14-12-2008
O CONGO EM 1845
Roteiro da viagem ao reino do Congo, por A. J. de Castro, major da província de Angola
Em 1845, o Governador Geral de Angola, Lourenço Germack Possolo, decidiu negociar com o Rei do Congo, Henrique II (1842 – 1857), um tratado pelo qual, a troco da assistência espiritual fornecida por Portugal através do envio de Missionários, o soberano concederia a Portugal vantagens de ordem política e comercial (Anexo 1). Para isso, nomeou seu embaixador o Capitão António Joaquim de Castro, accionista da Companhia de Agricultura e Indústria de Angola e Benguela, fundada em 1836. Castro era portador de uma carta do Governador para o Rei, datada de 31 de Maio daquele ano, na qual o Rei era convidado a enviar a Lisboa para estudar a seu filho Álvaro. Castro levaria consigo nesta missão o Padre nativo António Francisco das Necessidades (que coroara o Rei em 1843) e ambos acompanhariam depois o Príncipe a Lisboa. O Rei respondeu ao Governador, com uma carta de que foi portador o próprio Capitão A. J. Castro (Anexo 2) que foi certamente também o redactor.
O Capitão Castro deixou-nos o relato pormenorizado dessa viagem, que abaixo reproduzimos, actualizando a ortografia. O relatório, porém, não menciona o fim principal da missão, nem os acordos celebrados. Chegado a S. Salvador a 22 de Junho (20 dias de viagem), logo a 26 assinou um tratado com o Rei, em que os Portugueses se comprometiam a restaurar uma das Igrejas de S. Salvador e a manter lá um missionário e um professor de primeiras letras; o Rei do Congo permitia aos Portugueses estabelecer-se no Ambriz, com uma guarnição militar e construir ali uma fortaleza. Se o Rei fosse atacado na Capital, viriam tropas portuguesas em sua ajuda (Anexo 1).
Por motivos políticos que não explicou, D. Henrique II enviou, não a D. Álvaro, mas sim o seu irmão mais novo, D. Nicolau.
D. Nicolau e os seus companheiros chegaram a Luanda no princípio de Agosto e deverão ter embarcado para Lisboa no princípio de Setembro, tendo ali desembarcado em 1 de Novembro de 1845. D. Nicolau estudou em Lisboa e depois em Coimbra, mas em Março de 1847, voltou a Luanda para ali prosseguir os estudos.
À triste morte de D. Nicolau, já me referi a propósito da decadência do Reino do Congo.
Regressado a Luanda, o Padre António Francisco das Necessidades foi feito Cónego e veio a falecer em Malanje, em 21 de Junho de 1858.
O Governo Português nunca chegou a reconstruir uma Igreja em S. Salvador, como tinha prometido. De vez em quando, lá foi enviando um Padre ao Reino do Congo, mas nunca um Missionário residente ou um Mestre Escola, com grande pena do Rei, já que os missionários eram no Congo vantagem política e fonte de rendimento para os Soberanos.
D. Henrique II manteve, durante o seu reinado, relações cordiais com o Governador-Geral de Angola e com as autoridades religiosas (Anexo 3 – Anexo 4 – Anexo 5).
O CONGO EM 1845
Roteiro da viagem ao reino do Congo, por A. J. de Castro, major da província de Angola em Junho de 1845 [1]
A minha viagem ao Congo teve por objecto ir à corte do rei D. Henrique II, a fim de acompanhar um de seus filhos para Luanda, o qual veio a Lisboa a pedido do mesmo rei feito a sua majestade a senhora D. Maria II; além disto fui encarregado de outros serviços da pátria, dos quais dei conta pelo ministério da marinha.
Para esta viagem não pude colher informações nenhumas em Luanda, parecendo assim que era um caminho encetado de novo, e um único itinerário que existia, e que foi feito por mim quando chefe da repartição militar na província de Angola, esse mesmo estava muito errado por não ter obtido boas informações; tive pois de fazer esta viagem como puramente nova, e a pratiquei da maneira seguinte:
Dia 2 de Junho:
Saí da cidade de Luanda na escuna Ermelinda, as cinco horas e meia da tarde, cheguei à barra do Dande às oito e meia, e não pude desembarcar neste dia por estar escuro e fazer muita calema, o que tornava perigoso o desembarque.
Dia 3:
Desembarquei auxiliado por dongos, canoas grandes, e com grande risco em consequência da calema. A povoação de S. José da Barra apresenta um lindo golpe de vista na embocadura do rio Dande, onde tem um fortim em forma de octógono; um dos lados é aberto para servir de porta, e em cada um dos outros tem uma canhoneira, porém está guarnecido somente com duas peças de artilharia de calibre seis, tem um bom quartel para uma companhia de infantaria, duas propriedades de casas de pedra e cal, e cinquenta e oito cubatas, ou casas de pau a pique barreadas e cobertas de palha, tudo isto na margem esquerda do rio, e defronte desta povoação, na outra margem, estão as paredes da igreja de S. José, que foi queimada pelos pretos do Mussulo em uma invasão que fizeram em tempos remotos. A barra é muito estreita e está obstruída de areias, oferecendo navegação somente a escunas de pequeno lote; porém, no tempo de calema não se pode navegar senão com muito risco. O terreno é muito arenoso, produzindo apenas e com dificuldade a raiz da mandioca; e parecendo ter muito bons pastos, não se dá ali gado de qualidade alguma, excepto o cavalar; por isso ali se estabeleceu uma caudelaria pertencente à fazenda nacional a qual dá alguns cavalos para o esquadrão de cavalaria de Luanda, porém de marca mui pequena e má qualidade.
Dia 4:
Às cinco horas da manhã passei o rio, pondo-me em marcha para o Libongo, aonde cheguei às oito e um quarto, tendo pouco antes passado o rio Lifune. O caminho é muito bom, todo coberto de palmeiras, de matebeiras, e de outras árvores mui agradáveis à vista. O rio é muito estreito, tem pequena corrente, e infunde tristeza; passa-se em uma pequena canoa aonde não cabem mais de quatro pessoas, sendo necessário dar alguns tiros antes de se embarcar para afugentar os jacarés, que algumas vezes atacam a canoa, não havendo aquela precaução.
A povoação do Libongo terá uns oitocentos fogos, com perto de cinco mil habitantes; está situada em uma lindíssima planície coberta de árvores muito frondosas, tais como os tambarineiros, os taculas, os espinheiros e outras de magnificas madeiras.
O terreno é muito bom, produz bela mandioca, feijão de diferentes qualidades, milho, ervilha e excelentes frutos. Os pretos desta povoação são muito asseados nas suas casas, e em conservar as ruas limpas, as quais são largas e alinhadas; ocupam-se os homens no corte de lenhas e em fazer carvão para fornecimento do arsenal de Luanda; e as mulheres e rapazes em fazer esteiras e outras obras de palha, e em cultivar os campos.
Este lugar é comandado por um chefe, delegado do governador-geral de Angola, e é o último ponto militar das possessões portuguesas ao norte de Luanda; aqui me foram fornecidos quarenta e cinco carregadores para meu transporte, porque quase toda esta gente sabe falar a linguagem do Congo, e por isso os preferi a outros quaisquer.
Dia 5:
Descansei na povoação acima mencionada para arranjar as minhas cargas e entregá-las aos pretos que as deviam conduzir.
Dia 6:
Saí do Libongo às cinco horas e um quarto da manhã, caminhando quase sempre a NNE e cheguei ao Andui às dez e meia.
Esta povoação contém vinte e nove fogos ou pequenas cubatas, não tem água senão a grande distância, e muito má por ser estagnada ou reservada nos ocos de umas árvores a que chamam imbondeiros, que furam de propósito para este efeito; aqui fui visitado pelo dembo Muene Andui, D. Paulo Matheus homem bastante idoso. Vinha acompanhado do seu estado que se compunha de dezassete macotas. Assentou-se debaixo de uma árvore mui próxima ao lugar em que eu me achava, e logo que me cheguei, levantou-se, deu-me um abraço, e tornou a sentar-se para receber as homenagens dos meus carregadores, os quais se prostraram por terra sujando as mãos, as fontes, e a testa com o pó do terreno e depois bateram palmas por três vezes. Acabado isto, perguntou-me qual era o objecto da minha viagem, e tendo-lhe dito que ia mandado ao rei do Congo, ajoelhou, bateu também as palmas, e disse-me que muito estimava, finalizando por pedir-me um sinal da minha amizade, ao que satisfiz dando-lhe uma botija de genebra, e fui retribuído com uma quinda de limas e limões; depois almoçou comigo, e retirou-se desejando-me boa viagem.
Às duas horas da tarde segui para os Zulumongos onde cheguei às sete horas da noite a uma povoação de vinte e dois fogos; a gente era bastante agasalhadora; logo que cheguei, acenderam fachos de palha para me verem porque já era escuro, e deram-me casa para pernoitar; no entanto não há segurança entre esta gente, e os meus carregadores estavam com medo, e muito mais tiveram quando pela manhã me viram pôr em marcha sem me apresentar ao dembo do lugar a pagar uma conta a que eles chamam «costume», que vem a ser uma peça de fazenda de lei.
Todo o caminho da jornada deste dia é péssimo, montanhoso, coberto de seixo, e mato cheio de espinhos que rasgavam os panos dos carregadores, e a minha tipoia, o que fazia demorar muito a marcha, e além disto não se encontra água em todo ele.
Dia 7:
Principiei a marcha deste dia às cinco horas da manhã, caminhando quase sempre entre N.E. e NNE., e cheguei ao Cando às dez e meia, tendo de parar a pequena distância da povoação, para mandar pedir licença ao dembo Me Salla para passar, por ser este o uso dos que viajam neste país.
A povoação é de uns duzentos e tantos fogos, e a gente muito altiva, porém as crianças fogem dos brancos. O dembo foi visitar-me depois de me ter destinado casa para descansar, e então lhe fiz ver em bons modos quanto era odioso fazer apear das tipoias os viajantes, e o exigir deles que passassem a pé pela sua banza; deu-me então muitas satisfações, dizendo-me, se eu me incomodei foi porque assim o quis, pois que ele só o exigia dos que iam ao negócio dos negros; finalmente dei-lhe três garrafas de aguardente com o que ficou muito satisfeito e se retirou; depois fui também visitá-lo o que lhe deu prazer, e me foi mostrar toda a sua libata, a qual está situada em uma planície ficando a maior parte das cubatas entre arvoredo.
Às duas horas da tarde deixei este sítio e prossegui minha jornada passando às quatro o rio Honzo, em duas partes a distância de cento e cinquenta passos, pouco mais ou menos, pois que vindo do sertão se divide em dois braços, e assim entra no mar próximo do Ambriz, pela parte do sul, levando muito pouca água.
Às cinco horas cheguei à libata Quizembe, pequena povoação de vinte e nove fogos, situada sobre uma montanha; a gente é muito agasalhadora e as crianças foram esperar-me ao caminho dando demonstrações de alegria, gritando e batendo com a mão na boca. O dembo esperou-me à porta da sua casa, e me ofereceu outra muito próximo da dele, jantou comigo, e depois de se retirar mandou-me duas galinhas que retribuí com uma garrafa de aguardente.
O caminho desde os Zulumongos até este ponto é sofrível e alguns bocados mui agradáveis à vista e entre bosques.
Dia 8:
Às seis horas da manhã continuei minha marcha, a caminho de ENE.; às oito e meia passei o rio Uhezo a vau com muito pouca água; às dez descansei debaixo de um arvoredo para almoçar, e ao meio dia continuei a minha derrota, chegando à uma e meia à libata do dembo Calunga onde fui muito mal tratado, exigindo que saísse da tipoia, e forçando-me a que lhe desse cinco garrafas de aguardente, querendo ainda mais fazendas e missangas que lhe não dei, pelo que me demoraram muito tempo, mas a final deixaram-me passar, e cheguei às três e meia à libata Quicemguele, onde também tive que sair da tipoia e mandar pedir licença para passar, o que me foi concedido sem me exigirem coisa alguma, depois de terem revistado todas as minhas cargas, e de conhecerem que eu não ia à compra de pretos; finalmente perto das cinco horas cheguei ao Bumbe onde fui bem recebido e me deram boa casa.
A primeira das povoações que passei neste dia terá uns duzentos fogos, a segunda é um pouco maior, e a última tem para mais de mil; a gente desta é muito curiosa; logo que cheguei, mais de oitocentas pessoas me rodearam, e alguns me obsequiaram com pequenos serviços que precisava, trazendo-me água e lenha, que eu remunerava, dando-lhe um ou mais bagos de coral falso. No dia seguinte ao da minha chegada, fui visitado pelo dembo D. Agostinho Gonge-a-Pungue, que me significou quanto estimava a minha viagem ao Congo, na qualidade de embaixador de Sua Majestade a Rainha dos Portugueses, e nesta ocasião o acompanhavam talvez mais de dois mil homens armados de espingardas ou de arco e flecha, música a seu uso, da qual os instrumentos são pequenas pontas de marfim furadas, grandes búzios, trompas, cornetas, clarins, engomás, que vem a ser um tronco de madeira leve, oco, de figura de um cântaro furado no fundo e com uma pele na boca, donde se tiram sons muito semelhantes aos dos tímbales, fazendo com toda esta música uma vozearia muito desagradável e sem harmonia alguma, que eu entendesse, mas que acompanhavam dançando e cantando.
O dembo tinha talvez para mais de noventa anos, e não via quase nada, sendo necessário apalpar-me para saber onde eu estava; vinha metido em uma tipoia muito rica com cortinas de seda, e fardado com farda de pano fino encarnado, bordada de oiro, com dragonas de coronel de milícias, tanga de damasco encarnado, e calçado de sapatos mas sem meias, tendo na cabeça uma caginga ou barrete de palha todo coberto com unhas de leão. Logo que chegou, assentou-se em uma cadeira de espaldar que trazia consigo, fora da porta da casa em que eu estava, e foi o lugar em que recebi a sua visita, depois do que disse aos seus macotas que lhe explicassem como eu estava vestido por isso que ele não via; conversou comigo, informando-se do motivo da minha viagem, e pediu-me que me demorasse alguns dias na sua terra, pois que os seus filhos (súbditos) tinham nisso muito prazer. Desculpei-me que tinha ordem para abreviar a minha comissão e que não podia demorar-me mais do que aquele dia, depois mandou vir um grande vaso de porcelana com vinho de palmeira, bebeu, dizendo-me que era para tirar a uanga, que vem a ser «tirar o receio que a bebida esteja envenenada» e me deu também a beber, passando depois a vasilha para beber toda a sua gente um golo cada pessoa, até onde chegasse, principiando pelos mais graduados. Feito isto abraçou-me, disse que ia dar ordens para que à noite houvesse danças para eu ver, e retirou-se mandando-me depois dois porcos e dois carneiros, e eu o presenteei com seis botijas de genebra, seis garrafas de vinho, uma peça de cinta de ramagem e um colar de coralinas. Este lugar é bastante interessante para os que negoceiam em negros, e aqui se reúnem muitos negociantes deste género, não obstante sofrerem vexames e pagarem grandes tributos. A terra é pouco abundante de comestíveis, a água vão buscá-la a grande distância e é de má qualidade.
Dia 9:
Descansei não só para satisfazer ao dembo de Bumbe, mas também para dar folga aos carregadores, e porque eu estava com alguma febre.
Dia10:
Às seis horas da manhã segui minha viagem; às seis e meia passei pela libata Impanzo Zopungue; às seis e três quartos por Quimaleca; e às nove cheguei a Quisampala onde descansei para almoçar. As primeiras duas povoações seriam de uns trinta a quarenta fogos, e a terceira terá o dobro. Da segunda, que está situada num alto, se descobrem talvez mais de quarenta libatas, porém todas pequenas. Em cada uma das três dei uma garrafa de aguardente, e nesta em que descansei fui muito desatendido do dembo que chegou até a desafiar-me com uma espada, porque se tinha embriagado com a aguardente que lhe dei; acomodei-o como pude, porque não ia para brigar com bêbados, e saí deste lugar às duas da tarde. As cinco e meia cheguei à margem esquerda do rio Loge, e passei para o outro lado a fim de pernoitar numa pequena libata do mesmo nome, a qual terá perto de cem fogos; dei cinco garrafas de aguardente por me passarem em duas canoas as minhas cargas e toda a minha comitiva, que se compunha de quarenta e cinco pessoas; o rio neste lugar terá umas sessenta braças de largura, porém é pouco profundo, o que conhecia pelas varas dos chimbicadores, e apenas no centro mergulhava quase toda a vara que teria três braças; as águas correm mui brandamente e de ambos os lados há lindíssimo arvoredo. Chamam a este lugar, de que apresento a estampa, «porto do rei do Congo», porque é ele quem manda pôr ali as canoas para o serviço do estado, por isso paguei tão modicamente, porque os particulares vão a outro porto onde pagam duzentos bagos de coral por cada carga, o que regula por duzentos reis, e cinquenta bagos por cada pessoa.
O terreno desde o principio da viagem é desigual, mas não montanhoso, todo coberto de capim, e apenas algumas árvores muito distanciadas, encontrando-se água repetidas vezes de pequenos regatos e de boa qualidade.
Dia 11:
Principiei a marchar às cinco e meia horas da manhã; às sete e um quarto passei a vau o pequeno rio Quimuanda; às oito e meia cheguei à libata Nemuanda, pequena povoação de nove fogos, e aqui descansei até às duas da tarde por estar um sol insuportavel; uma hora depois passei uma senzala de cinco fogos de que me não souberam dizer o nome, e às cinco cheguei á libata Quimbamba, de cinquenta e um fogos, onde fiz alto por este dia; aqui nada me exigiram, porém dei duas garrafas de aguardente para animar uma dança que à noite fizeram para me obsequiarem.
O caminho é a maior parte montanhoso, cheio de torcicolos, coberto de seixos grandes e muito incómodo para os carregadores que andam descalços; ao mesmo tempo cheio de um capim que larga umas sementes tão agudas que se introduzem pelo fato e picam como alfinetes; mas há, a pequenas distâncias, alguns riachos de excelente água.
Dia 12:
Saí do lugar acima às cinco e meia horas da manhã, às seis e meia passei na libata Nemacuta Namuginga, de dezoito fogos; dez minutos depois o pequeno rio Uochechi, e imediatamente a libata Quengui, de vinte e três fogos: às nove cheguei à libata Dambi, tendo cinco minutos antes passado o rio Zabazaba ; descansei na dita libata, e o dembo dela me foi mostrar o cadáver do seu antecessor que tinha falecido havia oito meses e que ainda não estava sepultado. Achava-se ele embrulhado em muitos panos e apertado em talas de pau muito unidas, o que tudo o dembo mandou tirar para que eu visse o corpo que estava perfeitamente dessecado, e sem cheiro algum, depois do que me foi também mostrar o monumento que lhe tinham erigido próximo à cova, onde em breve tempo ia ser depositado, e me convidou a presentear o defunto, o que fiz deitando na cova duas garrafas de aguardente, assim como já tinha deitado outras duas sobre o cadáver, para o que fui primeiro instruído por um homem pardo que ali se achava à compra de goma copal de que o terreno é muito abundante. Este meu procedimento muito os lisonjeou pelo que me fizeram alguns obséquios.
O monumento era de pedra solta coberta de barro, abrigado ao tempo por um telheiro, como se mostra nesta estampa.
Continuei minha marcha às duas da tarde, passando logo depois o rio Tombe que levava muito pouca água, e às cinco cheguei á senzala Mantioteta, pequena povoação de onze fogos, onde pernoitei. O caminho é igual ao da viagem precedente.
Dia 13:
Eram cinco e meia horas da manhã quando principiei a caminhar; às sete cheguei à libata Tamba, onde me não deixaram passar sem dar três garrafas de aguardente, e para isto me demorei muito tempo, porque foi objecto de consulta entre o dembo, os macotas e uma assa, que se dizia feiticeira, se devia ou não pagar mais; finalmente parti e cheguei às duas da tarde à libata Quibala, de quatrocentos e doze fogos, situada no cume de uma montanha, quase circundada pelo rio Buma, com bastante água, coberta de belas árvores de tacula, e outras de grande corpulência.
Para chegar á libata, sobe-se bastante tempo uma escada de madeira e barro, por entre o arvoredo, onde não penetra o sol, e a final se dá em um largo onde está situada a povoação que é muito bonita por serem as casas mui bem construídas, as ruas alinhadas, e tudo muito limpo; depois de me terem destinado casa, me mandou dizer o dembo D. Afonso Manebala Moenda Congo que desejava ver-me. Fui a sua casa, recebeu-me com muito agrado, fez-me sentar em uma grande cadeira ao seu lado, e conversou comigo a respeito da minha viagem, disse-me coisas bastante lisonjeiras, e agradeceu-me o interesse que Sua Majestade a Rainha tomava pela gente do Congo; falou-me também do comércio da escravatura, e disse-me que por esta ocasião não deixaria o seu rei de alcançar permissão para se continuar este comércio, sem o qual não podiam passar; fiz-lhe ver que as nações da Europa reprovavam o uso de venderem seus irmãos; e ele me perguntou qual era melhor, se vendê-los ou matá-los, porque sempre andavam em guerras, e os que ficavam vencidos ou eram mortos ou vendidos; algumas coisas mais lhe disse para o despersuadir das suas ideias, mas vi que o desgostava e mudei de conversação, passando a elogiar-lhe a sua terra, depois do que foi mostrar-me o seu palácio, que era uma casa bastante espaçosa, feita de palha entrançada e de diferentes cores; mostrou-me as suas armas, magníficas espadas, boas espingardas, azagaias, diabites e alguns noventa barris de pólvora; mostrou-me também a sua copa que continha muito boas loiças, mas tudo destruncado; a sua mobília eram cadeiras americanas de madeira envernizadas de amarelo, e a grande cadeira de que falei e que dá assento a duas pessoas, era de jacarandá, muito torneada, parecendo-me obra muito antiga; depois levou-me outra vez para a cadeira e mandou fazer uma espécie de exercício pelos seus macotas, que eram talvez alguns quarenta homens: todos pegaram em espadas, e principiaram a fazer grandes passos pela sala, a dar golpes no ar, e gritando ao mesmo tempo: o mesmo dembo pegou também na espada e fez coisas muito semelhantes, os outros seguiram-no, e isto durou por espaço de meia hora, a final chegou-se a mim, perguntou-me se gostava, disse-lhe que sim, ficou muito contente, molhou a mão em cuspo, e deu-ma para tocar, o que é sinal de particular estima; pediu-me para ficar alguns dias na sua terra, e tendo-lhe prometido demorar-me o dia seguinte retirei-me para o meu aposento. Pouco tempo depois me mandou um presente que constava de um veado morto, um porco, uma cabra e quinze galinhas; e eu lhe mandei seis botijas de genebra, seis garrafas de vinho, doze peixes secos, e um copo de cristal que ele me tinha visto e de que gostou muito.
O caminho desta jornada é muito mau, tendo de subir-se grandes montanhas, onde não era possível ir de tipoia, e se a subida era custosa, a descida ainda era mais.
Quibala é muito abundante de comestíveis e tudo muito barato sendo a moeda com que se compra o coral falso.
Dia 14:
Descansei porque trazia os carregadores muito estropiados.
Dia 15:
Deixei Quibala às cinco e meia horas da manhã, passando às sete e um quarto na libata Quilau, que terá uns vinte e cinco a trinta fogos; um quarto depois a libata Etuco Imbamba, de dezoito fogos; pouco depois a libata Comolombo, de quinze fogos; às dez e meia a libata Gungungua, de quarenta e seis fogos; e às onze e meia cheguei a Quinanguila, senzala, talvez de mais de trezentos fogos; aqui fui mui bem recebido pelo dembo D. Aleixo de Anginga que me visitou e presenteou.
A gente desta povoação é muito agradável, não me deixava a porta de casa onde fui alojado, e até entravam sem a menor cerimónia para me verem.
O caminho, durante meia hora, depois da saída de Quibala, era muito incómodo, porém depois foi sempre muito bom, quanto o pode ser a uso destes povos que andam sempre a um de fundo, mas com muito pouco trabalho se faria uma excelente estrada para toda a qualidade de transportes, e em todo ele se encontra boa água. A terra é abundante de carneiros, porcos, galinhas, patos, muita qualidade de feijão e milho, vendendo-se este a dez e doze maçarocas por um bago de coral, que vale um real; uma galinha custa de quinze até vinte e cinco bagos, e tudo o mais da mesma forma muito barato.
Dia 16:
Às seis horas continuei a viagem; estava uma bela manhã de cacimbo. Coisa de dez minutos depois passei o rio Evorio a vau, com água pela cintura; mais um quarto de hora outro denominado Dibaia, sobre uma ponte de paus; às sete e meia passei a libata Quinvemba de quarenta e tantos fogos; a pequeno espaço o rio Mutele com mui pouca água; às nove descansei no meio do mato para almoçar, por estar no meio do caminho que tinha a percorrer neste dia; às dez continuei a marchar, e à uma da tarde cheguei à senzala Quiquixe, de cento e quarenta e três fogos, onde pernoitei, sendo muito bem recebido pelo dembo D. Domingos Matheus, o qual me foi visitar e me presenteou com uma quinda grande de couves, feijão verde, batatas-doces e inhames, e eu lhe mandei uma lata de arrátel de pólvora, um pouco de chumbo para caça e duas garrafas de aguardente.
O caminho andado neste dia foi quase todo bom, mas coisa de uma hora antes de chegar a esta última povoação tive de subir grandes cerros e de andar entre montanhas que tornavam péssima a estrada; no entretanto há lindos pedaços de bosques onde se goza deliciosa sombra, durante um quarto de hora e mais de caminho.
Dia 17:
Às cinco horas e três quartos da manhã comecei a caminhar; um quarto depois passei o pequeno rio Zamgalahupa; pouco depois outro, Mabobo; a coisa de quinhentos passos passei outro, Manzonzo; às sete e um quarto a libata Quicande, de vinte e três fogos; a muito pequeno espaço o rio Zambula; às nove e meia o rio Lufua, e imediatamente a libata Mubango Cabrito, de nove fogos; este último rio não dá vau, passa-se parte sobre uma ponte de paus, e parte sobre grandes penedos, e à distância talvez de quinhentos passos deste lugar da passagem para a parte do sertão, se despenha de uma penedia com estrondo medonho, o que deu motivo a que o fosse ver naquele sítio; ali não penetra o sol, de um e outro lado se enlaçam árvores tão altas e em tão grande número que o tornam muito escuro; a gente da libata tem certo prestígio com isto, e diz que em tempo de chuva se não pode passar, porque enche muito e tem uma corrente precipitadíssima, sendo um dos poderosos afluentes do Ambriz.
Às três horas da tarde continuei a minha marcha; às quatro passei a libata Calage, de sete fogos; às quatro e três quartos o rio Macoco, com muito pouca água; e em seguimento a libata Gombe, de vinte e nove fogos; às cinco o rio Ambriz, e logo a libata Mocolo, de vinte e um fogos, onde pernoitei, tendo gasto mais de uma hora para efectuar a passagem de toda a minha gente no último rio que terá umas sessenta braças de largura: é bastante profundo e corre com velocidade, sendo necessário subir com as canoas um pouco pela margem para depois descair no lugar do desembarque que é bastante dificultoso por ter de subir-se imediatamente uma ribanceira muito íngreme que conduz à libata; aqui os pretos não usam de vara em consequência da profundidade do rio, mas sim de umas pequenas pás, e nada me exigiram pela bagagem, porém assim mesmo dei quinhentos bagos de coral.
Dia 18:
Pus-me a caminho às seis e meia horas da manhã; às oito cheguei à libata Manzau, de treze fogos, tendo passado dois pequenos rios de que não me souberam dizer os nomes, e descansei nesta libata por estar um sol ardentíssimo, sem que pudesse continuar a marcha senão pelas três da tarde; às quatro e meia passei o rio Quimanzau, e pouco depois outro denominado Zario; e às seis cheguei à libata Tufuba, de vinte e sete fogos, onde pernoitei. Os dois últimos rios levavam pouca água, porém pela profundidade de seus leitos mostram que em tempos de chuvas serão caudalosos.
O caminho até à libata Manzau é muito bom, mas dali para diante é montanhoso, e o trilho coberto de seixos grandes que incomodam muito os carregadores, e faz atrasar o seu andamento.
Dia 19:
Saí de Tufuba às cinco e meia da manhã, logo passei um rio do mesmo nome com água pelos joelhos; às sete e um quarto passei o rio Bonde e às oito a senzala Futuambumba que teria cento e cinquenta fogos pouco mais ou menos, e um rio deste mesmo nome; às oito e três quartos passei o pequeno rio Vocolo e cheguei à libata de igual nome composta de dezassete fogos, onde descansei. Tornei a pôr-me em marcha às três da tarde, um quarto de hora depois passei um pequeno rio do qual me não souberam dizer o nome, às três e três quartos outro, às quatro outro, denominado Lua, e às cinco cheguei à libata Mahembe de dezassete fogos, onde fiz alto por este dia.
O caminho apesar de ter bom trilho é mau por ser muito tortuoso, ter muito espinho, e outros arbustos que incomodam muito, os quais me fizeram as cortinas da tipoia em pedaços. O último dos rios levava bastante água, e teria umas dez braças de largura, assim mesmo passa-se a vau com água pela cintura, e o Futuambumba passa-se sobre uma ponte de paus com bastante incómodo e algum risco.
Dia 20:
Eram cinco horas e meia da manhã quando me meti na tipoia, às cinco e três quartos passei o rio Bobela, às sete e meia o rio Maçangonia, e a libata do mesmo nome que terá uns duzentos e tantos fogos, e às nove e meia cheguei à senzala Quiungua de trinta e um fogos: aqui descansei até às três da tarde: às quatro passei na senzala Mabumbe de onze fogos, e às cinco cheguei à senzala Pélo, de quinze fogos, e aqui pernoitei. O caminho é como o da viagem antecedente, mas de noite houve muito cacimbo, estavam o capim e os arbustos cheios de água, e me molhei como se apanhasse uma grande chuva. O rio Maçangonia é muito profundo, passa-se sobre uma árvore que parece se deitou através dele para auxiliar os viandantes.
Dia 21:
Principiei a marchar às cinco e meia da manhã; um quarto depois passei na senzala Chiábula de sete fogos, às sete e vinte minutos na senzala Fumbi Amotanda, de treze fogos, às oito e meia cheguei à libata Motanda Acongo, que tinha para cima de duzentos fogos e onde descansei até às dez; às onze passei na libata Lumbe de sessenta e três fogos; às onze e três quartos cheguei á senzala Congo-Di-Acache de dezanove fogos; aqui por estar muito sol tornei a descansar e continuei às três e meia da tarde; às quatro e um quarto passei à libata Congo-Di-Apatu, e às cinco e um quarto cheguei à senzala Quipacaça, de doze fogos, onde pernoitei. O caminho deste dia foi todo muito bom, mas entre Acache e Congo-Di-Apatu tive de descer uma grande montanha onde se não pode passar de tipoia sendo quase um despenhadeiro, e o terreno quase todo é cortado de riachos de muito boa água.
Dia 22:
Saí do lugar em que pernoitei às cinco e meia da manhã; às sete e trinta e cinco minutos passei o rio Lunda; às oito e um quarto a libata Chipélo que terá cinquenta e tantos fogos; um quarto de hora depois uma senzala de dez fogos; às dez e um quarto cheguei à senzala Bópáza Ihongo onde descansei ate às onze e meia; finalmente à uma hora da tarde cheguei à cidade de S. Salvador do Congo, corte do rei. O caminho deste dia foi muito incómodo, porque continuamente se desciam e subiam montanhas.
O Lunda dá vau em tempo seco que é justamente quando o passei, mas assim mesmo com água pelo peito; tem uma ponte bastante engenhosa que na realidade se lhe pode chamar suspensa: de duas grandes árvores que estão nas margens do rio, que terá vinte a vinte e cinco braças de largura, são passadas cordas vegetais ou raízes que dão um comprimento extraordinário, as mais grossas serão de três polegadas e daí para baixo até à grossura de fio de barca, com muitas destas cordas passadas pelos diferentes troncos das árvores formam um plano horizontal e paralelo ao rio, da largura de sete palmos pouco mais ou menos; depois lhe entrelaçam paus delgados, e atados com as cordas mais finas, de forma que o plano apresenta a vista de uma grade muito imperfeita; pelo mesmo modo lhe fazem umas varandas pelos lados para a gente se agarrar; ela cede ao peso do corpo à medida que se vai avançando, e não foi com pouco receio que por ali passei (a maior parte dos meus carregadores preferiram vadear o rio, que é perigoso por ter jacarés), e como é feita à semelhança de uma grade é necessário lançar os pés com cuidado para não os meter nas aberturas; acha-se a grande altura do rio, porque correndo este em uma escavação muito profunda, as árvores a que está presa estão muito altas; no entanto no tempo das chuvas dizem chegarem as águas até muito perto dela, e transbordarem para além das arvores, por isso que destas ainda continua a ponte; porém só de paus grossos lançados delas para o terreno.
Demorei-me na cidade de S. Salvador do Congo treze dias, e apesar de me achar incomodado com febres fui ver os vestígios das antigas obras que ali fizeram os portugueses.
A sé ainda tem toda a capela mor, com uma escadaria de pedra que conduz ao altar, a capela do Sacramento, e a sacristia, que é muito pequena, conserva todas as paredes, mas a que fica sobre uma porta que dá para o palácio do bispo está suspensa pelas raízes de uma árvore que nasceu no resto do edifício; tem parte de uma parede lateral do corpo da igreja; quanto ao mais só se descobrem os alicerces distinguindo-se perfeitamente a porta por existirem em pé dois pedaços das ombreiras de pedra: a arquitectura é muito simples: um paralelogramo forma o corpo da igreja dividido da capela mor por um arco de pedra. Nesta Igreja se acham enterrados os reis católicos do Congo, e vi duas catacumbas de bispos, uma ainda tinha alguns ossos, mas não pude saber de quem eram; também ali existe uma sepultura com uma pequena pedra contendo o seguinte epitáfio:
“Sepultura do Reverendo Cónego Magistral Pantaleão das Neves Fronteira, vigário de S. Salvador, e Vigário Geral do Reino do Congo, faleceu aos 18 de julho de 1746.»
Tinha a cidade doze igrejas: a Sé, S. João, S. Miguel, Santa Luzia, Vera-Cruz, S. Pedro, Santo António, Nossa Senhora dos Remédios, Misericórdia, S. José, Carmo e S. Tiago. A Sé está como já disse, e tem na capela-mor 33 palmos de comprimento e 27 de largura, e no corpo da igreja 108 de comprimento e 42 de largura. S. Miguel, que está quase no mesmo estado de ruína, é um pouco mais pequena. Todas as outras apenas se lhe vê uma ou outra parede levantada, ou unicamente os alicerces.
O palácio do bispo tem ainda em pé as quatro paredes principais e algumas interiores; o pórtico se compunha de três belos arcos de cantaria dos quais o do centro era maior que os outros; para ver isto foi com muito trabalho, porque estava tudo coberto de mato, e eu andava com febre, não podia fazer excessos e internar-me no edifício. Também existe uma grande muralha que terá de comprimento 150 a 200 passos: está na direcção de N. a S., deste lado tem um torreão inteiro, e até com um reboque do meio para cima; com muito trabalho segui parte do alicerce desta muralha que continuava, e me pareceu que ela fechava o espaço em que estavam todos os edifícios, entre os quais havia as quatro paredes de uma grande casa que julgo seria de arrecadação ou quartel de tropa, pois só tinha duas portas na frente e no fundo, e duas pequenas janelas de cada lado: além disto viam-se em diferentes partes outros alicerces que bem indicam ter ali havido casas de pedra e cal: existem igualmente em pé as paredes de um palacete que dizem os pretos ter pertencido ao rei D. Afonso I, e que fora mandado fazer por ele mesmo; porém o actual rei D. Henrique II mora em uma casa de palha, se bem que bastante grande, e tem em fabrico outra de madeira, mas é feita somente por dois carpinteiros, e por isso me parece não estará pronta na vida deste rei que tem para mais de setenta anos.
Agora como capital do reino do Congo tem a cidade de S. Salvador e seus subúrbios para cima de 3 000 cubatas, e pode avaliar-se em 18 000 habitantes, dos quais 3 000 pertencem à libata do rei. As casas da libata são todas de palha e feitas com esmero, no centro de uma estacada coberta de plantas trepadeiras e com uma horta na frente onde tem muito boas frutas, ervilha, milho e couve de muito melhor qualidade da que se pode conseguir em Luanda. As ruas são muito direitas, mas estreitas e não são formadas pelas casas, mas sim pelas estacadas, o que produz um efeito muito agradável á vista.
O solo é magnífico, muito cortado de rios, fértil em legumes, batatas de diferentes qualidades, frutos, gado miúdo, aves, e muita caça grossa e miúda.
A religião da gente do Congo, principiando desde o Libongo, é uma mistura de catolicismo, com um paganismo ridículo; trazem lançada ao pescoço a imagem do verdadeiro Deus Crucificado conjuntamente com os quiteques, ídolos e quiquixes ou símbolos de feitiçarias em que muito acreditam; baptizam-se em missão quando há missionários, mas ignoram absolutamente para que serve o baptismo, confessam-se mas não recebem a Eucaristia e por forma nenhuma admitem o casamento que se opõe à bigamia; o rei é o único que se casa e continua a ter muitas mulheres, vivendo todas em perfeita harmonia com a legítima. Os costumes são também iguais por toda a parte, desde o Libongo, que é onde limitam por terra as nossas possessões: os pretos são muito exigentes, sempre que nas suas terras passa um europeu ou mesmo um africano que já goze o título de branco, pedem tudo quanto há: chitas, camisas, missangas, etc., porém fazem até desatinos não se lhe dando aguardente, e se por acaso se lhes responde que a não há, perguntam se não sabiam para onde iam; os chefes das povoações armam até ciladas aos viajantes para que paguem o quituxe (crime); este pagamento, já se sabe, é em aguardente e fazendas; esta poderá dispensar-se, porém aquela por forma nenhuma; quanto ao mais são até hospitaleiros, quando algum branco chega às suas terras, logo se lhe dá casa, água e lenha, dorme a coberto, e o dono vai dormir para a rua, sem que exijam nada por isto, assim memo os europeus não vão para este lado, apenas algum homem de cor dos de Luanda se abalança a ir até ao Bumbe, ou até Quibala, daí para diante só iam os barbadinhos italianos, e o rei que tinha, como já disse, para mais de setenta anos, e outros ainda mais velhos que ele, fui eu o primeiro homem branco que viram a não ser os ditos frades.
O vestuário dos homens vem a ser um pano de palha enrolado pela cintura e atado em apanhados à imitação de pregas, o qual lhe chega até ao meio das canelas, e outro a que chamam tanga passado por baixo do braço direito e por cima do ombro esquerdo, isto é, em tempo de calor, ou lançado á maneira de capote em tempo de frio; as mulheres andam quase nuas cobrindo-se apenas desde um pouco abaixo do umbigo até metade da coxa com um pequeno pano de palha que atam pelo lado esquerdo, ficando ainda assim desunido por este lado, pelo qual são vistas de alto a baixo todas nuas: este porém é o traje que pertence às solteiras, porque as casadas se diferençam trazendo os peitos cobertos, e umas e outras usam de seis ou mais brincos de cobre em cada orelha, e de muitos braceletes, ou malungas do mesmo metal ou de latão nas pernas e nos braços, o que andando sempre muito lustroso, e assente sobre o preto produz bom efeito à vista; além destes enfeites retalham o corpo pela frente em diferentes sentidos, desde entre os peitos até onde atam os panos, parecendo assim um pouco de ébano com relevos altos: os seus casamentos, a que chamam alambamentos, são um trato feito entre os pretendentes e os pais das raparigas sem que elas sejam ouvidas, mas sempre consentem de boa vontade; elas não levam dote ou coisa que com isto se assemelhe, antes pelo contrário o homem é que tem de fazer dádivas aos pais; elas mesmas estimam que os maridos tenham muitas mulheres para se ajudarem nos trabalhos rurais, sua principal obrigação, e por esta forma vivem grandemente; lá também há infidelidades, mas aquelas que as cometem vão logo contá-lo ao seu homem, disto resulta o padecente pagar não pequena quantia, ou ser vendido como escravo; a mulher que procede assim é boa entre eles e dá uma prova de estima aos seus.
Resta-me falar do rei e da sua forma de governo: ele é absolutamente despótico e decide ainda os casos mais pequenos, faz audiência todos os dias desde que nasce o sol até que se põe, levantando-se apenas para almoçar que é sempre ao meio dia, não tem leis de qualidade nenhuma, decide sempre a seu bel-prazer ou conforme os usos e costumes de seus antepassados, o que lhe consta por tradição, porém às audiências assiste sempre uma corte que se compõe dos duques e marqueses, e todos podem tomar parte na discussão, porém não falam sem pedir a palavra, que lhes é concedida até três vezes, marcando com o seu bastão um risco no terreno por cada uma das vezes que dela fazem uso; o rei não os interrompe na mais pequena coisa e pode seguir o seu parecer ou deixar de o seguir; toda a qualidade de crime se paga, e a sentença marca o pagamento que é proporcionado à gravidade do delito, excepto o crime de roubo na estrada pelo qual são degolados e as cabeças espetadas em paus; quando porém há acusação e algum crime se não pode provar, são mandados os contendores ao juramento da Indúa, onde um preto a que chamam Ganga Bulungo, que quer dizer mágico, lhes prepara uma bebida, ou um bolo de certas plantas venenosas que dá a cada um em porções que parecem iguais: disto resulta que um lança tudo e o outro cai entregue aos efeitos do veneno, neste é que os pretos acreditam que existe o crime, e os parentes do outro lançam-se logo sobre ele com cacetes, machadinhas, paus, etc., e lhe acabam a existência; de maneira que se cai o acusado, é porque na realidade ele era o criminoso, se o acusador é pelo falso testemunho; o que quase sempre acontece é que aquele que tem mais que dar ao tal Ganga Bulungo é o que escapa: os pretos são tão estúpidos e acreditam tão cegamente no que lhe dizem estes impostores que a razão mais esclarecida não seria capaz de lhes fazer entender a maldade destes homens. Este juramento pois, ou é ordenado pelas autoridades, ou se faz por meio de desafios, bem como entre nós se desafia à pistola, à espada etc., o que lhes é permitido. O rei nas suas audiências diárias está vestido como todos os outros pretos, com a diferença de estar calçado, usar de camisa, e de panos finos, de damasco, de outras sedas, ou de chitas, e nos dias festivos por cima do pano, veste farda à europeia, bordada de oiro com dragonas, põe capacete, espada e manto; e os fidalgos é que trazem as insígnias da realeza, coroa, ceptro, etc., ele é o único que se assenta em cadeira, e os mais no chão; não dá beija-mão, os cumprimentos que se lhe fazem são batendo as palmas como já disse, e dá a beijar a cruz pendente do Hábito de Cristo. Todos os objectos com que se veste lhe vão de Luanda, ou pela permutação de escravos, cera e marfim, ou como presentes.
O Congo está dividido em diferentes províncias, as quais são governadas pelos parentes do rei; a do Hembo é governada por um irmão mais novo com o título de Marquês da mesma província; o ducado de Bamba, por outro irmão mais velho; outro pelos primos, etc., e cada um governa independente, e são igualmente absolutos nos seus estados, só não condenam á morte, e quando os pretos se não satisfazem com a sua justiça recorrem ao rei, o qual depois de os decidir os manda acompanhados por um macota a participar ao seu chefe como foram decididos, mas acontece às vezes estes chefes sublevarem-se contra o rei e fazerem-lhe guerra, como aconteceu em 1842, na província de Mabambo, governada por um dos cunhados, o qual chegou a levar-lhe a guerra até S. Salvador, mas aqui foi derrotado; nesta guerra apresentou o rei perto de doze mil espingardas; aqui não há soldados, chama-se às armas por meio de um chocalho que não serve senão para este efeito; logo que toca o chocalho da guerra, todo o homem se apresenta com as armas que tem, o rei só dá pólvora, cada um sustenta-se à sua custa ou do que rouba nos campos inimigos; os prisioneiros são vendidos e o seu produto distribuído por quem os fez; os vencedores degolam as crianças e os velhos que não podem conduzir aos mercados, queimam as povoações, finalmente, são bárbaros ao último ponto.
O que deixo dito é o que resumidamente pude saber dos costumes destes povos, nos poucos dias que ali estive, dos quais cinco foram passados na cama com fortíssimas febres.
Os recursos com que o homem europeu pode contar pelo caminho são a compra de alguma galinha a cem bagos de coral até ao Bumbe, e dali para diante mais baratas, patos pelo dobro, cabritos e carneiros a 500 e 700 bagos, porcos desde 2 000 até 2 500 bagos ou uma peça de fazenda de lei, feijão, frutas, etc., tudo muito barato, e para os pretos há em quase todas as povoações umas cozinhas estabelecidas no meio das ruas, onde as pretas fazem uma comida a que chamam quindengula que consiste em um bocado de carne guisada a seu uso, e uma bola feita de farinha da mandioca levada a pó como a nossa farinha de trigo; o bolo faz a vista do grude dos nossos sapateiros, porém mais compacto, tudo isto enche um pequeno prato de pau e custa 10 bagos; o preto faz duas comidas destas, uma ao almoço e outra ao jantar, e o resto do dia entretém o estômago comendo mandioca crua ou assada, jinguba e milho ou bananas; bebem vinho de palmeira que lhes custa 8 ou 10 bagos cada garrafa, e para todos estes gastos é necessário que se lhe dê 30 bagos cada dia, isto é, aos carregadores, que são de quem falo, porque os que comem à sua custa, é com muito mais economia.
Por esta forma já ficará sabendo qualquer pessoa que tenha de ir ao Congo, que além do necessário para seu sustento deve levar fazenda ou objectos próprios para presentear os dembos ou chefes das povoações, mas seja de que qualidade for o saguate, não sendo acompanhado com aguardente é sempre mal recebido, e esta é distribuída conforme o tamanho das senzalas, ou libatas, isto é, conforme o receio que se pode ter do seu número de gente. Deve haver muita prudência em não escandalizar os pretos; por forma nenhuma contender com suas mulheres, porque são ciosos ao último ponto, e se alguém tem a infelicidade de cometer semelhante erro é pouco tudo quanto leva para pagar o quintuxe; ao chegar a qualquer povoação deve sair da tipoia e mandar pedir licença para entrar, remetendo logo uma garrafa de aguardente, e não pode tornar a meter-se nela senão depois de ter passado, porque o contrário causa desordem que só acaba dando-se mais aguardente; finalmente deve haver uma paciência a toda a prova para suportar as impertinências dos pretos, que querem ver tudo quanto faz o branco, gostam de ver como se lava, veste e calça; a maneira por que come, de que forma se faz a sua cozinha, como se põe à mesa; rodeiam o homem, entram pela casa sem pedir licença, a ponto de a encherem até à porta e privarem a luz, por isso adoptei o costume de mandar pôr a mesa na rua, e jantava no meio de um círculo de gente sem o menor receio; eles não fazem isto senão por curiosidade, porque oferecendo a alguns qualquer coisa não aceitavam, apenas uma criança recebia o que lhe dava, mas assim mesmo era com repugnância, sendo necessário as mães levá-las ao pé da mesa, e notei que muito lhes agradavam estas pequenas contemplações.
(1) Ms. proveniente da Bibl. da extinta comissão central permanente de geografia.
Boletim da Sociedade de Geografia, de Lisboa, 2.ª Série, n.º 2 (1880), pags. 53 a 67