17-9-2000

 

Manuel Maria Barbosa du Bocage

(1765-1805)

 

 

 

Estas duas obras (6+2 volumes) estão online em http://books.google.com

 

Poesias – Tomo I

Poesias – Tomo II

Poesias – Tomo III

Poesias – Tomo IV

Poesias – Tomo V

Poesias – Tomo VI

 

de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, coligidas em nova e completa edição por Inocêncio Francisco da Silva, e precedidas de um estudo biográfico e literário sobre o poeta, escrito por L. A. Rebelo da Silva

Lisboa, 1853, em casa do Editor A. J. F. Lopes, Rua Áurea, n.º 227 e 228

  

 

RIMAS, de Manoel Maria Barbosa du Bocage, dedicadas à amizade,  Lisboa, 1802, na Oficina de Simão Taddeo Ferreira. Com licença da Mesa do Desembargo do Paço. Vende-se na mesma Oficina da Rua da Atalaia, ao Bairro Alto.

  

Tomo I – 1800

Tomo II - 1802

 

 

Sonetos e Outros Poemas, de Bocage

Manuel Maria Barbosa Du. Bocage, Sonetos e outros poemas. [São Paulo] : FTD, 1994. (Grandes Leituras)

Online: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000059.pdf

 

              SONETO XXXII

 

Não dês, encanto meu, não dês, Armia,

Ternas lamentações ao surdo vento:

Se amorosa impaciência é um tormento,

Com ledas esperanças se alivia.

 

A rigorosa Mãe, que te vigia,

Em vão nos prende o lúcido momento,

Em que solto, adejando o pensamento,

Sobe ao cume da Glória e da Alegria.

 

As fadigas de Amor não valem tanto,

Como a doce, a furtiva recompensa,

Que outorga, inda que tarde, aos ais e ao pranto.

 

Amantes estorvar, que astúcia pensa?

Tem asas o Desejo, a Noite um manto:

Obstáculos não há, que Amor não vença.

 

 

 

Estando o autor na cela do seu amigo Fr. João de Pousafoles, e acontecendo apagar-se-lhe um cigarro, pediu lume, que o dito amigo lhe recusou

 

Amigo Frei João, cuidas que é barro
O fumoso tabaco por que berro?
Um nigromante me transforme em perro,
Se há coisa para mim como o cigarro!

Ele me arranca pegajoso escarro,
Que nas fornalhas deste peito encerro;
O frio, as aflições de mim desterro,
Quando lhe lanço a mão, quando lhe agarro.

De vício tal, se é vício, não me corro,
E só tomo rapé, simonte ou esturro,
Quando quero zangar algum cachorro.

Amigo Frei João, não sejas burro;
Diz bem do cigarro; senão, morro;
Traz-me lume já ou dou-te um murro!

 

   

 

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

 


Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

 

Ó tranças de que Amor prisões me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Ó ledos olhos, cuja luz parece
Ténue raio de sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vênus? — É mentira;
Sois de Marília, sois dos meus amores.

 

Ó Céus! Que sinto n'alma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver de veia em veia
Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: <<A que se expõe quem não receia
Contemplar Ursulina um só momento!

>>Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e com um tiro
Puni tua sacrílega loucura:

>>De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
À tua linda ingrata algum suspiro.>>

 

 

De cerúleo gabão não bem coberto,
passeia em Santarém chuchado moço,
mantido, às vezes, de sucinto almoço,
de ceia casual, jantar incerto;

dos esbrugados peitos quase aberto,
versos impinge por miúde e grosso;
e do que em frase vil chamam caroço,
se o que, é vox clamantis in deserto;

pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
que, tendo um coração como estalage,
vão nele acomodando a mil peixotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
cercado de um tropel de franchinotes?
– É o autor do soneto: – é o Bocage

 

Já se afastou de nós o Inverno agreste
envolto nos seus húmidos vapores;
a fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:

Varrendo os ares, o subtil nordeste
Os torna azuis; as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste:

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza.
Destas copadas árvores o abrigo:

Deixa louvar dar corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

  

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar ao sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.

 

   

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos.
Saiba morrer o que viver não soube.

 

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

 

 

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

 

 

 

O ADEUS 

 

...Auguste verité

Repans sur mês écrits ta force et ta clarté.

VOLTAIRE, Henriade,.Chant 1

 

 

De Marília cantemos

As virtudes e encantos,

O seu nome exaltemos.

Musa d’Almeno consagrada a prantos,

Oh Musa minha! Alegra-te: é preciso

Trocar antigas lágrimas em riso.

 

A gratidão te inspira:

Fere as cordas brilhantes

Da temperada lira;

De Amor as flamas, os grilhões não cantes,

Não cantes a cegueira do Universo,

Eleva a mais o torneado verso.

 

A virtude, a beleza,

Eis os grandes objectos

Que, honrando a Natureza,

Exigem teus louvores, teus afectos;

À verdade arranquemos a mordaça:

Não necessita de lisonja a graça.

 

Tu, que no carro de ouro

Giras os céus divinos,

Deus dos vates! Deus louro!

Dá-me os teus sons, ensina-me teus hinos,

Teus hinos, que rochedos amolgaram,

Que de Anfriso a corrente aprisionaram.

 

A minha alma arrebata

Em êxtase de glória

A bela estância grata,

Onde contigo as filhas da memória

Tecem para a sublime heroicidade

Altas capelas, que não rói a Idade:

 

Não desdenhes meu rogo,

Nume! Ouve-me... Oh pasmo!

Que transporte! Que fogo

Me lambe o coração! Que entusiasmo

Da terra, qual tufão, me afasta as plantas

Estro! Sacro furor! Tu me levantas.

 

Eu penetro os vapores,

Que nos ares se estendem,

Eu.. .Céus! Que resplendores!

Os débeis olhos ao redor me ofendem!

Nado em mares de luz!... E não me abraso!...

Ah! ... Sossega, minha alma: eis o Parnaso.

 

Olha as sábias, as nove

Puras irmãs de Clário,

Olha as filhas de Jove:

Lá tem defronte o precioso Erário,

Que guarda, em vez de lúcidos tesouros,

Honrosas palmas, generosos louros.

 

Salve, Augusta Assembleia,

Congresso venerando,

Que inflamais minha ideia!

Mas que rosto gentil, sereno e brando

Ó musas, vosso número acrescenta,

E seus olhos nos meus emprega atenta.

 

Quem és, é nova Graça?

Quem és, nova Camena,

Que o santo coro abraça

Nesta montanha deleitosa, amena?

Raro objecto! Quem és? Não fiques mudo

Ah! Já te reconheço e te saúde:

 

És, Marília, és aquela,

Que exercendo comigo

A virtude mais bela,

A bela compaixão, me deste abrigo.

Olhaste, carinhosa, um desgraçado,

Desesperada vítima do Fado;

 

És a luz que me guia

A meus perdidos lares,

E a quem minha harmonia

Há-de no império do senhor dos mares

Erguer aos céus em cânticos de Apolo,

Ao som dos berros do soberbo Eolo.

 

Hoje as Musas te of’recem

A perdurável c’roa,

Que alcançam, que merecem

Os génios grandes, cujo nome voa

Além de Febo, além do Firmamento,

E onde apenas sobe o pensamento.

 

Ah! Só do grão Tonante

As adoradas Filhas

Da tua alma brilhante

Pintem, Marília, os dons e as maravilhas:

A prudência não quer que a mais me arroje:

Cai-me a lira das mãos, a voz me foge.

 

Desses louros eternos

Entre as Musas cingida

Ouve somente os ternos,

Vãos clamores de amarga despedida,

Que para os olhos meus, que perdem tanto,

Está de novo convidando o pranto.

 

Eis as velas branquejam,

Zune propício o vento

(Quão propícios te sejam

Os habitantes do estrelado Assento),

Eu me entrego do mar à variedade,

Acompanhado da fiel saudade.

 

Do baixo esquecimento,

Que as lembranças consome,

Sempre em meu pensamento

Triunfará teu venerável nome:

Só nas asas da vida transitória

Desta alma voará tua memória.

 

 

Fiel demonstração do respeitoso afecto de

MANUEL MARIA de BARBOSA DU BOCAGE

 

  

Poema inédito a publicar do vol. II da obra completa de Bocage, editada pela Caixotim, ao cuidado de Daniel Pires.

O poema foi publicado em 1897, no número inaugural da revista Noites de Évora.

É uma homenagem do poeta a Maria de Saldanha Noronha e Menezes, uma das pessoas que manifestaram a sua solidariedade e Bocage, na sua breve estadia em Macau, em 1789, depois de desertar do posto de tenente na praça de Damão.

 

De: Jornal de Letras, Artes e Ideias

Ano XXV / N.º 920

4 a 17 de Janeiro de 2006