15-9-2013

 

 

Cartas do Abade António da Costa (1714 - 1780)

 

 

Ao longo da história houve pessoas cujas cartas têm um interesse que dura para muito para além do tempo em que foram escritas num ponto de vista histórico literário humano etc. um qualquer coisa que as torna fora do vulgar.

As cartas de Vicente Nogueira (1586-1654) de Roma são importantes pelo seu valor literário para descrever o carácter do personagem   para documentarem a sua cultura geral o amor pelos livros a relação com D. João IV para quem comprava música com o Marquês de Nisa para quem comprava livros embora sem importância política que não têm nenhuma.

As cartas de José da Cunha Brochado (1652 – 1735) têm essas sim um interesse político e histórico pelas missões diplomáticas que desempenhou.

As cartas de Francisco Xavier de Oliveira o Cavaleiro de Oliveira (1702 – 1783) são um espelho dos meios que frequentou cheias de ironia e repletas de anedotas.

Menos divulgadas são as cartas do Abade António da Costa (1714 – 1780 ?) treze cartas de um padre misterioso que fugiu de Portugal em 1749 não se sabe porquê viveu em Roma Veneza e Viena de Áustria com uma escapadela a Paris. Era músico competente tocava violino e também compunha. Mas da sua música nada nos chegou.

Homem solitário misantropo vivia mal mas com pouco se contentava. Em Roma não tinha autorização para celebrar Missa que parece ter-lhe chegado depois da ida para Viena por volta de 1772. Aparentemente em Viena era mais conhecido.

Porque fugiu de Portugal? É mistério mas provavelmente porque tinha algum sangue de cristão novo o que bastaria para o levar à Inquisição. De facto ele refere-se à distinção entre cristãos velhos com muita ironia quando diz:

cristãos velhos puríssimos pela graça de Deus” que “procedem de gerações limpas como as estrelas”  (carta IV)

Sobre a perseguição aos cristãos novos é extremamente duro na carta XI no trecho aqui transcrito.

Tem ainda uma expressão com uma ironia muito fina quando chama “católico novo” ao Conde de Oyenhausen-Groewenbourg (1739-1793) que em Fevereiro de 1778 se converteu ao catolicismo para casar com a futura Marquesa de Alorna - D. Leonor de Almeida Lorena e Lencastre condessa de Oeynhausen 7.ª condessa de Assumar e 4.ª marquesa de Alorna (1750-1839).

O nosso enviado a quem os portugueses não se atrevem a chamar católico novo sendo-o na realidade ainda está em Paris” (carta XII).

Refere-se ele ao facto de o Conde ter sido em 1780 nomeado por D. Maria I Embaixador em Viena para onde partiu com a esposa. Na carta XIII refere-se a ela assim: “O novo ministro de Portugal chegou aqui nos primeiros dias de Setembro; para alemão é agradável no trato com seus laivos de Português. Falei já com a fidalga três vezes e bastante mas não tanto quanto é necessário para formar conceito dela com acerto; tem o agrado de portuguesa; e à primeira vista parece certo ser mulher de juízo; faz bem versos; sabe francês italiano inglês latim e já principia a entender alemão”.

Sobre a estadia em Viena remeto para os trechos transcritos da edição de Joaquim de Vasconcellos em 1879 e do livro de Charles Burney. De notar que a designação Duque de Bragança não é correcta. Era D. João Carlos de Bragança e Ligne de Sousa Tavares Mascarenhas da Silva (1719-1806) 2.º Duque de Lafões. Pelos vistos em Viena tratavam-no por Duque de Bragança talvez porque tivessem dificuldade em pronunciar “Lafões”.

Na carta XI o Abade dizia que estava cego de um olho e que pouco tempo depois havia de perder também a outra vista. Descreve em pormenor as suas doenças.

Por isso o Abade deve ter falecido muito pouco tempo depois de ter escrito a carta XIII.

 

 

   

N.º da carta

 

 

   Local

 

 

          Data

 

 

        Destinatário

 

 

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII 

 

Roma

Idem

Idem

Idem

Idem

Idem

Idem

Veneza

Viena

Idem

Idem

Idem

Idem 

 

6 de Outubro de 1750

28 de Fevereiro de 1752

Maio-Junho de 1752

27 de Abril de 1752

30 de Abril de 1754

20 de Maio de 1754

30 de Agosto de 1754

22 de Julho de 1761

23 de Julho de 1774

24 de Dezembro de 1774

4 de Dezembro de 1779

29 de Julho de 1780

7 de Outubro de 1780

 

João Peixoto

Idem

António Nunes

Senhor Doutor

Idem

Idem

Idem

Pedro Pereira de S. Paio

Senhor Doutor

Idem

Manuel Gomes da Costa Pacheco

Idem

Idem

 
 

Sobre a valia literária das Cartas do Abade transcrevo da Prof. Andrée Rocha: "Músico vagabundo satisfeito logo que assegurado pela "cantarola" de cónego o pão quotidiano possa "brincar com a viola e contemplar os verdes" de olho alerta para tudo o que é belo (até o belo sexo) e filósofo sem o saber António da Costa inaugura o tipo moderno do artista anarquista e boémio que não se enquadra nos compromissos da sociedade e que passa bem sem fartura e glória desde que possa adquirir cordas para a rabeca." E a terminar: "É justo pois dar a estas cartas onde cada leitor encontra pelo menos uma quando não várias razões de se prender um lugar de destaque na epistolografia  de Setecentos fazendo votos para que se possa um dia arredondar este pequeno mas saboroso património com novas epístolas da mesma pena álacre e desempoeirada."

Tanto Joaquim de Vasconcelos em 1879 como Fernando Lopes Graça em 1946 pouco progrediram na identificação dos correspondentes do Abade António da Costa. João Peixoto seria rabequista da música da Sé do Porto e é o único que identificam.

Um texto encontrado na Internet da autoria de Roberto Vaz de Oliveira (n. 12-4-1899 1-3-1975) figura grada da cidade da Feira  publicado em Dezembro de 1973 permite-nos adiantar mais identificações: http://www.prof2000.pt/users/avcultur/aveidistrito/boletim16/page58.htm  .

Manuel Gomes da Costa Pacheco foi Tabelião do Público Judicial e Notas da vila da Feira pelo menos desde 1779  (documento PT/TT/RGM/E/112251 da DGA/TT); foi filho de Luis Gomes da Costa e de sua esposa Clara Luísa Pacheco que viviam na Ferraria no Porto. Tiveram estes os filhos Sebastião Gomes da Costa Pacheco (1740-1818) Manuel e José Alberto (todos formados em Coimbra)  e as filhas Luísa Clara e Antónia Quitéria Clara. Em 1789 Sebastião e a esposa que não tinham filhos compraram a Quinta das Ribas na Feira e foram para ali viver a fim de estarem perto de seu irmão Manuel e dos sobrinhos filhos deste último. Deverá existir ainda numerosa descendência do Manuel sobretudo através de sua neta Maria Teresa Pacheco Ferreira (?? – 1874) casada com José Eleutério Barbosa de Lima Filho (1797 - 1870).

Estes dados permitem-nos já identificar o Senhor Doutor como sendo Luis Gomes da Costa provavelmente advogado pois diz que é letrado de ofício (carta IX) o qual terá falecido por volta de 1778 mais ano menos ano altura em que o Abade se dirige ao filho Manuel a quem escreve as últimas três cartas. Já na carta VIII dizia – “Vossa Mercê me faça o favor de me pôr aos pés do (…) Sr. Dr. Luis Gomes”.

Tem muito prazer nas cartas de Manuel Gomes por serem de um filho do maior amigo que tive “ (Carta XI).  Na mesma carta envia “Muitas saudades ao Sr. Dr. Sebastião Gomes e às Sr.ªs suas irmãs ainda que só conheci a Sr.ª Antónia e diga-me que é feito do Dr. José Alberto?” São todos irmãos do destinatário Manuel Gomes da Costa Pacheco.

 

 

 

Joaquim de Vasconcellos:

 

O período da sua vida em Viena é um dos mais interessantes e um dos menos desconhecidos graças às noticias que pudemos descobrir num livro hoje raro e estimado. As viagens de Burney (1) em Alemanha são a única fonte de notícias sobre a vida do Abade Costa e talvez o único testemunho literário do século XVIII que salvou a memória do abade português. Burney chegou a Viena em princípio do Setembro de 1772 com boas cartas de recomendação mas estas não abriam todas as portas. O sábio inglês conta (I-229) que uma pessoa de alta linhagem lhe confessara haver feito durante cinco anos de estada em Viena esforços baldados para se relacionar com Metastásio. O abade italiano tinha o seu lever como qualquer príncipe e dava audiência à primeira nobreza de Viena só quando sentia vontade de a aturar; Gluck Hasse (3) faziam outro tanto. Wagenseil Gassmannn Wanhal (4) e outros dii minores não se tinham em menos conta; nestas circunstâncias um cicerone como o Abade Costa valia mais do que ouro; a ele e ao Abade Taruffi (5) outro tipo original deveu Burney as melhores relações que adquiriu em Viena.

Foi em casa do embaixador inglês Lord Stormont que Burney travou relações com Costa. O Duque de Lafões já o havia informado numa reunião anterior em casa do mesmo lord acerca do caracter de Costa. Estas explicações juntas às que Lord Stormont e um outro grand amateur de Viena Mr. L’Augier (6) lhe haviam fornecido despertaram vivamente a curiosidade do sábio inglês. Um simples abade que ocupava a atenção e despertava o interesse de um príncipe de sangue real de um embaixador de uma grande potência de amadores milionários e que apesar da sua extrema pobreza se fazia rogar para aparecer nos primeiros salões de Viena pareceu- lhe uma raridade. O Duque do Lafões havia-o pintado com dois traços: É sumamente difícil no capítulo visitas; recusa todos os presentes seja de que modo for; vive de uma missa que lhe rende 15 pence (7) por dia não fala a ninguém a detesta que falem dele. As suas ideias artísticas dizia ainda o Duque são tão singulares como o seu carácter; é um inimigo declarado de Rameau; odeia a Basse fondamentale (8) «como a mais absurda de todas as invenções porque destrói tudo o que seja fantasia lógica de ideias e senso comum musical".

Esta amostra bastou a Burney; decidiu-se a arrostar com o abade e não descansou enquanto o Duque de Lafões lhe não prometeu usar de toda a sua influência: to do all in his power—para trazer o misantropo ao salão de Lord Stormont no próximo sarau musical. O duque fez o quase milagre e trouxe o Abade Costa à sala onde já estavam o Principe de Poniatowsky  irmão do rei de Polónia o embaixador português os Condes de Thun o Conde de Brühl o outros membros da alta aristocracia vienense. Costa não se fez rogado pegou na guitarra e saiu-se com um andante e um presto (9). As suas composições diz Burney (I-285) não são menos originais pela modelação do que pelo ritmo o qual é muito difícil sentir em virtude da sua singular configuração e por isso mesmo difícil do fixar com tal e qual exacção.

Ao jantar Burney ficou entre o abade Costa e Gluck... “todos três falámos mais do que comemos» (I-286). Depois recomeçou o concerto. Costa pegou desta vez na rabeca para tocar um duo da sua lavra com o violinista Startzel; este excelente executante e bom músico não deu conta da tarefa apesar de vinte ou trinta tentativas (sic B. I-288) tal era a dificuldade da composição em estilo e em ritmo. Passados poucos dias o Abade Costa foi procurar Burney mui cedo de madrugada e depois do um longo discurso musical convidou-o a ouvir algumas peças de guitarra em sua casa em paz e sossego. Costa queixou-se do ruido em casa de Lord Stormont e declarou que odiava mortalmente os concertos de mais de dois ou três ouvintes. Burney cedeu aos desejos do abade e trepou mais de quatro andares a umas águas furtadas onde Costa morava. Aí repetiu no meio dum silêncio absoluto as mesmas peças que Burney ouvira anteriormente produzindo na verdade muito mais efeito. O crítico inglês conclui notando as mesmas qualidades; originalidade nas ideias e na factura harmónica; e os mesmos defeitos: repetição excessiva dos mesmos temas.

Costa parece que se afeiçoou daí em diante a Burney correndo a via-sacra das visitas com o sábio inglês mister penoso para um homem que não tinha nem carro nem cavalos e dispunha apenas de 15 pence diários para comer vestir e calçar!

A vida em Viena era difícil—“tudo é caro em Viena” – dizia Burney (I-363) – “e o que há de mais caro é a música da qual nada há impresso”. O pobre abade com os 15 pence nem tinha com que pagar copistas nem com que pagar uma entrada num dos dois teatros da capital; o lugar mais barato custava-lhe 16 kreutzer isto é mais de metade do que ele ganhava num dia. Costa vivia honrada e dignamente com 30 kreutzer quando os seus amigos Wagenseil e Metastasio so regalavam um com 1500-1600 florins e o outro com 500 libras esterlinas de pensão imperial.

Foi Costa quem apresentou Burney a Wagenseil (10) a Gassmannn e outros sempre. . playing lhe percursor. O segundo Gassmannn maestro di capella della corte imperiale tinha em seu poder a chave que abria os imensos tesouros artísticos da Biblioteca Imperial o que prova pelo menos a frequência deste depósito por parte do abade. Esta segunda apresentação abria pois a Burney uma colecção inesgotável ciosamente guardada.

Burney conta-nos que antes de despedir-se de Costa tivera com ele uma longa conferência musical (I-363) e que trocaram as suas adresses «a fim de conservar sempre viva a nossa amizade por meio d'uma correspondência literária.”

Não sabemos dizer se essa troca de cartas teve lugar mas em tudo quanto Burney refere do abade transparece a estima que lhe merecia o nosso patrício que ele intitula sempre: my friend the ingenious and worthy portuguese abbate (I-337).

 

 

(1) Ch. Burney. The present state of music in Germany the Netherlands and the United Provinces. London 1773. 2 vol. 8.°

(2) “É um verdadeiro dragão de que todos têm medo” Op. cit. I-265. Vide o estudo de Mr. G. Desnoiresterres. Gluck et Puccini. Paris 1872. 8.º

(3) Sobre este compositor V. Músicos Portugueses. II-132. Foi ele que disse de Mozart no auge da sua glória: «Esta criança fazer-nos-á esquecer a todos» V. Riehl. Musikalische Characterköpfe Stuttgart 1868 1-117 e seg.

Estes três compositores do século XVIII merecem duas palavras:

Wagenseil foi o compositor da moda para o cravo antes da vinda do Messias (Mozart). Morreu em 1779 com 92 anos. Foi a este velho que Mozart disse em 1762 num sarau do Imperador Francisco I: “Monsieur je vais jouer un de vos concertos veuillez me tourner les pages”. Tinha o velho 75 anos e o novo 6.

(4) Gassmannn fez o Catálogo da Livraria imperial de música de Viena; morreu em 1774 tendo nascido em 1729 (V. Fétis vol. 111-415-417). Wanhal (1739-1813) foi um dos árcades do piano antes de Mozart.

(5) Estes abades italianos de Viena eram de quilate especial. Burney fala de um que se entretinha a recitar às suas visitas traduções de Bocaccio e de Voltaire (L’art d’élever une fille)…. “the loosest tales”. Burney I-291; II-323. No meio desta gente Costa!

(6) Mr. L'Augier tinha corrido a França Espanha Itália Turquia e estivera também em Portugal onde travara relações com Domenico Scarlatti. Burney ouviu-lhe com agrado canções boémias espanholas turcas e portuguesas. L'Augier tinha aprendido o cravo com Scarlatti. (V. Burney I-247-253).

(7) Costa acusa nas suas cartas meio florim; sendo 15 pence igual a 80 kreutzer segundo Burney devia o florim ter então apenas 60 (hoje tem 100).

(8) Vid. para mais B. I-257 e Fétia VII- 167; quem ler a exposição de Fétis verá que o abade Costa tinha muito que reparar no livro de Rameau.

(9) Burney (I-286) transcreve o tema dos dois tempos.

(10) Costa parece ter vivido intimamente com o primeiro. Burney encontrou-o ainda mais duas vezes em casa dele (I-337 363).

 

 

MUNDO LITERÁRIO: semanário de crítica e informação literária, científica e artística

 

N.º 13, 3 de Agosto de 1946

 

CRÍTICA

 

CARTAS DO

ABADE ANTÓNIO

DA COSTA

 

Introdução e notas de F. Lopes Graça, Cadernos da “Seara Nova” – Lisboa, 1946

 

Há quase setenta anos, o erudito Joaquim de Vasconcelos publicou, precedidas de ensaio biográfico, umas quantas cartas de um certo António da Costa, mais ou menos abade, e músico, até então apenas conhecido pelas referências que lhe faz o historiador inglês Charles Burney, no seu livro The present state of Music in Germany, etc.

Apenas treze; datadas, as primeiras sete, de Roma, a oitava, de Veneza, e as restantes, de Viena de Áustria as cartas cobrem, de 1750 a 1780, exactamente um período de trinta anos e um dia. Curiosas lhes chamava o copista dos manuscritos; e são-no, porque assim o é a personalidade do autor.

Pela muito reduzida tiragem dessa primeira edição, logo esta se tornou uma raridade bibliográfica, apenas conhecida dos amadores de história da música. Não se descobriram mais cartas, não se encontraram mais referências a António da Costa, e tudo, a seu respeito, é ainda do domínio da conjectura. Como compositor, cujas obras se perderam, é impossível situá-lo na história da música. Não tivesse ele escrito, a amigos seus do Porto, inúmeras cartas; não tivesse um copista salvo pouco mais de uma dúzia delas e o Abade António da Costa, se Lopes Graça o não reeditasse, seria ainda, e talvez para sempre, uma curiosidade para musicólogos eruditos. A presente reedição, se não populariza uma figura de sua natureza impopular, permite apreciar a justiça de Teófilo Braga, a quem António da Costa não escapou, ao afirmar: “nunca a prosa dos nossos homens de letras conseguiu essa naturalidade graciosa, esse vigor de impressões, essas pinturas dos caracteres, das emoções e dos aspectos das coisas”.

É, de facto, um dos maiores interesses das cartas. Não são de um escritor, não visam a mínima sobrevivência, por o seu autor as escrever sabendo que os destinatários as destruirão, conselho que ele próprio tantas vezes lhes dá. O outro interesse, não menor, o retrato psicológico de António da Costa, espírito livre, desassombrado, incompatível com qualquer sociedade, achando Veneza um curral de cabras, lembrando-se da “fala e do riso tao engraçado, da Sr.ª Quitéria, doendo-se do mau conceito que a Europa fazia dos Portugueses, recusando-se a ler o Cavaleiro de Oliveira porque “corta a sua nação à francesa”,,, deixando os cumprimentos esfarrapados para os beatos e velhaquetes”, ciente da sua “falta total de talento e habilidade para servir.” Mas sabe V. M. como passo? Dez reis de pão ao jantar e dez reis a noite, e se alguma vez comprei cinco reis de fruta, era um banquete”. E, noutro passo: “meto-me na minha casinha, e ponho-me a brincar numa viola, ou a olhar para os verdes, que tenho excelente vista da janela: um vale formoso, semeado de casas de lavradores, montes cobertos de verdura, e ao longe serranias com suas névoas por cima, etc. Depois ir passear a borda do rio, e tornar para casa, e acha-la só, e limpa, e ir deitar as horas com o coração sossegado, sem penas, nem desejos: que mais quero?”

Quando, em 1772, Burney chegou a Viena e conheceu essa espécie de Rousseau, mas ainda mais original, havia já dezoito anos que, de Roma, fora enviada a bela carta VI, a que pertence o longo fragmento citado, e faltavam dezasseis para o aparecimento da primeira edição das Confissões, do citoyen de Genève,
Aquele sonho de remanso à janela vem de muito longe. Já está na Menina e Moça, e encontrará, mais tarde, plena expressão poética na obra dos Arcades—

 

Depois que a recolher somente aspiro
Do meu trabalho o fruto verdadeiro,
Outros bens nã
o pretendo, e deste outeiro
Ao mundo enganador as costas viro.

 

(Abade de Jazente Poesias)

 

como se vê por este exemplo de Paulino Cabral, abade também e contemporâneo de António da Costa, que, por certo, o não conheceu. E, à janela ainda, pelo menos mentalmente, escreve Fernando Pessoa alguns dos seus melhores poemas.

O iluminismo, de que António da Costa vai ficar sendo um dos nomes (para listas de escritores que ninguém se da ao trabalho de ler, e no entanto são citados com proficiência), não foi, e muito menos em Portugal, o que uns e outros querem fazer dele. E depois há que distinguir entre a actividade, principalmente pedagógica, de alguns dos maiores vultos, e a atitude espiritual, íntima, de quase todos eles. Desta última é que António da Costa é exemplo. Paradoxalmente, há nesta atitude uma tendêcia para o isolamento, no seio de uma sociedade reputada obscurantista e hostil, de que tem sobeja prova a obra de um Matias Aires, cujo livro principal— Reflexões sobre a vaidade dos homens foi publicado três ou quatro anos depois de António da Costa sair de Portugal. Embora pessimista a La Rochefoucauld, este moralista escreveu também um Problema de Arquitectura civil, obra que reflecte as preocupações dc ciência experimental, colhidas em Franca, depois de o seu autor abandonar, desiludido, a Universidade de Coimbra. Verney publicara em 1746 o Verdadeiro método de estudar, desencadeando uma tempestade polémica, que comprova muito nitidamente o livro tratar de problemas já existentes no espírito da época. As Cartas sobre a educação da mocidade nobre, de Ribeiro Sanches, são editadas em 1760. Todos estes homens pressagiam, aplaudem e vêem uma revolução social no despotismo esclarecido. E o próprio Ribeiro Sanches, adversário confesso da educação popular, deseja que as elites sejam educadas para melhores auxiliares do esclarecido déspota. Nisto, são todos iluministas. E o iluminismo entra precisamente em crise, quando o despotismo e o esclarecimento recebem, do desmentido dos factos, a dissolução do seu conúbio. Falo do iluminismo, historicamente considerado. O culto das luminárias de sempre, e dos despotismos presentes e futuros. E a inconsciente identidade de vistas é que está na base da valorização dos iluministas, feita por espíritos só na aparência liberais. Por outro lado, é o complicar-se de livre-pensamento o iluminismo, que tem criado a repulsa que por ele sentem outros espíritos que, pelo positivismo politico, lhe são tão próximos. O tal desmentido dos factos sente-se, já, na obra de alguns deles: Matias Aires, em Lisboa, sob o governo de Pombal; António da Costa, de país em país, julgando sempre severamente as sociedades que frequenta.

Isto, é claro, são coisas que um critico, mesmo que as saiba..., não deve dizer: “e se V. M. lhes dissesse que tocavam cá mal, era o mesmo que dizer-lhes que eles erraram até agora, entendendo que se tocava tão bem”. (Abade Costa Carta III).

Quais os motivos que levaram António da Costa a deixar Portugal, ninguém sabe. Mas podem ter sido apenas filhos da “senhoria da sua vontade e da independência de juízo, que, entre todos os dons que recebemos da natureza, é, sem nenhuma comparação, o mais estimável de todos” . No estrangeiro, como já se viu, vive dificilmente — “mas estou sossegado, e com toda a minha paciência, e com toda a inclinação que sempre tive para fazer justiça, e desejar que os outros a façam”. Muitos anos depois, quando um filho de um seu amigo lhe oferece a sua casa, para o regresso e uma velhice descansada, ele, que, outrora, brincara com essa ideia (Pode ser que inda estejamos algum dia com os barretinhos e testas rapadas, assentados no banco, à porta da tenda, a vender campeche e açafrão), ele, que já cegou de um olho e vai cegar do outro, não aceita, “porque há muitas coisas de consideração que me impedem de ir para Portugal”.

As suas referências aos italianos e aos austríacos, como as referências aos franceses, são, no entanto, sempre temperadas por comparações de que os portugueses se não saem mal a seu conceito. É muito major a amargura que, por isso, transpira das suas palavras sobre a intolerância nacional: “ter ódio a quem nos não faz mal, antes bem muitas vezes nos quer bem, e até nos parece em mil ocasiões de um excelente natural, é uma das mais refinadas maldades a que pode chegar o coração humano, e indigníssimo de perdão, se não nascesse de falta de juízo”.

Por estes exemplos a qualquer propósito citados, já os leitores terão visto que escritor ê, sem dar por tal, este Abade Costa. E não é tanto, afinal, nestas considerações, em que se percebe uma cautela de fraseado, muito da prosa seiscentista, que a sua originalidade e maior. A leveza e graciosidade da notação rápida, que a Marquesa de Alorna, nascida por altura de Costa escrever a primeira destas cartas, há-de usar nas suas, são, porém, plenamente conduzidas já por ele a um impressionismo tal, que só alguns escritores do sec. xx chegarão a ensaiar. Veja-se a seguinte descrição:

“Toca-se a primeira sinfonia que sempre é de batalha, ligeira (isso sim), despedaçada, confusa, desafinada como um diabo; forte, forte, forte, depressa; forte, vozes de três cordas, bulha; forte, forte, fortíssimo, acabou o Alegro. Andante de B-moes: piano, como o nosso tom ordinário; forte, umas guinadas ásperas que arrancam a alma, e assim vai atá ao fim, forte, piano, forte, piano, com um gosto tão baixo, e com uma afinação tao despropositada que faz ânsias de coração. Segundo a1egro: outra batalha desesperada sem tempo, nem feitio nenhum de música; e acabou a sinfonia. No fim não falta nenhum a dizer aos outros “Bravo! signor Cielli; Bravo! sig. Riminese; anzi bravo a lei: Grazie, obligato; Bravo! sig. Fanti; Bravo a lei, e al sig. Lorenzini; Bravo a loro; Grazie; Bravo! etc..”

A carta IV, com as aventuras de um circunciso e a descrição de um jogo loto semelhante ao bicho, tao popular no Brasil; e a carta V, em que são descritos os espectáculos de Roma, são ambas admiráveis pela graça, pelo poder de observação, pelos achados de um espirito sempre arguto e implacável. É nesta carta V que surge um trecho que começa: “Eu digo somente o meu parecer..., e que é digno de antologia, quando as houver dos clássicos vivos”.

Sofrendo de acanhamento de escrever (por lhe dever um pouco de dinheiro, e não lho poder pagar), e chamando aos remorsos “flatos melancólicos do espírito”, mas falando sempre, afinal, “porque me parece que V. M. terá gosto de ver que eu até agora sou o mesmo António da Costa duro que fui absolutamente inciente de artes plásticas, como todo o sec. XVIII só preocupado de urbanismo e da arte do “secu1o”—é bem o mesmo António da Costa duro, oportunamente republicado.

Lopes Graça, com notas suas ou adaptadas de Joaquim de Vasconcelos, esclarece alguns passos das cartas, que pedem, todas elas, algumas investigações de um erudito desocupado.

JORGE DE SENA

  

Charles Burney:

 

(pag. 256) His royal highness gave me an account of a Portuguese Abbé whom lord Stormont and M. Laugier had before mentioned as a person of a very Angular character - a kind of Rousseau but still more original. He is of the most difficult access;  refuses every offer of service in the way of money and presents though he has nothing but his mass to subsist on which produces him just fifteen pence a day. He is determined to be independent and hates to be talked of by the world and almost to talk to anyone in it. The duke of Braganza however thought he had just interest sufficient to make him and me acquainted;  and as another select musical party was forming on my account for Friday to dine with lord Stormont the duke promised to do all in his power to bring this extraordinary Abate with him. His musical opinions are as singular as his character. He plays very well on the large Spanish guitar though in a very peculiar style: with little melody but with respect to harmony and modulation in the most pleasing and original manner.

He is a professed enemy to the system of Rameau and thinks the Basse Fondamentale the most absurd of all inventions; as it destroys all fancy connection and continuity by perpetually tending to a final close and termination of whatever is begun: falling a fifth or rising a fourth cuts everything off mort or makes the ear which is accustomed to a fundamental base uneasy till a passage is finished.  

 

(pag. 282) The musical party which dined today at lord Stormont's was select and in the highest degree entertaining and pleasing. It consisted of the prince of Poniatowski the duke of Braganza the Portuguese minister count and countess Thun M. L'Augier the chevalier madame and mademoiselle Gluck the Abate Costa c. This Abate is the extraordinary musician that I mentioned before who disdaining to follow the steps of others has struck out a new road both as composer and performer which it is wholly impossible to describe: all I can say of his productions is that in them melody is less attended to than harmony and uncommon modulation;  and that the time is always difficult to make out from the great number of ligatures and fractions;  however his music when well executed which happens but seldom has a very singular and pleasing effect: but it is certainly too much the work of art to afford great delight to any ears but those of the learned.

This Abate is possessed of as great a love for independence as M. Rousseau; he refuses every kind of assistance from the rich though poor with such inflexibility that the duke of Braganza and he had a contention which lasted a fortnight or three weeks upon the following occasion in which however the Abate remained victorious.

He wanted very much to correct the imperfections of the finger-board of his guitar which being strung with catgut and having three strings to each tone he found it frequently happen that these strings though perfectly in unison when open were out of tune when stopped and this at some of the frets more than others;  in order to obviate this an ingenious mechanic was found who with great study and pains invented moveable frets for each string;  but as these were made of brass and had taken up much of the workman's time to accommodate them they amounted to four or five florins a sum the Abate could not afford to pay and yet he would by no means allow the duke of Braganza to do it. At length the dispute was ended by the duke taking the instrument at prime cost and the Abate inventing a more cheap and simple method of correcting the finger-board of another and this he effected in the following manner: he placed longitudinally under the upper covering or veneer as many rows of catgut strings as there were strings upon his instrument; then cutting through the ebony at each fret and laying these under strings open he placed under them little moveable bits of ebony which rendered the chords upon his instrument equally perfect in all keys. He can at pleasure take off this finger-board laterally;  and as his modulation is very learned and extraneous this expedient was the more necessary. But his compositions are not more original in this particular than in the measure;  which from its singularity is very difficult to feel and consequently to keep with any degree of exactness.

He played two movements on his guitar before dinner the subjects of which as nearly as I can remember were these:   

 

 

 

I sate between this Abate and the chevalier Gluck during dinner and we all three talked more than we eat. Gluck recounted to me the difficulties he had met with in disciplining the band both of vocal and instrumental performers at the rehearsals of Orfeo which was the first of his operas that was truly dramatic;  and even after it had succeeded with the public at the coronation of the present Emperor as king of the Romans upon which occasion it was first performed the Empress Queen did not like it; however hearing every one speak favorably of it at court and finding it the general topic of conversation she determined to give it a second hearing after which her imperial majesty expressed her approbation of this opera by sending the poet Calsabigi a diamond ring and Gluck a rich purse lined with a hundred ducats.

 

(pag. 320) The Portuguese abate called on me early in the morning and after a long musical discourse he invited me to his room to hear some of his competitions on the guitar in peace and quiet which it had been impossible to do at lord Stormont's; he hates mortally more than two or three hearers at a time. I followed him to his garret more than twice two stories high;  here he played the same pieces as at lord Stormont's but with more effect in full silence.

 

(pag. 324) To get admission into the archives of the imperial chapel was now the most important business I had to transact;  and my Portuguese Abate had promised to introduce me to M. Gassmannn the Emperor's maestro di capella for that purpose. After quitting M. L'Augier I visited M. Wagenseil where I found my good friend the Abate Costa who had played the precursor and prepared him for my arrival.

Wagenseil is rather in years thin and infirm; he was confined to his couch but received me very politely and conversed freely on the subject of music for a considerable time;  he has a great respect for Handel and speaks of some of his works with rapture; he could not stir from his feat and his left hand had been so ill treated by the gout that he was hardly able to move two of his fingers. However at my urgent request he had a harpsichord wheeled to him and he played me several capriccios and pieces of his own composition in a very spirited and masterly manner;  and though I can easily believe that he once played better;  yet he had sufficient fire and fancy left to please and entertain though not to surprise me very much; he was so obliging as to promise me copies of several of his manuscript compositions for the harpsichord and to make a small musical party for me at his house in order to give me an opportunity of hearing some of his scholars.   

 

(pag. 328) Wednesday 9th. This morning I went with the Abate Costa to M. Gassmannn maestro di capella del corte imperiale. He was very obliging and did me the favour to shew me all his curious books and manuscript compositions.

He surprised me much by the number of fugues and chorusses which he showed me of a very learned and singular conduction which he had made as exercises and studies. Some of them were composed in two or three different times as well as upon two or three different subjects;  and several of these he said the emperor had practiced.

 

(pag. 362) When M. Gassmannn left me I went for the last time to M. Wagenseil and heard him and his little female scholar play several brilliant duets upon two harpsichords: here I again met with my friend the Portuguese Abbé and after a long conversation upon musical matters we parted;  but not till we had mutually exchanged directions and promises to keep alive our friendship by a literary intercourse.

After this I flew home to pack and to pay;  here among other things I was plagued with copyists the whole evening;  they began to regard me as a greedy and indiscriminate purchaser of whatever trash they should offer; but I was forced to hold my hand not only from buying bad music but good. For every thing is very dear at Vienna and nothing more so than music of which none is printed.  

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Cartas curiosas do Abbade António da Costa anotadas e precedidas de um ensaio biográfico de Joaquim de Vasconcellos Porto Imprensa Litterario-Commercial 1879

Online: www.archive.org

 

Cartas do Abade António da Costa Introdução e notas de Fernando Lopes Graça Cadernos da “Seara Nova” Biblioteca do Século XVIII Lisboa Rua da Rosa 246 1946.

 

Andrée Rocha A Epistolografia em Portugal 3.ª Edição Fundação Calouste Gulbenkian Lisboa 2013 ISBN 978-972-31-1507-9

 

Charles Burney  The Present State of Music in Germany the Netherlands and United Provinces or The Journal of a Tour through those Countries undertaken to collect materials for a General History of Music in 2 volumes Vol. I London 1773.

Online: www.archive.org

 

Roberto Vaz de Oliveira Freguesia de S. Nicolau da Vila da Feira in Aveiro e o seu Distrito Publicação semestral da Junta Distrital de Aveiro n.º 16 Dezembro de 1973.

Online: http://www.prof2000.pt/users/avcultur/aveidistrito/boletim16/page58.htm

 

Ann Livermore The Abate Antonio da Costa in Music Letters Vol. 26 n.º 3 (Jul. 1945) pp. 162-171 published by Oxford University Press

Online: www.jstor.org

 

Ernesto Vieira Diccionario Biographico de Músicos Portugueses Historia e Bibliographia da Música em Portugal 1.º vol. Tipographia Mattos. Moreira e Pinheiro Lisboa 1900

Online: www.archive.org