sua Arte de Amar (mesmo não esquecendo a Corina dos seus Amores), tanto no dedicar do seu terceiro livro às mulheres como em incitá-las a assumirem-se como sujeito da e na relação amorosa, instigando-as a subverterem os códigos sociais e morais da sua própria época: "A brincadeira está a chegar ao fim; é tempo de me apear dos cisnes / que ao seu pescoço trouxeram atrelado o meu carro./ Tal como antes, os jovens, assim agora, esta minha corte, as mulheres / gravem nos seus despojos: ‘foi Nasão o nosso mestre!’" (III, vv. 810).

 

 

Jornal de Letras, Artes e Ideias

Ano XXV / N.º 930

24 de Maio a 6 de Junho de 2006

 

Carlos Ascenso André - Amor em tempos de excesso

RICARDO DUARTE

 

É um homem dos sete ofícios. Foi governador civil,  durante os governos de António Guterres, e presidente de uma empresa da Marinha Grande. Actualmente anima o programa Imperdível, da Central FM, às sextas, às 18, e a tertúlia O Café das Quintas, no Teatro Miguel Franco, em Leiria, na última quinta de cada mês. Mais importante contudo, é a dedicação aos clássicos.  Como docente na Faculdade de Letras de Coimbra e nas traduções, Carlos Ascenso André, 53 anos,  é um leitor devoto dos antigos ensinamentos. “O conhecimento que tenho da antiguidade dá-me uma sensibilidade especial para olhar os tempos modernos», diz. O exílio e o amor são os temas que trabalha, em particular ria obra de Ovídio, como se pode ver na tradução de Arte de Amar (128 pp., 18 Euros) e no ensaio Caminhos do Amor em Roma  (368 pp., 25 euros), ambos da Cotovia. Retratos do amor em tempos de excesso.

 

Jornal de Letras: Associamos a Revolução Sexual ao séc. XX, mas ela não parece ser desconhecida dos romanos

Carlos Ascenso André: Ao longo dos anos, de facto, não inventámos muito. No amor, na sedução, no desvario. Ao olharmos para a Arte verificamos que, em Roma, como na Grécia, já se cultivava o corpo. E depois há elementos surpreendentes, como a forma ousada como se apresentam as relações amorosas Não quer dizer que os clássicos antecipem a emancipação da mulher O mesmo acontece com a homossexualidade, bissexualidade e heterossexualidade Não podemos ler os clássicos com as categorias actuais, pois esses conceitos não existiam. Em Roma não havia distinção, era irrelevante se fosse um homem e uma mulher, ou dois homens. O que contava era a hierarquia entre os parceiros. A relação física era também de poder.

 

Por que razão centra o seu ensaio no séc. I a.C.?

Tinha de fazer urna selecção, mas também porque é possível encontrar uma unidade nos seis poetas que estudo. É o século de ouro da Literatura Latina, que antecede as grandes transformações do séc. I d.C. Com o fim da república, o apogeu do império e a expansão territorial os costumes mudam. O povo romano entra em contacto com civilizações do Oriente, mais exuberantes e abertas, e tudo isso é importado. Basta lembrar que a luxúria da corte de Cleópatra seduziu Júlio César e Marco António. Os romanos foram tentados por essa volúpia porque ninguém é insensível ao prazer, que está subjacente a tudo. Amor sem prazer não é Amor. Sá existe quando há consumação física, fulguração de sentidos, fruição total.

 

Qual a singularidade da obra de Ovídio, Arte de Amar?

A sua componente didáctica. Ovídio diz que o Amor é unia técnica, algo que se pode aprender. E ele fala “com saber de experiência própria”. Além disso, Arte de Amar está muito bem estruturado, dividido em três livros, sobre como conquistar uma mulher, como mantê-la e com dicas para os cuidados que a mulher deve ter. É impossível não sorrir ao ler estes conselhos, alguns perfeitamente actuais, como as indicações sobre a traição conjugal. São preocupações prosaicas, mas expressas poeticamente.

 

 

 

25-4-2006

"Hoje não há nada de novo nos processos de sedução"


Isabel Lucas Gonçalo Santos

 

A Qual a actualidade desta cartilha de amor com dois mil anos?

É muito actual. A Arte de Amar tem ensinamentos que atravessam o tempo. Um dos aspectos pitorescos são os conselhos sobre a infidelidade conjugal. Sobretudo dados à mulher. Ensina a tratar bem das portas para não rangerem, a disfarçar as marcas dos lábios no pescoço... Os muitos preceitos sobre a infidelidade conjugal. Basta conhecer a vida para saber que os casos de infidelidade passam por truques dessa natureza. Não se inventou nada. Hoje não há nada de novo nos processos de sedução. Está tudo em Ovídio e dito em forma poética, com linguagem poética ao longo de 2400 versos.

O livro divide-se em três: dois com conselhos ao homem e um à mulher. Com isso fingiu dar importância à mulher ou é sinal de que a considerava?

Nunca conseguiremos, talvez, tirar uma conclusão inequívoca a esse respeito. Ele é contraditório.

Pelos conselhos que vai dando ao homem?

Exacto. Ao ler o livro, no processo de sedução, o homem é o caçador e a mulher é a presa. De tal forma que a mulher do século XXI se arrepia. Tudo é feito na lógica do homem. Mas depois, surpreende. Os conselhos que dá que têm a ver com uma certa igualdade na busca do prazer. No final do livro II, ele diz ao homem: "avançai para a meta ao mesmo tempo." E acrescenta que nada há melhor que homem e mulher terminarem estendidos e entorpecidos um ao lado do outro, por terem alcançado o prazer simultâneo. Esta teoria do orgasmo simultâneo surpreende. É a primeira vez que vejo alguém na antiguidade clássica preocupado com o prazer da mulher.

Que desafios o livro coloca ao tradutor?

É sempre difícil traduzir um autor clássico. Põe vários problemas, alguns resultam do contexto em que foi produzido. Tive problemas a traduzir os passos em que trata o estatuto da mulher. Há uma barreira muito espessa entre mim e o texto, uma barreira com dois mil anos carregados de informação. O texto que tenho pode estar muito igual ao que Ovídio produziu, mas não é o mesmo. O que me chega às mãos vem carregado de dois mil anos de leituras. É impossível libertar-me disso. Quando olho para Ovídio faço-o com os olhos de um homem do século XXI. O conhecimento directo de um contexto significa viver nele e não serei nunca capaz de reconstituir fielmente esse tempo.

Há ainda o vocabulário.

Sim. Nem sempre o significado directo de uma palavra do poema fica bem numa tradução portuguesa. Até pode ser rigorosamente aquele significado, mas quero traduzir poesia. Há que respeitar a linguagem original, ser o mais fiel possível à sintaxe, mas respeitando a sintaxe portuguesa, mantendo o sentido e o ritmo poético. Conciliar isto é uma solução de compromisso, equilibrada, mas que nunca será a tradução perfeita. A tradução perfeita é impossível de atingir.

Deve-se assumir essa marca do tradutor?

Sobretudo na poesia. Os italianos dizem-no de forma clara:Tradutore, traditore. O tradutor é um traidor. Não somos capazes de traduzir um texto, sobretudo poético, sem o trair. As dificuldades de traduzir Ovídio resultam da necessidade de conciliar tudo isto. Ovídio é um poeta fácil, um versejador fácil. Era instintivo. Tem um poema noutra obra onde conta que os pais queriam que tivesse aprendido Direito, mas que não foi capaz porque tudo quanto dizia saía em verso. É um poeta espontâneo. Às vezes a poesia parece um puzzle mas sai-lhe naturalmente assim.

Significa que é menos erudito?

Não. Significa que não é tão bom poeta como Horácio. Mas também não é um lírico; é um elegíaco. Na literatura latina são coisas muito diferentes. O rasgo poético horaciano é muito mais visível, mais sensível que o ovidiano. A dificuldade está em lidar com esta espontaneidade; ser capaz de passar isso para a tradução que não é espontânea. É elaborada. Depois, há a procura da palavra. No vocabulário do amor, sobretudo quando chegamos ao erotismo, a escolha da palavra é um processo exigente.

É fácil cair no mau gosto?

E na obscenidade. E os poemas não são obscenos. Nos Caminhos do Amor em Roma [o ensaio] há dois casos em que não havia forma de fugir porque a palavra utilizada pelo poeta é obscena e não deixei de usar a mesma palavra em português. É tão inequívoca que não podia ser de outra maneira. A Arte de Amar é um livro de salão. Ovídio era um poeta de corte. Do banquete, do festim, da Roma da luxúria, não é um poeta do obsceno. Mas por vezes é uma tentação enorme, temos uma palavra de calão, grosseira, que cai ali a matar, mas fazê-lo seria destruir o poema, porque o poema sugere mas não diz. Temos de encontrar a palavra portuguesa que sugira sem dizer.

Esta é uma tradução a pensar no grande público. Que cuidados teve?

Não abusar de notas. Aparecem no final. Num texto desta natureza as notas destroem a leitura. Expliquei o que o leitor não sabe: mitologia. Porque é que um determinado episódio mitológico é dado a um determinado passo. Quanto ao resto, ajudei no início. A introdução é para o grande público. Além de explicar quem é Ovídio, explica o livro. É um resumo que não retira a magia da leitura das palavras de Ovídio.

Aconversa começa à volta de uma nova ideia de título. Pudesse voltar atrás e Carlos Ascenso André seria mais conciso a anunciar um ensaio sobre o amor e o sexo na poesia da Roma Antiga. É tarde. Os 'objectos' estão impressos e à venda, em rosa vivo, cor que desmente qualquer ideia de cinzentismo de conteúdo ou academismo muitas vezes associado à literatura clássica. Aqui, a linguagem é tão sedutora quanto o tema. No tradução do poema como no ensaio. Dois livros feitos em simultâneo, a pensar no grande público, mas sem descurar a erudição.

  

                         

PÚBLICO, Mil Folhas, 6 de Maio de 2006

O amor ensina-se? Há mais de dois mil anos, Ovídio achava que sim. Escreveu um manual para sedutores e sedutoras infiéis no casamento mas fieis ao hedonismo: "Arte de Amar". Carlos Ascenso André, especialista em literatura latina, traduziu.

 

"Ainda seguimos a cartilha da sedução de há 2000 anos"

 

Joana Gorjão Henriques

 

Ovídio é o primeiro poeta didáctico do amor, diz o tradutor de "Arte de Amar", Carlos Ascenso André, 53 anos, que acaba de publicar também um ensaio sobre os poetas latinos do século I ª C. "Caminhos do amor em Roma", ambos na Cotovia.

Escrito há mais de dois mil anos, "Arte de Amar" é ainda hoje uma cartilha pronta a usar para sedutores e sedutoras hábeis no fingimento. Para este poeta do século I a.C. que "brinca ao amor", o casamento é apenas um contrato e a infidelidade é regra.

A tradução lançada agora foi feita directamente do latim. Professor de Línguas e Literaturas Clássicas na Faculdade de Letras de Coimbra, interessado pela literatura do exílio e pela poética do amor, está a traduzir outra obra de Ovídio, "Amores", e espera traduzir uma terceira, "Cantos de Tristeza".

Não fosse a linguagem de Ovídio "um pouco erudita" e "Arte de Amar" podia ser um best-seller. Ovídio era um poeta de salão adorado na Roma Antiga.

O livro chama-se ‘Arte de Amar": não devia chamar-se "Arte de Seduzir", Ovídio não é antes um mestre da sedução?

É as duas coisas. A sedução ocupa essencialmente o I Livro já que o II já não tem tanto a ver com a sedução. O que é curioso é que ele chama a isto uma arte e concebe o amor como algo que pode ser ensinado, transmitido didacticamente como aconteceu com outros poetas em relação com outros assuntos. Não é o primeiro poeta didáctico mas é o primeiro poeta didáctico do amor. Parte do principio que para ensinar é preciso saber, experimentar e afirmar-se como mestre largamente experimentado. É aí que assenta a teoria dele. E depois desenvolve preceitos que são uma cartilha do amor em várias vertentes, não é apenas a sedução porque tanto o final do II e do III são muito concretos em relação à concretização física. Embora se pensarmos no conceito como o entendemos hoje, talvez mais de 50 % do livro seja sobre sedução.

Não há demasiado fingimento se pensarmos numa concepção purista do amor?

Ovídio tem do amor uma concepção lúdica. Tudo isto parece ser um divertimento ao ponto de não ser possível concluir se o divertimento dele consiste no acto de amar ou no de fazer poesia sobre o amor. Essa concepção do amor como divertimento, muito assente no prazer, leva-o aos truques, ao engano, ao fingimento: tudo é aparência, tudo assenta no faz-de-conta. Não se procure na poesia de Ovídio mecanismos de sinceridade. Por exemplo, quando ele diz "para seres amado, sê amável, e sê culto e aprende com os poetas", isto não tem nada de profundidade, é um truque, continua a ser um disfarce. Eu diria que a arte do amor é uma espécie de encenação – em Ovídio o amor passa por aí.

A sensação é uma cartilha para os Don Juan mas também para as "Donas Juan".

Mais para eles do que para elas. Mas é surpreendente que também seja para elas. A concepção romana das relações assentava numa hierarquia: há um parceiro que tem poder e outro que não. Nas relações entre homem e mulher, obviamente que o poder está do lado do sexo masculino. Daí que Ovídio dedique dois livros aos homens e só um às mulheres e, no início, trate a mulher de uma forma que chega a arrepiar uma mulher do século XXI: o homem é o caçador e a mulher a presa. Dedica um livro às mulheres mas não as ensina a seduzir, ensina-as a porem-se a jeito para que os homens as possam seduzir. Continua a ensinar-lhes um papel passivo mas deixa escapar algumas afirmações que nos levam a pensar que ele tem respeito pela mulher.

Não está a pensar novamente no homem, que tem mais prazer se a mulher estiver melhor preparada para a contracena?

Porque na verdade é ao homem que ele dá a indicação de que deve esperar, que deve controlar o ritmo, o processo,. Pode perfeitamente estar a pensar no prazer masculino, ou seja, mesmo quando defende o ritmo igual, a teoria do orgasmo simultâneo, nunca podemos ter a certeza que ele está a pensar no respeito pelo prazer da mulher. Hoje há uma longa polémica, sobretudo nos Estados Unidos, porque há um conjunto de feministas norte-americanas que o tomam como pioneiro dos direitos das mulheres e outras que dizem isto.

Tem a ver com aquilo que diz na introdução: o amor ovidiano não é um sentimento, é uma prática?

Não creio que haja da parte de Ovídio o sentimento do amor na "Arte de Amar", que é uma cartilha, um catecismo, um manual. Ensina preceitos, o que significa que aí não há lugar a sentimentos – mesmo quando se refere a sentimentos, é para dizer que eles estão errados, o sentimento destrói o prazer do amor. Quando cita episódios mitológicos é para dizer que o sentimento quando é exacerbado tem um desenlace trágico. A "Arte de Amar" é uma coisa muito técnica.

Mas temos que ver que o objectivo era ensinar e os sentimentos não se ensinam. Há alguns poemas onde se sente emoção, mas o objectivo é usar uma técnica desprovida de emoções. Se é técnica é racional e não pode ter grandes emoções.

É um cínico?

Diria que é fútil, muito superficial e ligeiro, sobretudo na "Arte de Amar". Mas é bom contextualizar: Ovídio é um poeta de salão. Primeiro era versejador. Era um poeta espontâneo. Um poeta espontâneo que, chegado a Roma com algum dinheiro, entrou facilmente na sociedade que acabava de ficar deslumbrada pelo Oriente, com aqueles ambientes mundanos cada vez mais luxuosos e fúteis. Torna-se poeta de salão adorado. Tornava os serões agradáveis: as pessoas não deviam gostar de um Horácio ou de um Virgílio a cantar coisas sérias. Ele, de facto, não canta coisas sérias: essa é a nota dominante dele.

O que aconselha aos homens e às mulheres na "Arte de Amar" é a não se apaixonarem.

Aos homens sobretudo, para não perderem a lucidez. Da "Arte de Amar" não resulta paixão nenhuma. Tanto mais que retira a capacidade de praticar a arte.

Quer em relação aos homens como às mulheres, Ovídio pressupõe que o casamento é apenas um contrato e que o amor acontece fora do casamento.

Essa é a convicção clara de Ovídio, a de que no casamento só há o cumprimento de uma lei. Há uma elegia nos "Amores" em que é absolutamente inequívoco: depois de um banquete onde ele e a amante se entretiveram a fazer um jogo clandestino por baixo da mesa, saem e ele diz: "A partir de agora entrarás em casa e vais-lhe dar a ele de direito o que a mim deste furtivamente".

É um retrato da sociedade da época?

Os romanos tinham essa concepção, a relação conjugal tinha um objectivo simples que era gerar filhos para continuar a raça e para defender as fronteiras. O imperador Augusto fez leis contra o adultério não porque tivesse escrúpulos de natureza moral mas porque precisava de soldados. Todos os poetas elegíacos do século I a. C. são unanimes em reconhecer isso: o amor existe, de facto, fora do casamento.

A "Arte de Amar" não está muito longe da actualidade?

O que este livro tem de delicioso é provar que ainda estamos a seguir a cartilha de há dois mil anos, nunca nos afastámos dela: nas artes do engano, nas artes da sedução... Os truques são iguais, os mecanismos de sedução também. Por exemplo, quando estão no anfiteatro, a forma de meter conversa com a jovem que está ao lado do potencial sedutor não muda nada. Ou seja, a modernidade adoptou os truques do engano.

 A própria ideia do amor como combate e do homem como caçador e da mulher como presa ainda se usa.

Ainda usamos a metáfora da caça: ir à caça no sentido de envolver-se no processo de sedução. Usamos filar. Usamos até palavras mais pejorativas. O vocabulário da sedução masculino, o mais aviltante, refere-se às mulheres como a gado - ainda há dias estava de volta de um escritor moderno onde encontrei isso. A metáfora da guerra também é bastante antiga mas tem um significado diferente, já não é tão indigna cm relação à mulher, porque tem muito a ser com a valia física necessária no acto de amar, a comparação passa pela robustez física. Está na "Artte de Amar" onde ele diz que o amor é uma espécie de milícia, ou seja, de serviço militar.

É frequente ouvirmos críticas à efemeridade das relações amorosas:a "Arte de Amar" vem "provar" que isso afinal não é uma característica contemporânea?

Há dois mil anos, em Roma, e já antes do século I ª C. o sexo funcionava em rede. As pessoas relacionavam-se fisicamente ao ritmo de um parceiro por noite sem que isso trouxesse grandes perturbações de natureza social. Ovídio estimula esta relação. Ovídio tem poemas muito interessantes que me fazem lembrar o cinema moderno, o voyeurismo, em que o poeta amante está escondido e assiste à relação amorosa da sua amante com um rival.

Diz que a imagem que temos da Roma da República é deslocada, confundida com a Roma imperial, dos excessos. Em Ovídio não há já sinais desses excessos?

Já se caminha para aí. Tem a ver com o conhecimento que Roma foi tendo dos outros povos. Os romanos descendentes dos etruscos, os romanos da Sabina, os povos itálicos eram austeros, toda a monarquia cresceu dentro da austeridade. À medida que a República foi evoluindo, conquistou territórios. Primeiro a Grécia e absorveu o gosto pela cultura, pela elegância. No século I a .C. também avançou para oriente e todo o Médio Oriente tinha aquela exuberância. Os romanos conquistaram esses povos e importaram gostos pela arte mas também pelo luxo. Significa que no século I a.C. embora Augusto defendesse uma maior austeridade, já estamos a assistir a uma degradação. Quando digo que está um pouco deslocada, é porque a imagem de Roma depravada não é do século I a .C. mas do I d.C., é a Roma de Nero, de Calígula, de Cláudio – como diz um dos estudiosos franceses, Roma era quase uma feira do sexo onde tudo se vivia em função do prazer, da carne, do dinheiro, do deslumbre. Ovídio já está nessa transição, já é o poeta desses salões. E não falta quem diga que foi condenado ao exílio por causa da "Arte de Amar", por ter ensinado os romanos a serem cada vez mais depravados.

Escreve que os latinos enfatizaram mais do que os gregos a prisão do amor, a humilhação e a irracionalidade. Ovídio é excepção?

Sim e não. No que diz respeito à irracionalidade, ele canta-a na "Arte de Amar", mas só na terceira pessoa – o episódio de Pasifae, em que diz que essa irracionalidade é feminina.

Nos "Amores" ele celebra de alguma forma a paixão dele e alguma irracionalidade, mas não tanto como os outros poetas. Sobretudo Tibulo, Propécio e Catulo, que vivem a escravidão do amor.

Catulo e Propécio vivem submersos nessa prisão, passam noites a fio à porta da amada à espera que ela o mande entrar enquanto está com um rival. A escravidão por parte do homem é muito mais intensa na poesia latina deste século. Virgílio não vive nada disso (na primeira pessoa), mas o amor que celebra é também todo ele de escravidão.

 Em Virgílio, a mulher é sempre fonte de desgraça.

Acho que Virgílio era misógino, não há mulher em Virgílio que leve a uma situação positiva. As grandes personagens femininas de Virgílio terminam em tragédia: Eurídice, Camila...

É por Virgílio ser misógino ou porque a paixão é entendida como um sentimento independente da vontade?

As duas coisas. Por um lado há que ter em conta que Virgílio era um epicurista e um epicurista, ao contrário do que as pessoas pensam, não é o que vive para o prazer, é o que evita os excessos. Um epicurista não se envole na política, não casa, não vive a fulguração do amor para não ter a ressaca. Mas a forma como trata as mulheres na sua epopeia é profundamente negativa.

Porque é que Ovídio pode ser considerado progressista em relação às

mulheres?

Se lermos bem a "Arte de Amar" percebe-se que a mulher pode escolher o amante. Ele confere-lhe o direito de recusar e escolher. Aliás, há nos "Amores" uma elegia que fala de uma noite não conseguida - descreve todas as tentativas da mulher para o estimular mas ele não foi capaz e queixa-se. Tem uma expressão espantosa: "A verdade é que eu queria e fui por ela aceite". E isto está dito na voz passiva: se lhe reconhece o direito de aceitar, reconhece-lhe o direito de rejeitar. Isto é uma novidade. Para se ter uma noção: a sociedade usava um verbo diferente para casar consoante o sujeito fosse homem ou mulher. Se for homem o verbo é transitivo. Manuel conduz, Maria ao casamento. Se for mulher tem que ser na voz passiva: Maria é conduzida ao casamento.

Ovídio não critica mas confessa na "Arte de Amar" incompreensão pelo prazer das relações entre homens.

Ele não rejeita a relação com um parceiro do mesmo sexo por qualquer escrúpulo de ordem moral ou social, só rejeita porque não lhe dá tanto prazer - é a única razão que aponta. Nos outros poetas latinos há sinais de uma relação com homens, e até intensas. Em Tibulo é intensíssima a relação com Márato... O caso mais característico é Catulo. Mas isto para os romanos era perfeitamente aceite, a não ser que houvesse uma subversão que não tem a ver com o sexo mas com o poder: se o lado passivo na relação for desempenhado por quem tem poder é objecto de chacota. Quem exerce a penetração tem de ser o detentor do poder. Isto faz com que, de um lado, esteja um cidadão adulto e, do outro, um jovem ou, de um lado, um cidadão livre e, do outro, um escravo.

Quais são as influências mais importantes que deixa Ovídio?

É dos poetas latinos que mais influencia a posteridade. Ovídio é o poeta dos deuses, do amor e do exílio. Poeta dos deuses porque tem um livro espantoso "Metamorfoses". Poeta do exílio porque fundou a poética do exílio com "Cantos de Tristeza". O poeta do exílio dominou a história da literatura – Alexandre Herculano escreveu "Tristezas do Desterro". Camões celebra o exílio evocando-o . O poeta do amor atravessou toda a Idade Média e muito do Renascimento. A poesia medieval está cheia de jogos de sedução ovidianos. Acho estranho que os estudiosos que apontam muitas origens para as cantigas de amigo, que dão à mulher a primazia, não se lembrem da origem ovidiana.

Ovídio das "Metamorfoses" é muito conhecido na Idade Média e ao longo do Renascimnento é quase a cartilha, é o dicionário de mitologia dos renascentistas porque está lá tudo.

E também influenciou pintores

Já não é propriamente o meu domínio. As coisas estão no ar, é como se fosse uma atmosfera na qual respiramos, portanto um autor pode nunca ter lido Ovídio, Propércio ou Catulo e ter reflexo das abras deles.

Eça de Queirós é muito ovidiano na arte da sedução e nos mecanismos da traição: toda a ironia com que celebra o amor, os amores clandestinos. Camilo Castelo Branco também. Há dias um aluno fez um trabalho sobre Flaubert e "Madame Bovary" está cheia de ecos da "Arte de Amar". Outro aluno descobriu "As Ligações Perigosas" de Choderlos de Laclos: é tudo Ovídio do princípio ao fim".