16-11-2011
Tomás António Gonzaga (1744 – 1810) (cont.)
Recomendo a leitura no Projecto Vercial dos seguintes poemas:
Tu não verás Marília cem cativos - Parte III, Lira 3
Nesta triste masmorra, de um semi-vivo corpo sepultura - Parte II, Lira 19
Alexandre, Marília, qual o rio que engrossando - Parte I, Lira 27
Vou-me, ó bela, deitar na dura cama - Parte II, Lira 34
Parte I, Lira 1
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado;
de tosco trato, d’expressões grosseiro,
dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite,
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
dos anos inda não está cortado:
os pastores, que habitam este monte,
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste;
nem canto letra, que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que teu afecto me segura,
que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte, e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve:
papoula, ou rosa delicada, e fina,
te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o céu, gentil pastora,
para glória de amor igual tesouro!
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Leve-me a sementeira muito embora
o rio sobre os campos levantado:
acabe, acabe a peste matadora,
sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso:
nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
para viver feliz, Marília, basta
que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Irás a divertir-te na floresta,
sustentada, Marília, no meu braço;
ali descansarei a quente sesta,
dormindo um leve sono em teu regaço:
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas,
toucarei teus cabelos de boninas,
nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Depois de nos ferir a mão da morte,
ou seja neste monte, ou noutra serra,
nossos corpos terão, terão a sorte
de consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
lerão estas palavras os pastores:
“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
siga os exemplos, que nos deram estes.”
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!
Parte I, Lira 5
Acaso são estes
os sítios formosos,
aonde passava
os anos gostosos?
São estes os prados,
aonde brincava,
enquanto passava
o gordo rebanho,
que Alceu me deixou?
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Daquele penhasco
um rio caía;
ao som do sussurro
que vezes dormia!
Agora não cobrem
espumas nevadas
as pedras quebradas;
parece que o rio
o curso voltou
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Meus versos alegre
aqui repetia:
o eco as palavras
três vezes dizia.
Se chamo por ele,
já não me responde;
parece se esconde,
cansado de dar-me
os ais, que lhe dou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Aqui um regato
corria sereno
por margens cobertas
de flores, e feno:
à esquerda se erguia
um bosque fechado,
e o tempo apressado,
que nada respeita,
Já tudo mudou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Mas como discorro?
Acaso podia
já tudo mudar-se
no espaço de um dia?
Existem as fontes,
e os freixos copados;
dão flores os prados,
e corre a cascata,
que nunca secou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Minha alma, que tinha
liberta a vontade,
agora já sente
amor, e saudade,
Os sítios formosos
que já me agradaram,
ah! não se mudaram;
mudaram-se os olhos,
de triste que estou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Parte I, Lira 7
Vou retratar a Marília,
a Marília, meus amores;
porém como? Se eu não vejo
quem me empreste as finas cores:
dar-mas a terra não pode;
não, que a sua cor mimosa
vence o lírio, vence a rosa,
o jasmim, e as outras flores.
Ah! Socorre, Amor, socorre
ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
traze-me as tintas do Céu.
Mas não se esmoreça logo;
busquemos um pouco mais;
nos mares talvez se encontrem
cores, que sejam iguais.
Porém não, que em paralelo
da minha Ninfa adorada
pérolas não valem nada,
não valem nada os corais.
Ah! Socorre, Amor, socorre
ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
traze-me as tintas do Céu.
Só no Céu achar-se podem
tais belezas, como aquelas,
que Marília tem nos olhos,
e que tem nas faces belas;
mas às faces graciosas,
aos negros olhos, que matam,
não imitam, não retratam
nem Auroras, nem Estrelas.
Ah! Socorre, Amor, socorre
ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
traze-me as tintas do Céu.
Entremos, Amor, entremos,
entremos na mesma Esfera,
venha Palas, venha Juno,
venha a Deusa de Citera.
Porém não, que se Marília
no certame antigo entrasse,
bem que a Páris não peitasse,
a todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
não bastam tintas do Céu
Parte II, Lira 2
Esprema a vil calúnia muito embora
entre as mãos denegridas, e insolentes,
os venenos das plantas,
e das bravas serpentes.
Chovam raios e raios, no meu rosto
não hás de ver, Marília, o medo escrito:
o medo perturbador,
que infunde o vil delito.
Podem muito, conheço, podem muito,
as fúrias infernais, que Pluto move;
mas pode mais que todas
um dedo só de Jove.
Este Deus converteu em flor mimosa,
a quem seu nome dera, a Narciso;
fez de muitos os Astros,
qu’inda no Céu diviso.
Ele pode livrar-me das injúrias
do néscio, do atrevido ingrato povo;
em nova flor mudar-me,
mudar-me em Astro novo.
Porém se os justos Céus, por fins ocultos,
em tão tirano mal me não socorrem;
verás então, que os sábios,
bem como vivem, morrem.
Eu tenho um coração maior que o mundo!
tu, formosa Marília, bem o sabes:
um coração, e basta,
onde tu mesma cabes.
Parte II, Lira 27
A minha amada
é mais formosa,
que branco lírio,
dobrada rosa,
que o cinamomo,
quando matiza
co’a folha a flor.
Vénus não chega
ao meu Amor.
Vasta campina
de trigo cheia,
quando na sesta
c’o vento ondeia,
ao seu cabelo,
quando flutua,
não é igual.
Tem a cor negra,
mas quanto val!
Os astros, que andam
na esfera pura,
quando cintilam
na noite escura,
não são, humanos,
tão lindos como
seus olhos são;
que ao sol excedem
na luz, que dão.
Às brancas faces,
ah! não se atreve
jasmim de Itália,
nem inda a neve,
quando a desata
o Sol brilhante
com seu calor.
São neve, e causam
no peito ardor.
Na breve boca
vejo enlaçadas
as finas per’las
com as granadas;
a par dos beiços
rubins da Índia
têm preço vil.
Neles se agarram
amores mil.
Se não lhe desse,
compadecido,
tanto socorro
o Deus Cupido;
se não vivera
no peito seu;
já morto estava
o bom Dirceu.
Vê quanto pode
teu belo rosto;
e de gozá-lo
o vivo gosto!
que, submergido
em um tormento
quase infernal,
porqu’inda espero,
resisto ao mal.
Parte II, Lira 28
Detém-te, vil humano;
não espremas a cicuta
para fazer-me dano.
O sumo, que ela dá, é pouco forte;
procura outras bebidas,
que apressem mais a morte.
Desce ao Reino profundo,
ajunta aí venenos,
que nunca visse o mundo:
traze o negro licor, que têm nos dentes,
nos dentes denegridos
as raivosas serpentes.
Cachopo levantado,
que pôs a natureza
dentro no mar salgado,
não se abala no meio da tormenta;
bem que uma onda, e outra onda
sobre ele em flor rebenta.
Árvore, que na terra
as robustas raízes,
buscando o centro, a ferra,
não teme ao furacão mais violento,
e menos, se se deixa
vergar do rijo vento.
Sou tronco, e rocha, ó Bela,
que açoita o Sul, que brama,
e o mar, que se encapela:
Não temas que do rosto a cor se mude;
vence as rochas, e os troncos
a sólida virtude.
A maior desventura
é sempre a que nos lança
no horror da sepultura:
o cobarde a morrer também caminha;
com que males não pode
uma alma como a minha?
Parte III, Lira 8
Em cima dos viventes fatigados
Morfeu as dormideiras espremia:
os mentirosos sonhos me cercavam;
na vaga fantasia
ao vivo me pintavam
as glórias, que desperto,
meu coração pedia.
Eu vou, eu vou subindo a nau possante,
nos braços conduzindo a minha bela;
volteia a grande roda, e a grossa amarra
se enleia em torno dela;
já ponho a proa à barra,
já cai ao som do apito
ora uma, ora outra vela.
Os arvoredos já se não distinguem:
a longa praia ao longe não branqueja;
e já se vão sumindo os altos montes,
já não há que se veja
nos claros horizontes,
que não sejam vapores,
que Céu, e mar não seja.
Parece vão correndo as negras águas,
e o pinho qual rochedo estar parado;
ergue-se a onda, vem à nau direita,
e quebra no costado;
o navio se deita,
e ela finge a ladeira
saindo do outro lado.
Vejo nadarem os brilhantes peixes,
cair do lais a linha que os engana;
um dourado no anzol está pendente,
sofre morte tirana,
entretanto que a sente,
ao tombadilho açoita
a cauda, e a barbatana.
Sobre as ondas descubro uma carroça
de formosas conchinhas enfeitada;
delfins a movem, e vem Tétis nela;
na popa está parada;
nem pode a Deusa bela
tirar os brandos olhos
da minha doce amada.
Nas costas dos golfinhos vêm montados
os nus Tritões, deixando a esfera cheia
com o rouco som dos búzios retorcidos.
Recreia, sim, recreia
meus atentos ouvidos
o canto sonoroso
da música sereia.
Já sobe ao grande mastro o bom gajeiro;
descobre arrumação, e grita – "Terra!"
À murada caminha alegre a gente;
alguns entendem que erra;
pelo imóvel somente
conheço não ser nuvem,
sim o cume d’alta serra.
De Mafra já descubro as grandes torres;
- E que nova alegria me arrebata! -
De Cascais a muleta já vem perto,
já de abordar-nos trata;
já o piloto esperto,
inda debaixo manda
soltar mezena, e gata.
Eu vou entrando na espaçosa barra,
a grossa artilharia já me atroa;
lá ficam Paço d’Arcos, e a Junqueira;
já corre pela proa
uma amarra ligeira;
e a nau já fica surta
diante da grã Lisboa.
Agora, agora sim, agora espero
renovar da amizade antigos laços;
Eu vejo ao velho pai, que lentamente
arrasta a mim os passos.
Ah! com vem contente!
De longe mal me avista,
já vem abrindo os braços.
Dobro os joelhos, pelos pés o aperto;
e manda que dos pés ao peito passe;
Marília, quanto eu fiz, fazer intenta;
antes que os pés lhe abrace
nos braços a sustenta;
dá-lhe de filha o nome,
beija-lhe a branca face.
Vou descer a escada, oh Céus, acordo!
conheço não estar no claro Tejo;
abro os olhos, procuro a minha amada,
e nem sequer a vejo.
Venha a hora afortunada,
em que não fique em sonho
tão ardente desejo!
Poema traduzido para Russo por Puchkin
Parte II, Lira 9 |
Tradução para francês * |
Tradução para Russo |
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A estas horas eu procurava os meus Amores; tinham-me inveja os mais pastores.
A porta abria, inda esfregando os olhos belos, sem flor, nem fita, nos seus cabelos.
Ah! que assim mesmo sem compostura, é mais formosa, que a estrela d’alva, que a fresca rosa.
Mal eu a via, um ar mais leve, - que doce efeito! - já respirava meu terno peito.
Do cerco apenas soltava o gado, eu lhe amimava aquela ovelha que mais amava.
Dava-lhe sempre no rio, e fonte, no prado, e selva, água mais clara, mais branda relva.
No colo a punha; então brincando a mim a unia; mil coisas ternas aqui dizia.
Marília vendo, que eu só com ela é que falava, ria-se a furto, e disfarçava.
Desta maneira nos castos peitos, de dia em dia a nossa chama mais se acendia.
Ah! quantas vezes, no chão sentado, eu lhe lavrava as finas rocas, em que fiava!
Da mesma sorte que à sua amada, que está no ninho, fronteiro canta o passarinho;
Na quente sesta, dela defronte, eu me entretinha movendo o ferro da sanfoninha.
Ela por dar-me de ouvir o gosto, mais se chegava; então vaidoso assim cantava:
“Não há pastora, “que chegar possa “à minha bela, “nem quem me iguale “também na estrela.
“Se amor concede “que eu me recline “no branco peito, “eu não invejo “de Jove o leito;
“Ornam seu peito “as sãs virtudes, “que nos namoram; “no seu semblante “as Graças moram.”
Assim vivia... hoje em suspiros o canto mudo; assim, Marília, se acaba tudo.
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Voici l’heure où naguère je cherchais mes amours; les autres bergers enviaient mon sort.
En entr’ouvrant sa porte, elle frottait encore ses beaux yeux. Pas de fleurs, pas de rubans à sa noire chevelure.
Sans art, sans apprêt, elle était plus brillante que l’étoile du matin, plus fraîche que la rose qui vient d’éclore.
A peine je la voyais, qu’un air plus léger se répandait autour de moi, et mon cœur respirait plus librement.
Quand le troupeau sortait du bercail, je couvrais de caresses la brebis qu’elle aimait le plus.
Je conduisais cette brebis favorite au ruisseau, a fontaine, à la prairie, au bocage. Je lui donnais l’eau la plus claire, le gazon le plus épais.
Puis folâtrant avec elle, enlaçant mes bras à son cou plus blanc que la neige, je lui prodiguais mille tendres noms.
Et Marilie me voyant ainsi parler seul, souriait à la dérobée.
La flamme dévorante s’augmentait chaque jour dans mon cœur et dans celui de ma bergère chérie.
Que de fois assis auprès d’elle je façonnais la quenouille légère que je lui destinais !
J’était comme l’amoureux passereau qui chante près du nid de son amante.
Dans les chaleurs de l’été, m’entretenant avec elle, je frappais négligemment les cordes de ma guitare.
Marilie s’avançait vers moi; j’entendais le son de sa voix divine. Joyeux alors je chantais :
« Non, il n’est pas de bergère aussi tendre que Marilie, il n’est pas d’étoile aussi heureuse que la mienne.
« Lorsque je m’incline sur son cœur brûlant d’amour, je ne porte pas envie à la couche divine où repose le maître de l’Olympe.
“Dans son âme sont toutes les vertus; sur son visage toutes les grâces. »
Ainsi coulaient mes jours. Les tristes soupirs ont maintenant remplacé les chants de bonheur et d’ivresse. Tout passe, Marilie !
|
С португальского
Там звезда зари взошла,
|
(*) Do livro Marilie, Chants élégiaques de Gonzaga, traduits du Portugais par E. de Monglave et P. Chalas, Paris, C.L.F. Panckouke Editeur, M DCCC XXV | При жизни Пушкина не печаталось. Вольный перевод стихотворения «Recordações» («Воспоминания») Томаса-Антонио Гонзага (1744 — 1807?), автора любовных стихов, в которых он воспевал Марилью (М. Ж. Сейшаш). Пушкин переводил эти стихи, по-видимому,не с португальского подлинника, с французского перевода («Marilie, chants élégiaques de Gonzaga, traduits par E. Monglave et P. Chalas», Paris, 1825), при этом он слегка изменил начало и сократил центральную часть | ||
Tradução: Não foi impresso durante a vida de Puchkin. É uma tradução livre do poema "Recordações" ("Reminiscências"), de Tomás António Gonzaga (1744-1807 ?), autor de poemas de amor que ele compôs para Marília (M. J. Seixas). Puchkin traduziu o poema, aparentemente, não do Português original, mas da tradução francesa («Marilie, chants élégiaques de Gonzaga, traduits par E. Monglave et P. Chalas», Paris, 1825), modificando um pouco o início e cortando a parte central. | |||
NOTA: Não me parece que a nota esteja correcta. O texto francês é uma prosaica tradução literal que não poderia ter inspirado Puchkin. |